Netflix – A mudança da política de partilha de passwords e o Direito do Consumo

Doutrina

Em 2017, a Netflix publicou um tweet em que se podia ler: “Amor é partilhar uma password”. A empresa não só estava ciente do fenómeno de partilha de contas entre familiares e amigos, como parece que até a incentivou (em Portugal temos também inúmeros exemplos). A estrutura do modelo de subscrições com vários ecrãs e os perfis de utilizadores permitem esta prática. É possível afirmar que a partilha de contas permitiu a muita gente ter acesso ao serviço, dado que a divisão do custo da mensalidade entre várias pessoas permite a cada uma delas pagar um valor inferior do que se tiver uma conta individual, beneficiando a Netflix com a captação destes consumidores.

Considerando as comunicações passadas da Netflix, é necessário analisar se existem problemas nesta nova política de partilha de passwords face ao Direito do Consumo.

Depois de já ter sido testada no Peru, no Chile e na Costa Rica, os utilizadores em Portugal, Espanha, Nova Zelândia e Canadá foram surpreendidos no início de fevereiro com uma notificação no login da conta e com um email explicando o funcionamento da nova política.

Em resumo:

  • O titular de conta deverá definir uma “localização principal”, a rede de WI-FI de uma morada física em que todos os restantes “membros” da conta residam. Utilizadores extra que estejam noutras moradas não podem aceder à conta, exceto se for comprado um “membro extra” (sendo que o plano de subscrição base não tem esta opção, o plano padrão pode comprar um novo membro e o premium pode obter dois).
  • Embora a Netflix não tenha sido totalmente transparente sobre o método utilizado para a verificação da residência conjunta, diversos leaks parecem apontar para um sistema que utiliza o endereço de IP dos vários dispositivos (televisões inteligentes, telemóveis, tablets e computadores) ligados à rede WI-FI definida como localização principal com alguma periodicidade. Quando foi testado na Costa Rica, os dispositivos deveriam ligar-se pelo menos uma vez por mês (31 dias) à rede WI-FI principal para poderem continuar a ser utilizados.
  • Existe a possibilidade de, excecionalmente, conseguir utilizar dispositivos que não cumpram o critério anterior, recorrendo ao pedido e envio para o email associado de códigos de verificação com duração limitada (para permitir viagens e deslocações).
  • Além disto, a Netflix acrescentou novas funcionalidades para a gestão e controlo da conta pelos utilizadores, assim como a portabilidade de perfis (com os seus históricos de visualização) para novas contas.

Se analisarmos esta mudança de política, a primeira questão levantada é se corresponde a uma alteração do contrato. A resposta é negativa. Se verificarmos a atual versão do contrato de licença de utilização da Netflix, de 5 de janeiro de 2023, na secção 4 (“Serviço Netflix”), no parágrafo 2, é indicado que “o serviço Netflix e quaisquer conteúdos acedidos através do serviço destinam-se apenas a uso pessoal e não comercial e não podem ser partilhados com pessoas fora da sua residência, salvo se tal for permitido pelo seu plano de subscrição”. A secção 5 (“Palavras-passe e Acesso à Conta”) não acrescenta quaisquer informações sobre a questão da residência. Os planos de subscrição não continham informações sobre o mesmo.

Se consultarmos versões anteriores do contrato, nomeadamente a versão de 2 de novembro de 2021, a versão de 31 de dezembro de 2019 ou a versão de 11 de maio de 2018, verificamos que não houve alterações do enunciado, com exceção do acrescento do trecho “salvo se tal for permitido pelo seu plano de subscrição” em janeiro de 2023, que permite a compra dos “membros extra”.

Segundo este enunciado, a “mudança de política” em fevereiro, com as novas funcionalidades, corresponde à implementação de medidas que visam garantir o cumprimento do contrato pelo consumidor. No entanto, as declarações públicas da Netflix, como os famosos tweets já referidos, podem indicar que este seja um caso de falta de conformidade objetiva à luz do artigo 29.º, n.º 1 alínea b) e n.º 6 e 7 do Decreto-lei n.º 84/2021, de 18 de outubro.

Embora seja possível fazer um exercício de interpretação criativa que possa atribuir um maior peso ao argumento de que a Netflix nunca quis permitir ou incentivar a partilha de contas e passwords, é particularmente óbvio que, pelo menos até ao final de 2022, esta não era a conclusão que deveria ser acolhida à luz do critério de interpretação das declarações contratuais (artigo 236.º Código Civil). Ainda assim, as novas declarações da Netflix no final de 2022 e a alteração do contrato no início de janeiro de 2023 permitem afastar a falta de conformidade com o contrato.

As novas funcionalidades introduzidas devem ser classificadas como uma alteração ao serviço digital, à luz do artigo 39.º do Decreto-lei n.º 84/2021, de 18 de outubro (correspondendo ao regime das modificações do serviço digital do artigo 19.º da Diretiva (UE) 2019/770), dado que estamos perante um contrato oneroso de fornecimento contínuo de serviço e conteúdos digitais.

Estas normas permitem ao profissional alterar características dos serviços e conteúdos digitais que estejam a ser fornecidos, sem ser necessária uma alteração do contrato, desde que o contrato as preveja adequadamente e estas sejam devidamente comunicadas ao consumidor.

As alterações aos serviços e conteúdos digitais podem ser implementadas por diversas razões. Podem ser implementadas para garantir a conformidade com o contrato, como é o caso das atualizações de segurança e a inclusão de novas funcionalidades e conteúdos previstos na publicidade e no contrato; para cumprir obrigações legais, como é o caso do respeito pelos direitos de terceiros; ou discricionariamente, desde que as razões sejam consideradas válidas, como alterações à interface, à marca do profissional, e melhorias de performance do serviço. Caso as alterações realizadas impliquem custos adicionais para os consumidores e ou tenham um impacto negativo (que não seja mínimo) no acesso e utilização destes, as obrigações de informação são agravadas, podendo haver direito à resolução do contrato.

Desta forma, a mudança de política de partilha de passwords implementada em fevereiro não é uma alteração ao contrato, mas uma alteração ao serviço, permitida pelo contrato. Apenas quando os consumidores comprarem os “novos membros” para as suas contas é que estarão a alterar o contrato.

À luz do regime do artigo 39.º-1, devemos considerar que a implementação destas medidas pela Netflix cumpre dois dos requisitos, mas não cumpre os outros dois. Assim, (1) é permitida pelo contrato com uma razão válida e (2) os consumidores foram informados antecipadamente de forma clara e compreensível das características da alteração e da data de implementação num suporte duradouro (por notificação no serviço e por e-mail). Porém, (3) esta alteração pode implicar custo adicionais para o consumidor e (4) tem um impacto negativo no acesso e utilização dos serviços.

Dado que a Netflix não permite a manutenção do serviço sem as alterações (art. 39.º-6), devemos analisar a extensão do impacto negativo para perceber se o exercício do direito de resolução não é desproporcionado (artigo 39.º-2 e 4).

Segundo os critérios indicados no artigo 39.º-4 (“a natureza, a finalidade e demais características habituais nos conteúdos ou serviços digitais do mesmo tipo”), é possível concluir pela admissibilidade do exercício do direito de resolução do contrato, nos termos dos artigos 36.º a 38.º. É necessário destacar que a Netflix parece não concordar com este raciocínio, pois omitiu as informações relativas ao direito de resolução no e-mail e na notificação remetidos aos utilizadores. A sua inclusão é obrigatória segundo o artigo 39.º-1-d-ii e 3.

Assim, os consumidores podem resolver o contrato com a Netflix, devendo ser ressarcidos dos montantes referentes a meses futuros que tenham sido pagos antecipadamente (artigo 36.º-1). Caso as medidas comecem a produzir efeitos no decurso de um mês já pago (o que dependerá do plano de pagamentos de cada conta), pode haver lugar à devolução do montante proporcional relativo ao período após a implementação das medidas (artigo 36.º-2).

Dado que a Netflix tipicamente não oferece planos que não sejam mensais (embora já esteja a planear testar subscrições anuais em alguns mercados, similares aos seus concorrentes), a utilidade prática do exercício do direito de resolução dos arts. 36.º e 39.º-2 será bastante limitada para a generalidade dos utilizadores.

Face a tudo isto, somos forçados a concluir que a Netflix considera que os ganhos com a implementação destas medidas ultrapassam o risco de perda de utilizadores. Os restantes serviços concorrentes estarão a observar a situação, de forma a perceber a viabilidade de copiar as medidas. Embora a concorrência feroz nos primeiros anos das “streaming wars” tenha trazido alguns benefícios aos consumidores (como mais produção de conteúdos), pode aparentemente também trazer também desvantagens no longo prazo. No futuro, é possível especular que a “balcanização” deste mercado pode levar à recriação dos antigos pacotes de canais na televisão, mas com serviços de streaming, forçando os consumidores ao pagamento de conteúdos que não lhes interessam em contratos com cláusulas de fidelização.

Finalmente, se, em tempos, a conveniência do serviço da Netflix foi um fator substancial no combate à pirataria, o grande fracionamento do mercado e a subida do valor das mensalidades dos vários serviços levanta a possibilidade de que estes ganhos sejam revertidos.

A mudança de planos da Netflix – Como se chegou até aqui?

Doutrina

Depois de vários meses de antecipação, milhares de utilizadores da Netflix foram confrontados no início de fevereiro com uma notificação com informações que causaram muito desagrado. No essencial, deixou de ser possível a partilha de contas entre pessoas que não residem na mesma morada sem o pagamento de um valor adicional. Esta mudança de política provocou muito ruído mediático, desde a revolta de quem anunciava que iria cancelar, mudar de serviço ou “regressar” à pirataria, passando de acusações de ilegalidade e até de violação da privacidade.

Como se chegou até aqui?

Em 2011, Gabe Newell, fundador e CEO da Valve, numa conferência em Seattle, resumiu de forma muito simples aquela que seria a tendência dos mercados de distribuição de serviços e conteúdos digitais no resto da década. A propósito do sucesso explosivo da plataforma de distribuição de videojogos Steam, Newel referiu que “a pirataria é um problema de serviço”.

Esta declaração e o crescimento da Steam (especialmente em mercados notórios pela pirataria endémica como a Rússia) não convenceram logo os seus principais concorrentes, que continuaram a insistir em tecnologias de DRM (digital rights management). Porém, noutros mercados, algumas empresas estavam também a experimentar modelos de distribuição similares, revolucionando as respetivas indústrias. Destacamos a Spotify, a Amazon e, claro, a Netflix.

Se recuarmos um “pouco” no tempo, até 2007(!), a Netflix limitava-se a concorrer com a Blockbuster, oferecendo um serviço de subscrição mensal de aluguer de DVDs, através do seu website. Foi por essa altura que, nos Estados Unidos da América, começou a oferecer aos seus subscritores, de forma ainda limitada, o serviço de streaming de filmes, experimentando também algoritmos de recomendação de conteúdos. Daí para a frente, a Netflix parecia imparável. Em 2010, passou a fornecer um pacote só com o serviço de streaming. Nesse mesmo ano, começou a operar no Canadá; em 2011, na América do Sul e nas Caraíbas; no Reino Unido, na Irlanda e nos países escandinavos em 2012; em 2015, entrou em Portugal e, em 2016, já se encontrava disponível o serviço em mais de 190 países. A Blockbuster, amarrada ao peso das suas lojas físicas, não conseguiu acompanhar a inovação e entrou em insolvência.

O sucesso meteórico do serviço de streaming da Netflix foi possível graças à sua aposta inicial neste mercado, subvalorizado no final dos anos 2000s e início dos anos 2010s. A Netflix conseguiu assegurar um vasto catálogo de conteúdos, incluindo filmes e séries de televisão de grandes estúdios e distribuidoras. Até então não passava de uma empresa que enviava DVDs pelo correio, enquanto a crise financeira de 2008 e a crise da “dot-com bubble” de 2001 minavam a confiança dos investidores no mercado, em especial no que dizia respeito às empresas ligadas à Internet.

No entanto, a Netflix rapidamente se apercebeu da fragilidade da sua situação e da alta dependência nos seus (possíveis futuros) concorrentes para a manutenção do catálogo e decidiu tomar medidas. Desta forma, começou em 2013 a adquirir os direitos e a produzir séries originais (Orange is the New Black e House of Cards).

Descrever esta aposta da Netflix na criação dos seus próprios estúdios de produção e na compra (e não mero licenciamento) de direitos de distribuição dava para um texto inteiro dedicado ao tema. Resumindo, a Netflix tornou-se uma plataforma mainstream, cujas séries e filmes originais são fenómenos virais, com várias nomeações e vitórias em cerimónias de prémios reputados, desde Cannes até aos Óscares. O fenómeno de binging (ver múltiplos episódios de seguida) de séries acabadas de estrear entrou para o léxico popular, assim como expressões como “Netflix and Chill”. E, claro, a partilha de passwords.

Nesta conjuntura, a valorização da Netflix dispara na bolsa, de $131 em janeiro de 2017 para $345 a janeiro de 2020. A Netflix é considerada uma empresa de tecnologia, valorizada, como parte das Big Tech, pelo seu potencial de crescimento futuro. Embora nos meses seguintes, com o pandemia da Covid-19 e as quarentenas, a valorização da Netflix ainda tenha subido mais, atingindo picos de $630 (as pessoas estão presas em casa, vão querer entretenimento), os problemas já se encontravam à mostra.

Em primeiro lugar, começaram as “streaming wars”, com a entrada no mercado de vários serviços, sendo os mais prominentes a Amazon Prime (da Amazon, inicialmente lançada em 2011), a Disney+ (Disney, 2019), a AppleTV+ (Apple, 2019), HBOMax (da Warner Bros, 2020), Paramount+ (Paramount, 2021). Ainda antes do lançamento destas plataformas, a Netflix já tinha começado a “sangrar” conteúdos, à medida que as licenças de distribuição exclusiva celebradas no início dos anos 2010s expiravam. Os seus futuros concorrentes recusam a celebração de novos contratos, enquanto estúdios de terceiros exigem valores muito superiores para a renovação das suas licenças.

Em segundo lugar, uma série de operações de concentração veio a distorcer o mercado contra a Netflix. A Disney adquiriu os estúdios da 20th Century Fox, enquanto a Warner Bros. foi comprada pela Discovery (agora Warner Bros. Discovery).

A própria gestão do catálogo da Netflix e o seu método de lançamento também tem sido problemática. O financiamento de um grande número de projetos, numa estratégia de “casting a wide net”, tem resultado em diversos franchises com alcance global, mas também enterrou a empresa em inúmeros projetos falhados de qualidade muito inconsistente. A combinação de demasiadas opções de escolha, o lançamento de temporadas inteiras na mesma data e a insegurança em investir tempo numa série que pode ser cancelada a qualquer momento, ficando assim incompleta, podem estar a provocar um fenómeno de fadiga em muitos consumidores.

A concorrer com os serviços de streaming pela atenção dos consumidores, surgem ainda, por um lado, o Youtube, o Tiktok e as restantes redes sociais, com catálogos quase infinitos de conteúdos gerados pelos utilizadores e algoritmos de recomendação avançados, e, por outro lado, videojogos como Fortnite, Minecraft e Roblox, como admitiram o CEO da Netflix, Reed Hastings, e o CEO da Spotify, Daniel Ek.

Finalmente, a nível macroeconómico, depois de um crescimento bastante acelerado durante os “anos da covid”, as empresas tecnológicas viram as suas valorizações caírem a pique durante uma crise inflacionista, com a subida das taxas juros pelos principais bancos centrais (e em especial a Reserva Federal). Com a saída do mercado do mercado russo e uma aparente estagnação no crescimento do número de subscritores, a Netflix caiu a pique, perdendo aproximadamente 50% do seu valor em 2022, e a especulação acerca do seu valor futuro foi reavaliada: a Netflix não faz parte das Big Tech, sendo antes uma empresa de entretenimento.

Face a este enquadramento, a pressão do mercado e dos acionistas sobre a gestão da Netflix é óbvia. Nestes momentos, a cultura corporate feroz exige grandes gestos e ações que resolvam rapidamente os problemas das organizações. Neste sentido, embora dificilmente consigam recuperar a quota de mercado no curto prazo, é possível tentarem cortar custos e aumentar receitas. Traduzindo: cancelar produções consideradas não rentáveis e aumentar o valor das mensalidades.

Porém, esta estratégia não foi suficiente. Assim surgem as ideias de fornecer uma subscrição mais barata com anúncios (captando novos subscritores) e o crackdown da partilha de passwords.

Este texto procurou assim contextualizar a conjuntura que levou à implementação destas medidas, de forma a compreender o comportamento dos vários agentes económicos. O próximo texto será a continuação deste, focando-se na análise da nova política de partilha de passwords, na aplicabilidade do Direito do Consumo e num balanço final do que os consumidores podem esperar destes serviços no futuro.

Finalmente, o novo Regulamento dos Serviços Digitais (Digital Services Act DSA)!

Legislação

A 27 de outubro de 2022, foi publicado no Jornal Oficial da União Europeia o muito aguardado Regulamento (UE) 2022/2065 dos Serviços Digitais (mais conhecido pelo nome inglês Digital Services Act DSA), aprovado a 19 de outubro no Conselho.

Apresentado há quase dois anos pela Comissão no Pacote dos Serviços Digitais (que inclui também o agora aprovado Regulamento (UE) 2022/1925 dos Mercados Digitais – Digital Markets Act DMA), o Regulamento dos Serviços Digitais atravessou um procedimento legislativo muito ativo: os 106 considerandos e 74 artigos da proposta inicial foram bastante trabalhados pelo Parlamento Europeu e o Conselho, resultando num total final de 156 considerandos e 93 artigos.

O Regulamento dos Serviços Digitais surge principalmente com o objetivo de atualizar o regime aplicável à responsabilidade dos prestadores de serviços digitais, anteriormente inserido nos artigos 12.º a 15.º da Diretiva do Comércio Eletrónico (2000/31/CE), agora revogados. Este regime de responsabilidade dos serviços intermediários pelo transporte e armazenamento de conteúdos ilegais, com quase 20 anos, carecia de atualização normativa, devido a todas as controvérsias relacionadas com a proliferação de conteúdos ilegais (violações de direitos de autor, promoção de terrorismo, pornografia infantil, entre outras) e tentativas de os moderar (erros dos algoritmos de sinalização e bloqueio, falsos positivos e negativos) que resultam por sua vez em restrições de direitos fundamentais de acesso à informação e liberdade de expressão, os chamados efeitos de silenciamento (“chilling effects”), que se tornaram evidentes com a omnipresença e dependência da sociedade atual nestes serviços.

O Regulamento acaba por não reinventar os principais princípios que regem a responsabilidade e o papel dos intermediários e a questão da moderação de conteúdos, focando-se antes na codificação e aprofundamento normativo de práticas que já constavam de intervenções junto dos principais stakeholders, sejam instrumentos de soft-law e self-regulation, nomeadamente a “Recomendação sobre medidas destinadas a combater eficazmente os conteúdos ilegais em linha”.

Assim, o Regulamento não altera substancialmente o regime de “safe harbour”, de isenção de responsabilidade dos prestadores de serviços de simples transporte e armazenagem temporária (“catching”) (arts. 4.º e 5.º), sendo que os serviços de alojamento virtual (novo termo para armazenagem em servidor “hosting”), recebe apenas algumas alterações cirúrgicas (em direito do consumo, abordada mais adiante). O princípio da proibição de obrigações gerais de vigilância mantém-se, sendo que é acrescentada a cláusula do “bom samaritano” (art. 7.º), que já existia no Content Decency Act CDA (a legislação americana de 1996 equivalente à antiga diretiva). Este permite aos prestadores de serviços manter a imunidade quando conduzem investigações próprias, voluntariamente e de boa-fé, destinadas a detetar, identificar e suprimir ou bloquear o acesso a conteúdos ilegais.

O papel das autoridades administrativas e judiciais é reforçado, com normas para a emissão de ordens de bloqueio e remoção de conteúdos. A figura dos sinalizadores de confiança (“trusted flaggers”) é também codificada (art. 22.º).

O Regulamento dos Serviços Digitais impõe severas medidas de controlo e auditoria de todos estes mecanismos, procurando reajustar o equilíbrio na relação entre utilizadores, plataformas e partes terceiras. Os direitos fundamentais de acesso à informação e liberdade de expressão estão refletidos nas diversas disposições do diploma.

Relação com o Direito do Consumo

O Regulamento dos Serviços Digitais não é um diploma de direito do consumo no sentido clássico do conceito. Na proposta original, a proteção de consumidores não surgia sequer indicada nos considerandos como um dos objetivos centrais do diploma, em especial a proteção económica, embora este pretendesse complementar a atuação das diretivas, com um foco nos direitos fundamentais. Este aspeto mudou com as recomendações e mudanças propostas pelo Parlamento Europeu, que referiu a necessidade de o diploma abordar as práticas desleais dos mercados em linha, assim como a articulação com normas de segurança de produtos e responsabilidade de plataforma.

Trata-se de um instrumento de regulação horizontal, que afeta uma série de áreas diferentes, incluindo os direitos de propriedade intelectual, os dados pessoais e a proteção dos consumidores. O regulamento não obsta à aplicação do acquis do direito do consumo europeu, como expressamente se indica no art. 1.º-4-f) e no considerando 10.

A definição de conteúdos ilegais, pertinente para as questões de moderação de conteúdos, inclui os conteúdos digitais que, independentemente da sua forma, violem ou estejam relacionados com violações de direito do consumo.

Os consumidores, enquanto utilizadores destes serviços, veem os seus direitos fundamentais de acesso à informação e à liberdade de expressão reforçados com mecanismos de reddress, para a contestação e recurso das decisões das plataformas na moderação de conteúdos, incluindo instrumentos de resolução de litígio.

O art. 6.º-3 inclui uma exceção expressa da exclusão de responsabilidade extremamente relevante para a proteção de consumidores: sempre que plataformas, que permitam a celebração de contratos à distância entre consumidores e comerciantes, apresentem o elemento específico de informação ou permitam, de qualquer outra forma, que a transação específica em causa induza um consumidor médio a acreditar que a informação, o produto ou o serviço objeto da transação é fornecido pela própria plataforma em linha ou por um destinatário do serviço que atue sob a sua autoridade ou controlo”. Os conceitos desta norma são desenvolvidos nos considerandos 23 e 24:

  • O considerando 23 salienta que este elemento da atuação sob autoridade ou controlo do prestador de um serviço de alojamento virtual, se verifica nos casos em que o fornecedor da plataforma em linha pode determinar o preço dos bens e serviços que são oferecidos pelos comerciantes nestes contratos à distância.
  • O considerando 24, por sua vez, aborda a questão das informações que induzam o consumidor médio a acreditar que os bens ou serviços objeto do contrato são fornecidos pela própria plataforma em linha ou por um comerciante que atue sob a sua autoridade ou controlo. O Regulamento indica como possíveis exemplos os casos em que a plataforma em linha não apresenta claramente a identidade do comerciante, se recusa a divulgar a identidade ou os dados de contacto do comerciante até após a celebração do contrato entre este e o consumidor ou comercializa o produto ou serviço em seu próprio nome, em vez de utilizar o nome do comerciante que irá fornecer esse produto ou serviço.

Será necessário, com base em todas as circunstâncias pertinentes e de forma objetiva, determinar se a apresentação é passível de induzir um consumidor médio a acreditar que a informação em causa foi prestada pela própria plataforma em linha ou por comerciantes que atuem sob a sua autoridade ou controlo. Consideramos que a utilização do conceito de consumidor médio nestes considerandos é infeliz, dado os problemas que este conceito tem levando na aplicabilidade da Diretiva 2005/29/CE, que regula as práticas comerciais desleais.

Os prestadores de serviços de intermediação em linha estão também proibidos de utilizar “dark patterns”, isto é, práticas que afetem e distorção os comportamentos dos consumidores, afetando a sua capacidade de realizar decisões autónomas, informadas e livres, graças a funcionalidades, nudges, à estrutura, design da plataforma e interface, com recurso ao tratamento de dados pessoais, considerando 67 e artigo 25.º. Estas práticas têm sido muito debatidas quanto à aplicabilidade da Diretiva 2005/29/CE das práticas comerciais desleais.

Neste sentido, o regulamento impõe ainda obrigações de transparência sobre os anúncios que são apresentados aos utilizadores, assim como os sistemas de recomendação, que apresentam sugestões ou rankings aos utilizadores, com base em decisões algorítmicas arts. 26.º e 27.º. As plataformas em linha devem informar adequadamente os consumidores sobre estas funcionalidades, os principais parâmetros e critérios utilizados, deixando que estes possam customizar, modificar estes sistemas, de acordo com preferências pessoais, 27.º-3.

De forma a assegurar a efetividade do direito do consumo europeu, os prestadores de mercados e plataformas em linha que permitam a celebração de contratos à distância a consumidores, são sujeitos a novas obrigações de due diligence, devendo aplicar os seus melhores esforços na recolha de todas as informações pré-contratuais e dados necessários, como os relacionados com a identidade dos profissionais, de forma a permitir a sua rastreabilidade art. 30.º, no âmbito das diretivas de consumo, nomeadamente a Diretiva 2011/83/EU, considerando 74.

O Regulamento inclui ainda uma série de medidas de forma a reforçar a atuação e cooperação entre entidades reguladoras independentes dos Estados-Membros (de forma a prevenir o fenómeno de bottleneck, causado pelo mecanismo one stop shop das ações por violação do RGPD[1]), assim como normas relacionadas com auditorias e supervisão das plataformas.


[1] Neste fenómeno, as Big Tech colocaram a suas sedes na Irlanda e no Luxemburgo, não só por questões de competitividade fiscal, mas também uma espécie de forum shopping regulatório, não no sentido das normas serem menos exigentes, mas devido à falta da sua efetividade, devido às entidades reguladores destes Estados não terem recursos para todas as queixas colocadas.

Reabrir a controvérsia das loot boxes nos videojogos

Doutrina

No passado dia 31 de maio, a Forbrukerrådet (Conselho de Consumidores Norueguês)[1] publicou o relatório “INSERT COIN: How the gaming industry exploits consumers using loot boxes”, de 59 páginas, detalhando a prática comercial das Loot boxes em videojogos, os diversos problemas que estas levantam, em termos de proteção dos consumidores, a legislação aplicável e a necessidade de mais (e melhor) regulação. Em coordenação com a publicação deste relatório, 20 associações de proteção dos consumidores de 18 estados europeus juntaram-se em apelos às autoridades para implementar reformas na legislação e na fiscalização destas práticas. Portugal foi um deles, tendo-se a DECO – Associação Portuguesa para a Defesa do Consumidor juntado a este consórcio.

As loot boxes são uma prática comercial utilizada em diversos videojogos, desde os gratuitos (free-to-play) aos pagos, que consiste, tipicamente, em cobrar aos utilizadores um valor (em moeda corrente ou em moedas virtuais), para desbloquearem “caixas” ou “carteirinhas” virtuais, de forma a obterem um prémio aleatório, que consiste numa recompensa (em conteúdo digital) do videojogo em questão. Os prémios aleatórios destas caixas podem variar muito, desde conteúdos para a simples personalização das personagens (as chamadas skins), apenas com valor cosmético e sem impacto na jogabilidade, até a personagens, equipamentos, figuras ou outros itens que concedem vantagens substanciais a quem as adquire. Estes itens virtuais podem, também, frequentemente ser transacionados, doados, trocados e vendidos entre os utilizadores, o que permite o surgimento (lícito ou ilícito) de mercados secundários, verdadeiras economias paralelas que incentivam a procura pelas loot boxes.

Estima-se que a venda de loot boxes em 2020 tenha resultado em receitas mundiais de 15 mil milhões de dólares para a indústria dos videojogos, com destaque para videojogos como o FIFA21, da EA, e o Fortnite, da Epic Games.

Controvérsias com loot boxes já não são uma novidade em 2022. É necessário destacar que, entre 2017 e 2018, depois de uma série de polémicas com o lançamento dos videojogos Star Wars Battlefront II e FIFA18, comparando a funcionalidade a casinos online predatórios para jovens, as Comissões de Jogos de Fortuna e Azar dos Países Baixos (Netherlands Gaming Authority) e da Bélgica (Belgium Gaming Commission) lançaram investigações a estas práticas para compreender se estas violavam as leis de jogo online nestes Estados, o que se veio a verificar. A generalidade das empresas passou a bloquear estas funcionalidades nestes Estados, mantendo-se a prática nos restantes. Aproveita-se as diferenças entre a definição legal de gambling nos vários ordenamentos jurídicos.

Este novo relatório e a ação concertada das associações de defesa dos consumidores visam reabrir esta temática, num ângulo pouco explorado até agora: o do Direito do Consumo. Desta forma, o relatório dá destaque:

  1. ao carácter agressivo da publicidade, pop-ups e notificações constantes dentro e fora dos jogos;
  2. à exploração de vulnerabilidades dos utilizadores com recurso a técnicas de design enganador e dissimulado – deceptive design, manipulative design e dark patterns;
  3. a critérios enganadores de transparência sobre as probabilidades de os utilizadores vencerem prémios;
  4. à utilização de algoritmos opacos que modificam e dissimulam resultados e probabilidades;
  5. à utilização de moedas virtuais (in-game currencies) próprias de cada jogo e plataforma para mascarar o custo real monetário da compra das loot boxes;
  6. às técnicas de design dos jogos destinadas a incentivar os jogadores a adquirirem loot boxes, com recurso a estímulos e castigos;
  7. ao verdadeiro custo real de modelos de negócio free-to-play ou freemium, que na verdade são bastante caros para os utilizadores;
  8. ao risco de perda dos conteúdos digitais a qualquer momento, fruto de cláusulas contratuais inseridas nos End-User License Agreements (EULA);
  9. à venda de loot boxes especialmente direcionada a menores.

O relatório utiliza dois case studies (FIFA22 e Raid: Shadow Legends) para exemplificar as principais práticas da indústria, passando de seguida para um curto enquadramento jurídico, incluindo a legislação aplicável aos contratos de jogo de fortuna e azar na modalidade de jogo online e o Direito do Consumo Europeu (e dos Estados Unidos da América).

No Direito do Consumo Europeu, a Forbrukerrådet focou a sua análise quanto à aplicabilidade, em primeiro lugar, da Diretiva das Cláusulas Contratuais Abusivas (Diretiva 93/13/CEE[JCO31] , transposta no DL n.º 446/85, de 25 de outubro) em especial às cláusulas que conferem unilateralmente um vasto leque de poderes aos prestadores de serviços para modificar funcionalidades dos conteúdos ligados às loot boxes, o funcionamento das mesmas e a possibilidade de apagarem os bens virtuais das contas dos utilizadores sem justificação e sem direito a reembolso.

Defende-se ainda a aplicação da Diretiva das Práticas Comerciais Desleais (Diretiva 2005/29/CE, transposta pelo DL n.º 57/2008, de 26 de março) quanto ao carácter enganador e agressivo comum a vários sistemas de loot boxes (artigos 8.º e 9.º), desde o timing das ofertas comerciais durante o jogo, a pressão colocada sobre os utilizadores, a opacidade da informação sobre os prémios, e o facto de frequentemente serem direcionadas a consumidores vulneráveis, nomeadamente as crianças e jovens.

Considera-se também aplicável a Diretiva dos Direitos dos Consumidores (Diretiva 2011/83/UE, transposta pelo DL n.º 24/2014, de 14 de fevereiro) quanto ao incumprimento dos requisitos de informações contratuais, nomeadamente certas informações como a probabilidade real dos prémios[2] das loot boxes essenciais para a decisão dos consumidores de comprarem ou não (artigo 6.º-1). A Comissão Europeia referiu este ponto nas suas Guidelines do final de 2021 para a interpretação e aplicação da Diretiva das Práticas Comerciais Desleais (Comunicação C/2021/9320), no artigo 7.º-4, afirmando que na venda de loot boxes devem ser cumpridos os deveres de informação de ambas as diretivas, quanto ao preço e as principais características (como as probabilidades).

A proposta de Regulamento para a Inteligência Artificial também foi abordada, mas apenas de passagem, quanto à opacidade e impacto negativo nos utilizadores dos algoritmos utilizados em videojogos.

De notar que o relatório não refere a Diretiva dos conteúdos e serviços digitais, quanto às normas relativas às modificações dos conteúdos digitais pelo profissional e o exercício dos direitos dos consumidores (como os efeitos da resolução do contrato).

Atendendo que a Comissão Europeia começou em março deste ano um “Fitness Check[JCO32] ” às três diretivas indicadas no relatório, com vista à preparação de propostas de revisão das mesmas até 2024, este relatório pretende reabrir a discussão sobre as loot boxes e promover alterações legislativas que tenham em conta os principais problemas regulatórios desta prática comercial.

Assim, o relatório termina com uma série de recomendações para a regulação das loot boxes:

  1. Proibição de práticas enganosas e dissimuladas pelas empresas de videojogos;
  2. Os preços nas lojas in-game devem estar indicados em moeda corrente (pelo menos com igual destaque em comparação com o preço em moedas virtuais);
  3. Videojogos direcionados a menores não devem ter loot boxes, nem funcionalidades “pay-to-win”, em que, sendo o jogo grátis, haja a possibilidade de serem conferidas vantagens substanciais ao utilizador pelo pagamento de quantias monetárias;
  4. Mais transparência no funcionamento dos algoritmos, devendo o consumidor ser expressamente informado quando for sujeito a decisões automatizadas que possam afetar o seu comportamento;
  5. Reforçar a atuação e cooperação das autoridades administrativas e entidades reguladoras no setor dos videojogos, para garantir a cumprimento da lei pelos profissionais e a proteção adequada dos consumidores;
  6. E finalmente, caso estes “remédios” não surtam o efeito de mitigar os problemas causados pela utilização desta prática comercial, esta deverá ser proibida.

Tal como em muitos outros ordenamentos jurídicos, em Portugal, a indústria dos videojogos e a suas práticas têm passado muito despercebidas[3] ao enforcement do Direito de Consumo. Esperemos que a participação da DECO neste consórcio e a cobertura mediática deste assunto possam resultar em ações concretas, especialmente se atendermos ao facto que o Decreto-Lei n.º 119-G/2021, de 10 de dezembro, apenas transpôs parcialmente a Diretiva 2019/2161 (Diretiva Omnibus), existindo assim uma janela de oportunidade para inserir reformas nos diplomas nacionais, acompanhando a transposição das medidas em falta.


[1] Organização de defesa dos direitos dos consumidores noruegueses, sob a alçada da Autoridade do Consumidor Norueguês, autoridade administrativa semelhante a uma entidade reguladora independente em Portugal.

[2] A Autoridade da Concorrência Italiana (AGCM), com competência para o enforcement da Diretiva da Práticas Comerciais Desleais, conseguiu impor este requisito de transparência às empresas de videojogos em Itália.

[3] Em 2018, Teresa Monteiro, vice-presidente do Turismo Portugal, assinou uma declaração conjunta de reguladores sobre loot boxes em videojogos. Também em 2018, o Serviço de Regulação e Inspeção de Jogos participou num encontro de reguladores em Birmingham sobre o mesmo tema. Além destas notícias, não se conhecem mais ações dos reguladores portugueses.


O Conceito de Pagamento na Diretiva das Práticas Comerciais Desleais – Acórdão C-371/20 TJUE

Jurisprudência

O Tribunal de Justiça da União Europeia (doravante Tribunal ou TJUE) pronunciou-se recentemente sobre o processo C-371/20, um reenvio prejudicial sobre a interpretação do conceito de pagamento no ponto 11[1] do Anexo I da Diretiva 2005/29/CE de 11 de Maio de 2005, conhecida como a Diretiva das Práticas Comerciais Desleais.

O tema da extensão do conceito de contraprestação nos contratos de consumo para incluir outras contrapartidas que não sejam pecuniárias tem sido particularmente debatido e trabalhado no Direito do Consumo Europeu, em especial quanto à questão do tratamento de dados pessoais[2].

A jurisprudência sobre este tema ainda é escassa (neste blog já foi analisado um caso italiano). No processo C-371/20, a alegada contraprestação não foi o tratamento de dados pessoais de consumidores, mas o envio e permissão de utilização de conteúdos protegidos por direitos de propriedade intelectual a título gratuito.

Neste caso alemão, o Tribunal, seguindo de perto a opinião do Advogado-Geral Maciej Szpunar (AG), expandiu a sua interpretação do conceito de financiamento/pagamento, no contexto de uma prática comercial de inserção de promoções em conteúdos editoriais.

Segundo o TJUE, este conceito deve ser interpretado como abarcando qualquer contrapartida económica com valor patrimonial, independentemente da forma que esta assuma. No caso sub judice, a permissão de utilização de imagens protegidas por direitos de propriedade intelectual de forma gratuita constitui uma contrapartida com valor económico e, portanto, um pagamento pelas promoções.

Enquadramento Factual

Peek & Cloppenburg, uma sociedade comercial que se dedica à atividade de venda a retalho de vestuário, e a GRAZIA, uma revista de moda, realizaram uma parceira em 2011, para a organização de um evento, uma “noite de compras exclusivas” denominada “GRAZIA StyleNight by Peek&Cloppenburg”.

A revista GRAZIA publicou um artigo de dupla página sobre este evento, enquanto parte do conteúdo editorial da própria revista, sem identificação de este ter sido pago, isto é, do seu caráter publicitário. O artigo continha diversas imagens das lojas e produtos da “Peek & Cloppenburg”, que foram fornecidas por esta, com a autorização da sua utilização neste âmbito.

P&C Hambourg, uma sociedade concorrente de Peek&Cloppenburg, alegou que este incidente constitui uma prática comercial contrária à lei alemã que transpôs a Diretiva das Práticas Comerciais Desleais (UWG), ao constituir publicidade dissimulada paga nos conteúdos editorais da revista.

Ratio Decidendi

Uma das principais dificuldades do Bundesgerichtshof (Supremo Tribunal Federal Alemão) deveu-se à própria interpretação do elemento literal da norma de transposição e da Diretiva[3].

Na versão em alemão da Diretiva, o termo “bezahlt” é geralmente associado ao pagamento de somas monetárias, de forma semelhante à versão inglesa, que utiliza “paid for” ea versão espanhola “pagando”. No entanto, algumas das restantes versões linguísticas do diploma utilizam expressões de carácter mais neutral, quanto à natureza da contrapartida, nomeadamente as versões francesa “financer” e italiana “i costi di tale promozione siano stati sostenuti”.

Em português, a expressão utilizada na Diretiva é “tendo sido o próprio profissional a financiar essa promoção”. Embora semelhante à versão francesa, esta linguagem também poderia suscitar algumas dúvidas aos juristas portugueses.

Devido a estas discrepâncias no elemento literal, o TJUE (para. 36 e 37) e o AG (para. 46 e seguintes) avançaram para o elemento sistemático e teleológico, considerando assim o contexto e os objetivos prosseguidos pela Diretiva.

Dado que:

1. o objetivo principal deste diploma é garantir um elevado nível de proteção dos consumidores na União Europeia contra práticas comercias desleais;

2. as práticas enumeradas no Anexo I são sempre consideradas desleais independentemente das circunstâncias;

3. o objetivo da norma em assegurar a transparência na publicidade de produtos e serviços no domínio da imprensa escrita e outros meios de comunicaç3ão social;

4. restringir o conceito de pagamento apenas à transmissão de quantias pecuniárias não corresponderia à prática jornalística e publicitária e retiraria o efeito útil desta disposição;

5. vários estudos realizados pelo Parlamento Europeu sobre práticas de publicidade dissimulada e enganosa na Internet, nas redes sociais, fóruns, blogues, publicações de influencers, concluíram que estas são financiadas direta ou indiretamente por operadores económicos, devendo aplicar-se esta Diretiva;

6. restringir o conceito de pagamento teria inevitavelmente um efeito prejudicial na confiança dos consumidores, na neutralidade da imprensa e nas regras da concorrência.

O Tribunal concluiu que o conceito de pagamento deve aplicar-se sempre que o profissional conceder qualquer contrapartida económica, independentemente da sua forma e valor, seja em quantias monetárias, bens, serviços ou qualquer outra vantagem patrimonial pela realização da ação publicitária.

A disposição, a título gratuito, a favor da revista GRAZIA, de imagens protegidas por direitos de propriedade intelectual pode ser considerada pelo Bundesgerichtshof como um financiamento direto da publicação.

As conclusões deste acórdão têm implicações bastante interessantes para o Direito do Consumo Europeu.

Em primeiro lugar, revela a importância de considerar as diferentes versões linguísticas dos diplomas europeus, os problemas que podem surgir e o valor dos restantes elementos interpretativos, nomeadamente o sistemático e teleológico.

Em segundo, embora o caso em apreço apenas incida nos conteúdos editoriais, tanto o Tribunal e o Advogado-Geral demonstraram abertura à aplicação desta Diretiva às novas realidades do marketing digital, onde a publicidade oculta é endémica, especialmente quanto às práticas de muitos influencers, frequentemente direcionadas a menores.

Por fim, a expansão do conceito de pagamento a diferentes tipos de contraprestações económicas com valor patrimonial poderá ser um indicador de que este raciocínio também poderá ser considerado (e aplicado) pelo Tribunal noutras diretivas de Direito do Consumo Europeu.


[1] “11. Utilizar um conteúdo editado nos meios de comunicação social para promover um produto, tendo sido o próprio profissional a financiar essa promoção, sem que tal seja indicado claramente no conteúdo ou através de imagens ou sons que o consumidor possa identificar claramente (publi-reportagem). Esta disposição não prejudica a Directiva 89/552/CEE”

[2] A Diretiva (UE) 2019/770, dos contratos de fornecimento de conteúdos e serviços digitais (DCD) e a Diretiva (UE) 2019/2161, da Modernização do Direito do Consumo (MD) na sua alteração à Diretiva 2011/83/UE, já incluem o tratamento de dados pessoais fornecidos pelos consumidores (desde que não seja realizado para o cumprimento de requisitos legais ou no cumprimento das obrigações contratuais) no seu âmbito objetivo.

[3] Na jurisprudência do TJUE, nomeadamente o Acórdão C-512/12 4finance, a necessidade de aplicação uniforme dos atos legislativos da UE implica que estes diplomas não podem ser interpretados considerando apenas uma versão linguística isoladamente. É assim necessário considerar as várias versões linguísticas em conjunto na interpretação literal. Após este exercício é que se deve avançar para a interpretação sistemática e teleológica da norma (Acórdão C-281/12 Trento Sviluppo e Centrale Adriatica).

Non-Fungible Tokens (NFT) – o que são estes cripto-ativos? Mais uma bolha?

Doutrina

Para quem tem acompanhado a evolução dos mercados financeiros, commodities e cripto durante 2021, este tem sido um ano cheio de episódios que desafiam conceções básicas que temos como garantidas. Em Janeiro (e depois em Março, embora menos comentado na comunicação social), a saga do r/Wallstreetbets a tentar provocar um short squeeze das ações da GameStop, AMC (entre outros) chocou o mundo quanto à possibilidade de grupos de investidores amadores se conseguirem “coordenar” em redes sociais. Em Fevereiro, após o Elon Musk ter adicionado a hastag #bitcoin na sua bio do Twitter, o anúncio de que a Tesla tinha comprado mais de mil milhões de doláres em Bitcoins e que passaria a aceitar pagamentos feito com esta criptomoeda, provocou mais uma subida vertiginosa do seu valor, quebrando recordes.

Este tipo de notícias atraiu os olhares de muitas pessoas para os mercados de cripto-ativos, procurando replicar as inúmeras histórias de pequenos amadores que viraram milionários – acabando por descobrir os Non-Fungible Tokens (NFT), através de notícias de leilões milionários de arte em NFT, como o que ocorreu com a venda de um NFT representando o popular vídeo do Nyan Cat. Mas afinal, o que são NFT?

Non-Fungible Tokens (NFT) ou em português, “Tokens” (fichas) não fungíveis, são um tipo de cripto-ativo, um token criptográfico, que, como o nome indica, representa algo único, não fungível. Distinguem-se assim da generalidade das tokens já conhecidas do público em geral, como as criptomoedas e cripto-ativos emitidos em ICOs com obrigações de crédito associados (por exemplo). Como estes cripto-ativos estão registados em Blockchain, a sua infungibilidade é assegurada – devido ao carácter descentralizado da Blockchain e do sistema de certificação peer-to-peer, nenhum NFT pode ser duplicado, nem falsificado (na Blockchain) – se alguém quiser um determinado NFT, tem de conseguir que o seu detentor lhe transmita o ativo.

Qual é a utilidade dos NFT? A sua infungibilidade e a forma como podem ser transmitidos utilizando diversas plataformas interoperáveis entre si, permite que estes possam atuar como uma espécie de “propriedade virtual” – as transações de NFT são autenticadas e registadas na Blockchain, permitindo o tracking da detenção de cada ativo singular. Desta forma, NFT podem ser utilizados para funções onde a escassez é necessária, seja para criar itens digitais exclusivos, colecionáveis, itens em jogos criptografados e “arte criptográfica”. 

A ideia de ter itens digitais que podem ser colecionados, que são escassos e alvo de grande cobiça já é antiga – desde que há videojogos online que permitem aos jogadores possuir e trocar itens virtuais, que isto se verifica em parte, com o surgimento de autênticos mercados secundários (geralmente não oficiais), em que certos itens são vendidos por grandes quantias monetárias. A questão é que ao contrário dos NFT, esses items virtuais, mesmo quando são excecionalmente raros, não são “verdadeiramente” únicos e exclusivos – mesmo quando existe apenas um, a empresa que opera o videojogo online, o prestador de serviço nesta relação, tem a capacidade de facilmente criar mais itens iguais – pode “editar” o número existente deste item, copiando o item supostamente único. Além de aumentar a quantidade, as próprias funções e características (incluindo a possibilidade de serem transmitidos entre contas de utilizadores) podem também ser alteradas da mesma forma. Assim, esta suposta ideia de escassez é “artificial”, baseada na relação de confiança entre o operador da plataforma e a comunidade de jogadores. Um simples update pode mudar tudo, sem que os utilizadores o possam impedir – sendo que os Termos de Utilização geralmente permitem isto. Com a utilização da tecnologia Blockchain, estas preocupações (que não impediram o surgimento de um mercado que vale milhões), não se aplicam.

A utilização inicial de NFT foi em jogos de cartas “cripto-colecionáveis”, mas a sua grande popularidade recente deveu-se à sua relação com a Arte, nomeadamente a Arte Digital ou Criptográfica. Vários artistas e personalidades, desde o produtor de música “Deadmau5”, o bilionário Mark Cuban, Justin Roiland da série Rick and Morty, até à atriz Lindsay Lohan, têm emitido e vendido NFT, que vão desde um clip de vídeo do LeBron James num jogo de baskteball, a quadros e desenhos, tweets[1] e músicas. A emissão e venda de NFT foi uma importante fonte de receitas para diversos artistas impedidos de realizar as suas atuações presenciais devido à pandemia da Covid-19. 

É importante referir que quando algum artista vende um NFT de uma música original da sua autoria, o comprador não adquire quaisquer direitos de autor (o “Copyright”) da música em si[2], mas um ativo único, exclusivo, não replicável que apenas “representa” a música[3] – é a autenticidade e exclusividade que atrai os colecionadores. Qualquer pessoa pode ser proprietária de uma cópia da Mona Lisa, mas existe apenas um original autêntico que se encontra no Louvre. 

Em termos de Direito de Consumo Europeu – enquanto a proposta de Regulamento de Mercados de Cripto-ativos (MiCA) (que já abordamos neste Blog) não é aprovada – o contrato realizado para a obtenção de um NFT trata-se de um contrato para o fornecimento de conteúdos digitais, sendo de destacar a aplicação dos seguintes diplomas (assumindo que estamos perante uma relação profissional-consumidor): 

-Diretiva das Cláusulas Contratuais Abusivas (93/6/CEE); 

-Diretiva das Práticas Comerciais Desleais (2005/29/CE);

-Diretiva dos Direitos dos Consumidores (2011/83/UE);

-Diretiva dos Conteúdos e Serviços Digitais (UE 2019/770)[4];

Quanto à Diretiva de Bens de Consumo (UE) 2019/771, é de destacar que mesmo quando bens de consumo são vendidos acompanhados por um NFT que representa aquele bem físico – o fenómeno da tokenização de certos bens exclusivoscomo ténis da Nike –  esta não será aplicável à transmissão do NFT. Neste contrato misto, o fornecimento do NFT é uma prestação separada da venda do bem, dado que o token não está incorporado ou interligado com o bem físico, segundo as definições do nº 3 e 4 do artigo 2º, e o nº 4 do artigo 3º da Diretiva da Conteúdos Digitais e os nº 5-B e nº 10 do artigo 1º e o nº3 do artigo 3º da Diretiva de Bens de Consumo. 

No entanto, mesmo com aplicação das normas destes diplomas, a melhor forma de proteção dos consumidores neste caso é o seu conhecimento sobre este tipo de ativos e a moderação das suas expetativas – neste momento há muitas pessoas que estão a adquirir estes ativos apenas com o objetivo de aproveitar o potencial especulativo do seu valor. Todas as semanas há vendas que batem recordes e é fácil cair no entusiamo. 

Existem receios fundados que algumas destas vendas podem frustrar seriamente as expectativas dos seus detentores – é possível que exista ou se esteja a formar uma “bolha” e que estes ativos estejam sobrevalorizados – da mesma forma que existem alegações similares para outros tipos de cripto-ativos, e mesmo quanto aos mercados financeiros tradicionais. A possibilidade de uma inflação galopante se abater sobre o dólar também alimenta estes receios.

A verdade é que os NFT representam várias realidades muito diferentes entre si, sendo difícil de falar destes no seu todo. Por um lado, é muito provável que vários estejam sobrevalorizados e que uma bolha rebente – de forma similar à especulação dos colecionadores no mercado de bandas desenhadas nos anos 90 – e ou que continuem a ser bastante procurados, mantendo-se o interesse – de forma semelhante ao mercado de venda de arte, onde os colecionadores continuam bastante participativos em grandes leilões


[1] Dominic Cummings, ex-conselheiro do Primeiro-Ministro do Reino Unido Boris Johnson, ameaçou vender um NFT de documentos cruciais que demonstravam a incompetência e negligência do governo britânico na gestão da pandemia.

[2] Exceto no caso dessa transmissão estiver mesmo incluída nas cláusulas do contrato celebrado com o comprador do cripto-ativo. Neste caso a transmissão dos direitos de autor acontece devido a esta cláusula, não devido à transmissão do cripto-ativo, são prestações diferentes de um contrato misto. 

[3] Geralmente, devido à quantidade de memória exigida, a própria obra de arte digital que o token representa não se encontra armazenada na Blockchain, mas num website, geralmente de terceiros. O token funciona assim como um certificado, um registo de detenção. Devido a isto, surge frequentemente o problema de links mortos (dead links, due to link rot), isto é, o website onde estava alojada a obra foi apagado ou o link foi alterado. 

[4] O problema dos links mortos será particularmente relevante para a questão da conformidade do conteúdo digital com o contrato, de acordo com os artigos 7º e 8º da Diretiva dos Conteúdos e Serviços Digitais.

O início do(s) Caso(s) TikTok? – Cláusulas Contratuais Gerais, Bens Virtuais e Copyright

Doutrina

A Organização Europeia do Consumidor BEUC apresentou uma queixa à Comissão Europeia e à rede de autoridades de defesa do consumidor contra o TikTok, na passada terça-feira, dia 16 de Fevereiro, por várias violações de Direito do Consumo, nomeadamente quanto a cláusulas contratuais abusivas e práticas comerciais desleais. Para além da BEUC, em mais 15 Estados[1], associações de defesa dos direitos dos consumidores também apresentaram queixas às autoridades e entidades reguladoras, de forma coordenada, contra o TikTok – e não, Portugal (ainda?) não se encontra nesta lista.

O TikTok, da chinesa ByteDance, começou em 2016 como uma app que procurava inovar no modelo do Vinee do Musical.ly e tornar-se numa rede social de partilha de vídeos curtos dos utilizadores, em diferentes temáticas e interesses, com enfâse na reprodução de músicas atuais e áudio de cenas de filmes e séries populares – adquirindo para este propósito licenças junto dos right holders. Com a aquisição do Musical.ly no final de 2017 e a fusão de ambas as apps em Agosto de 2018, o TikTok conseguiu sair da bolha do mercado chinês e penetrar no mercado americano (e, por conseguinte, mundial), convertendo-se rapidamente numa das mais populares plataformas em todo o mundo, entre as várias faixas etárias – com uma estimativa de mais de 1,1 mil milhões de utilizadores mensais.

Com a extraordinária popularidade, também vieram controvérsias – desde de a app ser banida na India; executive orders do ex-presidente dos Estados Unidos para bloquear a app devido a receios de espionagem e partilha de dados pessoais com o Governo Chinês, procurando assim forçar a sua venda a uma multinacional americana; ser forçada a bloquear todos os utilizadores italianos e realizar um controlo apertado da sua idade, para a sua readmissão (devido à morte de uma menor de 13 anos); e claro, alegações relativas a invasão de privacidade e tratamento ilícito dos dados dos utilizadores, incluindo a utilização de tecnologia de reconhecimento facial, por autoridades de proteção de dados europeias.

Estas novas queixas da BEUC e das associações de proteção de consumidores vêm abrir um novo capítulo, uma nova frente de combate aos abusos do TikTok (e outras multinacionais que utilizem as mesmas técnicas), centrando as queixas no Direito do Consumo, nomeadamente quanto a práticas comerciais desleais, cláusulas contratuais gerais abusivas e falta de transparência no tratamento de dados pessoais e publicidade.

As práticas sob escrutínio incluem:

  • Publicidade oculta e enganosa, seja colocada pelo TikTok, seja pela utilização de funcionalidades que permitem que marcas usem influencers para campanhas de marketing agressivas junto dos seus fãs – especialmente direcionada a crianças e outras pessoas vulneráveis;
  • Falta de transparência nas obrigações de informação aos titulares de dados pessoais, possível ausência de base de licitude do tratamento, reutilização de dados para finalidades incompatíveis, (…) diversas possíveis violações do Regulamento Geral de Proteção de Dados.

Em paralelo com a abertura deste tema, é de destacar também o recém publicado relatório do Parlamento Europeu sobre a necessidade de “atualizar” a Diretiva das Cláusulas Contratuais Abusivas (93/13/CEE), para os serviços digitais. Este relatório aborda, entre vários temas, as cláusulas predatórias sobre o copyright do user-generated content, como a referida acima do TikTok.

É possível que estas queixas das associações de defesa dos consumidores se convertam no futuro em processos judiciais, sejam movidos pelas entidades reguladores ou como ações coletivas de indeminização dos consumidores – e que, quem sabe, cheguem ao Tribunal de Justiça, de forma a conseguir uma atualização jurisprudencial, uniforme na União Europeia, da aplicabilidade das Diretivas sobre Cláusulas Contratuais Abusivas e Práticas Comerciais Desleais a este tipo de práticas e modelos de negócio.

 

[1] Os Estados em questão: Bélgica, Chipre, República Checa, Dinamarca, França, Alemanha, Grécia, Itália, Países Baixos, Noruega, Eslováquia, Eslovênia, Suécia, Espanha e Suíça.

[2] No contexto de redes socias, este modelo de negócio aparenta ser inspirado no sistema de awards do Reddit, em que os utilizadores premeiam as publicações que gostam mais, dando-lhes maior visibilidade e notoriedade a terceiros, pelo algoritmo.

Cyberpunk 2077 e o problema da falta de conformidade dos videojogos no seu lançamento

Doutrina

No passado dia 10 de Dezembro, foi lançado o muito aguardado Cyberpunk 2077, do estúdio e distribuidor polaco CD Project Red, responsável também pela muito conhecida franchise The Witcher. Após oito anos em desenvolvimento, dois adiamentos da data de lançamento e uma campanha publicitária muito intensa, os fãs puderam finalmente adquirir o videojogo. Este encontra-se disponível em lojas físicas e em lojas virtuais, como a da GOG (subsidiária da CD Project Red), a Steam, a Google Store, a Playstation Store e a Microsoft Store. O videojogo tem versões para computadores e para as consolas Playstation 4 e Xbox One, assim como para as recém-lançadas, ditas de nova geração, Playstation 5 e Xbox X e S.

No entanto, para desapontamento de muitos, o videojogo que adquiriram – sendo que 8 milhões de pessoas fizeram por pre-order, com a antecedência de muitos meses, com a promessa de alguns conteúdos bónus – tinha bastantes problemas, especialmente em termos de performance do software. Rapidamente, a Internet encheu-se de relatos de jogadores que partilhavam os bugs e glitches mais “engraçados” e absurdos. E relatos do facto de o software estar com tantos problemas que seria impossível, na realidade, utilizar o serviço digital que adquiriram, mesmo tendo computadores e equipamentos que cumprissem com os requisitos de sistema publicitados pela CD Project Red. A situação revelou-se especialmente grave nas consolas de “antiga geração”, a Playstation 4 e a Xbox One, em que os jogadores se queixaram de o videojogo não funcionar e provocar crashes em que a consola se desligava de forma inesperada e constante. Esta situação levou, inclusivamente, a que a Sony retirasse o videojogo da Playstation Store e concedesse um reembolso a todos os consumidores que o pedissem.

Mesmo com um lançamento controverso e cheio de problemas, não cumprindo o “produto” final as expectativas estabelecidas pelo marketing intenso, as promessas do estúdio e a própria descrição do produto nas lojas virtuais, a verdade é que isto não impediu que as vendas do Cyberpunk 2077 fossem um sucesso comercial gigantesco. Muitos consumidores não tiveram acesso a remédios adequados face às faltas de conformidade do software. As soluções oferecidas basearam-se, essencialmente, nas (heterogéneas) políticas comerciais das lojas físicas e das lojas virtuais, que variam de plataforma para plataforma e de Estado para Estado.

Este aparenta ser um cenário bastante problemático que, infelizmente, no caso da indústria dos videojogos, está muito longe de ser excecional. Na verdade, lançamentos desastrosos de videojogos num estado inacabado como o do Cyberpunk 2077 são mais comuns do que seria de esperar. Há, geralmente, vários casos como este por ano, ligados às maiores produtoras, com situações particularmente notórias pelo nível de embuste e mentiras flagrantes (por exemplo, No Man Sky em 2016 ou Fallout 76 em 2018). Habitualmente, nestes casos, as empresas vão lançando patches e updates durante os meses seguintes ao lançamento, que servem para reparar/consertar os principais problemas do software e para incluir funcionalidades e conteúdos que supostamente deviam ter sido incluídas no produto final já distribuído[1]. Porém, este processo pode demorar muito tempo, ou até nem se verificar de todo, existindo empresas com uma reputação conhecida de venderem videojogos inacabados, com publicidade enganosa, e que rapidamente abandonam esses projetos, optando por alocar imediatamente os seus recursos a novos produtos.

Além dos danos causados pelo lançamento de videojogos num estado inacabado, há certas práticas adotadas pelos maiores distribuidores do mercado que devem ser referidas aqui: as já referidas pre-orderse os “reviews embargos”.

Nas pre-orders, os consumidores pagam antecipadamente por um videojogo que ainda não foi lançado no mercado, sendo geralmente aliciados para tal com a inclusão de conteúdos extra-exclusivos e, por vezes, uma redução do preço.

Os “review embargos” consistem na prática das produtoras de, ao enviarem antecipadamente cópias dos seus produtos a jornalistas para estes testarem, proibirem que estes publiquem as suas avaliações até depois do lançamento oficial. Impede-se, desta forma, que os consumidores (que já pagaram pelas pre-orders) possam ser alertados do estado do produto a tempo de cancelar a sua compra. Nos casos raros em que algum jornalista “furou” o embargo, publicando o seu artigo antes de tempo, este acabou blacklistedpelas principais empresas, deixando de receber o produto para testar com antecedência.

Do ponto de vista do Direito do Consumo, toda esta controvérsia levanta várias questões interessantes.

Na ótica processual, temos as questões de saber (i) qual é a jurisdição na qual deve ser iniciada a ação, (ii) qual é a lei aplicável ao contrato e (iii) que meios de resolução extrajudicial de litígios podem ser utilizados.

Os EULA (End-User Licensing Agreements) incluem, geralmente, cláusulas sobre estas temáticas, que por vezes procuram afastar as normas especiais do Regulamento Roma I e do Regulamento Bruxelas I, o que pode levantar problemas aos consumidores.

Num plano substantivo, a Diretiva dos Direitos dos Consumidores (Diretiva 2011/83/UE) classifica os videojogos como conteúdos digitais, estabelecendo que as comunicações pré-contratuais fazem parte integrante do contrato e atribuindo um direito ao arrependimento ou à livre resolução do contrato aos consumidores nos contratos realizados à distância ou fora do estabelecimento comercial. No entanto, no seu artigo 16.º-m), estabelece que o consumidor pode abdicar deste direito nos contratos de fornecimento de conteúdos digitais que não sejam disponibilizados em suporte duradouro. Na prática, esta situação ocorre com facilidade, por via da inclusão desta cláusula nos Termos e Condições que o consumidor é “forçado” a aceitar na loja virtual.

No entanto, nem tudo está perdido para o consumidor.

Embora em muitas ordens jurídicas dos Estados Membros da União Europeia não existam normas quanto a requisitos de conformidade de serviços digitais e que atribuam direitos ao consumidor em caso de desconformidade, esta situação está em vias de resolução. Com efeito, a Diretiva 2019/770, relativa aos contratos de fornecimento de serviços e conteúdos digitais, deverá ser transposta ainda este ano, com entrada em vigor das normas de transposição a 1 de Janeiro de 2022. Ainda mais recentemente, foi aprovada a Diretiva 2020/1828, sobre as ações coletivas de proteção dos direitos dos consumidores, que irá colmatar as lacunas existentes em alguns Estados Membros e agilizar a propositura de ações para a reparação de danos causados pela violação do direito de consumo europeu e das leis nacionais, incluindo as Diretivas 2011/83/UE e 2019/770.

Assim, com a transposição destas normas e com o aprofundamento do Mercado Único Digital na União Europeia, os consumidores irão beneficiar de uma maior proteção dos seus direitos. Situações como o lançamento do Cyberpunk 2077, em que serviços digitais são distribuídos num estado inacabado sem a devida indicação, tornar-se-ão, espera-se, mais raras.

[1] No caso da CD Project Red, quatro dias depois do lançamento do Cyberpunk 2077, esta publicou um statement neste sentido, admitindo que esconderam as falhas das versões nas consolas antigas e prometendo dois patches, em Janeiro e Fevereiro, que consertarão os problemas, assim como o direito ao reembolso a quem o pedisse. https://en.cdprojektred.com/news/important-update/

Digital Services Act e Digital Markets Act – Novas regras europeias para os serviços digitais e para os mercados digitais

Legislação

Por Jorge Morais Carvalho e Martim Farinha

 

O dia que muitos aguardavam com ansiedade chegou. A Comissão Europeia apresentou um projeto ambicioso de reforma da legislação em matéria de serviços digitais e de mercados digitais (o Digital Services Act package, na versão em inglês).

Os principais objetivos elencados pela Comissão para este pacote legislativo passam pela proteção dos consumidores, por um lado, e pela existência de mercados digitais mais justos e eficientes, por outro lado.

O pacote inclui, no essencial, duas propostas de regulamento:

Proposta de Regulamento Serviços Digitais (explicação aqui);

Proposta de Regulamento Mercados Digitais (explicação aqui).

A análise de todos estes documentos pressupõe um trabalho de leitura minucioso e exaustivo, pelo que deixamos aqui apenas algumas notas gerais ligadas ao impacto que algumas normas poderão ter na regulação das relações de consumo.

Seguindo a lógica do diploma, o Digital Services Act regula os serviços de intermediação em linha, que incluem, entre outros, os serviços de hospedagem (hosting), que por sua vez incluem, entre outros serviços, as plataformas em linha (mercados em linha, lojas de aplicações, plataformas da economia colaborativa e redes sociais), que por sua vez incluem, entre outros serviços, as plataformas em linha de grande dimensão (consideradas como tais se tiverem um número igual ou superior a 45 milhões de utilizadores).

O Digital Services Act vem assim atualizar e complementar a Diretiva sobre o Comércio Eletrónico (Diretiva 2000/31/EC), um dos principais diplomas europeus de caráter horizontal em serviços digitais nos últimos 20 anos, que há muito tempo era objeto de apelos de reforma devido a todas as transformações que se têm verificado na Internet e na forma como consumidores, empresas e plataformas interagem nesta.

As regras a que estão sujeitas as categorias de prestadores de serviços de intermediação em linha identificados vão sendo cada vez mais exigentes, atingindo o grau mais elevado, naturalmente, nas plataformas de grande dimensão (v. arts. 10.º e segs.).

Uma das normas mais relevantes no que respeita à proteção do consumidor é a do art. 5.º-3, que estabelece que a isenção de responsabilidade dos prestador de serviços de hospedagem “não se aplica no que respeita à responsabilidade nos termos da legislação de defesa do consumidor de plataformas em linha que permitam aos consumidores celebrar contratos à distância com profissionais, sempre que tal plataforma em linha apresente o elemento específico de informação ou permita de outra forma que a transação específica em causa leve um consumidor médio e razoavelmente bem informado a acreditar que a informação, ou o produto ou serviço objeto da transação, é fornecida pela própria plataforma em linha ou por um destinatário do serviço que atue sob a sua autoridade ou controlo”.

A proposta de regulamento também prevê a implementação de obrigações de monitorização e de due dilligence das plataformas digitais, quanto à eliminação de conteúdos e serviços ilegais, incluindo mecanismos para a denúncia (flag) destes pelos consumidores e outros utilizadores das plataformas (art. 11.º), criando a figura dos denunciantes de confiança (trusted flaggers), e, em contrapartida, sistemas para a contestação destas denúncias e subsequente remoção de conteúdos ou serviços pelos visados (art. 17.º). As decisões de remoção de conteúdo e as sanções aplicadas aos utilizadores têm de ser devidamente jusitificadas. A liberdade de expressão e a transparência das decisões tomadas no âmbito destes litígios foram assim acauteladas pela Comissão, que afasta a solução de filtros de upload, não se pretendendo que a arbitrariedade, o abuso e a censura se tornem a regra.

As plataformas também terão de identificar claramente as empresas e os agentes económicos que utilizem os seus serviços para chegar aos consumidores (know your business customer), assumindo um papel relevante em matérias como o combate ao contrabando e à contrafação ou a comercialização de produtos perigosos.

A utilização de algoritmos para a gestão, envio e partilha de conteúdos e serviços digitais, incluindo a colocação de anúncios, também passará a ter novas regras. Os consumidores têm de ser informados de forma clara e percetível sobre os principais parâmetros utilizados no que respeita à seleção das pessoas a quem é dirigida a publicidade.

O Digital Markets Act visa regular uma parte das plataformas em linha de grande dimensão, que designa de gatekeepers, sendo um diploma enquadrável essencialmente no direito da concorrência.

O art. 1.º-1 estabelece, desde logo, que “o presente regulamento estabelece regras harmonizadas que garantem mercados concorrenciais e equitativos no setor digital em toda a União onde os gatekeepers estão presentes”. Nos termos do art. 3.º-1, uma plataforma (incluindo motores de busca, redes sociais, partilha de vídeo, comunicação interpessoal, sistemas operativos, nuvem, publicidade) será designada gatekeeper se tiver um impacto significativo no mercado interno, explorar um serviço que sirva de importante porta de entrada para utilizadores empresariais para chegar aos utilizadores finais e tiver (ou ser previsível que venha a ter) uma posição sólida e duradoura nas atividades que desenvolve.

O diploma visa garantir aos profissionais que dependem destes gatekeepers para o exercício da sua atividade um maior equilíbrio na relação. Pretende-se que exista um ambiente negocial mais justo, sem cláusulas abusivas ou práticas desleais. Os consumidores serão protegidos por via indireta, como é regra no direito da concorrência.

Entre as práticas que passam a ser expressamente proibidas para os gatekeepers estão a impossibilidade de impedir que os consumidores removam as aplicações pré-instaladas, de agregar dados pessoais recolhidos e tratados em dois serviços diferentes (ainda que do mesmo gatekeeper) sem o devido consentimento do titular [1] e favorecer os seus próprios serviços e conteúdos face a terceiros nas suas plataformas.

O valor das coimas para o incumprimento do regime poderá chegar a 10% do volume de negócios anual total da empresa a nível mundial, em conformidade com os valores do regime da Diretiva ECN + (UE) 2019/1, de harmonização do direito da concorrência.

[1] Essencialmente, o que se verificou no caso da autoridade alemã contra a Facebook, em que esta foi acusada da prática de abuso de posição dominante por agregar os dados pessoais dos utilizadores do Facebook, do Instagram e do Whatsapp. https://www.bundeskartellamt.de/SharedDocs/Entscheidung/EN/Fallberichte/Missbrauchsaufsicht/2019/B6-22-16.pdf?__blob=publicationFile&v=4

Proteção do Consumidor na Proposta da Comissão Europeia para a Regulação de Crypto-assets

Legislação

No passado dia 24 de setembro, a Comissão Europeia publicou um novo Pacote Financeiro Digital, que já foi tratado num artigo deste Blog. Entre as propostas legislativas, encontra-se um Regulamento sobre Crypto-assets, criados através da utilização de Distributed Ledger Technology (DLT), com recurso a protocolos blockchain.

A proposta deste regulamento surge no seguimento do crescimento exponencial dos mercados de crypto-assets em 2017, da publicação do Plano Fintech da Comissão em Março de 2018 e das conclusões dos estudos da Autoridade Bancária Europeia (EBA) e da Autoridade Europeia de Mercados de Valores Mobiliários (ESMA) em 2019, sobre a aplicabilidade de Direito Europeu a estes ativos.

Atendendo aos desafios e problemas levantados pelos reguladores, a proposta da Comissão assumiu a forma de um regulamento, versando sobre a definição de crypto-assets, as suas categorias, os requisitos para a sua emissão na UE, para a criação e funcionamento de plataformas de exchange destes, a fiscalização destas atividades, entre vários assuntos, tendo como objetivo a proteção de investidores e consumidores sem limitar excessivamente a inovação.

Nas matérias ligadas ao Direito de Consumo são de destacar as seguintes opções do legislador europeu:

  • no considerando 14 é referida a obrigatoriedade de publicação de um white paper – uma já reconhecida prática de mercado, que antes deste Regulamento era marcada frequentemente pela falta de precisão das informações contidas nestes documentos – com regras e requisitos claros, previamente aprovado pelas entidades reguladoras para uma oferta pública, com as informações necessárias sobre os direitos associados à aquisição do ativo, as funcionalidades deste e uma descrição da tecnologia empregue, para que potenciais compradores, consumidores ou investidores possam tomar uma decisão livre e devidamente informada;
  • pequenas e médias empresas ficam isentas da obrigação da publicação do white paper, porém, segundo o considerando 16, o Direito do Consumo Europeu mantém-se aplicável nestes casos. Entre os diplomas aplicáveis, são enumeradas as diretivas sobre as Práticas Comerciais Desleais, sobre as Cláusulas Contratuais Abusivas e a Diretiva dos Direitos dos Consumidores (DDC), garantindo-se um nível de proteção aos consumidores nas relações contratuais com estas entidades menos fiscalizadas;
  • no considerando 45, os detentores de e-money tokens – o termo utilizado para referir criptomoedas na proposta da CE, que tenham como referência uma única moeda com curso legal – têm o direito a requerer ao emissor das mesmas a conversão destas na moeda de referência, com a possibilidade de o emissor cobrar uma taxa de câmbio proporcional;
  • é assegurado aos consumidores que adquirem utility tokens – o termo utilizado para referir tokens que têm como função possibilitar o acesso a bens e serviços na DLT (como a celebração de smart contracts na rede Ethereum) – o direito de retratação, mais conhecido no ordenamento jurídico português como direito à livre resolução ou direito ao arrependimento, que pode ser exercido perante o emissor dos ativos, nos termos do art. 12.º do Regulamento.

Este direito é exercido nos mesmos moldes do que na DDC, sem a alegação de motivos, com um prazo de 14 dias e prevendo-se a devolução integral do valor pago sem penalizações, utilizando a mesma forma de pagamento para o reembolso.

Em relação a este último ponto, é necessário frisar que, sem a inclusão deste preceito, o exercício do direito ao arrependimento com base na DDC quanto às utility tokens será muito improvável, dado que estas seriam consideradas conteúdos digitais (v. art. 2.º-11 da DDC), aplicando-se assim a exceção do art. 16.º-m), que permite que o consumidor abdique deste direito a priori, bastando que o contrato de fornecimento das tokens inclua esta cláusula. Quanto às restantes categorias de tokens previstas no Regulamento (e-money e asset-referenced), estão fora do âmbito de aplicação quer do referido art. 12.º quer da DDC (art. 16.º-b)).

Estas são apenas algumas das principais propostas do legislador europeu em matéria de Direito do Consumo incluídas no Regulamento, que ainda podem sofrer muitas mutações, revisões e mesmo ser eliminadas durante o processo legislativo que irá brevemente decorrer no Conselho e no Parlamento Europeu.