Avaliação da solvabilidade do consumidor

Jurisprudência

Conforme prometido, regressamos hoje ao crédito ao consumo, com uma breve análise da decisão proferida pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) no Processo C‑679/18 (acórdão de 5 de março de 2020), que trata do dever de avaliação da solvabilidade do consumidor por parte do credor.

O tribunal é chamado a pronunciar-se, no essencial, sobre a questão de saber se podem ser estabelecidos limites no que respeita à invocação pelo consumidor do incumprimento do dever em causa e se o tribunal deve poder conhecer oficiosamente desse incumprimento.

Do ponto de vista do direito português, talvez o aspeto mais interessante consista em saber se a previsão apenas de uma sanção contraordenacional é suficiente para cumprir as obrigações resultantes do direito europeu. Lá chegaremos.

As normas relevantes para o caso são os arts. 8.º e 23.º da Diretiva 2008/48/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de abril de 2008, relativa a contratos de crédito aos consumidores. O art. 8.º-1 prevê que “os Estados-Membros devem assegurar que, antes da celebração do contrato de crédito, o mutuante avalie a solvabilidade do consumidor com base em informações suficientes, se for caso disso obtidas do consumidor e, se necessário, com base na consulta da base de dados relevante. Os Estados-Membros cuja legislação exija que os mutuantes avaliem a solvabilidade dos consumidores com base numa consulta da base de dados relevante podem reter esta disposição”. Segundo o art. 23.º, “os Estados-Membros devem determinar o regime das sanções aplicáveis à violação das disposições nacionais aprovadas em aplicação da presente diretiva e tomar todas as medidas necessárias para assegurar a aplicação das referidas disposições. As sanções assim previstas devem ser efetivas, proporcionadas e dissuasivas.

Segundo o TJUE, estas disposições “devem ser interpretados no sentido de que impõem que um órgão jurisdicional nacional examine oficiosamente a existência de uma violação da obrigação pré‑contratual do mutuante de avaliar a solvabilidade do consumidor”, extraindo “as consequências que decorrem, no direito nacional, de uma violação dessa obrigação”.

Conclui ainda o tribunal que o direito europeu se opõe “a um regime nacional nos termos do qual a violação, pelo mutuante, da sua obrigação pré‑contratual de avaliar a solvabilidade do consumidor só é punida com a nulidade do contrato de crédito, acompanhada da obrigação de esse consumidor reembolsar ao mutuante o montante principal, num prazo adequado à sua capacidade financeira, na condição de o referido consumidor suscitar essa nulidade, e isso num prazo de prescrição de três anos”.

No que respeita à sanção propriamente dita (“nulidade do contrato de crédito, acompanhada da obrigação de esse consumidor reembolsar ao mutuante o montante principal, num prazo adequado à sua capacidade financeira”), o TJUE parece considerar que ela é adequada e dissuasiva (considerando 30).

O problema identificado pelo tribunal está na exigência de que o consumidor suscite a nulidade. Como já vimos, esta deve ser de conhecimento oficioso. E não deve estar sujeita a um prazo fixo de arguição de três anos.

Uma questão muito interessante, do ponto de vista do direito português, é a relação desta sanção civil com a sanção administrativa, também prevista no direito checo. Como sabemos, no direito português apenas se estabelece uma sanção contraordenacional para o incumprimento do dever de avaliar a solvabilidade do consumidor (arts. 10.º e 30.º-1 da Lei n.º 133/2009, na redação vigente), não estando prevista qualquer sanção civil.

No considerando 37, depois de concluir que a sanção (civil) não é efetiva, defende o tribunal que “esta conclusão não pode ser posta em causa pelo argumento invocado pelo Governo checo, nas suas observações escritas, segundo o qual as disposições nacionais em matéria de supervisão prudencial das instituições de crédito também preveem uma sanção administrativa sob a forma de uma coima até 20 milhões de CZK (cerca de 783 000 euros), em caso de concessão de um crédito em violação da obrigação de avaliar a solvabilidade do consumidor”. No início do considerando 38 realça-se, ainda, a circunstância de a sanção nunca ter sido aplicada na República Checa.

Da segunda parte do considerando 38 resulta de forma bastante clara que a sanção contraordenacional poderá não ser suficiente, à luz do direito europeu. Vejamos: “essas sanções não são, por si sós, suscetíveis de assegurar de modo suficientemente eficaz a proteção dos consumidores contra os riscos de sobreendividamento e de insolvência, pretendida pela Diretiva 2008/48, na medida em que não se repercutem na situação de um consumidor com quem tenha sido celebrado um contrato de crédito em violação do artigo 8.º desta Diretiva”.

Impõe-se, portanto, a previsão de uma sanção civil, a qual não se encontra consagrada no direito português.

Crédito ao consumo na jurisprudência do TJUE no primeiro semestre de 2020

Jurisprudência

Estamos de volta com mais um post sobre a jurisprudência do TJUE sobre direito do consumo, dedicando-nos hoje a duas decisões sobre crédito ao consumo. Deixamos uma terceira decisão, sobre avaliação da solvabilidade do consumidor, para um post autónomo, que será publicado muito em breve.

No Processo C‑66/19 (acórdão de 26 de março de 2020), está em causa a informação que deve constar do contrato de crédito ao consumo.

Nos termos do art. 10.º-2-p) da Diretiva 2008/48/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de abril de 2008, relativa a contratos de crédito aos consumidores, o contrato de crédito deve especificar de forma clara e concisa, entre outros elementos, informação sobre “a existência ou inexistência do direito de retratação [leia-se direito de arrependimento], o prazo e o procedimento previstos para o seu exercício e outras condições para o seu exercício, incluindo informações sobre a obrigação do consumidor de pagar o capital levantado e os juros, de acordo com a alínea b) do n.º 3 do artigo 14.º, bem como o montante dos juros diários”.

O direito de arrependimento encontra-se previsto no art. 14.º da Diretiva, estabelecendo o n.º 1 que “o consumidor dispõe de um prazo de 14 dias de calendário para exercer o direito de retratação [arrependimento] do contrato de crédito sem indicar qualquer motivo”, começando a correr o prazo “a contar da data da celebração do contrato de crédito” ou “a contar da data de receção, pelo consumidor, dos termos do contrato e das informações a que se refere o artigo 10.º, se essa data for posterior”.

No contrato em causa neste processo, este elemento, tal como outros, não constava diretamente no documento contratual, remetendo o documento para a legislação alemã aplicável, da qual consta a informação (considerando 14).

O TJUE foi primeiro chamado a pronunciar-se sobre a questão de saber se as informações sobre o prazo incluem a informação sobre o início da sua contagem. O tribunal responde afirmativamente a esta questão, o que significa que tem de constar do contrato, não apenas o prazo, mas também quando é que se inicia a sua contagem.

A segunda questão diz respeito à simples remissão no contrato para a legislação, que o TJUE considera ser insuficiente. Com efeito, defende o tribunal que não basta remeter para um diploma legal que contenha as informações em causa, devendo estas constar do próprio documento contratual. As circunstâncias do caso tinham a particularidade de a norma legal não conter também as informações em causa, mas remeter para outro dispositivo legal, mas este aspeto não nos parece ter sido decisivo para a decisão do tribunal, que teria sido a mesma no caso de a norma legal em causa conter ela própria as informações. Isto é visível na afirmação constante do considerando 47: “uma simples remissão, constante das condições gerais de um contrato, para um texto legislativo ou regulamentar que estipula os direitos e as obrigações das partes não é suficiente”.

No Processo C‑779/18 (acórdão de 26 de março de 2020), está em causa o custo do crédito e a informação a ele relativa.

No essencial, a legislação polaca introduz um conceito adicional, não previsto na Diretiva, de “custo do crédito excluindo juros”. O tribunal polaco questionou o TJUE sobre se a introdução deste conceito colocava em causa o direito europeu, tendo em conta que a Diretiva é de harmonização máxima (art. 22.º-1).

É importante ter em conta que, como consta do considerando 47, “resulta dos elementos dos autos submetidos ao Tribunal de Justiça que as disposições nacionais relativas ao custo do crédito excluindo juros se limitam a estabelecer um limite máximo e um método de cálculo desse custo, bem como as consequências do desrespeito desse limite máximo”. Não parece ser, portanto, acrescentada qualquer obrigação de informação suplementar relativamente às que estão previstas no art. 10.º-2.

Este é um aspeto importante para entender a decisão do tribunal, que conclui que o normativo polaco em causa é conforme ao direito europeu se não introduzir obrigações de informação suplementares.

Assim, é possível impor limites ao custo do crédito excluindo custos, mas a indicação do custo do crédito excluindo juros não pode ser imposta enquanto elemento de informação a constar do documento contratual.

Novo consumo: revenge spending ou um consumo mais consciente?

Doutrina

O mês de agosto está quase chegando ao fim e, paralelamente, em Portugal estamos quase a completar os 6 meses de vivência no processo de confinamento-desconfinamento-“re”confinamento já típicos da pandemia de COVID-19. Nos últimos meses, o NOVA Consumer Lab tem investido grande parte do seu tempo na análise das mudanças inerentes ao “novo normal” da realidade global, atentos aos fatos que afetam o Direito e também a estrutura do consumo. E é com base nessa realidade que hoje nos debruçamos sobre as últimas novidades da análise comportamental dos consumidores.

Há muitos anos que a antropologia e a economia dedicam-se a questionar a forma como se desenvolve o consumo, analisando suas variantes ao longo do tempo e a conscientização ou não da sociedade. Em tempos de pandemia, quarentena e COVID-19, as ciências pareciam se contradizer para entender o futuro da influência desse “novo normal” sobre o comportamento das pessoas. O que seria consumido durante a quarentena? Como consumir? E o que se esperar da economia após meses de reclusão social e isolamento?

As tendências temerárias previam um cenário catastrófico, que em muito se concretizou, e a as curvas de análise econômica pareciam passear por todo alfabeto (L, U, V e por aí vai), indicando quedas acentuadas no consumo mundial. Alguns otimistas e simpatizantes da ideia de um consumo mais consciente chegaram a vislumbrar nos período de quarentena e do pós-pandemia uma chance para a racionalização, ou até mesmo controle no consumo social. No entanto, logo fomos (re)apresentados à noção do revenge spending.

O termo revenge spending, que em português significa “consumo por vingança”, foi cunhado na década de 80 na China, relacionando-se ao comportamento pós revolução cultural e ao crescimento vertiginoso do consumo no país após a reabertura dos mercados, como uma definição para o consumo massivo e repentino depois de um período de longa privação das atividades de comprar e de ir às lojas. Em última análise, estudiosos enxergaram o termo, inclusive, como uma tendência econômica.

A lenta e mundial reabertura das lojas físicas após a quarentena trouxe o fenômeno à tona, demonstrando que, além dos recordes de crescimento no consumo pela via digital, o retalho ainda mantinha um espaço especial tanto no gosto como nos bolsos dos consumidores. Uma espécie de consumo em resposta ao período de demanda reprimida levou, no sul da China, uma butique da marca francesa Hermès a vender o equivalente a US$ 2,7 milhões no primeiro dia de reabertura, em abril, como um de seus recordes históricos de [1].

O mesmo movimento também foi revelado em diferentes boutiques de marca de renome em países como Holanda, Suíça e França.

Já em Portugal, a reabertura dos centros comerciais no início de junho deste ano também deu provas do fenômeno quando as redes sociais foram pulverizadas com as imagens das longas filas do Braga Parque para que as pessoas pudessem entrar na loja da rede Primark[2], em contraposição ao imediatamente anterior período de ruas vazias e isolamento.

Ademais, os dados divulgados pelo último relatório da SIBS Analytics[3] demonstrou ainda a recomposição dos gastos dos portugueses após completos 100 dias da pandemia, onde declara que “volvidos 100 dias desde a declaração de estado de emergência e do início reconhecido da crise sanitária em Portugal, observamos três grandes fases no comportamento de consumo dos portugueses: “Preparação” (antes do início das restrições à mobilidade), “Confinamento” (redução abrupta e significativa do consumo) e “Retorno gradual” (progressiva recuperação dos níveis de transações)”. Interessante notar que, de acordo com estes dados, que consideram apenas os números de operações em canais SIBS, o valor médio de transação realizada pelos portugueses no período pós-pandemia (1 a 25 junho) é inclusive superior em € 3,2 ao que era anteriormente, no período normal de consumo (média de janeiro e fevereiro), quando fixava-se na faixa de € 42,6.

Evidentemente, as pesquisas a longo prazo sobre consumo e economia demonstram que mesmo com esta “vingança de consumo”, é pouco provável que se compensem as vendas perdidas e a crise gerada em toda economia global que, segundo os mesmos dados acima citados, apontam para os valores de € 8 mil milhões de quebra acumulada em transações. A dinâmica futura entre mercado e consumidores não dependerá somente da demanda reprimida, nem mesmo do fenômeno da vingança pós quarentena ou da boa colocação do mundo digital, mas de toda uma rede de estímulos oferecidos tanto pelas lojas físicas, quanto virtuais, para que o consumo possa voltar a se estabelecer dentro do “novo normal”. Seguiremos atentos ao que o futuro nos reserva.

 

[1] https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/04/13/loja-da-hermes-na-china-fatura-us-27-milhoes-em-1-dia-pos-quarentena.htm

[2] https://diariodistrito.pt/praias-desertas-e-primark-com-filas-de-perder-de-vista/

[3] https://www.sibsanalytics.com/wp-content/uploads/2020/06/20200629_Report-100-dias-COVID-19_SIBS_Analytics.pdf

A arbitragem de conflitos de consumo em revista

Recensão

Por António Pedro Pinto Monteiro

O Direito do Consumo e a Arbitragem têm sido – desde há muito – duas fórmulas de uma mesma equação com resultados muito positivos ao nível da resolução de conflitos. A alteração legislativa introduzida pela Lei n.º 63/2019, de 16 de agosto (nos termos da qual os conflitos de consumo de reduzido valor económico passaram a estar sujeitos, por opção do consumidor, à arbitragem necessária ou mediação), é mais um passo nesta caminhada conjunta e bem revelador da importância do tema.

Ciente desta ligação, foi recentemente publicado o n.º 13 da Revista Internacional de Arbitragem e Conciliação (RIAC), da Associação Portuguesa de Arbitragem, com um dossier especial nesta temática. Nele são analisados, por vários autores, diversas questões atinentes ao tema das arbitragens de conflitos de consumo:

  • “Reflexão sobre a Arbitragem e a Mediação de Consumo na Lei de Defesa do Consumidor – A Lei n.º 63/2019, de 16 de Agosto”, de Jorge Morais Carvalho e João Pedro Pinto-Ferreira;
  • “Arbitragem institucionalizada de litígios de Direito do Consumo: apontamentos ao âmbito de aplicação da Lei n.º 144/2015, de 08 de Setembro (Mecanismos de Resolução Extrajudicial de Litígios de Consumo)”, de Rui Paulo Coutinho de Mascarenhas Ataíde e Inês Sítima Craveiro;
  • “Da constitucionalidade da arbitragem necessária: o caso da arbitragem no Direito do Consumo”, de Artur Flamínio da Silva e Daniela Mirante;
  • “Viagens organizadas e resolução alternativa de litígios”, de Sandra Passinhas;
  • “Arbitragem de conflitos de consumo”, de João Carlos Pires Trindade; e
  • “El Arbitraje en Línea en Conflictos de Consumo en Brasil”, de João Pedro Leite Barros.

Ao longo das cerca de 170 páginas dedicadas especificamente ao tema (ao qual se soma uma recensão de Mariana França Gouveia ao Manual de Resolução Alternativa de Litígios de Consumo, da autoria de Jorge Morais Carvalho, João Pedro Pinto-Ferreira e Joana Campos Carvalho), o n.º 13 da RIAC pretende chamar a atenção para a importância, cada vez mais notória, da arbitragem de conflitos de consumo.

O referido número foi recentemente publicado pela editora Almedina, estando disponível em: https://www.almedina.net/revista-internacional-de-arbitragem-e-concilia-o-ano-xiii-2020-1593204754.html.

Contratos celebrados à distância e fora do estabelecimento na jurisprudência do TJUE no primeiro semestre de 2020

Jurisprudência

Retomamos hoje a nossa série de posts sobre a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) no primeiro semestre de 2020. Já abordamos os termas do conceito de consumidor e das cláusulas contratuais gerais, dedicando-nos agora aos contratos celebrados à distância e fora do estabelecimento e, em especial, ao direito de arrependimento. Excluímos, para já, os contratos relativos a serviços financeiros, que serão tratados num post autónomo.

Estão em causa três decisões do TJUE, uma relativa ao exercício do direito de arrependimento e, em especial, à indicação de um número de telefone para o efeito e as outras duas respeitantes à aplicação do regime e à existência de direito de arrependimento em dois casos específicos (serviço prestado por um arquiteto, por um lado, e descontos em contratos de transporte, por outro lado).

No Processo C‑266/19 (acórdão de 14 de maio de 2020), estava em causa um site de venda de artigos eróticos e a ausência de indicação do número de telefone nas informações relativas ao direito de arrependimento, apesar de ser indicado um número de telefone nas informações pré-contratuais.

A Diretiva 2011/83/UE prevê, no art. 6.º-1-c), que o profissional deve facultar ao consumidor, antes da celebração do contrato, “(…) o seu número de telefone e de fax, bem como o seu endereço de correio eletrónico, se existirem, para permitir ao consumidor contactá-lo rapidamente e comunicar com ele de modo eficaz”. O profissional deve ainda, nos termos da alínea h) do mesmo preceito, disponibilizar ao consumidor, sempre que este seja titular do direito de arrependimento, “as condições, o prazo e o procedimento de exercício desse direito”, bem como o modelo de arrependimento constante de anexo ao diploma (anexo I, Parte B). O n.º 4 do art. 6.º determina que as informações previstas na alínea h) podem ser prestadas mediante o modelo de instruções de arrependimento apresentado no anexo I, Parte A, considerando-se cumprido o requisito de informação se essas instruções tiverem sido entregues ao consumidor corretamente preenchidas.

O tribunal conclui que “numa situação em que o número de telefone de um profissional é exibido no seu sítio Internet de um modo que sugere, aos olhos do consumidor médio, a saber, um consumidor normalmente informado e razoavelmente atento e avisado, que esse profissional utiliza esse número de telefone para os seus contactos com os consumidores, deve considerar‑se que esse número existe na aceção desta disposição. Nesse caso, (…) o profissional que fornece ao consumidor, antes de este estar vinculado por um contrato celebrado à distância ou fora do estabelecimento comercial, as informações relativas às modalidades de exercício do direito de (…) (arrependimento), recorrendo para esse efeito ao modelo de instruções que figura no (…) anexo I, parte A, é obrigado a indicar o mesmo número de telefone nessas instruções, de modo a permitir ao consumidor comunicar‑lhe a sua eventual decisão de fazer uso desse direito através deste número de telefone”.

Em suma, o profissional não é obrigado a disponibilizar ao consumidor um número de telefone, mas, se o fizer, tem de o incluir também nas instruções de arrependimento e permitir que o direito seja exercido por essa via.

Esta solução está em linha com as alterações introduzidas na Diretiva 2011/83/EU pela Diretiva (UE) 2019/2161. Com efeito, a nova redação do art. 6.º-1-c) passa a impor a indicação de um número de telefone, constando também do anexo I, parte A, na nova versão, a obrigatoriedade de inserção de um número de telefone.

Já no Processo C‑208/19 (acórdão de 14 de maio de 2020), os consumidores celebraram um contrato fora do estabelecimento comercial com um arquiteto profissional, “tendo por objeto a elaboração de um projeto de uma casa individual a construir”.

O tribunal austríaco em causa colocou duas questões ao TJUE, a primeira quanto a saber se o contrato em causa (contrato celebrado entre um arquiteto e um consumidor, por força do qual o primeiro se compromete a elaborar unicamente, a favor do segundo, um projeto de uma casa individual a construir e, neste contexto, a realizar planos) é um contrato “relativo(…) à construção de novos edifícios”, contrato esse que, assim qualificado, estaria excluído do âmbito de aplicação da Diretiva 2011/83/UE, nos termos do seu art. 3.º-3-f). O TJUE responde negativamente a esta questão, aplicando-se a este contrato, portanto, a diretiva.

A segunda questão, que pressupunha uma resposta negativa à primeira, consistia em saber se o contrato em causa pode ser qualificado como um contrato sobre o “fornecimento de bens realizados segundo as especificações do consumidor ou claramente personalizados”, caso em que, nos termos do art. 16.º-c), estaria excluído o direito de arrependimento. Note-se que o art. 2.º-4) define “bem produzido segundo as especificações do consumidor” como “qualquer bem que não seja pré-fabricado e para o qual seja indispensável uma escolha ou decisão individual por parte do consumidor”. O tribunal também responde negativamente a esta questão. Segundo o tribunal, “o objeto principal de tal contrato consiste na realização, pelo arquiteto, de uma prestação intelectual que consiste na elaboração de um projeto de uma casa individual a construir, sendo o fornecimento dos planos como bens meramente secundário em relação à prestação principal a realizar” (considerando 59). Não se aplica, portanto, a referida exceção ao direito de arrependimento. Como também é realçado no acórdão, poderá aplicar-se a exceção prevista na alínea a) do art. 16.º, relativa aos contratos de prestação de serviço, mas nesse caso pressupõe-se que o serviço tenha sido integralmente prestado e que a execução tenha sido iniciada com o prévio consentimento expresso dos consumidores e com o reconhecimento, por parte destes, de que perdem o direito de arrependimento quando o contrato tiver sido plenamente executado. Ora, os dois últimos pressupostos parecem não estar verificados, pelo que o exercício do direito de arrependimento por parte dos consumidores é eficaz.

No Processo C‑583/18 (acórdão de 12 de março), estava em causa uma empresa alemã, que “comercializa, na qualidade de intermediária” de uma outra empresa, cartões de desconto para viagens de comboio dessa outra empresa. A encomenda pode ser feita online e o site da empresa não contém qualquer informação sobre o direito de arrependimento.

Também aqui são colocadas duas questões ao TJUE, consistindo a primeira em saber se a diretiva é aplicável a um contrato nos termos do qual “o profissional não está diretamente obrigado a prestar um serviço, antes adquirindo o consumidor o direito de beneficiar de um desconto nos serviços a contratar no futuro”. O tribunal responde afirmativamente a este questão, baseando-se fundamentalmente no art. 2.º-6), que define contrato de prestação de serviço como “qualquer contrato, com exceção de um contrato de compra e venda, ao abrigo do qual o profissional presta ou se compromete a prestar um serviço ao consumidor e o consumidor paga ou se compromete a pagar o respetivo preço”. A definição é suficientemente ampla para abranger qualquer contrato que não possa ser qualificado como contrato de compra e venda.

Dedica-se, então, o tribunal a responder à segunda questão, em concreto, se este contrato deve ser qualificado como um “contrato relativo(…) a serviços de transporte de passageiros”, estando assim excluído do âmbito de aplicação da Diretiva 2011/83/UE, nos termos do art. 3.º-3-k). A resposta é negativa, aplicando-se, portanto, o regime ao contrato em causa. Tal como na decisão anterior, o tribunal realça que as exceções ao direito de arrependimento devem ser interpretadas “de forma estrita” (considerando 27). Neste caso, segundo o tribunal, deve distinguir-se de forma clara o contrato em causa no processo e o contrato de transporte posterior, não sendo aquele um contrato relativo a serviços de transporte. Com efeito, aquele contrato apenas permite beneficiar de um posterior (e eventual) desconto na contratação de serviços de transporte. Daí a solução que considerar o contrato incluído no âmbito da diretiva.

Em breve voltaremos à jurisprudência do TJUE no primeiro semestre de 2020, a propósito dos temas do crédito ao consumo, da comercialização de serviços financeiros à distância e da resolução alternativa de litígios de consumo.

Fique atento!

Portugal adere à Convenção das Nações Unidas sobre Contratos para Venda Internacional de Mercadorias

Legislação

Hoje no nosso blog fugimos um pouco ao direito do consumo para dar nota da muito aguardada adesão de Portugal à Convenção das Nações Unidas sobre Contratos para Venda Internacional de Mercadorias, adotada em Viena, em 11 de abril de 1980, e também conhecida pelo acrónimo CISG, do inglês United Nation Convention on Contracts for the International Sale of Goods.

A Convenção foi aprovada, para adesão, pelo Decreto n.º 5/2020, de 7 de agosto, que contém em anexo a versão autenticada em inglês e uma tradução em língua portuguesa.

Da longa lista de (85 países) aderentes, constam todos os países da União Europeia, com exceção da Irlanda (e do Reino Unido), e algumas das outras principais economias mundiais, como o Brasil, a China, os Estados Unidos da América ou a Rússia.

A Convenção tem 101 artigos, divididos em quatro partes:

I – Âmbito de aplicação e disposições gerais

II – Formação do contrato

III – Compra e venda de mercadorias

IV – Disposições finais

Nos termos do art. 1.º-1, a Convenção aplica-se a contratos de compra e venda de mercadorias entre partes que tenham o seu estabelecimento em diferentes Estados, nos casos em que ambos os Estados são Estados contratantes ou em que as regras de direito internacional privado conduzem à aplicação da lei de um Estado contratante.

Como já referimos, a Convenção não se aplica a contratos de consumo. Com efeito, o artigo 2.º-a) estabelece que a Convenção não é aplicável às vendas de “mercadorias adquiridas para uso pessoal, familiar ou doméstico, salvo se o vendedor, em qualquer momento anterior à conclusão do contrato ou no momento da sua conclusão, não conhecesse nem devesse ter conhecimento que as mesmas tinham sido adquiridas para um desses usos”.

Apesar de não se aplicar a relações de consumo, a Convenção constitui uma das principais fontes inspiradoras das diretivas sobre venda de bens de consumo [Diretiva 1999/44/CE e Diretiva (UE) 2019/771], em especial no que respeita à introdução do conceito de conformidade do bem com o contrato. Tal como as diretivas referidas, a Convenção também se aplica a “contratos de fornecimento de mercadorias a fabricar ou a produzir” (artigo 3.º-1).

A adesão à Convenção será certamente um passo importante para o aprofundamento das relações comerciais internacionais das empresas portuguesas e o seu estudo será cada vez mais relevante para os juristas nacionais.

Inteligência Artificial Confiável – Livro Branco e operacionalização ALTAI

Doutrina

A Comissão Europeia publicou, em 19 de fevereiro de 2020, o “Livro Branco sobre a inteligência artificial: uma abordagem europeia virada para a excelência e a confiança”.

Este documento é resultado dum forte investimento europeu nesta área, assente na convicção da União Europeia sobre a importância estratégica da inteligência artificial (Artificial Intelligence – AI), que é considerada um fator-chave do desenvolvimento económico. A possibilidade de soluções para muitos desafios da sociedade existia a par da consciência de que aos benefícios certamente se associariam riscos, o que implicava forte ponderação dos impactos socioeconómicos, legais e éticos. A Europa comunitária pretendia permanecer na vanguarda da revolução tecnológica em curso por todo o mundo e, para isso, havia que unir esforços e garantir tanto a competitividade, como o respeito pelos valores europeus. É neste contexto que se desenvolve a estratégia europeia para a inteligência artificial.

O Livro Branco deixa claro, logo de início, que “Num contexto de forte concorrência global, é necessária uma abordagem europeia sólida, com base na estratégia europeia para a IA apresentada em abril de 2018. Tendo em vista enfrentar as oportunidades e os desafios da IA, a UE deve agir unida e definir o seu próprio caminho, baseado nos valores europeus, para promover o desenvolvimento e a implantação da IA. A Comissão está empenhada em facilitar os progressos científicos, preservar a liderança tecnológica da UE e assegurar que as novas tecnologias estão ao serviço de todos os cidadãos europeus, melhorando as suas vidas e respeitando simultaneamente os seus direitos.”.

É, ainda, salientado que “A presidente da Comissão, Ursula von der Leyen, anunciou nas suas orientações políticas uma abordagem europeia coordenada sobre as implicações humanas e éticas da inteligência artificial, bem como uma reflexão sobre a melhor utilização de grandes volumes de dados para a inovação. Assim, a Comissão apoia uma abordagem regulamentar e orientada para o investimento com o duplo objetivo de promover a adoção da IA e de abordar os riscos associados a determinadas utilizações desta nova tecnologia.”.

Na sequência da publicação do Livro Branco sobre a inteligência artificial foi lançada uma consulta pública, que decorreu entre 19 de fevereiro e 14 de junho de 2020, aberta a todos os cidadãos europeus, sendo incentivada a participação da sociedade civil, da academia, das empresas no mercado e de todos os interessados, quer através da resposta a um questionário online, quer através do envio de documentos expondo a sua posição. As contribuições através de questionário encontram-se disponíveis aqui . Um relatório síntese dos resultados quantitativos encontra-se disponível aqui.

Este processo levou à elaboração da versão final da “Assessment List for Trustworthy AI (ALTAI)” que transforma os princípios relativos à AI numa ferramenta que ajuda à sua operacionalização. Consiste numa check-list acessível e dinâmica para autoavaliação dos sistemas de inteligência artificial por quem os constrói e implementa.

A ALTAI, tornada publica em 17 de julho de 2020, está online num documento e num protótipo de ferramenta web, disponível para quem a queira conhecer e aplicar.

Cláusulas contratuais gerais na jurisprudência do TJUE no primeiro semestre de 2020

Jurisprudência

Iniciamos na semana passada uma série de posts sobre a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) no primeiro semestre de 2020. Abordamos então o conceito de consumidor. Analisamos agora quatro decisões proferidas em matéria de cláusulas contratuais gerais.

Começamos pelo âmbito de aplicação da Diretiva 93/13/CEE, do Conselho, de 5 de Abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores. Duas decisões debruçam-se sobre o art. 1.º-2 da Diretiva, que estabelece que “as disposições da presente diretiva não se aplicam às cláusulas contratuais decorrentes de disposições legislativas ou regulamentares imperativas, bem como das disposições ou dos princípios previstos nas convenções internacionais de que os Estados-Membros ou a Comunidade sejam parte, nomeadamente no domínio dos transportes”.

No Processo C‑779/18 (acórdão de 26 de março de 2020), conclui-se que o preceito “deve ser interpretado no sentido de que não está excluída do âmbito de aplicação desta diretiva uma cláusula contratual que fixa o custo do crédito excluindo juros respeitando o limite máximo previsto por uma disposição nacional, sem necessariamente ter em conta os custos efetivamente suportados”.

No Processo C‑125/18 (acórdão de 3 de março de 2020), defende-se que se encontra abrangida “a cláusula de um contrato de mútuo hipotecário celebrado entre um consumidor e um profissional, que prevê que a taxa de juro aplicável ao mútuo se baseia num dos índices de referência oficiais previstos pela regulamentação nacional suscetíveis de ser aplicados pelas instituições de crédito aos mútuos hipotecários, quando essa regulamentação não prevê nem a aplicação imperativa desse índice, independentemente da escolha das partes no contrato, nem a sua aplicação supletiva na falta de um acordo diferente entre essas mesmas partes”.

Nesta última decisão, considera-se ainda que o tribunal nacional deve “fiscalizar o caráter claro e compreensível de uma cláusula contratual relativa ao objeto principal do contrato”. Esta questão é relevante em Estados-Membros que, ao contrário de Portugal, tenham transposto o art. 4.º-2 da Diretiva (“a avaliação do carácter abusivo das cláusulas não incide nem sobre a definição do objeto principal do contrato nem sobre a adequação entre o preço e a remuneração, por um lado, e os bens ou serviços a fornecer em contrapartida, por outro, desde que essas cláusulas se encontrem redigidas de maneira clara e compreensível”)

O tribunal vai mais longe, concluindo que, “para cumprir a exigência de transparência de uma cláusula contratual que fixa uma taxa de juro variável no âmbito de um contrato de mútuo hipotecário, essa cláusula deve não só ser inteligível nos planos formal e gramatical mas também permitir que um consumidor médio, normalmente informado e razoavelmente atento e avisado, esteja em condições de compreender o funcionamento concreto do modo de cálculo dessa taxa e avaliar assim, com base em critérios precisos e inteligíveis, as consequências económicas, potencialmente significativas, dessa cláusula nas suas obrigações financeiras”.

Trata ainda este acórdão das consequências da nulidade da cláusula. Defende-se aqui que é admissível uma norma que permita a substituição de um índice considerado abusivo (neste caso, um índice de referência para o cálculo dos juros variáveis de um empréstimo) “por um índice legal, aplicável na falta de acordo em contrário das partes no contrato, desde que o contrato de mútuo hipotecário em causa não possa subsistir em caso de supressão da referida cláusula abusiva, e que a anulação desse contrato no seu todo exponha o consumidor a consequências particularmente prejudiciais”.

No Processo C‑495/19 (acórdão de 4 de junho de 2020), aborda-se a questão do conhecimento oficioso de cláusulas abusivas, matéria que muito tem ocupado o TJUE e que é muito pouco discutida (e aplicada) em Portugal. Conclui-se que contraria o direito europeu a interpretação de uma norma nacional no sentido de “que impede o órgão jurisdicional a quem foi submetida uma ação, (…) e que se pronuncia à revelia, não tendo esse consumidor comparecido na audiência para a qual foi convocado, de adotar as medidas de instrução necessárias para apreciar oficiosamente o caráter abusivo das cláusulas contratuais em que o profissional baseou o seu pedido, quando esse tribunal tenha dúvidas quanto ao caráter abusivo dessas cláusulas”.

Também o Processo C-511/17 (acórdão de 11 de março de 2020) se ocupa desta temática. Segundo o tribunal, a Diretiva deve ser interpretada “no sentido de que um juiz nacional, chamado a pronunciar‑se sobre uma ação intentada por um consumidor e destinada a obter a declaração do caráter abusivo de determinadas cláusulas constantes de um contrato que este último celebrou com um profissional, não está obrigado a apreciar oficiosa e individualmente todas as outras cláusulas contratuais, que não foram impugnadas pelo dito consumidor, a fim de verificar se as mesmas podem ser consideradas abusivas, mas apenas as que estão relacionadas com o objeto do litígio, tal como este foi delimitado pelas partes, desde que o juiz nacional disponha dos elementos de direito e de facto necessários para esse efeito, completados, eventualmente, por medidas de instrução”. Acrescenta ainda o tribunal que, “embora seja verdade que, para apreciar o caráter abusivo da cláusula contratual que serve de base às pretensões de um consumidor, se deva ter em conta todas as outras cláusulas do contrato celebrado entre um profissional e esse consumidor, essa tomada em consideração não implica, enquanto tal, uma obrigação, para o juiz nacional chamado a pronunciar‑se, de examinar oficiosamente o caráter eventualmente abusivo de todas essas cláusulas”.

Continuaremos esta série muito em breve, com novos temas e novas decisões proferidas pelo TJUE no primeiro semestre de 2020.

Crédito ao consumo e crédito social chinês

Doutrina

Crédito, palavra que vem do latim creditu, significa acreditar, ter confiança. É figura antiga e, juridicamente, tem a sua mais intensa manifestação, no mútuo, em regra de dinheiro e oneroso. Alguém entrega determinada quantia a outrem e crê, por isso é credor, que a mesma lhe vai ser devolvida. São normalmente estipulados juros como contrapartida. Sendo excessivos, consubstanciam usura[1]. Ao longo da História ocorreram várias vicissitudes, por vezes extremamente desagradáveis, como a prisão por dívidas e por usura.

O crédito tem, subjacente, duas ideias. Do lado do credor, a confiança de que o dinheiro entregue vai ser devolvido gerando, entretanto, alguma remuneração e do lado do consumidor, a possibilidade de aceder imediatamente a algo que precisa ou deseja, diferindo o pagamento.

O sistema de crédito social chinês tem, subjacente, duas ideias. Do lado do Estado e do credor, a confiança é substituída pela posse de informação pessoal detalhada que determina se o consumidor vai ou não pagar, assistida por uma vertente punitiva que desincentiva fortemente algum desvio. Do lado do consumidor, a possibilidade de consumir e viver bem se for bom cidadão e de ser fortemente limitado no consumo e na vida se calhar a ser incluído numa lista negra.

No mundo ocidental industrializado, o crédito ao consumo é um instrumento relacionado com a massificação da compra de bens e serviços, impulsionada pela necessidade de reconstrução da Europa de meados do século XX destruída pela guerra. O incentivo à procura que estimulasse a oferta e a resposta do mercado criando bens e serviços, originava um crescimento económico que restaurava os Estados devassados. Desenvolve-se, assim, a denominada sociedade de consumo, ligada ao capitalismo, pressupondo o funcionamento livre do mercado.

Na China, um regime comunista de partido único, política e economicamente centralizado zelava para que o Estado se mantivesse fechado, evitando relações com outros países. Além de ser esta a caraterística dominante da sua história milenar, permitida pela sua própria riqueza e dimensão, a cedência a relações comerciais com os europeus no século XIX saiu-lhe desmesuradamente cara.

No entanto, vários fatores de que se destaca a globalização, vieram originar na China a vontade de enriquecer, produzir e consumir, de acrescentar à relevância política e militar, a relevância económica no mercado global, o que deu origem a uma espécie de contradição nos termos, um regime comunista capitalista.

Ora, é neste contexto que crédito ao consumo liberal e capitalista se mistura com o que usualmente é considerado totalitarismo comunista, originando o “Sistema de Crédito Social” chinês[2].

É um programa que, com total transparência[3], o Governo chinês criou e com toda a clareza explicou: “[Desejamos] permitir aos cidadãos de confiança que passeiem livremente sob o céu e dificultar aos desacreditados darem um único passo”, no Esboço de Planeamento para a Construção de um Sistema de Crédito Social (2014-2020). Conforme planeado, começou a ser implementado em 2014.

Para a sua concretização, foi instalado um sistema de vigilância generalizado, através de câmaras que, ligadas a potentes sistemas de inteligência artificial (AI – Artificial Intelligence) de reconhecimento facial, permitem verificar infrações no espaço público.

Segundo a CNN, na sequência da Pandemia de Covid-19, a vigilância alargou-se ainda mais, sendo instaladas câmaras à porta, e até dentro das casas, dos que estavam em quarentena.

Não tendo o Governo chinês capacidade para aceder a toda a informação que pretendia para a construção do seu sistema, estabeleceu “parcerias” com empresas “privadas”, essencialmente de comércio online, que a recolhiam principalmente para estabelecer classificações (scores) em que iriam basear as suas decisões sobre a concessão ou recusa de crédito ao consumo.

A Sesame, por exemplo, terá ligação direta à base de dados do Supremo Tribunal do Povo que possui uma lista negra, em tempo real, dos que desrespeitam as sentenças dos tribunais, incluindo devedores. Com base nessa informação as pessoas podem ser banidas de acesso a crédito, impedidas de comprar bens mais caros e de viajar (não podem, por exemplo, adquirir bilhetes de avião ou comboio). O objetivo seria compeli-las a cumprir as decisões judiciais.

Shazeda Ahmed, em estudo disponível no Citizen Lab da Univesidade de Toronto, analisa o sistema do “Sesame Credit’s social credit score”.

Assim, o crédito vai estando menos ligado à confiança e mais ligado à tecnologia e à Inteligência Artificial que determinam, com base num sistema de recolha e tratamento de informação instituído na sociedade, quem tem ou não acesso e em que condições ao crédito em geral e ao crédito ao consumo em particular. Determinam também, dentro de lógica semelhante, quem é bom ou mau cidadão, com as simpáticas ou dramáticas consequências de tal classificação.

[1] Tipifica o Código Civil, no seu artigo 1142º, que “Mútuo é o contrato pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade.” e trata a usura, no artigo 1146º, limitando os juros possíveis.

[2] Informação mais detalhada em artigo da revista Wired “The complicated truth about China’s social credit system”, aqui.

[3] Cfr, por exemplo, notícia publicada no Jornal de Negócios, disponível aqui.

Responsabilidade do produtor e conceito de consumidor

Jurisprudência

Comentário ao Acórdão do TRL, de 11-02-2020, Relator Pedro Brighton

Sumário
“I- No artº 2º nº 1 do Decreto-Lei nº 383/89, de 6/11 (Responsabilidade Decorrente de Produtos Defeituosos), podemos encontrar dois tipos de produtor : O produtor real, “o fabricante do produto acabado, de uma parte componente ou de matéria prima” ; e, também, o produtor aparente, “quem se apresente como tal pela aposição no produto do seu nome, marca ou outro sinal distintivo”.
II- Podemos entender o produtor real, como qualquer pessoa humana ou jurídica que sob a sua própria responsabilidade participa na criação do produto final, seja o fabricante do produto acabado, de uma parte componente ou de matéria-prima.
III- Por sua vez, o produtor aparente, que acaba por ser o distribuidor, o grossista ou as grandes cadeias comerciais, apesar de não ser o fabricante do produto acabado ou final, coloca no mesmo a sua marca ou símbolo distintivo, induzindo o lesado em erro, quanto à origem ou proveniência de fabricação do produto, dando-lhe a aparência de ser ele próprio o produtor real, quando não o é na realidade.
IV- A definição legal de consumidor, constante do artº 1º-B al. a) Decreto-Lei nº 67/2003 de 8/4 (Venda de Bens de Consumo), adoptou um sentido restrito de “consumidor”, definindo este como qualquer pessoa singular que não destine o bem ou serviço adquirido a um uso profissional ou um profissional (pessoa singular), desde que não actuando no âmbito da sua actividade e desde que adquira bens ou serviços para uso pessoal ou familiar.
V- Esta definição de consumidor exclui do seu âmbito as pessoas colectivas.”

Caso

O aresto em análise soluciona uma ação em que uma sociedade comercial demanda outra sociedade comercial, exigindo o ressarcimento de danos pela destruição de um automóvel “produzido” por esta, que se incendiou por defeito manifestado nas bombas injetoras. Estes danos reportam-se à diferença entre o montante já pago pela seguradora pela destruição do carro e o seu valor de mercado, e aos montantes despendidos pela autora no aluguer de um automóvel de substituição.

Comentário

Em primeiro lugar, a decisão em análise é um ótimo pretexto para (re)visitarmos as disposições do DL n.º 383/89, de 06 de novembro, que regula a “responsabilidade decorrente de produtos defeituosos”. Logo à partida, salienta-se a previsão de um conceito bastante amplo de produtor, englobando o produtor “real” e o “aparente” (art. 2.º-1), o que se justifica pela pretendida tutela eficaz do lesado. Depois, salientar que este é um regime que não tutela unicamente consumidores, ainda que lhes confira uma proteção acrescida em termos de danos indemnizáveis (art. 8.º).

Importa-nos destacar que a solução do caso se centrou na interpretação deste preceito. No entanto, a nosso ver, fê-lo erradamente. É que os danos abrangidos pelo pedido indemnizatório não cabem no âmbito da tutela do regime da responsabilidade objetiva do produtor do diploma em análise.
Ora, enquanto este regime estabelece os requisitos de ressarcibilidade dos danos pessoais sofridos pelo lesado (morte ou lesão física), seja este consumidor ou não, e dos danos produzidos “em coisa diversa do produto defeituoso”, abrangendo neste ponto apenas consumidores (lesado que tenha dado ao bem um destino principalmente de uso ou consumo privado), o pedido do autor refere-se a danos sofridos no próprio produto defeituoso, o automóvel. Ora, cabendo ao tribunal enquadrar juridicamente o pedido do autor (art. 5.º- 3 do Código de Processo Civil), “não esta(ndo) sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito”, parece-nos ter andado mal o tribunal ao decidir a causa com apelo à disposição analisada.
Outra questão que nos parece criticável na fundamentação de direito explanada pelo tribunal, é o recurso ao conceito legal de consumidor ínsito no DL n.º 67/2003, de 8 de abril para aferir o que é um consumidor para efeitos do DL n.º 383/89. Como sabemos, não existe no ordenamento jurídico nacional um conceito único de consumidor, cabendo a cada diploma definir o seu âmbito subjetivo. Ora, o denominado regime de responsabilidade do produtor (DL n.º 383/89) contém no art. 8.º uma delimitação objetivo-subjetiva do seu âmbito de aplicação, dele se podendo retirar aquilo a que podemos chamar uma “espécie de conceito de consumidor”. Assim, aplica-se tal regime àquele que adquira um bem a que normalmente seja dado um uso privado ou familiar e o destine principalmente a um uso desse tipo. A utilização do tempo verbal “lhe tenha dado (principalmente esse destino)” parece-nos inclusive solucionar, na aplicação deste diploma, uma querela que é extensível ao DL n.º 67/2003, que consiste em determinar qual o momento determinante para aferir o destino conferido ao bem pelo adquirente, se o da aquisição/entrega do bem, se a utilização efetiva em momento posterior. Assim, e reforçando-se que esta interpretação se cinge à aplicação deste diploma, parece relevar a utilização efetivamente conferida ao bem, em momento posterior ao da sua entrega.

No entanto, e em jeito de conclusão, a verdade é que a decisão de improcedência proferida pelo tribunal parece-nos a mais ajustada ao caso, ainda que discordemos dos seus fundamentos. Como expusemos, não nos parece relevante para o caso o regime da responsabilidade objetiva do produtor definida pelo diploma analisado. Tão-pouco seria de aplicar o regime da venda de bens de consumo e garantias (DL n.º 67/2003), uma vez que a responsabilidade direta do produtor perante o consumidor se limita ao exercício dos direitos de substituição e reparação, nos termos do art. 6.º- 1, estando excluídos os pedidos indemnizatórios, como o formulado nos autos. Poder-se-ia equacionar a aplicabilidade da Lei de Defesa do Consumidor (1), 
no entanto corroboramos o entendimento do tribunal de que a sociedade comercial adquirente do bem não pode ser considerada consumidora para efeitos de aplicação deste diploma, não apenas por ser uma pessoa coletiva, como afirma o tribunal, mas porque destina o bem a um uso profissional, ainda que posteriormente o coloque à disposição de um seu sócio e este o destine principalmente a um uso privado (art. 2.º- 1).

Notas

(1) Lei n.º 24/96, de 31 de julho