Será consumidora uma pessoa que adquire um imóvel para arrendamento?

Jurisprudência

No passado dia 24 de outubro, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) proferiu uma decisão no âmbito do Processo C-347/23 (Caso Zabitoń). O caso centra-se na interpretação do conceito de consumidor numa situação em que duas pessoas casadas (LB, agente da polícia, e JL, diretora de uma escola) adquirem um bem imóvel, celebrando um contrato de crédito hipotecário para o efeito, com a intenção de obter rendimentos do imóvel por via do seu arrendamento posterior.

O TJUE examina se os membros deste casal podem ser enquadrados na categoria de consumidor, à luz do direito europeu, beneficiando da legislação mais protetora que é conferida a este, nomeadamente pela diretiva das cláusulas abusivas.

Destaca-se que o conceito de consumidor, de acordo com o direito europeu, se aplica, em regra, a pessoas singulares que adquirem bens ou serviços para fins pessoais, ou seja, alheios a uma atividade profissional. Assim, a motivação dos compradores é analisada com vista a determinar se o ato de aquisição de um imóvel com a finalidade de o arrendar lhe retira o caráter de consumo pessoal, transformando-o numa atividade profissional.

O TJUE decide que, apesar do objetivo de obter proveito com o arrendamento, os membros do casal devem ser considerados consumidores. O tribunal argumenta que a aquisição do imóvel não ocorre no âmbito de uma atividade profissional contínua e organizada. Assim, o simples facto de obter uma vantagem económica não transforma os compradores em profissionais. Não existindo uma intenção de exercer uma atividade imobiliária contínua, o negócio é enquadrado como um ato de consumo.

O TJUE realça a importância de uma interpretação do conceito de consumidor que garanta a segurança jurídica e a proteção no mercado. O tribunal opta, assim, por proteger o casal, considerando que a aquisição se traduz numa típica relação de consumo, não tendo os compradores experiência profissional no setor imobiliário nem atuando com caráter de habitualidade. Visa-se apenas, citando o acórdão, “consolidar o seu património privado”, sendo “uma forma de investimento” (ponto 33).

Esta decisão é bastante revelante, uma vez que a solução adotada não era evidente. Com efeito, o imóvel fora, neste caso, adquirido como um investimento, com vista à obtenção de rendimentos, o que poderia aproximar o negócio de uma atividade profissional, que se caracteriza precisamente pela finalidade lucrativa. Concorda-se, no entanto, com a decisão, na medida em que se tratou de um ato isolado, único[1], não revelando o exercício de uma atividade profissional, com regularidade. O arrendamento tem, na verdade, caráter regular, mas está aqui em causa o contrato de compra e venda do imóvel. O casal pretendia apenas fazer um investimento ao comprar o imóvel, colocando o seu património a render, sem ter conhecimentos específicos na área em causa. Julgo que a decisão poderia já ser outra se o casal comprasse um segundo imóvel para arrendar ou tivesse já outros imóveis arrendados. Aí se deverá, na minha perspetiva, traçar a fronteira entre ser ou não consumidor (ou não ser ou ser profissional, respetivamente).

É interessante notar que, no contrato de arrendamento, também não se poderá, reflexamente, considerar o casal (senhorio) como profissional, não se aplicando, portanto, a legislação de consumo. A qualificação como consumidor no contrato de compra do imóvel (e no contrato de crédito hipotecário associado) tem, portanto, o importante efeito de não se proteger como consumidor uma outra pessoa (inquilino) numa outra relação ligada a esta.

Podemos concluir deste caso, em suma, que o investimento ainda pode ser considerado consumo se não tiver caráter regular.


[1] No ponto 11 da decisão, refere-se que “os demandantes no processo principal não deram de arrendamento outros bens imóveis”.

Time-traveling prices that should empower consumers confuse a German judge

Jurisprudência

Imagine this situation. You are buying a pair of shoes. You are undecided between two models. They both cost 60 EUR, but is now discounted to 60 EUR and used to cost 80 EUR. You will likely opt for the discounted one. It looks like more value per money. Traders know this.

And unscrupulous traders take advantage of this. How? By increasing the price from, say, 70 EUR to 80 EUR for a short time and then telling you that the discount is of 20 EUR instead of 10 EUR.

For some time now, Portuguese law has tried to stop practices such as this with Article 5 of Decreto-Lei n.º 70/2007. Recently, the European legislator has essentially extended the idea to the whole Union by introducing a new provision in the Price Indication Directive (Directive 98/6/EC). The new Article 6a paragraph 1 and 2 recite as follows:

1. Any announcement of a price reduction shall indicate the prior price applied by the trader for a determined period of time prior to the application of the price reduction.

2. The prior price means the lowest price applied by the trader during a period of time not shorter than 30 days prior to the application of the price reduction.

A German judge found it difficult to apply this provision and asked for guidance from the Court of Justice of the European Union (ECJ). The judgment was rendered on 25 September 2024. The facts are these. Aldi, a well-known supermarket company, distributes weekly a booklet with commercial information. The consumers’ association of the Land of Baden-Württemberg, Germany, took issue with how the price of bananas and pineapples were displayed, as they considered it violating Article 6a.

We will focus on the display of the price of bananas, for simplicity. Following a practice common in trademark cases but new – as far as I can tell – in consumer law matters, the ECJ includes a picture of the advertisement in its ruling:

The writing in white means: ‘Previous sale price. Lowest price in the last 30 days: 1.29’.

In essence, Aldi claims that the information in white is sufficient to comply with Article 6a, even if the discount is calculated as a percentage of the ‘chronologically prior’ price. The consumer association disagrees and points out that the 2021 Interpretive Guidelines on Article 6a by the European Commission support their view.

The referring judge has the doubts that the text of the directive requires the more demanding interpretation, despite what the guidelines say. The Court of Justice of the European Union sides with consumers. The answer is convincing and predictable, as it relies on a well-established practice in the interpretation of EU consumer law.

First, the ECJ points out that the interpretation of a provision of EU law requires one to look at its literal meaning, its objectives, and the system of norms it belongs to. Second, the Court finds that the plain meaning of the provision does to solve the interpretive doubt raised by the German judge.

Third, once teleological and systematic considerations come into play, the answer becomes clear. The directive aims to empower consumers by providing them with reliable and transparent information about prices (Recital 12). This objective is part of ensuring a high level of consumer protection, enshrined in Article 38 of the Charter of Fundamental Rights and 169 TFEU.

The interpretation proposed by the German judge would not be effective in protecting the interests of consumers. Therefore, the ECJ rejected it, confirming the consumers’ association view that Aldi’s conduct was not compliant. Thus, discounts must be calculated based on the ‘legal prior’ price as defined by Article 6a and not based on the ‘chronological prior’ price.

One point connected to Article 6a remains unclear to me. I wonder if Article 6a should not be interpreted as prohibiting displaying the ‘chronological prior’ price. After all, EU law deems it deceptive compared to the ‘legal prior’ price. I believe that, sooner rather than later, this question will be asked to the Court of Justice of the European Union.

This decision confirms that Article 6a has increased the level of transparency of a critical information such the final price. Price stability over time is a crucial element in this regard. Traders are free to adjust prices as often as they want, but should refrain from using this freedom to artificially increase the attractiveness of a price reduction.

The concept of a ‘reference price’ in consumer law is a novelty at first glance. Yet, this has an important predecessor in anti-usury laws. An often-used technique to fight usury is calculating a ceiling interest rate that can be legally charged. Rates about it are prohibited (with criminal sanctions).

The reference price of Article 6a is different in that it is based only on the prices offered by the specific trader. This concept represents a telling example of the two-fold challenge of consumer law and market law: a nuanced understanding of business practices must be coupled with ingenious regulatory solutions.

Regarding the relationship between EU ad national law, the decision illustrates an important point. A part of EU legal scholarship is very vocal about the vices of EU law, which is seen as systematically underperforming in comparison to national law. The present decision is an excellent example of the positive role of EU law: in comparison to the interpretation given by the ECJ, the German judge preferred a reduced level of consumer protection.

At the same time, the issue of the prior price is telling about another controversy regarding the EU-national relation. In fact, the Price Indication Directive is a minimum harmonization directive, which enabled Portugal to ‘experiment’ and find a solution earlier than the EU. Most probably, the Portuguese solution was actually transplanted by the EU in all Member States. Had the directive been a maximum harmonization one, or even a regulation, this dynamic from one Member State to the whole Union would not have been possible.

Considering that EU law has moved towards an increased use of maximum harmonization directives and regulations, there is indeed reason for concern about the loss of flexibility and regulatory innovation in the Union.

The matter of prices is particularly prominent in this regard. One of the main preoccupations in the digital economy is the use of personalized or surveillance prices in digital markets. As I argued elsewhere, the ‘legal prior’ price of Article 6a confirms that the law can (and arguably does) force traders to show personalized prices as variations of the impersonal price. In sum, to empower us, the consumers, the law can make prices through time. What else can we make it do? Imagination, not the sky, is the limit.

Estará a sua trolley bag pronta para descolar consigo sem surpresas na fatura?

Jurisprudência, Uncategorized

No passado dia 10 de setembro de 2024, o Tribunal Judicial da Comarca de Braga [1](“Tribunal de Braga”) foi notícia com uma decisão pioneira proferida a propósito do pagamento de valores adicionais para o transporte de trolley bags na cabine. Na base do litígio está um contrato de prestação de serviços de transporte aéreo. A consumidora foi forçada a adquirir os serviços de embarque prioritário e de reserva de lugar, apesar de não os pretender, somente para poder transportar consigo a sua trolley bag, com dimensões até 55x40x20 cm. Com a tarifa normal, este transporte não era permitido, tendo assim pagado um valor suplementar de € 23,50 para o segmento de voo entre o Porto e Bergamo e de € 33 para o segmento de voo entre Bergamo e o Porto.

Para resolver a questão de saber se a companhia aérea pode cobrar um valor suplementar pelo transporte da sua bagagem de mão (ou seja, as malas ou mochilas de pequenas dimensões em que o passageiro transporta normalmente a sua roupa e outros objetos pessoais), que, devido às suas reduzidas dimensões e peso, o passageiro decidiu não registar e levar consigo a bordo do avião, nos compartimentos superiores habilitados para o efeito, o tribunal começa por recorrer ao art. 2.º-1 do Regulamento (CE) n.º 1008/2008, que permite às companhias aéreas fixarem livremente tarifas, entendidas como aquilo que a companhia aérea cobra pelo transporte de passageiros. Adicionalmente, o art. 2.º-18 estabelece os preços dos serviços aéreos e as condições de fixação desses preços.

O Tribunal de Braga baseia grande parte da sua argumentação no acórdão do TJUE, proferido no caso Vueling Airlines (C-487/12), a 18 de dezembro de 2014, no qual se estabelece, nos considerandos, que deve ser feita uma distinção entre bagagem registada e bagagem não registada. No entender do TJUE, a “bagagem registada” é a bagagem que é transportada no porão da aeronave, relativamente à qual se considerou que não se trata de um serviço obrigatório ou indispensável para o transporte de passageiros, e por essa razão as companhias aéreas podem cobrar um valor suplementar sobre o preço do bilhete, com base no princípio da liberdade de preços. No que diz respeito à “bagagem de mão” ou a “bagagem não registada”, foi considerada um elemento indispensável do transporte aéreo e, por conseguinte, a companhia aérea seria obrigada a transportá-la sem poder exigir ao passageiro um valor adicional sobre o preço do bilhete.

A razão que justifica a distinção está relacionada com a circunstância de a bagagem faturada implicar um acréscimo de custos para o transportador aéreo: aumento do consumo de combustível em virtude do aumento do peso, custos de pessoal com a equipa necessária em terra nos mostradores de faturação, custos com as empresas de manuseio, a acrescer à responsabilidade de assumir, vigiar e cuidar da bagagem do passageiro até que esta lhe seja entregue no destino final.

Note-se, no entanto, que, no Acórdão Vueling Airlines, não estava em causa o transporte de bagagem de mão, mas uma lei espanhola que proibia a cobrança de um valor pela bagagem registada. O TJUE considerou que essa lei era contrária ao direito europeu, parecendo abrir a porta, com a argumentação exposta nos parágrafos anteriores, à possibilidade de uma norma de um Estado-Membro que proíba a cobrança pela bagagem de mão. Na ausência de uma norma nacional nesse sentido, não estamos certos de que se possa retirar do acórdão a conclusão de que o TJUE considera que é proibido cobrar pela bagagem de mão face ao Regulamento 1008/2008.

Ao analisar a legislação nacional de proteção do consumidor, o Tribunal de Braga acaba por concluir que a prática em causa viola um conjunto muito alargado de normas quer da Lei de Defesa do Consumidor quer do Decreto-Lei n.º 57/2008 (práticas comerciais desleais). A referência em bloco a uma série de preceitos fragiliza um pouco a argumentação. Concordo, no entanto, com a decisão, especialmente porque a informação não foi prestada à consumidora de forma clara, objetiva e transparente. Assim, não pôde tomar uma decisão livre, esclarecida e consciente quanto a transportar consigo a sua trolley bag, tendo sido surpreendida com um custo que não se encontrava previsto e forçada a adquirir serviços adicionais, apenas com o objetivo de levar consigo a bordo a sua companheira de viagem. Veremos qual será a evolução da questão após esta decisão e o seu efeito mediático, sendo certo que não é claro se, cumpridos todos os requisitos de informação, e sendo a oferta totalmente transparente, poderá ser cobrado um valor.


[1] Sentença Judicial, Processo n.º 87/24.0T8BRG, Juiz de Direito: Bruno António Oliveira Mestre.

Acórdão C-395/21 – O Direito do Consumo aplica-se à relação advogado-cliente

Jurisprudência

No passado dia 12 de janeiro, o Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”) proferiu o Acórdão D.V. contra M.A. (C-395/21) relativo a cláusulas contratuais abusivas e à Diretiva 93/13/CEE. Neste caso, trata-se de um serviço diferente: serviços jurídicos fornecidos por um advogado.

  1. Factos

Na base do litígio esteve a celebração de contratos de prestação de serviços jurídicos, nos quais vinham estipulados honorários de 100 euros por hora de serviço. Após a prestação dos mesmos, a advogada em causa intentou uma ação judicial no sentido de obter a condenação do consumidor ao pagamento de 9.900 euros a título de prestações jurídicas realizadas, e de um montante de 194,30 euros a título de despesas incorridas no âmbito da execução dos contratos, acrescidos de juros anuais que ascendiam a 5% das somas devidas.

Tendo chegado ao Supremo Tribunal da Lituânia, este questionou-se sobre o caráter abusivo da cláusula relativa aos honorários. A este respeito, esse órgão jurisdicional considerou que, embora a cláusula estivesse formulada claramente do ponto de vista gramatical, seria possível duvidar que fosse compreensível, uma vez que o consumidor médio não estaria em condições de compreender as suas consequências económicas.

Por um lado, a invalidação da cláusula relativa ao preço deve acarretar a nulidade dos contratos de prestação de serviços jurídicos e o restabelecimento da situação em que o consumidor se encontraria se essas cláusulas nunca tivessem existido. Ora, no caso em apreço, isso conduziria a um enriquecimento injustificado do consumidor e a uma situação injusta em relação ao profissional que forneceu integralmente esses serviços. Por outro, o tribunal interrogou-se sobre a questão de saber se uma eventual redução do custo das referidas prestações não prejudicaria o efeito dissuasor prosseguido pelo artigo 7.°, n.° 1, da Diretiva 93/13.

Neste seguimento, o Supremo Tribunal da Lituânia coloca as seguintes questões ao TJUE:

– Deve o art. 4.º(2) da Diretiva 93/13 ser interpretado no sentido de que a expressão “objeto principal do contrato” abrange uma cláusula como a do presente caso, relativa ao custo e à forma como este é calculado?
– Deve a referência no art. 4.º(2) da Diretiva 93/13 ao caráter claro e compreensível de uma cláusula contratual ser interpretada no sentido de que basta especificar na cláusula do contrato relativa ao custo o montante dos honorários por hora devidos ao advogado?
– Em caso de resposta negativa à segunda questão: deve a exigência de transparência ser interpretada no sentido de que abrange a obrigação de o advogado indicar o custo dos serviços cujos valores exatos podem ser claramente definidos e especificados antecipadamente, ou deve também ser especificado o custo indicativo dos serviços, caso seja impossível prever as ações específicas e os respetivos honorários, no momento da celebração do contrato, e indicar os riscos que podem conduzir a um aumento ou a uma diminuição do custo?
– Se a cláusula não estiver redigida de maneira clara e compreensível, deve apreciar-se se esta cláusula é abusiva na aceção do art. 3.º(1) ou, tendo em conta que essa cláusula abrange informação essencial do contrato, o simples facto de a cláusula relativa ao custo não ser transparente é suficiente para que seja considerada abusiva?
– O facto de, quando a cláusula tiver sido considerada abusiva, o contrato de prestação de serviços jurídicos não ser vinculativo, em conformidade com o 6.º(1) da Diretiva 93/13, significa que é necessário restabelecer a situação em que o consumidor se encontraria se a cláusula que foi considerada abusiva não existisse? O restabelecimento de tal situação significa que o consumidor não tem a obrigação de pagar pelos serviços já prestados?
– Caso a natureza de um contrato de prestação de serviços a título oneroso torne impossível o restabelecimento da situação em que o consumidor se encontraria se a cláusula que foi considerada abusiva não existisse (os serviços já foram prestados), a fixação da remuneração pelos serviços prestados pelo advogado é contrária ao objetivo do art. 7.º(1) da Diretiva 93/13?

  1. Primeira questão

Relativamente à primeira questão, o TJUE declarou que o art. 4.°(2) abrange uma cláusula de um contrato de prestação de serviços jurídicos celebrado entre um advogado e um consumidor, independentemente de ter sido objeto de negociação individual ou não.

O TJUE baseia esta conclusão no facto da cláusula relativa ao preço ter por objeto a remuneração dos serviços jurídicos, estabelecida segundo um valor por hora. Tal cláusula, que determina a obrigação do mandante ao pagamento de honorários, faz parte das cláusulas que definem a própria essência da relação contratual, sendo esta relação precisamente caracterizada pela prestação remunerada de serviços jurídicos.

  1. Segunda e terceira questões

Relativamente às duas questões seguintes, o TJUE avaliou se uma cláusula como a do presente caso cumpre a exigência de redação clara e compreensível da Diretiva 93/13. O Tribunal concluiu que não, caso não tenham sido fornecidas ao consumidor informações que, antes da celebração do contrato, lhe permitissem tomar uma decisão prudente e com total conhecimento das consequências económicas do vínculo a assumir.

Com base numa interpretação ampla do conceito de transparência, de modo a garantir uma maior proteção ao consumidor, o Tribunal concluiu que é indispensável que as cláusulas do contrato sejam claras e compreensíveis, para que o consumidor possa estar consciente de todos os detalhes envolvidos e, dessa forma, possa tomar uma decisão informada e bem fundamentada sobre a contratação dos serviços.

Para o garantir, o profissional está incumbindo de três deveres. Em primeiro lugar, deve fornecer ao consumidor todas as informações relevantes antes da celebração do contrato. Além disso, o Tribunal recomendou que o profissional preste ao consumidor uma orientação adequada sobre os direitos e deveres de ambas as partes, para que este possa compreender totalmente o contrato. Por fim, o Tribunal concluiu que o profissional deve informar o consumidor sobre todos os custos adicionais que possam surgir ao longo do contrato.

Aplicando este raciocínio ao caso concreto, o TJUE concluiu que a fixação do preço do serviço jurídico por hora não permite ao consumidor médio, na falta de qualquer outra informação fornecida pelo profissional, saber o montante total a pagar pelos serviços. Muito embora a natureza dos serviços jurídicos não permita facilmente determinar o número de horas necessárias à sua conclusão, o TJUE afirmou que o profissional, no momento da celebração do contrato, tem de prestar as informações de que dispõe ao consumidor.

Nesse sentido, deve fornecer-lhe as informações necessárias para que possa tomar uma decisão informada, nomeadamente no que respeita à duração (e custo) aproximado da prestação de serviços jurídicos em causa, tendo em consideração as regras profissionais e deontológicas aplicáveis. O TJUE dá como exemplos uma estimativa do número previsível ou mínimo de horas necessárias para prestar o serviço ou o compromisso de envio regular de faturas ou relatórios que indiquem o número de horas de trabalho prestadas.

  1. Quarta questão

Passando à quarta questão, o TJUE afirmou que o art. 3.º(1) deve ser interpretado no sentido de que uma cláusula como a do presente caso não deve ser considerada abusiva pelo simples facto de não respeitar o critério da transparência do art. 3.º(2), exceto se a legislação nacional impuser que essa qualificação derive unicamente desse facto.

A Diretiva 93/13 estabelece que a falta de transparência de uma cláusula deve ser considerada como um dos principais critérios na avaliação do caráter abusivo de uma cláusula, pelo que a decisão sobre o caráter abusivo deve ser feita tendo em conta outros elementos. Não obstante, os Estados-Membros têm a possibilidade de optar por um nível de proteção mais exigente, nomeadamente – como no caso Lituano – considerando cláusulas contrárias à exigência de transparência como abusivas per se.

  1. Quinta e sexta questões

Aqui, o Tribunal decidiu que a Diretiva não se opõe a que, derivado da aplicação de Direito interno e caso o contrato não possa subsistir devido ao caráter abusivo da cláusula do preço, o profissional não receba nenhuma remuneração pelos serviços prestados. Da mesma forma, a Diretiva não se opõe a que haja a substituição da cláusula por uma disposição de direito nacional de caráter supletivo, em situações nas quais o consumidor seria colocado numa situação prejudicial caso se desse a invalidação total do contrato.

Não obstante, esta possibilidade só poderá ser aplicada em circunstâncias limitadas. Só no caso de a invalidade da cláusula implicar a invalidação total do contrato e esse facto expuser o consumidor a consequências prejudiciais é que o órgão jurisdicional nacional dispõe da possibilidade excecional de substituir uma cláusula abusiva anulada por uma disposição nacional de caráter supletivo, ou aplicável por acordo das partes. De igual forma, a disposição em causa tem de ser destinada a uma aplicação a contratos celebrados entre um profissional e um consumidor, portanto sem um alcance de tal modo geral, que a sua aplicação equivalha a permitir ao juiz nacional fixar com base na sua própria estimativa a remuneração devida pelos serviços prestados.

  1. Comentário

Dos tópicos levantados, o que cabe destacar como particularmente interessante é a possibilidade de um advogado ver o seu serviço não compensado face ao caráter abusivo das cláusulas que insere nos seus contratos. Aqui, o TJUE concluiu com relativa facilidade que essa possibilidade existe, prevendo outras hipóteses apenas se a invalidação total do contrato implicar um agravamento da situação do consumidor, verificando-se assim uma total preponderância da proteção do consumidor face ao profissional.

Isto é reforçado pela opinião do AG, ao afirmar que a Diretiva 93/13 não exige um “resgate” do profissional face à resolução do contrato. Afirma igualmente que as consequências que o direito interno prevê para a nulidade do contrato não podem ser tais que prejudiquem o efeito útil da Diretiva 93/13, ou seja, a proteção dos consumidores. De igual forma, a Diretiva não prevê a necessidade de se conceder aos profissionais proteção face à eventual nulidade de contratos nos quais inseriram cláusulas abusivas, mesmo que os serviços já estejam prestados e não seja possível haver uma “devolução” dos mesmos. Por isto, a possibilidade de “remendar” contratos com cláusulas abusivas é limitada, já que, caso contrário, a hipótese de haver essa substituição pelos tribunais colocaria em causa o efeito dissuasor prosseguido pela Diretiva. Só em casos em que a nulidade total do contrato traria ao consumidor consequências particularmente prejudiciais é que se poderia proceder a essa substituição.

Por isso, vemos que uma das profissões encarregues de aplicar a lei está igualmente sujeita a uma correta aplicação das normas de proteção dos consumidores, que, caso não sejam respeitadas, podem levar a fortes riscos que juristas, advogados e outros profissionais do Direito deveriam estar aptos a evitar. Assim sendo, os advogados, tal como outros profissionais análogos, devem respeitar os deveres de transparência, informando devidamente os consumidores sobre os custos que os seus serviços acarretam.

Tribunal de Justiça volta à definição de circunstâncias extraordinárias no Regulamento n.º 261/2004

Jurisprudência

Ao longo dos últimos anos, um dos temas que tem chegado ao Tribunal de Justiça da União Europeia (TJ) tem sido o conceito de “circunstâncias extraordinárias” contido no art. 5.º-3 do Regulamento (CE) n.° 261/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de fevereiro de 2004, que estabelece regras comuns para a indemnização e a assistência aos passageiros dos transportes aéreos em caso de recusa de embarque e de cancelamento ou atraso considerável dos voos: “A transportadora aérea operadora não é obrigada a pagar uma indemnização […] se puder provar que o cancelamento se ficou a dever a circunstâncias extraordinárias que não poderiam ter sido evitadas mesmo que tivessem sido tomadas todas as medidas razoáveis”.

No passado mês de julho,  foi julgado mais um destes casos (Acórdão KU e o. contra SATA International, de 7 de julho de 2022, Processo C-308/21), no qual o TJ considerou que quando o aeroporto de origem dos voos ou da aeronave em causa é responsável pela gestão do sistema de abastecimento de combustível das aeronaves, uma falha generalizada do abastecimento de combustível é suscetível de ser considerada uma dessas circunstâncias (para. 28).

No caso em apreço, três demandantes tiveram atrasos superiores a três horas nas chegadas aos seus destinos. Os atrasos ficaram a dever-se à falta de abastecimento de combustível da aeronave, provocada por uma falha no sistema de abastecimento do aeroporto (paras. 6 a 9). Neste contexto, os três lesados apresentaram pedidos de indemnização pelo atraso provocado à companhia aérea responsável (para. 11). A companhia recusou-se a atribuir essa indemnização, já que os atrasos não lhe seriam imputáveis, por decorrerem de uma falha imprevista e inesperada do sistema de abastecimento de combustível do aeroporto (para. 11).

Tendo o caso chegado aos tribunais judiciais portugueses, o órgão jurisdicional em causa submeteu a seguinte questão prejudicial ao TJ:

“O atraso superior a três horas ou o cancelamento de voos causados por uma falha de abastecimento de combustível no aeroporto de origem, sendo a gestão do sistema de combustível da responsabilidade deste aeroporto, constitui uma “circunstância extraordinária”, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 5.°, n.° 3 do [Regulamento n.° 261/2004]?” (Para. 14)

O TJ pronunciou-se sobre esta questão, afirmando que tais factos são suscetíveis de ser considerados como circunstâncias extraordinárias. E fê-lo utilizando o teste que tem vindo a utilizar de forma constante na sua jurisprudência.

Em primeiro lugar, relembrou que o conceito de circunstâncias extraordinárias designa acontecimentos que, cumulativamente, (i) não são inerentes ao exercício normal da atividade da transportadora aérea em causa e (ii) escapam ao controlo efetivo desta (para. 20).

Focando-se no primeiro teste, o Tribunal afirmou que o abastecimento de combustível  se enquadra, em regra, no exercício normal da atividade da transportadora, já que é matéria essencial ao funcionamento da aeronave (para. 22). Não obstante, aqui prestou atenção à causa da falta de abastecimento. No seu entender, este facto resultante de uma falha do sistema de abastecimento no aeroporto deve ser distinguido de um problema técnico de abastecimento circunscrito a uma só aeronave (para. 23). Nesse sentido, enquanto a segunda situação estará ligada à atividade normal da aeronave – falhando, portanto, o primeiro teste – a primeira já não  estará, podendo a análise avançar para o segundo teste.

Relativamente a este, o Tribunal relembra a distinção entre acontecimentos de origem interna e  de origem externa à transportadora aérea, afirmando que estão abrangidos no conceito de circunstância extraordinárias os eventos que a transportadora não controla, por serem de origem natural ou provocados por terceiros (para. 25). Assim, na medida em que o sistema de abastecimento de um aeroporto é gerido por este ou por um terceiro, a falha generalizada de abastecimento deve ser considerada como um acontecimento externo à transportadora e que, consequentemente, escapa ao seu controlo efetivo (para. 26).

Passando estes dois testes, o Tribunal conclui, portanto, que estamos perante uma circunstância extraordinária que isenta a companhia da obrigação de indemnizar.

Circunstâncias extraordinárias na jurisprudência do TJ

O preenchimento do conceito de circunstâncias extraordinárias não é um tema novo, pelo que vários têm sido os órgãos jurisdicionais nacionais a interrogar o TJ sobre este tópico, cujas respostas nem sempre têm sido fáceis de conciliar. Na verdade, tem-se visto ao longo dos anos uma evolução deste conceito que porventura agora reveste uma forma diferente daquela que era anteriormente considerada.

De facto, embora em situações claramente extraordinárias o TJ as tenha visto como tal – por exemplo, eventos naturais que afetam a circulação aérea[1] – será de destacar as situações nas quais a jurisprudência do TJ tem sido menos clara: atrasos causados por danos ou problemas técnicos nas aeronaves.

Importante neste contexto será o Despacho Siewert[2], no qual existiu um dano fora causado à asa da aeronave em causa, devido ao embate de uma escada móvel de embarque (para. 9). Aqui, o Tribunal limitou-se a constatar que as transportadoras aéreas se veem regularmente confrontadas com a utilização destas escadas, pelo que o seu choque com o avião deverá ser considerado como um acontecimento inerente ao exercício normal da sua atividade (para. 19). Reforça ainda o argumento levantado, afirmando que “nada indica que o dano do avião que devia efetuar o voo em questão  tenha sido causado por um ato exterior aos serviços normais de um aeroporto, como um ato de sabotagem ou de terrorismo” (para. 19).

Contudo, no Despacho Orbest[3], o Tribunal parece ter adotado uma visão diferente, face a factos idênticos. Na verdade, a única diferença de relevo face ao caso anterior será o atraso causado se ter devido ao embate de um veículo de catering contra uma das rodas da aeronave (para. 7). Aqui, o TJ afirma que “quando uma falha técnica de uma aeronave estacionada no aeroporto tem origem exclusiva no embate contra um objeto estranho, essa falha não pode ser considerada intrinsecamente ligada ao sistema de funcionamento do aparelho. Por conseguinte, a falha em causa não pode ser considerada inerente, pela sua natureza ou origem, ao exercício normal da atividade da transportadora aérea em causa” (para. 21). Reforça, dizendo que “o embate entre a aeronave em causa no processo principal e o veículo de catering pertencente a um terceiro foi causado pela deslocação deste último veículo. Por conseguinte, a falha técnica dessa aeronave foi causada por um ato de um terceiro que interfere na atividade aérea ou aeroportuária e que, portanto, escapa ao controlo efetivo da transportadora aérea em causa” (para. 25).

Como conciliar estes dois casos? A direção foi apontada pelo próprio TJ, no caso Germanwings[4], Acórdão no qual o Tribunal considerou como extraordinária a circunstância de se ter descoberto um parafuso no pneu do avião, aquando da preparação para um voo (para. 9). Aqui, o Tribunal distinguiu os objetos que são necessariamente utilizados no contexto do transporte aéreo – como escadas móveis – dos demais (para. 30). Chamou à atenção também para o facto que objetos como escadas móveis são utilizados normalmente com a colaboração da tripulação da aeronave, pelo que não serão estranhos ao seu funcionamento[5].

Parece assim que, para ser considerado extraordinário, o evento na origem do atraso deverá ser “estranho” e “terceiro” ao normal funcionamento da aeronave. A contrario, não será tido como extraordinário o atraso causado pelo funcionamento (anormal) de um objeto necessário à atividade da aeronave. Ademais, se a tripulação da aeronave cooperar na utilização desse objeto – ainda que de forma não preponderante – então não estaremos, em princípio, perante uma circunstância extraordinária.

Nesse sentido, a definição do conceito de “estranho” ao normal funcionamento da aeronave parece também refletir-se na forma como o TJ enquadra os serviços aeroportuários nesta atividade. De facto, uma leitura do Despacho Siewert, Orbest e do Acórdão Germanwings, parece subentender que  os serviços aeroportuários prestados às companhias aéreas não relevam para a caracterização de terceiro[6].

Como enquadrar, então o Acórdão KU e o. contra SATA International? Uma aplicação da jurisprudência Germanwings diz-nos que o abastecimento de gasolina, sendo essencial ao funcionamento da aeronave, enquadrando-se nos serviços normais de um aeroporto, não pode ser visto como uma circunstância extraordinária. Contudo o TJ decidiu de forma oposta, evoluindo o teste já consolidado na sua jurisprudência no sentido não só de atentar à causa da falha técnica[7], mas também de incluir os serviços aeroportuários no conceito de terceiro, algo que não parece ter sido a sua intenção em casos anteriores.

Assim, vemos aqui uma possível zona cinzenta relativa ao papel tomado pelo aeroporto, deixando pouco clara a linha que separa as atividades dos serviços aeroportuários que são inerentes ao funcionamento dos aviões daqueles que não são.

Nestes termos, o conceito de circunstância extraordinária constante do art. 5.º-3 do Regulamento (CE) n.° 261/2004 não está livre de questões interpretativas que, com o avançar da jurisprudência do TJ, se vão tornando mais complexas e minuciosas.


[1] Acórdão Denise McDonagh contra Ryanair Ltd, de 31 de janeiro de 2013,Processo C-12/11, para 34, relativo a uma erupção vulcânica.

[2] Despacho Siewert, de 14 de novembro de 2014, Processo C-394/14.

[3] Despacho Orbest, de 30 de março de 2022, Processo C-659/21.

[4] Acórdão Germanwings, de 4 de abril de 2019, Processo C-501/17.

[5] A confirmar este raciocínio e a dar particular importância a este elemento de cooperação por parte da tripulação, vide Despacho Airhelp, de 14 de janeiro de 2021, Processo C-264/20, paras. 23 e 24

[6] Basta comparar o parágrafo 25 do Despacho Orbest, ao afirmar que a falha da aeronave foi causada pelo ato de um terceiro – o veículo de catering –  com o Despacho Siewert, que já usa como argumento a inexistência de danos causados por atos exteriores aos serviços normais de um aeroporto.

[7] Vejamos que o TJ não se bastou com a conclusão de que estaremos perante uma falha técnica – falta de abastecimento – mas fundamentou-se na falha do sistema de abastecimento do aeroporto.

Revolução no Alojamento Local? Comentário ao AUJ n.º 4/2022

Jurisprudência

Há cerca de um mês, o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) proferiu um Acórdão de Uniformização de Jurisprudência (AUJ n.º 4/2022), esclarecendo que no regime da propriedade horizontal, a indicação no título constitutivo, de que certa fração se destina a habitação (cfr. art. 1418.º-2-a) do Código Civil, doravante CC), deve ser interpretada no sentido de nela não ser permitido o exercício da atividade de alojamento local (AL), regulada pelo Decreto-Lei n.º 128/2014, de 29 de agosto[1].

Vejamos o caso.

Num prédio urbano constituído em propriedade horizontal, uma das frações autónomas destinadas à habitação passou a servir de alojamento temporário a turistas, mediante renumeração. O proprietário da fração publicitou na Internet (no site www.airbnb.com) e disponibilizou a fração, mobiliada e equipada, para serviços de alojamento, por período inferior a 30 dias, prestando ainda serviços remunerados de limpeza.

Com a rotatividade dos utentes, o ruído aumentou, tal como a insegurança e a sujidade e desgaste das partes comuns, etc., em prejuízo dos demais condóminos, que vêem o imóvel desvalorizado.

Os proprietários de uma outra fração intentaram uma ação em tribunal com vista ao encerramento da atividade de alojamento temporário, tendo o réu alegado que destinar a habitação a AL não descaracteriza a finalidade de habitação que consta do título constitutivo.

O caso chegou ao STJ, tendo confirmado o acórdão da Relação que deu razão aos autores, condenando o réu a cessar a utilização da fração para alojamento temporário, e reintegrá-la no seu destino específico de habitação. Decidiu-se que “a atividade de alojamento local não integra o conceito de habitação como fim dado às fracções autónomas no título constitutivo da propriedade horizontal” e que o “o conceito de habitação, como destino da fração autónoma, mostra-se qualitativamente distinto do conceito de utilização da mesma para AL”.

Por sua vez, os réus vieram interpor recurso para uniformização de jurisprudência, referindo-se ao acórdão do STJ de 28-03-2017, disponível aqui, onde se entendeu que, “na cedência onerosa da fração a turistas, a fração autónoma destina-se à respetiva habitação e não a atividade comercial”.

Há, assim, contradição direta quanto à questão de a fração autónoma destinada à habitação poder (acórdão fundamento) ou não (acórdão recorrido) ser utilizada para AL, isto é, se viola o fim da habitação.

O art. 1422.º-2-c) do CC impede que os condóminos dêem à fração um uso diverso do fim a que é destinada, tendo cada condómino o direito de se opor a que qualquer fração seja utilizada para um fim diverso do consagrado no registo.

Com efeito, o título constitutivo pode conter algumas proibições, tal como o regulamento do condomínio. Mesmo depois da constituição da propriedade horizontal, a assembleia de condomínios pode deliberar sobre a proibição de certos atos ou atividades (alínea d) primeira parte), desde que compatível com o fim do prédio ou das suas fracções, sob pena de nulidade (art. 1418.º-3).

Importa também ter presente a publicidade resultante das regras do registo predial, dada a obrigatoriedade do registo do título constitutivo donde consta o fim das fracções autónomas (cfr. arts. 2.º-1-b) e v) e 95.º-1-r) e z) do Código de Registo Predial). Note-se que este registo não se confunde com a indicação (genérica) de destino e uso aquando dos projetos de construção.

Face ao boom dos alojamentos locais, sentido aliás um pouco por toda a Europa, o nosso ordenamento jurídico introduziu um regime jurídico do AL, pelo Decreto-Lei n.º 39/2008, de 07-03, mais tarde autonomizado do regime de empreendimentos turísticos, com o Decreto-Lei n.º 128/2014, de 29-08. Com a alteração operada pela Lei n.º 62/2018, de 22-08, passou a ser possível  à assembleia de condomínios, por deliberação, opor-se ao exercício da atividade de AL em frações autónomas, com fundamento na prática reiterada, e comprovada, de atos que perturbem a normal utilização do prédio[2]. Previu-se ainda a possibilidade de cancelamento do registo por órgão municipal competente se comprovada perturbação do descanso dos restantes condóminos (art. 9.º).

O STJ, no acórdão recorrido, esclareceu que habitação como destino da fração autónoma é qualitativamente distinto da utilização da mesma para AL, pois este caracteriza-se por uma rotatividade e utilizadores diversos em oposição à tendencial estabilidade do gozo de uma fração habitacional. Conclui que o destino “habitação” mencionado no título constitutivo da propriedade e no respetivo registo predial se refere a habitação como centro de vida doméstica.

Contrapõe-se a argumentação do acórdão fundamento.

Reconhece-se que o AL é compatível com o destino genérico “habitação”, sendo que os usuários do AL fazem do espaço um uso habitacional. O STJ considerou que o AL constitui arrendamento para habitação, respeitando a finalidade de habitação do título constitutivo. Não viola, por conseguinte, os arts. 1418.º e 1422.º-2-c) do CC.

O acórdão que aqui analisamos segue a posição do acórdão recorrido, clarificando:

– O AL não é um simples habitar da fração, equivalente à habitação que dele fazem os usuários não abrangidos pelo AL, não se confundido com arrendamentos sazonais de curta duração em áreas de veraneio ou “alojamento” de estudantes. Mais, para efeitos tributários, o AL não é tratado como habitação.

– É vedado aos condóminos o uso para fim diverso do que a fração é destinada nos termos do art. 1422.º-2-c) do CC.

– O sentido normal do destino “habitação” é o de “servir de fogos ou de residência para pessoas e agregados familiares, proporcionando-lhes o sossego, a tranquilidade, a segurança e o conforto requeridos por qualquer economia doméstica, num envolvente espaço comum instrumental desse tipo de convivência colectiva”.

Efetivamente, é diferente ter vizinhos “tradicionais” do que ser vizinhos de AL dado o caráter temporário da estadia. Confirmando a posição do acórdão recorrido, uniformizou-se jurisprudência no sentido que o destino “habitação” no título constitutivo não permite a realização de AL.


[1] Alterado pelo Decreto-Lei n.º 62/2015, de 23-04, pela Lei n.º 62/2018, de 22-08, pela Lei n.º 71/2018, de 31-12, e pelo Decreto-Lei n.º 9/2021, de 29-01

[2] O art. 4.º-4, exige autorização do condomínio para instalação de AL na modalidade hostel, quando esta venha a coexistir com fim “habitação”.

Caso Victorinox – Informação sobre garantia comercial do produtor nem sempre é obrigatória

Jurisprudência

No dia 5 de maio, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) proferiu a decisão no âmbito do caso Victorinox (C-179/21). A questão central discutida no acórdão consiste em saber se o vendedor está vinculado a informar sobre as cláusulas relativas à garantia comercial oferecida pelo produtor no caso de não ter referido (ou, numa segunda questão, não ter realçado) a existência dessa garantia na informação pré-contratual. Coloca-se ainda a questão de saber como se relacionam as normas que impõem deveres de informação sobre garantias comerciais na Diretiva 2011/83/UE (direitos dos consumidores) e na Diretiva 1999/44/CE (venda de bens de consumo).

Analisando brevemente os factos, a Aboluts vende, através do marketplace da Amazon, canivetes da Victorinox (produtor suíço). No site da Amazon, não é feita qualquer referência à garantia comercial oferecida pela Victorinox, mas existe uma ligação, designada “Manual de instruções”, no separador ”Outras informações técnicas”, que remete para um documento elaborado pelo produtor. Na segunda página desse documento há uma declaração relativa à «garantia Victorinox».

A the‑trading‑company propôs uma ação contra a Absoluts, seu concorrente, exigindo que esta passasse a incluir uma referência à extensão territorial da garantia comercial, por um lado, e aos direitos legais do consumidor e ao facto de a garantia do produtor não restringir esses direitos, por outro lado. O caso chegou, em segunda instância, ao Bundesgerichtshof, que submeteu ao TJUE as questões já sumariadas.

O art. 6.º-1-m) da Diretiva 2011/83/UE estabelece que, “antes de o consumidor ficar vinculado por um contrato à distância ou celebrado fora do estabelecimento comercial ou por uma proposta correspondente, o profissional faculta ao consumidor, de forma clara e compreensível, as seguintes informações: (…) Se aplicável, a existência e condições (…) de garantias comerciais”.

O TJUE considera que este preceito inclui a informação relativa quer às garantias comerciais oferecidas pelo próprio vendedor quer às garantias comerciais oferecidas pelo produtor. No entanto, o tribunal introduz alguns limites, tendo em conta “a ponderação de um elevado nível de defesa dos consumidores com a competitividade das empresas” (considerando 41). Com efeito, considera-se que “a obrigação incondicional de fornecer tais informações, em quaisquer circunstâncias, afigura‑se desproporcionada, em especial no contexto económico do funcionamento de determinadas empresas, nomeadamente as mais pequenas”, sendo que “essa obrigação incondicional forçaria os profissionais a efetuar um trabalho significativo de recolha e de atualização das informações relativas a tal garantia, apesar de estes não terem necessariamente uma relação contratual direta com os produtores e de a questão da garantia comercial dos produtores não estar abrangida, em princípio, pelo contrato que pretendem celebrar com o consumidor” (considerado 40). Logo, “o profissional apenas é obrigado a fornecer informações pré‑contratuais ao consumidor sobre a garantia comercial do produtor quando o interesse legítimo do consumidor médio, normalmente informado e razoavelmente atento e avisado, num elevado nível de defesa deve prevalecer sobre a sua decisão de se vincular contratualmente, ou não, a esse profissional” (considerando 41). O tribunal esclarece esta afirmação, indicando que “a obrigação do profissional de fornecer ao consumidor informações pré‑contratuais sobre a garantia comercial do produtor não resulta da simples existência dessa garantia, mas da presença de tal interesse legítimo” (considerando 42).

O consumidor tem interesse legítimo, segundo o tribunal, (apenas) “quando o profissional torna a garantia comercial proposta pelo produtor num elemento central ou decisivo da sua oferta” (considerando 44), quando “chama expressamente a atenção do consumidor para a existência de uma garantia comercial do produtor de maneira a utilizá‑la como argumento de venda ou argumento publicitário e, assim, melhorar a competitividade e a atratividade da sua oferta relativamente às ofertas dos seus concorrentes” (considerando 45).

No considerando 48, o tribunal inclui alguns critérios para avaliar se a garantia constitui um elemento central ou decisivo na proposta do vendedor:

  • Conteúdo e configuração geral da oferta relativamente ao bem em causa;
  • Importância, em termos de argumento de venda ou de argumento publicitário, da referência à garantia comercial do produtor;
  • Lugar ocupado por essa referência na oferta;
  • Risco de erro ou de confusão que a referência pode criar no espírito do consumidor médio, normalmente informado e razoavelmente atento e avisado em relação aos diferentes direitos à garantia que pode exercer ou à identidade real do garante;
  • Presença, ou não, na oferta, de explicações relativas às outras garantias associadas ao bem;
  • Qualquer outro elemento suscetível de estabelecer uma necessidade objetiva de proteção do consumidor.

No caso em análise, o tribunal aponta claramente no sentido de a garantia não ser um elemento central ou decisivo na proposta do vendedor (considerando 52).

A decisão parece-me totalmente correta. Num caso como este, não se justifica que o profissional tenha de realçar a existência da garantia comercial. Trata-se de um aspeto do negócio que é favorável ao consumidor, por se tratar de direitos que acrescem aos previstos na lei, pelo que a ausência de destaque não merece censura. Mesmo que a garantia comercial fosse proposta pelo vendedor, a omissão de um destaque, por si só, também não aparentaria ser censurável. A censura resultará, como refere o tribunal, de o consumidor ver traído um interesse legítimo.

Critico, no entanto, a utilização, também neste contexto, do conceito de consumidor médio. Tal como noutros domínios, a bitola do consumidor médio pode deixar desprotegidos muitos consumidores, precisamente aqueles que, em muitos casos, mais necessitam de proteção.

Chamo ainda a atenção para a circunstância de, apesar de a ação ter sido proposta contra a Absoluts, toda esta discussão também interessar à Amazon, enquanto intermediário. Com efeito, no acórdão proferido recentemente no caso Tiketa, aqui comentado, o TJUE conclui que o intermediário é considerado profissional para efeitos da Diretiva 2011/83/UE, respondendo, tal como o vendedor, pelo incumprimento dos deveres de informação pré-contratual.

Quanto à relação entre as normas que impõem deveres de informação sobre garantias comerciais na Diretiva 2011/83/UE e na Diretiva 1999/44/CE, o tribunal considera que prosseguem interesses distintos, pelo que não tem de se verificar uma coincidência total. O profissional não tem, portanto, de indicar na fase pré-contratual todo o conteúdo da garantia (considerando 58). Esta afirmação não estaria correta se estivesse em causa uma garantia com natureza contratual, pois, nesse caso, o conteúdo da garantia é conteúdo do contrato e tem de ser incluído na proposta contratual, sob pena de não vincular as partes.

Para saber que “condições” relativas à garantia comercial devem constar da informação pré-contratual, nos termos do art. 6.º-1-m) da Diretiva 2011/83/UE, o critério utilizado pelo tribunal é também o do interesse legítimo do consumidor a tomar uma decisão esclarecida, não sendo induzido em erro. As condições incluem “qualquer elemento de informação relativo às condições de aplicação e de execução da garantia comercial em causa”, o que abrange, não só “o local de reparação em caso de dano ou as eventuais restrições de garantia, mas igualmente (…) o nome e o endereço do garante”.

Em suma, o vendedor nem sempre tem o dever de incluir na informação pré-contratual referência à existência e às condições de garantia comercial oferecida pelo produtor. Apenas terá de o fazer se a garantia em causa for apresentada como uma parte relevante da proposta apresentada. Nesse caso, a referência às condições da garantia deve incluir tudo o que for necessário para que o consumidor possa tomar uma decisão esclarecida, não sendo induzido em erro.

Caso Fuhrmann‑2 – O Tribunal de Justiça volta a chutar para canto

Jurisprudência

O Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) proferiu, no passado dia 7 de abril, o acórdão do Caso Fuhrmann-2 (Processo C-249/21). Tal como no recente Caso Tiketa, aqui analisado, em que o TJUE não conclui se uma simples remissão para o conteúdo de um link é suficiente para se considerar cumprido o dever de informação constante da Diretiva 2011/83/UE, também neste acórdão a questão fica em aberto, ainda que num contexto diferente.

O art. 8.º-2 da Diretiva 2011/83/UE, na parte relevante para este efeito, estabelece que, “se a realização de uma encomenda implicar a ativação de um botão ou uma função semelhante, o botão ou a função semelhante é identificado de forma facilmente legível, apenas com a expressão «encomenda com obrigação de pagar» ou uma formulação correspondente inequívoca, que indique que a realização de uma encomenda implica a obrigação de pagar ao profissional”.

No caso em análise, a questão resume-se, no essencial, a saber se a expressão «Terminar reserva» (na duvidosa tradução para português da expressão alemã «Buchung abschließen»), apresentada no site da internet da Booking, pode ser considerada equivalente à expressão «encomenda com obrigação de pagar».

Não havendo qualquer referência a “pagamento” na expressão em causa, a resposta negativa parece clara.

No entanto, o TJUE devolve a questão ao tribunal nacional, indicando, com utilidade, que “há que atender unicamente à indicação que figura [no] botão ou […] função semelhante”. É realçada, portanto, a autonomia do botão ou função semelhante em relação a momentos anteriores do caminho para a celebração do contrato. Ou, dizendo-o de outra forma (considerando 32), deve atender-se “apenas aos termos utilizados por essa formulação e independentemente das circunstâncias que rodeiam o processo de reserva”.

Como se pode ler no considerando 33, na sequência da decisão do TJUE, o tribunal nacional deverá “verificar se o termo «reserva» está, em língua alemã, tanto na linguagem corrente como no espírito do consumidor médio[1], normalmente informado e razoavelmente atento e avisado, necessária e sistematicamente associado ao surgimento de uma obrigação de pagamento. Em caso de resposta negativa, não se pode deixar de observar o caráter ambíguo da expressão «Terminar reserva», pelo que esta expressão não pode ser considerada uma formulação correspondente à expressão «encomenda com obrigação de pagar»”. Ficaria muito surpreendido se o tribunal alemão viesse a concluir no sentido da equivalência entre as duas expressões, pelo que não compreendo a razão pela qual o TJUE não se limita a considerar a expressão «Terminar reserva» inadmissível, à luz do direito europeu. Tornaria o direito mais claro para todos, nomeadamente para as empresas que utilizam sistemas de contratação através da Internet.


[1] Trata-se da única referência ao “consumidor médio” em toda a decisão e que surge num contexto que não é tão habitual. Será que, no domínio do direito do consumo, a interpretação do contrato deverá passar a ter como referência o consumidor médio e não o declaratário normal? Ou ter-se-á tratado de um desvio linguístico inadvertido?

O Caso Tiketa e o alargamento do conceito de profissional ao intermediário

Jurisprudência

No dia 24 de fevereiro de 2022, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) proferiu um acórdão, no âmbito do Caso Tiketa (Processo C-536/20), que se debruça sobre duas questões muito relevantes em matéria de direito europeu do consumo. Em primeiro lugar, pergunta-se se o conceito de profissional da Diretiva 2011/83/UE abrange a pessoa que atua como intermediária de um profissional. Em segundo lugar, está em causa o valor jurídico de uma remissão para as condições gerais do serviço constantes de um site no caso de o consumidor ter declarado a sua aprovação. Por um lado, importa saber se essa aprovação implica o cumprimento do dever de informação pré-contratual. Por outro lado, é necessário verificar se está cumprida a obrigação de confirmação através de um suporte duradouro.

A Tiketa é uma empresa que exerce, na Lituânia, uma atividade de distribuição de bilhetes para eventos (14)[1]. No dia 7 de dezembro de 2017, o consumidor adquiriu um bilhete para um evento cultural, organizado pela Baltic Music, a realizar no dia 20 de janeiro de 2018. Antes da conclusão do contrato, constava no site da Tiketa que esse evento era organizado pela Baltic Music. Também se podia ler, em letras vermelhas, a seguinte informação: o “organizador do evento assume total responsabilidade pelo evento, pela sua qualidade e conteúdo, bem como por quaisquer informações relacionadas. A Tiketa é o distribuidor dos bilhetes e atua na qualidade de agente comercial”. Das “condições gerais da prestação de serviços”, disponíveis no site da Tiketa, constavam “informações mais precisas sobre o prestador de serviços em causa e o reembolso dos bilhetes” (15). O bilhete reproduzia apenas uma parte dessas condições gerais, contendo, “em especial, a menção de que os “bilhetes não são trocados nem reembolsados. Em caso de cancelamento ou de adiamento do evento, o organizador [deste] responde integralmente pelo reembolso do preço dos bilhetes”. Do bilhete constava igualmente “o nome, o endereço e o número de telefone do organizador do evento em causa e era indicado que este último era totalmente responsável «pelo evento, pela sua qualidade e conteúdo, bem como pelas informações relacionadas», na medida em que a Tiketa atuava apenas como distribuidor de bilhetes e «agente comercial»” (16).

No dia marcado para o evento, o consumidor ficou a saber, através de cartaz afixado no local, que o mesmo não se realizaria (17). Dois dias depois, a Tiketa informou o consumidor de que poderia obter, em linha, o reembolso do valor pago (18). No dia seguinte, o consumidor veio exigir à Tiketa o reembolso do valor pago e uma indemnização pelas “despesas de viagem” e pelos “danos morais sofridos devido ao cancelamento do evento em causa”, tendo esta remetido a questão para a Baltic Music, que nunca respondeu (19).

Em julho do mesmo ano, o consumidor propôs uma ação contra as duas empresas, pedindo a sua condenação solidária (20). O tribunal de primeira instância decidiu, menos de três meses depois (!), julgando “o pedido parcialmente procedente, condenando a Tiketa a pagar ao interessado as quantias pedidas a título de reparação dos seus danos materiais e uma parte das pedidas a título de reparação do seu dano moral, acrescendo juros à taxa anual de 5% a contar da propositura da ação até à execução integral da sua sentença” (21). O tribunal de segunda instância manteve a decisão, o que motivou o recurso para o Supremo Tribunal, que suspendeu a instância, submetendo várias questões prejudiciais ao TJUE, já resumidas no primeiro parágrafo do presente texto.

A primeira questão consiste em saber se o conceito de profissional abrange a pessoa que atua como intermediária.

O art. 2.º-2 define profissional como “qualquer pessoa singular ou coletiva, pública ou privada, que, nos contratos abrangidos pela presente diretiva, atue, incluindo através de outra pessoa que atue em seu nome ou por sua conta, no âmbito da sua atividade comercial, industrial, artesanal ou profissional”.

A versão em lituano é diferente da versão em português (25 e 26): “qualquer pessoa singular ou coletiva, pública ou privada, que atue no âmbito de um contrato abrangido pela presente diretiva para fins ligados à sua atividade comercial, industrial, artesanal ou profissional, incluindo qualquer outra pessoa que atue em nome ou por conta do comerciante”.

Segundo o TJUE (27), impõe-se uma interpretação das diretivas em caso de disparidades linguísticas que tenha em conta a sua economia geral, o que remete para o elemento sistemático de interpretação, e a sua finalidade (elemento teleológico). Conclui o TJUE, à luz destas orientações, que o intermediário é profissional, sendo irrelevante se o intermediário informou que era intermediário para ser qualificado como profissional nos termos do diploma (34). Constituem argumentos do TJUE que (i) o art. 6.º-1-c) pressupõe que é profissional o intermediário, uma vez que, além dos seus dados, devem ser prestados os dados “do profissional por conta de quem atua” (28), que (ii) se impõe uma interpretação homogénea, resultando do acórdão proferido no Caso Kamenova (32, 33, 36) que profissional é qualquer pessoa que atue com fins profissionais ou em nome ou por conta de um profissional (29), e que (iii) o art. 1.º convida a uma interpretação ampla do diploma (30).

Segundo o TJUE, o Caso Wathelet, que qualifica um intermediário como vendedor, não releva neste contexto, uma vez que a Diretiva 2011/83/UE não determina a identidade das partes nem a repartição das responsabilidades (33).

O TJUE conclui, portanto, que quer o intermediário quer o profissional em nome de quem este atua podem ser qualificados como profissionais para efeitos do cumprimento das normas do diploma europeu.

A segunda questão, apesar de não ser colocada nestes precisos termos pelo TJUE, consiste em concluir sobre o valor jurídico de uma remissão para as condições gerais do serviço constantes de um site no caso de o consumidor ter declarado a sua aprovação.

O TJUE começa (41) por distinguir as obrigações materiais de informação (art. 6.º) das obrigações formais (art. 8.º).

Antes da celebração do contrato, o profissional apenas deve fornecer as informações exigidas pelo art. 6.º-1 “de uma forma clara e compreensível” (45), só após a celebração do contrato se impondo ao profissional confirmar através de um suporte duradouro.

Logo, em abstrato, é suficiente que o consumidor selecione, no site, a casa prevista para o efeito para se considerar que as informações são levadas ao conhecimento (46). No entanto, salienta-se que cabe ao tribunal nacional avaliar se as informações foram fornecidas de forma clara e compreensível (47).

Na prática, tenho algumas dúvidas de que uma remissão para um site seja mais do que uma ficção de conhecimento (e de aprovação), claramente insuficiente para que se possa considerar cumprido o dever de informação de forma clara e compreensível.

Esse procedimento de informação (pré-contratual) não substitui a (obrigação contratual de) confirmação em suporte duradouro (48), uma vez que a informação constante de um site não é fornecida através de um suporte duradouro (51).

Independentemente do incumprimento da obrigação de confirmação em suporte duradouro, as informações prestadas são parte do contrato, nos termos do art. 6.º-5 (52). Em suma, o TJUE conclui que a Tiketa deve ser qualificada como profissional para efeitos de aplicação da Diretiva 2011/3/UE. Quanto ao cumprimento, pela Tiketa, do dever de informação pré-contratual de informação, a resposta cabe ao tribunal nacional, que deve avaliar se o mesmo foi cumprido através de uma forma clara e compreensível. Já quanto ao cumprimento da obrigação de confirmação através de um suporte duradouro, o TJUE conclui que não basta que a informação tenha estado disponível no site, com aprovação pelo consumidor, em momento anterior à celebração do contrato.


[1] Os contratos celebrados através da Tiketa não são, naturalmente, contratos de compra e venda de bilhete, uma vez que o bilhete não é o objeto principal do contrato. Se se tratar de espetáculo artístico, teremos um contrato para a assistência a espetáculo desportivo, contrato misto em que predomina o elemento prestação de serviço. Note-se que os números indicados entre parêntesis correspondem aos considerandos do Acórdão em que a questão em causa é abordada.

Quem pode escrever no Livro de Reclamações?

Jurisprudência

No final do ano transato, o Tribunal da Relação do Porto (TRP) pronunciou-se sobre recurso de sentença que, mantendo decisões administrativas da ASAE, aplicou à sociedade arguida duas coimas no valor de € 3.750,00/cada, pela prática da contraordenação prevista no art. 3.º-1-b) do DL n.º 156/2005, de 15 de setembro, e condenou a mesma, após cúmulo jurídico, numa coima única, de € 5.000,00.

Fazendo uma síntese da demanda em causa, de acordo com os factos provados, na madrugada de 19.11.2017, os participantes “C” e “G” quiseram aceder ao interior de estabelecimento (discoteca), aberto ao público e em funcionamento, explorado pela sociedade arguida, o que foi negado por porteiro daquela. Ato contínuo, cada um dos participantes solicitou o Livro de Reclamações, o qual também lhes foi negado pelo funcionário, pelo que, a pedido dos denunciantes e ao abrigo do disposto no art. 3.º-4 do DL n.º 156/2005, uma patrulha da PSP deslocou-se ao local, sem que, contudo, tenha logrado remover a recusa da sociedade arguida em facultar o Livro de Reclamações, nesta ocasião manifestada pelo gerente daquela.

Nas conclusões das alegações de recurso, a sociedade arguida defendeu, no essencial, que, para efeitos do DL n.º 156/2005, os participantes “C” e “G” não podiam ser qualificados como “consumidores ou utentes”, na medida em que tal qualificação jurídica pressupõe a conclusão de uma relação de consumo com o profissional, o que, no caso, não chegou a verificar-se, donde faltaria pressuposto constitutivo do “direito a reclamar” dos referidos denunciantes.

Ora, em face das conclusões do recurso, a questão a resolver pelo TRP consistia em aferir se os participantes “C” e “G” deviam (ou não) qualificar-se como “consumidores ou utentes”, atento o facto de não terem sido admitidos a ingressar no interior do estabelecimento explorado pela sociedade arguida.

A este respeito, o TRP, subscrevendo integralmente a sentença recorrida, começou por apelar à ratio legis do DL n.º 156/2005 expressa no seu Preâmbulo, onde se pode ler o seguinte: “[o] livro de reclamações constitui um dos instrumentos que tornam mais acessível o exercício do direito de queixa, ao proporcionar ao consumidor a possibilidade de reclamar no local onde o conflito ocorreu. (…) A justificação da medida (…) prendeu-se com a necessidade de tornar mais célere a resolução de conflitos entre os cidadãos consumidores e os agentes económicos, bem como de permitir a identificação, através de um formulário normalizado, de condutas contrárias à lei. É por este motivo que é necessário incentivar e encorajar a sua utilização, introduzindo mecanismos que o tornem mais eficaz enquanto instrumento de defesa dos direitos dos consumidores e utentes de forma a alcançar a igualdade material dos intervenientes a que se refere o artigo 9.º da Lei n.º 24/96, de 31 de julho” [negrito nosso]. Como se refere, muito assertivamente, no Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 10.03.2010, “[o] princípio base que sustenta a exigência do livro de reclamações vai assim muito além da mera possibilidade de em concreto ser dado ao utente/cliente a possibilidade de ver o seu caso concreto ser resolvido, na medida em que está subjacente em toda a evolução legislativa a garantia de uma boa prestação de serviços ao consumidor em geral nomeadamente, na possibilidade de fiscalização efectiva do modo como se prestam os serviços”. Ademais, coloca-se também a necessidade de enfrentar, adequadamente, a tendencial resistência dos fornecedores de bens e prestadores de serviços a proceder à imediata entrega do Livro de Reclamações aos utentes ou consumidores que dele pretendam fazer uso.

Neste encalço, prossegue o aresto em análise, com apoio no Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 03.04.2017, exaltando que, da interpretação e aplicação conjugadas dos n.ºs 1 e 3 do art. 3.º do DL n.º 156/2005 resulta que o dever de o fornecedor de bens ou prestador de serviços apresentar imediatamente ao consumidor ou utente o Livro de Reclamações não se compadece com qualquer espécie de condicionamento, nomeadamente “considerações sobre os motivos das reclamações ou a legitimidade de quem as apresenta”. Tais aspetos apenas podem ser suscitados e discutidos no âmbito do procedimento espoletado pelo preenchimento da folha de reclamação, porquanto o profissional “não pode ser juiz de si próprio, estando-lhe absolutamente vedada a recusa de apresentação do livro seja com que fundamento for”.

E quanto à questão da alegada falta de qualidade subjetiva de “utentes ou consumidores” suscitada em relação aos participantes, estribando-se no disposto pelo art. 2.º-1 do DL n.º 156/2005, o TRP adere ao entendimento segundo o qual a disciplina normativa daquele diploma “(…) está concebida para as situações em que os estabelecimentos se encontram abertos ao público e em funcionamento e em que o consumidor está em condições de adquirir o bem ou serviço”, com vista à manutenção de “relações de clientela”, o que, como é bom de ver, não pode ter lugar na hipótese de o estabelecimento se encontrar encerrado (inaplicável na situação dos autos), mas já se verifica no cenário, alternativo, de uma pessoa ingressar no interior de uma loja física imbuída do espírito de realizar alguma compra, mas não chegar a fazê-lo. Nesta segunda situação conjeturada, apesar de não chegar a haver lugar à celebração de uma relação jurídica de consumo, não deixamos ter um “consumidor” para os efeitos do DL n.º 156/2005, a quem assiste, de modo inequívoco, o direito a solicitar a apresentação imediata do Livro de Reclamações.

Por conseguinte, e em suma, para efeitos de delimitação do âmbito subjetivo de aplicação do DL n.º 156/2005 – e exclusivamente para estes efeitos, atenta a definição diversa apresentada no art. 2.º-1 da Lei-Quadro de Defesa do Consumidor – deve entender-se por consumidor “toda e qualquer que pessoa com interesse em adquirir um produto ou serviço, e que com esse propósito se dirige a um estabelecimento de venda de bens ou prestação de serviços” – como preconizado no acórdão aqui em análise –, abarcando esta noção os “potenciais clientes” que apenas pretendem que lhes seja prestado um serviço ou fornecido um determinado bem, ainda que tal, efetivamente, não tenha lugar, donde tal qualidade não podia deixar de ser reconhecida aos participantes “C” e “G”, os quais apenas não acederam ao interior do estabelecimento da sociedade arguida porque esta lhes vedou o ingresso.