Procedimento fraudulento e titularidade do direito ao valor da energia não faturada

Jurisprudência

Em post anterior, dedicado à exposição do enquadramento normativo que rege a verificação da prática de procedimento fraudulento e a “determinação do valor do consumo irregularmente feito”, tive oportunidade de defender que a referência ao “distribuidor” enquanto titular do crédito à diferença entre o valor da eletricidade paga e o valor da eletricidade efetivamente consumida (art. 3.º-1,-b) e 2 do DL 328/90) teria de ser objeto de uma interpretação atualista, devendo tal referência entender-se como reportada ao “comercializador”.

Volto ao tema com uma análise mais aprofundada, seguindo de perto a Sentença do Centro de Informação de Consumo e Arbitragem do Porto (CICAP) de 20.09.2017, Processo n.º 1735/2017, Relator: Paulo Duarte.

Ao tempo da entrada em vigor do DL 328/90, «a comercialização estava associada à distribuição de energia elétrica, em correspondência com a realidade infraestrutural da ligação da rede de distribuição (sobretudo da rede em baixa tensão) aos locais de consumo. A situação alterou-se com a privatização e liberalização do mercado da eletricidade, que obrigou à introdução de regras que (…) impõem (…) a separação (…) entre certas atividades e certos operadores, em termos de “proibição de acumulação de missões a desempenhar pelo mesmo sujeito económico”».

Mais desenvolvidamente, com a adoção do DL 29/2006, «instituiu-se um regime de estrita “separação jurídica e patrimonial” (full ownwership unbundling) entre a atividade de transporte de eletricidade e as atividades de produção e de comercialização, impedindo a sua concentração vertical sob o domínio de um mesmo sujeito operador» (art. 25.º-1), sendo que, «[n]o que diz respeito à atividade de distribuição de energia elétrica, o legislador, ainda assim, não é tão severo, ficando-se pela exigência da sua “separação jurídica” (legal unbundling)» – arts. 36.º-1 e 43.º do DL 29/2006 (no mesmo sentido, os arts. 338.º-1, 339.º-1 e 2, 343.º-5, 350.º-1 e 2 e 370.º-1 do Regulamento de Relações Comerciais do Setor Energético e do Gás (RRC)).

Por conseguinte, e ainda de acordo com a mesma decisão arbitral, «segundo a atual arquitetura normativa do SEN [Sistema Elétrico Nacional], o distribuidor de eletricidade não pode vendê-la – atividade que apenas é permitida (mais: que lhes está reservada) aos produtores e aos comercializadores». Daí que o art. 22.º do Regulamento Tarifário (RT) Setor Elétrico (para o qual remete o art. 343.º-6 do RRC) restrinja os “proveitos permitidos” da atividade de distribuição de energia elétrica aos que “são obtidos através da tarifa de uso das redes de distribuição, excluindo qualquer remuneração pela comercialização de energia elétrica atividade cujo exercício lhe está vedado”.

Como tal, apesar de o DL 328/90 se referir ao “distribuidor” para efeitos do exercício do “direito ao acerto dos valores pagos pelo consumidor (o direito à diferença entre o valor pago e o valor do consumo real, ainda que apurado por estimativa em caso de anomalia ou viciação do contador)”, em face da evolução da realidade histórica existente ao tempo da entrada em vigor daquele compêndio legal, tal menção só pode ser interpretada como se dirigindo ao comercializador, “uma vez que só este pode ligar-se ao consumidor através do contrato de fornecimento (compra e venda) que o legislador considera violado” (cf. arts. 1.º-1 do DL 328/90, 44.º-3 do DL 29/2006 e 7.º-1 do RRC)[1].

Ao entendimento que aqui se acompanha não se opõe o ponto 31.3 do Guia de Medição, Leitura e Disponibilização de Dados de energia elétrica em Portugal continental (GMLDD), no qual se determina que “[a] energia elétrica associada a procedimento fraudulento comprovadamente identificada e registada em cada ano não deve ser imputada a carteiras de comercializadores”. Retomando a jurisprudência que vimos seguindo de perto, a compreensão do alcance da norma do ponto 31.3 do GMLDD depende do conhecimento da distinção que a mesma pressupõe: a destrinça, estabelecida no ponto 31.2.2.1 daquele GMLDD “entre, por um lado, a energia registada, fiavelmente (apesar da prática fraudulenta), pelos equipamentos de medição e, por outro lado, a energia estimada”, admitindo-se, assim, a possibilidade de o procedimento fraudulento não impedir “o conhecimento direto (e não apenas estimado) da eletricidade consumida”. Ora, o ponto 31.3 do GMLDD «apenas se refere à energia “comprovadamente identificada e registada em cada ano”, e não à energia estimada na sequência da deteção do procedimento fraudulento», o que bem se compreende, pois, se a energia já foi considerada em períodos anteriores, carecia de sentido imputá-la, de novo, a carteiras de comercializadores. Já quanto ao consumo de energia elétrica, associado a fraude, apurado por via de estimativa, não se lhe aplica, afinal, o ponto 31.3 do GMLDD.

Em sentido diverso, pronunciou-se o Tribunal da Relação de Coimbra em Acórdão de 21.11.2017, proferido no Processo n.º 502/16.7T8GRD.C1, Relator: Fonte Ramos, no qual se sustenta, a partir do mesmo ponto 31.3 do GMLDD, que “(…) só o Distribuidor, em benefício do SEN, terá competência para exigir do consumidor final o ressarcimento do valor da energia consumida ilicitamente, e nunca o comercializador (ou, no limite, o produtor/múltiplos produtores a operar atualmente no SEN)”.

Acolhendo o entendimento assumido neste último acórdão e ao arrepio de tudo o que defendemos acima (a que acresce o facto, de que partimos no post anterior, segundo o qual a verificação de procedimento fraudulento motiva “acertos de faturação”, da responsabilidade do comercializador, ainda que fundados em estimativas de consumo realizadas pelo distribuidor – art. 43.º-2 e 4 do RRC), a norma do n.º 5 do art. 33.º-5 do recém-adotado RRC veio determinar que “[n]as situações previstas no número anterior [erros de medição da energia e da potência resultantes de qualquer anomalia verificada no equipamento de medição, com origem em procedimento fraudulento], cabe ao operador da rede de distribuição que serve a instalação de consumo assegurar a recuperação integral para o Sistema Elétrico Nacional (…) dos consumos de energia não faturada, neles incluindo o valor da energia, que foi considerada em perdas [diferença entre a energia que entra num sistema elétrico e a energia que sai desse sistema elétrico, no mesmo intervalo de tempo], e a componente dos acessos, valorizada por aplicação da tarifa transitória correspondente, ou na sua ausência, da tarifa de acesso acrescida da tarifa de energia.”

Pela minha parte, em face da antinomia entre as normas dos arts. 1.º-1 do DL 328/90 e 44.º-3 do DL 29/2006, por um lado, e a norma do art. 33.º-5 do RRC, por outro, e lançando mão do critério hierárquico expresso no brocardo latino lex superior derogat legi inferiori (“lei superior derroga leis inferiores”), creio que o primeiro par de normas, portador de um status hierarquicamente superior à norma do diploma regulamentar, continua a determinar que o direito ao valor da energia não faturada tem por sujeito ativo o comercializador.


[1] Tal compreensão não é extensível ao exercício do direito a tutela reparatória em relação ao eventual dano patrimonial sofrido com a destruição (parcial) do equipamento de medição, de que o operador da rede de distribuição é proprietário (art. 29.º-1-b) e 3 do RRC), como nota Pedro Falcão, O Contrato de Fornecimento de Energia Elétrica, Petrony Editora, 2019, pp. 109-114, em especial p. 112.

Tribunal de Justiça e a Diretiva 93/13: Cláusulas Abusivas em Contratos de Mútuo em Divisa Estrangeira

Jurisprudência

No passado mês, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) decidiu sobre os processos apensos C-776/19 a C-782/19, que trouxeram novos desenvolvimentos à interpretação da Diretiva 93/13/CEE e ao regime das cláusulas abusivas nos contratos celebrados com consumidores, em particular no que toca a contratos de mútuo hipotecário em divisa estrangeira. Em causa estão contratos celebrados com o Banco BNP Paribas Personal Finance, conhecidos como “Helvet Immo”.

Concretamente, os contratos em causa incluíam as seguintes cláusulas: (i) os créditos em questão eram financiados por empréstimos subscritos em francos suíços e esses créditos eram geridos simultaneamente em francos suíços (moeda de conta) e em euros (moeda de pagamento); (ii) quanto às operações cambiais, os pagamentos relativos aos empréstimos em causa só podiam ser efetuados em euros para um reembolso em francos suíços; (iii) as operações cambiais a efetuar estavam enumeradas nos contratos de mútuo em causa nos processos principais, e em caso de incumprimento por parte do mutuário, o mutuante tinha a possibilidade de substituir unilateralmente o franco suíço pelo euro; (iv) uma vez que a amortização depende da evolução da paridade euro/franco suíço, esta seria menos rápida se a operação cambial resultasse numa quantia inferior à data do vencimento em francos suíços, e a eventual parte do capital não amortizada seria inscrita no saldo devedor. Caso contrário, o reembolso do crédito seria mais rápido; (v) se a manutenção do montante dos pagamentos em euros não permitisse regularizar a totalidade do saldo da conta sobre o período residual inicial acrescido de cinco anos, os pagamentos seriam aumentados. Se, no termo do quinto ano de prorrogação, subsistisse um saldo devedor, os pagamentos deviam continuar até ao reembolso integral; (vi) a taxa de juro fixa, inicialmente acordada, era passível de revisão de cinco em cinco anos, segundo uma fórmula predeterminada e, nessa ocasião, o mutuário podia optar pela transição para euros da moeda de conta, escolhendo quer a aplicação de uma nova taxa de juro fixa aumentada quer a aplicação de uma taxa variável.

Neste seguimento, e devido a uma evolução desfavorável das taxas de câmbio, os demandantes tiveram dificuldade em reembolsar o mútuo hipotecário. Por isso, intentaram ações judiciais onde alegaram o caráter abusivo das cláusulas dos contratos em causa, nas quais a BNP Paribas Personal Finance alega a prescrição dos pedidos, de acordo com as normas nacionais aplicáveis.

Por isso, o tribunal de reenvio francês endereçou oito questões ao TJUE. Em primeiro lugar, se a Diretiva 93/13, lida em conjugação com o princípio da efetividade, se opõe à aplicação de normas de prescrição para a declaração do caráter abusivo de uma cláusula e para eventuais restituições devidas ao abrigo dessa declaração. Em caso de resposta negativa, ou parcialmente negativa, questiona o TJUE se a Diretiva, lida em conjugação com o princípio da efetividade, se opõe à aplicação de uma jurisprudência nacional que fixa como início da contagem do prazo de prescrição a data da aceitação da proposta de empréstimo e não a data da ocorrência de dificuldades financeiras sérias. Em segundo lugar, se as cláusulas que preveem que o franco suíço é a moeda de conta e o euro a moeda de reembolso e que, como tal, imputam o risco cambial no mutuário, se incluem no objeto principal do contrato, na aceção do art. 4.º-2 da Diretiva 93/13. Por outro lado, perguntou também se a Diretiva 93/13, lida em conjugação com o princípio da efetividade, se opõe a uma jurisprudência nacional que considera cláusulas como as discutidas nos processos em causa como claras e compreensíveis. Em quarto lugar, se o ónus de prova do caráter claro e compreensível de uma cláusula incumbe ao profissional ou ao consumidor. Caso incumba ao profissional, se a Diretiva 93/13 se opõe a uma jurisprudência nacional que considera que, quando existem documentos relativos a técnicas de venda, que compete aos mutuários provar, por um lado, que foram destinatários das informações contidas nesses documentos e, por outro, que foi o banco que lhes transmitiu tais informações, ou, pelo contrário, a Diretiva exige que estes elementos constituam uma presunção de que as informações contidas nestes documentos foram transmitidas, incluindo verbalmente, aos mutuários, presunção simples que incumbe ao profissional refutar. Por último, se se pode considerar que cláusulas como as presentes nos processos em causa podem levar a um desequilíbrio significativo, dado que, por um lado, o profissional dispõe de meios superiores ao consumidor para antecipar o risco cambial e, por outro, o risco suportado pelo profissional está limitado, ao passo que o suportado pelo consumidor não o está.

Começando pela primeira e segunda questões, o Tribunal clarifica que, no caso em apreço, temos duas situações diferentes. Em primeiro lugar, temos a oposição de um prazo de prescrição a um pedido apresentado por um consumidor relativo ao caráter abusivo de cláusulas contratuais e, em segundo lugar, a oposição desse prazo para efeitos de restituição de quantias indevidamente pagas.

Assim, e no que concerne à primeira situação, o Tribunal concluiu que estes casos não podem estar sujeitos a prazos de prescrição, com base num argumento fundamental: a proteção efetiva dos direitos conferidos ao consumidor pela Diretiva 93/13 implica que o poder de invocar, a qualquer momento, o caráter abusivo de uma cláusula contratual, não pode estar sujeita a prazos de prescrição.

Já no que se refere à segunda situação (invocação do prazo de prescrição no contexto da restituição de quantias indevidamente pagas), o Tribunal optou por uma rota oposta. De facto, e recordando a sua jurisprudência anterior[1], afirmou que a Diretiva 93/13, em particular os arts. 6.º-1 e 7.º-1 não se opõem a uma regulamentação nacional que, embora preveja a imprescritibilidade da ação que vise obter a nulidade da cláusula abusiva, sujeita a ação destinada a invocar os efeitos restitutivos dessa nulidade a um prazo de prescrição. Por isso, a existência de um prazo de prescrição, no que concerne aos pedidos de caráter restitutivo, não é contrária ao princípio da efetividade, desde que a sua aplicação não torne impossível ou excessivamente difícil o exercício dos direitos conferidos pela Diretiva.

Neste contexto, importa chamar à atenção para mais três notas feitas pelo Tribunal. Em primeiro lugar, este afirma que prazos de prescrição de três a cinco anos não são incompatíveis com o princípio da efetividade, desde que estabelecidos e conhecidos atempadamente pelo consumidor, permitindo-lhe preparar e recorrer a uma via judicial efetiva a fim de invocar os seus direitos. Em segundo lugar, e no que concerne ao início do prazo de prescrição, o Tribunal afirma que este só será compatível com o princípio da efetividade se o consumidor tiver tido a possibilidade de conhecer os seus direitos antes de esse prazo começar a correr ou de terminar. Por isso, o começo da contagem do prazo de prescrição na data da aceitação da proposta de mútuo não é suscetível de assegurar uma proteção efetiva ao consumidor, já que esse prazo pode expirar antes de o consumidor poder tomar conhecimento do caráter abusivo da cláusula em causa.

Passando à terceira questão, o Tribunal começa por afirmar que, num contrato de mútuo, o mutuante obriga-se, em primeiro lugar, a disponibilizar ao mutuário um determinado montante e este, por sua vez, obriga-se a reembolsar (regra geral com juros) esse montante em datas previamente determinadas. Sendo que as prestações essenciais do contrato se referem a um montante em dinheiro, estas devem fazer referência às moedas de pagamento e reembolso. Por isso, o TJUE conclui que o facto de o reembolso ter de ser feito numa determinada moeda refere-se não a uma modalidade acessória do pagamento, mas sim, em regra, à própria natureza da obrigação, sendo assim um elemento essencial do contrato de mútuo.

Não obstante, conclui igualmente que compete ao tribunal de reenvio apreciar se as cláusulas em causa, que regulam a moeda de reembolso e pretendem imputar o risco no mutuário, dizem respeito à própria natureza da obrigação. Precisa também que a existência de uma cláusula que permita ao mutuário exercer uma opção de conversão em euros não pode significar que as cláusulas relativas ao risco cambial adquirem uma natureza acessória, só por si. Na verdade, e de acordo com o TJUE, o facto de as partes poderem alterar, em certas datas, uma das cláusulas essenciais do contrato permite ao mutuário alterar as condições do seu mútuo, sem que tal tenha incidência direta na apreciação da prestação essencial do contrato.

Passando à quarta e à quinta questões, o Tribunal começa por clarificar que a exigência de transparência deve ser analisada pelo órgão jurisdicional de reenvio, à luz de todos os elementos pertinentes. Em particular, menciona que cabe a este verificar se foram comunicados ao consumidor todos os elementos suscetíveis de terem incidência no alcance do seu compromisso, nomeadamente o custo total do empréstimo. Nessa análise, deverá ter em particular atenção se as cláusulas estão escritas de forma clara e compreensível e a falta – ou presença – de informações consideradas essenciais, tendo em conta a natureza do objeto do contrato. Virando-se para o contrato em causa, o Tribunal conclui que, em contratos de mútuo em divisa estrangeira, é importante a prestação de informação por parte do profissional que vise esclarecer o consumidor relativamente ao funcionamento do mecanismo de câmbio e ao risco que lhe está associado.

Assim sendo, de modo a respeitar a exigência de transparência, as informações transmitidas pelo profissional devem permitir a um consumidor médio, normalmente informado e razoavelmente atento e sensato, compreender que, em função das variações da taxa de câmbio e a evolução da paridade entre a moeda de conta e a moeda de pagamento podem acarretar consequências desfavoráveis para si. Por outro lado, deverá também compreender o risco real a que se expõe, durante toda a vigência do contrato, caso haja uma desvalorização significativa da moeda em que recebe os seus rendimentos relativamente à moeda de conta.

Virando-se para a sexta e sétima questões, o Tribunal volta a focar-se no princípio de efetividade. Contudo, aqui o ponto de discussão prende-se com a compatibilidade desse princípio com a pendência do ónus da prova do caráter claro e compreensível sob o consumidor. Nesse sentido, e como ponto introdutório, o TJUE afirma que a efetividade dos direitos conferidos pela Diretiva 93/13 não poderia ser consolidada se o consumidor estivesse obrigado a provar um facto negativo, ou seja, que o profissional não lhe forneceu todas as informações necessárias para satisfazer a exigência decorrente do art. 4.º-2 da Diretiva. Nesse seguimento, conclui que a obrigação do profissional de demonstrar o cumprimento das suas obrigações pré-contratuais e contratuais deve igualmente abranger a prova relativa à comunicação da informação contida em documentos relativos as técnicas de venda, particularmente quando a informação aí constante se mostre relevante para garantir a clareza e compreensão das cláusulas contratuais inseridas nos contratos em causa. Ademais, já que o profissional controla (ou deve controlar) os meios pelos quais os seus produtos são distribuídos, deverá também dispor de elementos de prova relativos ao facto de ter procedido a um correto cumprimento das obrigações pré-contratuais e contratuais a que está adstrito.

Chegado à oitava e última questão, o TJUE começa por recordar a sua jurisprudência[2], segundo a qual, nos contratos de mútuo em divisa estrangeira, cabe ao juiz nacional apreciar o possível incumprimento da exigência de boa-fé e, num segundo momento, a existência de um eventual desequilíbrio significativo, nos termos do art. 3.º da Diretiva 93/13. Relativamente à obrigação de boa-fé, importa ter em conta, nomeadamente, a força das posições de negociação das partes e a possibilidade de o consumidor ter sido de alguma forma incentivado a aceitar as cláusulas em causa. Assim, de modo a verificar se as cláusulas em causa dão origem a um desequilíbrio significativo em detrimento do consumidor, há que ter em conta as circunstâncias de que o profissional podia ter conhecimento no momento da celebração do contrato, tendo em conta a sua experiência no que se refere às variações das taxas de câmbio e aos riscos inerentes a estes contratos.

Tendo isso em atenção, o Tribunal conclui que há que considerar que existe um desequilíbrio significativo entre os direitos e obrigações das partes, decorrentes do contrato em causa, em detrimento do consumidor. Para o justificar, afirma que as cláusulas em causa parecem fazer recair sobre o consumidor um risco desproporcionado em relação às prestações recebidas, uma vez que a aplicação das mesmas tem como consequência obrigar o consumidor a suportar o custo da evolução das taxas de câmbio. Assim, e tendo em conta a exigência de transparência decorrente do art. 5.º da Diretiva 93/13, não se pode considerar que o profissional podia razoavelmente esperar que, negociando de forma transparente com o consumidor, este aceitaria as cláusulas na sequência de uma negociação individual. Não obstante, o TJUE reforça que a aplicação desta lógica ao caso concreto cabe, em última instância, ao órgão jurisdicional de reenvio.


[1] Acórdãos de 9 de julho de 2020, Raiffeisen Bank e BRD Groupe Société Générale, C-698/18 e C-699/18, EU:C:2020:537, n.º 58 e de 16 de julho de 2020, Caixabank e Banco Bilbao Vizcaya Argentaria, C-224/19 e C-259/19, EU:C:2020:578, n.º 84.

[2] Acórdão de 20 de setembro de 2017, Andriciuc e o., C-186/16, EU:C:2017:703, n.º 56.

Procedimento fraudulento e determinação do consumo de energia elétrica

Doutrina

Além da hipótese de faturação baseada em estimativa de consumo (já aflorada em post anterior), a realização de “acertos de faturação” de energia elétrica pode fundar-se, também, em “procedimento fraudulento” (art. 49.º-1-b) do Regulamento de Relações Comerciais do Setor Energético e do Gás (RRC)).

Nos termos do art. 1.º-1 e 2 do Decreto-Lei n.º 328/90, de 22 de outubro (DL 328/90)[1], “[c]onstitui violação do contrato de fornecimento de energia elétrica qualquer procedimento fraudulento suscetível de falsear a medição da energia elétrica consumida ou da potência tomada, designadamente a captação de energia a montante do equipamento de medida, a viciação, por qualquer meio, do funcionamento normal dos aparelhos de medida ou de controlo da potência, bem como a alteração dos dispositivos de segurança, levada a cabo através da quebra dos selos ou por violação dos fechos ou fechaduras”, sendo que “[q]ualquer procedimento fraudulento detetado no recinto ou local exclusivamente servido por uma instalação de utilização de energia elétrica presume-se, salvo prova em contrário, imputável ao respetivo consumidor”.

Estabelece-se, assim, uma presunção ilidível contra o consumidor, no sentido em que este é o presuntivo responsável por qualquer procedimento fraudulento que se verifique em “recinto ou local exclusivamente servido por uma instalação de utilização de energia elétrica”, salvo se aquele demonstrar, de modo cabal, que tal procedimento não procede de culpa sua[2]. Como sucede com qualquer presunção, “a prova inferencial (por meio, precisamente, da inferência, do desconhecido a partir do conhecido, em que consiste a presunção) do facto presumido depende da prova do facto indiciário”, que, na estrutura da norma do art. 1.º-2 do DL 328/90 consiste na ocorrência de “procedimento fraudulento (…) no recinto ou local exclusivamente servido por uma instalação de utilização de energia elétrica”[3].

Existindo indícios ou suspeita da prática de qualquer procedimento fraudulento, o operador da rede de distribuição pode proceder à inspeção da instalação elétrica pela qual é responsável, por meio de um técnico seu (entre as 10 e as 18 horas, incluindo os equipamentos de medição – art. 2.º-1 do DL 328/90 e ponto 31.1 do GMLDD), de que é lavrado auto. A inspeção deve ser feita, sempre que possível, na presença do consumidor (ou de quem no local o represente, designadamente um seu familiar ou empregado), a quem deverá ser deixada cópia. No auto, se for o caso, é descrito, sumariamente, o procedimento fraudulento detetado, bem como quaisquer outros elementos relevantes para a identificação, comprovação e imputação da responsabilidade do procedimento, sendo o mesmo instruído com os elementos de prova eventualmente recolhidos (art. 2.º-2 e 3 do DL 328/90 e ponto 31.1 do GMLDD).

Após a identificação e verificação de factos passíveis de configurarem a prática de procedimento fraudulento, o operador da rede de distribuição deve notificar, por escrito, o consumidor a quem é imputável a sua autoria, devendo constar dessa notificação a identificação, entre outros, dos factos justificativos, do valor presumido do consumo irregularmente feito e do período de tempo devido para efeitos de acerto de faturação, bem como dos direitos do consumidor, designadamente, o de requerer a avaliação da prova recolhida. A avaliação é feita através de vistoria à instalação elétrica, a realizar pela Direção-Geral de Energia e Geologia (DGEG), no prazo máximo de 48 horas após ter tido conhecimento do facto, sempre que aplicável (cf. arts. 4.º-1 e 5.º-2 do DL 328/90 e ponto 31.1 do GMLDD). Diga-se, aliás, que uma eventual interrupção do fornecimento de energia elétrica da instalação (arts. 3.º-1-a) do DL 328/90 e 79.º-1-g) do RRC e ponto 31.1 do GMLDD), consequente à deteção do procedimento fraudulento por facto imputável ao consumidor, sob pena da prática de ato ilícito, não pode deixar de ser antecedida daquela notificação (art. 4.º-1 do DL 328/90)[4].

Ainda que se conclua que o consumidor não foi autor ou responsável pelo procedimento fraudulento, o art. 3.º-2 do DL 328/90 reconhece ao “distribuidor” (leia-se, numa interpretação atualista, ao “comercializador”) o direito a ser “ressarcido” do consumo irregularmente feito (mas já não, claro, dada a ausência de culpa, das “despesas inerentes à verificação e eliminação da fraude” a que alude a alínea b) do n.º 1 do mesmo artigo 3.º)[5].

O art. 6.º-1 do DL 328/90 vem oferecer diretrizes para a “determinação do valor do consumo irregularmente feito”, estabelecendo que devem ter-se em conta “todos os factos relevantes para a estimativa do consumo real durante o período em que o ato fraudulento se manteve, designadamente as características da instalação de utilização, o seu regime de funcionamento, as leituras antecedentes, se as houver, e as leituras posteriores, sempre que necessário”. Este regime permite ao comercializador a satisfação possível do seu crédito perante uma situação deste tipo[6].

Densificando algumas destas orientações, o ponto 31.2.1 do GMLDD faz impender sobre o operador da rede de distribuição o encargo probatório de apurar o período de tempo durante o qual subsistiu o procedimento fraudulento. O período ficará sempre condicionado pela data de início do contrato do titular a quem for imputada a responsabilidade pela prática do procedimento, se existir contrato, não podendo, em qualquer caso, ser superior a 36 meses. O operador da rede deve verificar, entre outras situações, a eventual ocorrência de variações abruptas no perfil de consumo da instalação e a data da última deslocação à instalação, com acesso ao equipamento de medição. Já o ponto 31.2.2 admite que o cálculo do consumo de energia elétrica associado a procedimento fraudulento possa atender, se o mesmo existir, ao histórico de registos fiáveis do equipamento de medição. Na sua ausência, o quantum do consumo de energia elétrica será estimado com base no consumo médio anual por escalão de potência contratada(sempre que o Dispositivo de Controlo de Potência não tiver sido manipulado, deve atender-se à potência que estiver regulada nesse dispositivo), nos termos do ponto 33.1.2. do GMLDD, adicionado do respetivo desvio padrão, sendo que os valores a atender para ambos os elementos constam da Diretiva n.º 11/2016, da ERSE.


[1] V., de forma mais desenvolvida, também o ponto 31.1 do Guia de Medição, Leitura e Disponibilização de Dados de energia elétrica em Portugal continental (GMLDD), no qual se preveem, ainda, situações de ligação direta à rede.

[2] Sentença do CNIACC – Centro Nacional de Informação e Arbitragem de Conflitos de Consumo, de 30.05.2017, Relator: Jorge Morais Carvalho.

[3] Sentença do Centro de Informação de Consumo e Arbitragem do Porto (CICAP) de 29.01.2017, proferida no Processo n.º 3283/2016, Relator: Paulo Duarte.

[4] Ver, a este propósito e com interesse, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10.05.2016, proferido no Processo n.º 1929/13.1TBPVZ.P1.S1, Relator: Gabriel Catarino, e o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 21.11.2019, proferido no Processo n.º 3823/18.0T8BRG.G1, Relator: António Sobrinho.

[5] Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13.05.2021, proferido no Processo n.º 2422/19.4T8AGD.P1, Relator: Aristides Rodrigues de Almeida.

[6] Pedro Falcão, A tutela do prestador de serviços públicos essenciais no ordenamento jurídico português, in Estudos de Direito do Consumidor, n.º 12, 2017, p. 416.

A Melhor Bolacha do Mundo

Consumo em Ação

Por Inês Alves, Joana Sousa e Mariana Soeiro

Hipótese: Belmira foi a um estabelecimento comercial e pediuuma bolacha que estava anunciada como sendo “a melhor bolacha do Mundo”. Não gostou e agora pretende saber se pode fazer alguma coisa. O que lhe diria?

Resolução: Este caso remete-nos para a matéria das práticas comerciais desleais, regulada pela Diretiva 2005/29/CE, transposta para o ordenamento jurídico português pelo Decreto-Lei n.º 57/2008.

Nos termos do art. 1.º-1, o diploma é “aplicável às práticas comerciais desleais das empresas nas relações com os consumidores, ocorridas antes, durante ou após uma transação comercial relativa a um bem ou serviço”. Nesta lógica, cumpre aferir se Belmira se afigura como uma consumidora, na aceção da noção presente no art. 3.º-a).

Os elementos inerentes ao conceito de consumidor (subjetivo, objetivo, teleológico e relacional estão todos verificados, uma vez que Belmira é uma pessoa singular, a quem foi fornecido um bem de consumo – “a melhor bolacha do Mundo” – para uso imediato e não profissional, tendo este bem sido facultado por um estabelecimento comercial, no âmbito da sua atividade profissional. Belmira é, portanto, consumidora na aceção do DL 57/2008.

A questão que se prende com o anúncio da bolacha é relativa à existência ou não de uma prática comercial desleal. Cumpre referir, a priori, que a prática comercial em causa não está presente em nenhuma das listas dos arts. 8.º e 12.º do DL, pelo que devemos analisar a cláusula geral do art. 5.º-1, que define prática comercial deslealcomo a prática “desconforme à diligência profissional, que distorça ou seja suscetível de distorcer de maneira substancial o comportamento económico do consumidor seu destinatário ou que afete este relativamente a certo bem ou serviço”. Daqui se retiram quatro requisitos: relação jurídica de consumo, prática comercial, prática desconforme com a diligência profissional e prática capaz ou suscetível de distorcer o comportamento económico do consumidor.

Como já constatámos acima, Belmira é consumidora, pelo que o primeiro critério está verificado. Seguidamente, da leitura do art. 3.º-d) conclui-se que o segundo requisito se verifica, porquanto houve uma ação com relação direta com o bem, isto é, um tipo determinado de bolachas foram anunciadas como as melhores do Mundo, constituindo uma prática comercial.

A verificação do terceiro requisito abre espaço a discussão: agiu o profissional de acordo com a diligência profissional?

Para resolvermos esta questão, urge que se analise a declaração negocial à luz da existência de dolus bonus, consagrado na Diretiva 2005/29/CE e no art. 253.º do Código Civil.

Não obstante a sua previsão nestes diplomas, há quem entenda que o instituto do dolus bonus não se aplica no Direito do Consumo[1] por se afigurar como uma contradição em relação ao princípio da lealdade e ao direito à informação, presentes na legislação especial de proteção dos consumidores e no art. 60.º da Constituição da República Portuguesa. A permissão de práticas que consistem em “fazer afirmações exageradas ou afirmações que não são destinadas a ser interpretadas literalmente” (art. 5.º-3 da Diretiva 2005/29/CE) ou em “sugestões ou artifícios usuais”, bem como a “dissimulação do erro” (art. 253.º-2 do Código Civil), seria, para quem defende esta posição, incompatível com os já referidos princípios aplicáveis a contratos de consumo, pelo que não deveria ser admitida. Em virtude disto, aquando da transposição da Diretiva 2005/29/CE para o ordenamento jurídico português, o referido instituto foi deliberadamente omitido, não constando do DL 57/2008.

Todavia, e apesar das críticas, a Diretiva em apreço é de harmonização máxima, pelo que não permite uma diminuição ou um aumento da proteção do consumidor, a não ser na medida em que essa possibilidade esteja expressamente prevista o que, pela análise do considerando 12, não se verifica. Por conseguinte, consideramos que, mediante uma interpretação do direito nacional conforme o direito europeu, devemos admitir o dolus bonus nos termos da legislação europeia.

O art. 5.º-3 da Diretiva prevê que “a prática publicitária comum e legítima que consiste em fazer afirmações exageradas ou afirmações que não são destinadas a ser interpretadas literalmente” seja permitida. Ora, in casu, é exatamente isto que se sucede: num primeiro ponto, importa realçar o pendor subjetivo da afirmação “melhor bolacha do Mundo”, visto que essa classificação depende de aceções “subjetivas e insuscetíveis de uma verificação objetiva, por padrões científicos ou comprováveis”[2]; em segundo lugar, a leitura do caso revela a ausência de qualquer certificado que comprove a afirmação; por fim, um consumidor médio, utilizando-se como marco de referência o consumidor “normalmente informado e razoavelmente atento e advertido” (considerando 18 da Diretiva 2005/29/CE), compreende que este anúncio contém uma expressão exagerada e desprovida de seriedade, como sucede com a Confeitaria “O Melhor Bolo de Chocolate do Mundo”, que é hoje uma marca registada, já espalhada pelo mundo, ou com os anúncios da Red Bull (“Red Bull dá-te Asas”), pelo que este anúncio, apesar de poder influenciar o comportamento de Belmira, não prejudica a sua aptidão para tomar uma decisão esclarecida.

Pelo exposto, podemos concluir que a declaração negocial estava isenta da intenção de enganar, constatando-se que o estabelecimento comercial agiu com diligência profissional, de acordo com a expectativa razoável de competência e cuidado de um profissional, baseada no princípio da boa-fé. Belmira não poderá exigir nada do estabelecimento comercial, uma vez que não estamos perante uma prática comercial desleal.


[1] Relativamente à noção presente no CC, Carlos Ferreira de Almeida considera-a uma permissão de “certas práticas de ludíbrio” e de “omissão de informação”, que deve ser inadmissível em contratos de consumo: Carlos Ferreira de Almeida, “Invalidades em Contratos de Consumo”, in De Legibus Revista de Direito, n.º 0, 2020, pp. 17 a 38, pp. 22 a 23.

[2] Jorge Pegado Liz, “Práticas Comerciais Proibidas”, in Estudos do Instituto de Direito do Consumo, Vol. IV, 2014, pp. 79 a 141, p. 107.

Escravatura moderna made in Portugal: não era mau que o que é nacional fosse mesmo bom

Doutrina

Muito se escreveu por ocasião da requisição civil do Zmar, cujo intuito era o de alojar temporariamente alguns trabalhadores do setor agrícola que não dispunham de condições de habitação suficientes à resolução da situação sanitária de Odemira.

O debate foi interessante, mas rápido, e terminou ainda mais depressa, sobretudo porque o que mais pareceu relevar discutir foram supremos conceitos jurídicos de propriedade. Arquivado o caso, arquivada a questão. Analisar o problema basal ficou para depois.

Até aqui, a exploração laboral de imigrantes, que está longe de ser uma novidade, não causou empatia de maior. Os produtos alimentares que afluem desta lógica exploratória são largamente procurados pelos consumidores portugueses, desde as framboesas às azeitonas, dos morangos às amêndoas. E isto só para falar da produção do Alentejo. O consumidor médio considerará, provavelmente, que consumir nacional é até uma atitude sensata, inquinado pela pedagogia viciada de que o que é nacional é bom. Bom para quem?

Estima-se que são as mãos de cerca de 28.000 trabalhadores provenientes, entre outros, do Senegal, Guiné-Conacri, Paquistão, Índia, Nepal, Bangladesh, Roménia, Moldávia, Brasil e Bulgária que as põem à obra nas nossas agriculturas. “Ninguém quer ser escravo na sua terra”[1] parece, pois, ser uma excelente súmula da arquitetura do sistema que perpetua a esquizofrenia entre a certeza dos direitos fundamentais inderrogáveis e a vida real.

Se a exploração laboral de imigrantes está longe de ser uma novidade, nem o mais ingénuo cidadão poderá supor que as habitações que lhes estão destinadas são lugares que cumprem os requisitos de um lar. Este problema estende-se muito para lá do que pode significar a proliferação do contágio de Covid-19. A violação de direitos humanos ainda é mais do que isso. Assim, não se compreende como possa ter sido levantado tanto alvoroço em torno da questão do Zmar, para depressa se deixar perecer a discussão que realmente importava.

A discussão que realmente importava trazer para a mesa, literalmente, era a de que há produtos que queremos consumir, mas não queremos produzir, a menos que alguém o faça por nós, de preferência a baixo custo. A discussão que realmente importava trazer para a mesa era a de que “há entre 80 a 100 pessoas a viverem «dentro de uma oficina»”, “outras 30 pessoas dentro de um apartamento, com homens e mulheres misturados, dispondo apenas de um chuveiro e de uma sanita” e “onde 55 pessoas vivem num T3, pagando no total 1.530 euros de renda por mês”[2].

Aproximam-se argumentos de inferioridade civilizacional, apregoando que mesmo sendo mal pagos em Portugal, mesmo vivendo sob condições indignas para os nossos padrões, a situação destes imigrantes é melhor do que a que tinham ou teriam nos seus países de origem. É bem provável que seja verdade. Mas se, enquanto comunidade, estabelecemos que há um mínimo de dignidade abaixo do qual não toleraremos descer, esse mínimo também tem de se estender a qualquer ser humano que ingresse em território nacional.

A violação de direitos humanos torna-se cada vez mais vizinha, não sendo só um exotismo bárbaro sobre o qual ouvimos falar. Olhar para o lado já não serve de nada, pois é exatamente ao lado onde agora reside o problema.


[1] https://sicnoticias.pt/pais/2021-05-05-Nao-ha-portugueses-quase-a-trabalhar-nesta-agricultura-ninguem-quer-ser-escravo-na-sua-terra-a51da714

[2] https://www.publico.pt/2017/01/18/sociedade/noticia/falta-de-maodeobra-no-alqueva-alimenta-novas-formas-de-escravatura-1758670

Proteção contra a desinformação ou censura? – Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital

Legislação

A Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital (Carta), aprovada pela Assembleia da República por unanimidade (com duas abstenções), começou a gerar discussão sobre a “Censura”, a propósito do seu agora contestado artigo 6.º, que consagra um “Direito à proteção contra a desinformação”, que culmina nesta estatuição: “O Estado apoia a criação de estruturas de verificação de factos por órgãos de comunicação social devidamente registados e incentiva a atribuição de selos de qualidade por entidades fidedignas dotadas do estatuto de utilidade pública.”.

O desconforto que vai sendo expresso poderá estar diretamente relacionado com a recordação de que, em Portugal, num tempo relativamente próximo, o Estado decidia sobre a verdade da informação a difundir, tendo como um dos critérios orientadores o de não serem os seus cidadãos sujeitos a notícias perturbadoras da sua tranquilidade, nomeadamente suscetíveis de lhes darem ideias que os poderiam levar a caminhos que, para sua proteção, deveriam ser evitados. Para tal, o Estado habilitava-os com a adequada verdade. Tudo a bem dos próprios e da nação.

A polémica é apresentada na comunicação social, por exemplo, aqui, aqui, aqui.

Esta problemática é antiga como o poder político no mundo e quem lê livros ou vê séries de espiões sabe perfeitamente que há a informação e a contrainformação. Quem leu Orwell sabe até sobre a burocratização que pode ser necessária para garantir a verdade dos factos, através de um “Ministério da Verdade”. Quem pendeu para a procura de algum saber na filosofia, na ética, na sociologia, na psicologia, no jornalismo, sabe que a verdade, em absoluto, não existe, nem é alcançável. A “Verdade e Política”, de Hannah Arendt diz muito sobre o assunto e os “Temperamentos Filosóficos – Um breviário de Platão a Foucault”, de Peter Sloterdijk, resumo telegráfico do pensamento de extraordinários filósofos por um seu iluminado par contemporâneo, permite vislumbrar rapidamente o esforço feito ao longo dos tempos, relativo à procura dessa tal verdade.

No âmbito do Direito, nos tribunais também se procura muito a verdade. É lá o local próprio para essa atividade ser exercida, garantida por direitos e procedimentos que visam que cada um leve a sua versão dos factos e que a procure demonstrar, através da apresentação de prova, para que o tribunal, no exercício do poder jurisdicional, decida. A decisão terá por base o que, da verdade, foi possível demonstrar.

Esta sofisticação civilizacional vem das Constituições liberais que, no seguimento das revoluções americana e francesa, tiveram o cuidado de consagrar a separação de poderes e vários direitos, liberdades e garantias dos cidadãos contra o próprio Estado que era, anteriormente, quem detinha poder absoluto que exercia arbitrariamente. É nesse contexto que vão sendo desenvolvidos, nomeadamente, o direito à liberdade de expressão e de imprensa, que estão na base da criação artística e da divulgação de informação.

A questão, já de si complexa, tornou-se mais complicada no presente milénio. O problema da desinformação ou, como também é globalmente conhecido em inglês, das “fake news” tem vindo a ganhar terreno a par do progresso tecnológico. São especialmente relevantes neste fenómeno, a ubiquidade dos dispositivos móveis, com preponderância dos smartphones, o aumento de dados disponíveis e o desenvolvimento da inteligência artificial, bem como a utilização massiva de redes sociais e a proliferação de plataformas digitais para onde foi transferida a ação. A vida de uma parte substancial das pessoas passa-se, em larga medida, online. O passo de gigante no conhecimento do fenómeno da desinformação pelo grande público deu-se com o escândalo que veio a ficar conhecido pelo nome da empresa que especialmente o protagonizou, a Cambridge Analytica. No essencial, tratava-se da manipulação de eleitores e a consequente influência no resultado das eleições americanas de 2016. As fake news vão assumindo várias formas, desde a criação de fotos de pessoas que não existem, a discursos de figuras públicas que não os fizeram (por exemplo, Barack Obama e a rainha de Inglaterra), criando ilusões e condicionando a vontade dos indivíduos nas escolhas que fazem, sejam políticas, de consumo ou outras.

A possibilidade, que passou a existir, de disseminação imediata e massiva de informação criou um problema novo. A novidade não estava em dar informações ou notícias falsas, o que sempre existiu, mas sim em fazê-las chegar, quase instantaneamente, a milhões de destinatários que, potencialmente acreditando no seu conteúdo, iriam em conformidade votar, aceitar ou recusar vacinar-se, ou consumir bens e serviços. O problema é grave, as consequências podem ser desastrosas e não se vislumbram soluções adequadas, apesar do esforço europeu, e agora nacional, já desenvolvidos no sentido de as alcançar.

No essencial, este é o fulcro da questão da desinformação, que tem preocupado profundamente a União Europeia, levando-a a agir, originando o que parece ser o verdadeiro fulcro da questão que analisaremos num próximo post neste blog.

Tratemos, aqui, da cândida Carta já que, a não ser que o modo estranho como a pandemia nos encaminha atualmente faça desaparecer esta polémica, o tema tem todos os ingredientes para inflamar opiniões e crescer.

A Carta, conforme já se escreveu aqui, é um conjunto de normas programáticas, aparentemente bem-intencionadas e em grande parte redundantes em relação às já existentes no nosso ordenamento jurídico, desde logo na Constituição da República Portuguesa.

Nesta linha, o artigo 4.º da Carta, dedicado à “Liberdade de expressão e criação em ambiente digital”, consagra amplamente essa liberdade a que chama direito, estabelecendo no seu n.º 1 que “Todos têm o direito de exprimir e divulgar o seu pensamento, bem como de criar, procurar, obter e partilhar ou difundir informações e opiniões em ambiente digital, de forma livre”. E, para que dúvidas não restem, é acrescentado “sem qualquer tipo ou forma de censura”. Seguem-se mais três números em que se reafirma, aprofunda e desenvolvem estas possibilidades, havendo um n.º 3 relativo à utilização responsável do ciberespaço.

Sendo, assim, consagrada a liberdade de expressão, esconjurada a censura e sublinhada a responsabilidade, pergunta-se para quê acrescentar à Carta um artigo 6.º com um “Direito à proteção contra a desinformação” que, logo desde a epígrafe, se adivinha que poderá vir a contender com o antes previsto.

A resposta mais simples será, provavelmente, porque além de serem apetitosos direitos com nomes novos, este já estava tão estafado no âmbito comunitário, e até global, que mal pareceria não o incluir numa Carta nacional desta natureza.

O artigo 6º da Carta mais não faz que reproduzir, resumida e atabalhoadamente, o que dezenas de páginas de vários documentos da União Europeia (UE) vêm proclamando.

E, há que admitir que o faz de um modo transparente, referindo logo no seu n.º 1 que “O Estado assegura o cumprimento em Portugal do Plano Europeu de Ação contra a Desinformação”, apresentando no n.º 2 definição idêntica à desse Plano. Lamentavelmente, é uma definição péssima, como se pode constatar logo no seu início: “Considera-se desinformação toda a narrativa comprovadamente falsa ou enganadora”. “Comprovadamente”? Onde, como e por quem? A Carta não o desenvolve, mas como veremos no próximo post dedicado à União Europeia, esta apresenta a sua proposta de solução.

Os números 3 e 4 do artigo 6.º da Carta estabelecem, respetivamente, “Para efeitos do número anterior, considera-se, designadamente, informação comprovadamente falsa ou enganadora a utilização de textos ou vídeos manipulados ou fabricados, bem como as práticas para inundar as caixas de correio eletrónico e o uso de redes de seguidores fictícios.” e “Não estão abrangidos pelo disposto no presente artigo os meros erros na comunicação de informações, bem como as sátiras ou paródias.”. Além de não ser possível retirar deste arrazoado quase nada de útil, a sua redação parece realmente uma paródia. Tentando não esmiuçar muito constata-se, por exemplo, que a prática, desagradável é certo, de “inundar as caixas de correio eletrónico” é considerada “informação comprovadamente falsa ou enganadora”. Ora, enviar correio eletrónico não é, por natureza, sequer informação, é um ato de envio de informação que, essa sim, poderá ser verdadeira, falsa ou enganadora, o que terá de ser aferido em face da dita. 

O n.º 6 irá longe de mais. Talvez se trate de “meros erros na comunicação de informações”. Partindo do espírito europeu, embora divergindo aqui para “O Estado”, eventualmente porque a pompa da forma de “Carta” a isso conduz, vem aplicar a receita que vai sendo habitual na UE de “criação de estruturas” e “atribuição de selos de qualidade”, principalmente por “entidades fidedignas”. O grande problema aqui estará no arrepio que temos dificuldade em evitar na parte em que se diz que “O Estado apoia a criação de estruturas de verificação de factos”, dado que comprovadamente sabemos, pela experiência de décadas de ditadura, que essa pode não ser uma boa ideia.

É assim que uma aclamada Carta de direitos, formato usualmente inócuo, se começa a tornar discutível e discutida.

Transposição das Diretivas 2019/770 e 2019/771 para o direito espanhol

Legislação

Espanha já transpôs para a ordem jurídica interna as Diretivas 2019/770 e 2019/771, relativas ao fornecimento de conteúdos e serviços digitais e à venda de bens de consumo, respetivamente. A transposição foi feita, estranhamente dentro do prazo, pelo Real Decreto-ley 7/2021, de 27 de abril, de transposición de directivas de la Unión Europea en las materias de competencia, prevención del blanqueo de capitales, entidades de crédito, telecomunicaciones, medidas tributarias, prevención y reparación de daños medioambientales, desplazamiento de trabajadores en la prestación de servicios transnacionales y defensa de los consumidores. A designação do diploma legal é reveladora de que a transposição destas diretivas surge no meio da transposição de várias outras diretivas europeias que tratam temas muito diversos.

A transposição é feita, como seria de esperar, por via de uma alteração à Ley General para la Defensa de los Consumidores y Usuarios, que já regulava a matéria da venda de bens de consumo.

O título IV deste diploma é modificado, passando a ter como título, após tradução para a língua portuguesa, “Garantias e serviços pós-venda”.

A principal novidade constante do regime espanhol é a regulação unitária dos dois regimes, com identificação das (relativamente poucas) especificidades resultantes da natureza do objeto em causa. Tal como defendi, aqui e aqui, é “possível a adoção de um regime único de conformidade dos bens, serviços ou direitos fornecidos a consumidores, desde que esse regime único integre as especificidades constantes dos dois diplomas em análise”. Também me parece que esta é a melhor solução para o direito português, podendo colocar-se igualmente a hipótese de alterar a Lei de Defesa do Consumidor, nela incluindo uma regulação completa dos contratos de consumo em matéria de cumprimento e incumprimento.

Em traços gerais, destaca-se, ainda, a previsão de um prazo de garantia legal de conformidade de três anos no que respeita aos bens móveis (v. art. 120-1). O prazo mínimo previsto na Diretiva 2019/771 é de dois anos, tendo sido aproveitado o facto de se tratar de aspeto em que é dada liberdade aos Estados-Membros para melhorar o nível de proteção do consumidor.

O período dentro do qual se presume que a desconformidade já existia também é de dois anos, no caso de se tratar de um bem (art. 121-1). A Diretiva 2019/771 dá duas hipóteses aos Estados-Membros: um ou dois anos. O Estado espanhol fixou este período no limite máximo permitido pela Diretiva.

Não se prevê o ónus da denúncia da desconformidade por parte do consumidor. Era uma possibilidade dada pela Diretiva 2019/771 (ao contrário da Diretiva 2019/770), mas que não foi utilizada, optando-se aqui, também, pela solução mais favorável ao consumidor.

Prevê-se um prazo de caducidade da ação de cinco anos a contar da data em que a falta de conformidade se manifestou. Trata-se de um prazo bastante alargado. Recorde-se que, em Portugal, esse prazo, no que respeita aos bens, é, atualmente, de dois anos a contar da data da denúncia (art. 5.º-A-3 do DL 67/2003).

Faz-se referência, por fim, ao art. 127 bis, que visa dar resposta a questões de sustentabilidade, tendo como epígrafe “Reparação e serviços pós-venda”. O produtor (e não o vendedor, ao contrário do que já hoje parece prever o art. 9.º-5 da Lei de Defesa do Consumidor) tem de “assegurar, em qualquer caso, a disponibilidade de um serviço técnico adequado e de peças sobressalentes durante um período mínimo de dez anos a partir da data em que os bens deixam de ser fabricados” (n.º 1). Trata-se de um período adequado em relação à generalidade dos bens, mas é preciso ter em conta que um bem pode ser vendido a um consumidor (muito) depois de ter deixado de ser fabricado.

O n.º 2 do mesmo preceito estabelece que “é proibido aumentar os preços das peças sobressalentes ao aplicá-las em reparações. A lista de preços das peças sobressalentes deve estar à disposição do público, bem como a dos restantes dos serviços relacionados, e os diferentes conceitos devem ser diferenciados na fatura”. É uma norma importante para evitar situações de fraude à norma constante do n.º 1. Esta é apenas uma análise breve do novo regime espanhol, procurando assinalar-se os aspetos que nos pareceram, à primeira vista, mais relevantes, também numa perspetiva de ligação ao direito português.

Uma análise empírica do Regulamento Harmonizado dos centros de arbitragem de conflitos de consumo – Parte II

Doutrina

Prosseguindo a análise ao Regulamento Harmonizado dos centros de arbitragem de consumo, iniciada em post anterior, julgamos que a redação das normas regentes da elaboração da sentença arbitral, plasmadas no artigo 15.º do Regulamento, impõem duas observações críticas.

Em primeiro lugar, à semelhança do que é imposto pelo n.º 4 do artigo 607.º do CPC, inexiste fundamento bastante para se considerar inexigível a declaração, na sentença arbitral, dos factos que se julgam não provados de entre aqueles que hajam sido alegados pelas partes, tendo em consideração o objeto do litígio, para além dos factos que se encontram em contradição com os julgados provados e dos prejudicados por estes e excluindo aqueles que são meramente conclusivos.

Em segundo lugar, atendendo à tendencial maior complexidade que os litígios de consumo submetidos à jurisdição arbitral vêm conhecendo, à qual não é, de todo, alheia a previsão de arbitragem necessária na Lei de Defesa do Consumidor entendemos razoável um aumento do prazo para prolação da sentença arbitral em mais 15 (quinze) dias, desta forma se promovendo um alinhamento com a solução prevista no n.º 1 do artigo 607.º do CPC, aplicável aos tribunais judiciais de 1.ª instância.

Por sua vez, a letra da regra consagrada no artigo 17.º do Regulamento, sob a epígrafe “Prazos processuais”, ao referir-se a “processos de reclamação”, alimenta dúvidas quanto à aplicação do prazo de conclusão de 90 (noventa) dias ao conjunto dos procedimentos de resolução alternativa de litígios de consumo (mediação, conciliação e arbitragem) ou a cada procedimento individualmente considerado. Com efeito, em face do disposto pelo n.º 5 do artigo 10.º da Lei RAL, dúvidas não devem subsistir de que o prazo de 90 dias se aplica a cada procedimento de RAL. O Regulamento do CNIACC – Centro Nacional de Informação e Arbitragem de Conflitos de Consumo já o estabelece de forma inequívoca. Esta é a única solução que se conforma com a lógica de “multi-step dispute resolution” adotada nos centros de arbitragem de conflitos de consumo nacionais (surgindo a mediação como fase prévia, seguida da conciliação e da arbitragem) e que assegura a exigível proteção ao consumidor[1].

Uma derradeira e mais aturada consideração se impõe acerca de uma diferença relevante e que salta à vista na redação que toma a norma do n.º 3 do artigo 19.º do regulamento interno de cada um dos centros de arbitragem de conflitos de consumo. Se, por um lado, os regulamentos do CIAB – Centro de Informação, Mediação e Arbitragem de Consumo (Tribunal Arbitral de Consumo), do Centro de Informação de Consumo e Arbitragem do Porto (CICAP), do Centro de Arbitragem de Conflitos de Consumo da Região de Coimbra (CACRC) e do Centro de Arbitragem de Conflitos de Consumo de Lisboa (CACCL) preveem que, em caso de omissão, se aplica, subsidiariamente e “com as devidas adaptações”, o Código de Processo Civil, já os regulamentos do TRIAVE – Centro de Arbitragem de Conflitos de Consumo do Ave, Tâmega e Sousa, do Centro de Arbitragem de Conflitos de Consumo do Algarve (CIMAAL) e do CNIACC – Centro Nacional de Informação e Arbitragem de Conflitos de Consumo não estatuem o recurso às regras e princípios da lei processual civil “em tudo o que não estiver previsto” no Regulamento Harmonizado.

Nesta controvérsia sobre a aplicação do Código de Processo Civil à arbitragem de conflitos de consumo, posicionamo-nos a favor de uma aplicação, de último grau, da lei adjetiva comum, ainda que adaptada “à natureza marcadamente abreviada e informal do procedimento arbitral”, como dispõe, com particular acerto, a regra do n.º 2 do artigo 32.º do Regulamento do Centro de Informação, Mediação e Arbitragem de Seguros (CIMPAS).

Não se ignora que, como salienta Manuel Pereira Barrocas, “[o] Código de Processo Civil, tal como qualquer outra lei processual, nacional ou estrangeira, não foi pensado, elaborado e publicado para regular a arbitragem em geral e o processo arbitral em particular, sob pena de se transpor para a arbitragem a complexidade, quando não discussões doutrinarias e jurisprudenciais que não têm a ver com a arbitragem, desvirtuando e retirando as vantagens que lhe são próprias”. Afinal, “[a] jurisdição arbitral funda-se em juízos de equidade e na extrema simplificação e agilização dos procedimentos, recortando-se como uma forma de resolução de litígios em modo simplex, ao passo que a jurisdição estadual assenta no rigor do estrito cumprimento da lei processual e na absoluta salvaguarda de todas as garantias do pleno exercício das mais amplas faculdades processuais, de que não abre mão em circunstância alguma.”

Sem prejuízo do que antecede e, ainda, do disposto no n.º 3 do artigo 30.º da Lei da Arbitragem Voluntária, propugnamos, porém, que a certeza e da segurança jurídicas na aplicação do Direito reclamam que, na ausência de solução aplicável prevista na Lei RAL, na Lei da Mediação (aplicável ao procedimento de RAL de mediação) ou na LAV (aplicável ao procedimento de RAL de arbitragem), se imponha aos colaboradores das entidades de RAL responsáveis por cada um dos procedimentos a convocação e observância das regras e princípios postulados no Código de Processo Civil, ainda que despojados dos formalismos próprios e específicos de uma lei que rege o processo perante os tribunais estaduais.

A aplicação da lei processual civil reveste de particular interesse na verificação dos pressupostos processuais de que depende a regularidade da instância arbitral, seja os relativos ao próprio tribunal arbitral, e.g. competência em razão do valor (artigos 296.º e seguintes do CPC), seja os relativos às partes, e.g. personalidade e capacidade judiciárias (artigos 11.º e seguintes e 15.º e seguintes do CPC), seja, ainda, os relativos ao próprio objeto da demanda arbitral, e.g. aptidão da reclamação (artigo 186.º do CPC) e inexistência de litispendência e de caso julgado (artigos 577.º, alínea i), 580.º, 581.º e 582.º, todos do CPC), seguindo-se aqui de perto Sara Lopes Ferreira, em apresentação feita recentemente num webinar.

Mas não só. Também algumas disposições relativas à prática dos atos processuais, como o princípio da proibição da prática de atos inúteis (artigo 130.º do CPC), a alegação e prova de “justo impedimento” pela parte ou seu representante ou mandatário que obste à prática atempada do ato ou à presença na audiência arbitral, cuja marcação, por norma, não é antecedida de acordo prévio das partes, seja por contacto direto do tribunal, seja com a intermediação do secretariado do tribunal (artigos 139.º, n.º 4, 140.º, 151.º, n.ºs 2 e 3 e 603.º, n.º 1, todos do CPC), ou atinentes à instrução do processo, como a inexigibilidade de alegação e prova dos factos públicos e notórios (artigo 412.º do CPC), o critério de julgamento em caso de dúvida sobre a realidade de um facto (artigo 414.º do CPC), a prova por apresentação de coisas móveis ou imóveis (artigo 416.º do CPC), a prova por depoimento de parte e por declarações de parte, prova por inspeção e prova testemunhal (artigos 452.º e seguintes, artigo 466.º, artigos 490.º e seguintes e artigos 495.º e seguintes, todos do CPC, com as devidas adaptações), ou mesmo respeitantes à sequência dos atos a praticar na audiência de julgamento (artigo 604.º, n.º 3 do CPC) devem ser, a nosso ver, atendidas e respeitadas pelo árbitro na condução do processo arbitral.            

Por último, sem embargo do disposto no n.º 2 do artigo 10.º da Lei RAL, considerando que, paulatinamente, demandados e, sobretudo, demandantes vêm tomando consciência da importância que, amiúde, reveste a constituição de mandatário forense em prol da melhor tutela da sua posição jurídica no litígio, importa levar em consideração, no sentido do texto, que os advogados e os solicitadores trabalham quotidianamente com o Código de Processo Civil e têm a sua forma mentis moldada pela lei adjetiva comum.


[1] Jorge Morais Carvalho, João Pedro Pinto-Ferreira e Joana Campos Carvalho, Manual de Resolução Alternativa de Litígios de Consumo, Almedina, 2017, p. 130.

Uma análise empírica do Regulamento Harmonizado dos centros de arbitragem de conflitos de consumo – Parte I

Doutrina

Com a entrada em vigor da Lei n.º 144/2015, de 8 de setembro (Lei RAL), que transpôs a Diretiva 2013/11/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de maio de 2013, sobre a resolução alternativa de litígios de consumo, os regulamentos dos centros de arbitragem de conflitos de consumo harmonizaram-se entre si, apresentando sistematização e disciplina normativa idênticas, embora subsistam algumas dissemelhanças pontuais.

Neste contexto e com base na nossa experiência como árbitro em centros de arbitragem de conflitos de consumo, desenvolvemos, agora e em próximo texto, uma breve análise crítica de algumas disposições do Regulamento Harmonizado, tomando essencialmente por base o Regulamento do Centro de Arbitragem de Conflitos de Consumo do Vale do Ave/Tribunal Arbitral.

Desde logo, a redação atual do n.º 2 do artigo 4.º do Regulamento Harmonizado, cuja epígrafe é “Competência material”, não acolhe plenamente a conceção estrita de consumidor – e, por essa via, de litígio de consumo – adotada na norma da alínea d) do artigo 3.º da Lei RAL, diploma que regula, em especial, os mecanismos de resolução extrajudicial de litígios de consumo. Assim, para efeitos da submissão de um conflito aos procedimentos de mediação, conciliação e arbitragem (artigo 3.º, alínea j) da Lei RAL), devia adotar-se o sentido jurídico-formal do conceito de consumidor, que se restringe às pessoas físicas, tal como imposto por um princípio de interpretação conforme ao Direito Europeu do Consumo, e deixar de tomar como referencial a noção ampla plasmada na Lei de Defesa do Consumidor – a Lei n.º 24/96, de 31 de julho.

Ainda a respeito do âmbito material de competência dos centros de arbitragem (e, em particular, da jurisdição do tribunal arbitral), a norma do n.º 4 do artigo 4.º do Regulamento Harmonizado – “[o] Centro não pode aceitar nem decidir litígios em que estejam indiciados delitos de natureza criminal ou que estejam excluídos do âmbito de aplicação da Lei RAL” – suscita-nos duas observações que vêm revestindo importância no (não) conhecimento e apreciação de relações jurídico-consumerísticas controvertidas por aquelas entidades de RAL (artigo 3.º, alínea b) da Lei RAL).

Por um lado, afigura-se-nos imperioso clarificar que a norma visa excluir a competência dos centros de arbitragem apenas no que à matéria penal diz respeito. O facto de o litígio configurado pelo reclamante apresentar elementos indiciadores da prática de qualquer delito criminal (e.g. furto de energia elétrica, em ações de simples apreciação negativa em que é demandado o operador da rede de distribuição, ou burla, em ações em que é demandado prestador de serviço de comunicações eletrónicas) não deve obstar à qualificação da demanda como “litígio de consumo”, se preenchidos os quatro elementos – subjetivo, objetivo, teleológico e relacional – a partir dos quais é estruturado o conceito técnico-jurídico de consumidor. Impõe-se, de modo diverso, a distinção (e separação, para efeitos jurídico-processuais) da questão de natureza jurídico-civil suscitada pelo demandante perante a entidade de RAL da eventual relevância e ressonância jurídico-criminal que a alegada conduta por aquele perpetrada pode assumir.

Por outro lado, a fim de se viabilizar a inclusão de litígios relacionados com os serviços de saúde, quando prestados por entidades privadas, na esfera de competência dos centros de arbitragem, a parte final do n.º 4 do artigo 4.º do Regulamento Harmonizado não devia conter remissão expressa para a delimitação negativa do conceito de “litígio de consumo” operada pelo n.º 2 do artigo 2.º da Lei RAL. Até porque, afora a solução normativa da sua alínea b), grande parte dos litígios abarcados pelas alíneas a) a c) do mesmo número, artigo e diploma legal revestem a natureza de relações jurídico-administrativas e, como tal, encontram-se, por natureza, excluídos da competência em razão da matéria do Centro.

Por sua vez, a tramitação do processo de arbitragem, disciplinada, em particular, pelo artigo 14.º do Regulamento Harmonizado, carece, a nosso ver, de uma regulação mais aturada, que promova e concretize plenamente os princípios do processo equitativo (artigo 12.º, n.º 1 da Lei RAL), nos seus corolários de igualdade e de defesa e contraditório.

Neste sentido, pugnamos pela eliminação da possibilidade de apresentação de contestação oral na própria audiência arbitral – para a qual as partes devem ser convocadas com uma antecedência mínima de 20 dias –, estabelecendo-se, em alternativa, que a parte reclamada pode apresentar contestação escrita até 10 dias da data marcada para a audiência. Desta forma, obstar-se-ia a que o reclamante, que surge, não raras vezes, desacompanhado de advogado ou solicitador a representá-lo em juízo (em virtude da diminuta utilidade económica do pedido formulado no processo arbitral, que fica aquém do previsível valor dos honorários devidos ao profissional forense, cuja contratação para assegurar patrocínio judiciário não é, além do mais, obrigatória – cf. artigo 10.º, n.º 2 da Lei RAL), só conheça a posição assumida pela reclamada, nos autos de arbitragem, naquela diligência.

Os mesmos princípios fundamentais do processo arbitral (artigo 30.º, n.º 1 da Lei da Arbitragem Voluntária – LAV) e, bem assim, o princípio da celeridade processual, que é timbre da arbitragem, levam-nos a defender que, por imposição regulamentar, a apresentação da contestação devia ser, de imediato, notificada à parte reclamante, a qual devia poder apresentar resposta ou réplica, por escrito, até à data da audiência ou oralmente na própria audiência (ditando para ata, se se sentir mais confortável com tal alternativa), caso a parte reclamada deduza defesa por exceção ou reconvenção, respetivamente. Desta forma, afastar-se-ia a necessidade de suspensão da audiência arbitral para o demandante gozar do necessário tempo de reflexão e de análise para se poder pronunciar sobre a matéria de defesa por exceção ou de reconvenção deduzida na contestação.

Idênticas preocupações de economia processual e de meios justificam que se imponha às partes a apresentação de toda a prova documental disponível (i.e., de que as partes já disponham) – e de que pretendam fazer uso – com a reclamação e a contestação, assim como fundamentam a previsão expressa da possibilidade de realização da audiência arbitral com recurso a meios de comunicação à distância adequados, nomeadamente videoconferência, como já sucede com o Regulamento do CNIACC – Centro Nacional de Informação e Arbitragem de Conflitos de Consumo. Ressalva-se, quanto a este último aspeto, que deve privilegiar-se, sempre que possível, a colaboração, para o efeito, de centro/serviço/núcleo de informação autárquica ao consumidor, julgado de paz, tribunal estadual ou outra instituição instalada em edifício público da área do domicílio do sujeito ou interveniente processual.

A fim de se superar a divergência de entendimentos quanto à admissibilidade da reconvenção (aplicando-se ou não, supletivamente, a norma do n.º 4 do artigo 33.º da LAV), sem prejuízo da unidirecionalidade dos litígios de consumo (cf. artigo 2.º, n.ºs 1 e 2, alínea d) da Lei RAL), cremos que o princípio da eficiência processual aponta no sentido de que a mesma deve ser aceite. Na verdade, a improcedência de pedido de declaração de inexistência de dívida (em ação de simples apreciação negativa), em arbitragem iniciada pelo consumidor, não se consubstancia em sentença condenatória que possa ser executada, de imediato, pelo profissional (cf. artigo 703.º, n.º 1, alínea a) do CPC), obrigando este último a propor nova ação (ou iniciar procedimento de injunção) para obtenção de título executivo. Por último, de acordo com a jurisprudência firmada pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26.11.2015, proferido no Processo n.º 538/13.0YRLSB.S1, Relator: Fernanda Isabel Pereira, e pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28.06.2019, proferido no Processo n.º 1957/18.0YRLSB.C1, Relator: Arlindo Oliveira, entendemos que a norma do Regulamento Harmonizado relativa à responsabilidade pelas despesas com meios de prova requeridos em audiência arbitral devia conter uma remissão expressa para a solução normativa da segunda parte do n.º 5 do artigo 42.º da LAV – possibilidade de o árbitro decidir que alguma(s) das partes compense(m) a outra(s) pela totalidade ou parte dos custos e despesas razoáveis que esta(s) última(s) demonstre(m) ter suportado por causa da sua intervenção na arbitragem –, dissipando quaisquer dúvidas quanto à inaplicabilidade das normas do Código de Processo Civil e do Regulamento das Custas Processuais referentes a encargos com o processo de arbitragem, porque incompatíveis com a regulamentação própria dos litígios arbitrais.

Non-Fungible Tokens (NFT) – o que são estes cripto-ativos? Mais uma bolha?

Doutrina

Para quem tem acompanhado a evolução dos mercados financeiros, commodities e cripto durante 2021, este tem sido um ano cheio de episódios que desafiam conceções básicas que temos como garantidas. Em Janeiro (e depois em Março, embora menos comentado na comunicação social), a saga do r/Wallstreetbets a tentar provocar um short squeeze das ações da GameStop, AMC (entre outros) chocou o mundo quanto à possibilidade de grupos de investidores amadores se conseguirem “coordenar” em redes sociais. Em Fevereiro, após o Elon Musk ter adicionado a hastag #bitcoin na sua bio do Twitter, o anúncio de que a Tesla tinha comprado mais de mil milhões de doláres em Bitcoins e que passaria a aceitar pagamentos feito com esta criptomoeda, provocou mais uma subida vertiginosa do seu valor, quebrando recordes.

Este tipo de notícias atraiu os olhares de muitas pessoas para os mercados de cripto-ativos, procurando replicar as inúmeras histórias de pequenos amadores que viraram milionários – acabando por descobrir os Non-Fungible Tokens (NFT), através de notícias de leilões milionários de arte em NFT, como o que ocorreu com a venda de um NFT representando o popular vídeo do Nyan Cat. Mas afinal, o que são NFT?

Non-Fungible Tokens (NFT) ou em português, “Tokens” (fichas) não fungíveis, são um tipo de cripto-ativo, um token criptográfico, que, como o nome indica, representa algo único, não fungível. Distinguem-se assim da generalidade das tokens já conhecidas do público em geral, como as criptomoedas e cripto-ativos emitidos em ICOs com obrigações de crédito associados (por exemplo). Como estes cripto-ativos estão registados em Blockchain, a sua infungibilidade é assegurada – devido ao carácter descentralizado da Blockchain e do sistema de certificação peer-to-peer, nenhum NFT pode ser duplicado, nem falsificado (na Blockchain) – se alguém quiser um determinado NFT, tem de conseguir que o seu detentor lhe transmita o ativo.

Qual é a utilidade dos NFT? A sua infungibilidade e a forma como podem ser transmitidos utilizando diversas plataformas interoperáveis entre si, permite que estes possam atuar como uma espécie de “propriedade virtual” – as transações de NFT são autenticadas e registadas na Blockchain, permitindo o tracking da detenção de cada ativo singular. Desta forma, NFT podem ser utilizados para funções onde a escassez é necessária, seja para criar itens digitais exclusivos, colecionáveis, itens em jogos criptografados e “arte criptográfica”. 

A ideia de ter itens digitais que podem ser colecionados, que são escassos e alvo de grande cobiça já é antiga – desde que há videojogos online que permitem aos jogadores possuir e trocar itens virtuais, que isto se verifica em parte, com o surgimento de autênticos mercados secundários (geralmente não oficiais), em que certos itens são vendidos por grandes quantias monetárias. A questão é que ao contrário dos NFT, esses items virtuais, mesmo quando são excecionalmente raros, não são “verdadeiramente” únicos e exclusivos – mesmo quando existe apenas um, a empresa que opera o videojogo online, o prestador de serviço nesta relação, tem a capacidade de facilmente criar mais itens iguais – pode “editar” o número existente deste item, copiando o item supostamente único. Além de aumentar a quantidade, as próprias funções e características (incluindo a possibilidade de serem transmitidos entre contas de utilizadores) podem também ser alteradas da mesma forma. Assim, esta suposta ideia de escassez é “artificial”, baseada na relação de confiança entre o operador da plataforma e a comunidade de jogadores. Um simples update pode mudar tudo, sem que os utilizadores o possam impedir – sendo que os Termos de Utilização geralmente permitem isto. Com a utilização da tecnologia Blockchain, estas preocupações (que não impediram o surgimento de um mercado que vale milhões), não se aplicam.

A utilização inicial de NFT foi em jogos de cartas “cripto-colecionáveis”, mas a sua grande popularidade recente deveu-se à sua relação com a Arte, nomeadamente a Arte Digital ou Criptográfica. Vários artistas e personalidades, desde o produtor de música “Deadmau5”, o bilionário Mark Cuban, Justin Roiland da série Rick and Morty, até à atriz Lindsay Lohan, têm emitido e vendido NFT, que vão desde um clip de vídeo do LeBron James num jogo de baskteball, a quadros e desenhos, tweets[1] e músicas. A emissão e venda de NFT foi uma importante fonte de receitas para diversos artistas impedidos de realizar as suas atuações presenciais devido à pandemia da Covid-19. 

É importante referir que quando algum artista vende um NFT de uma música original da sua autoria, o comprador não adquire quaisquer direitos de autor (o “Copyright”) da música em si[2], mas um ativo único, exclusivo, não replicável que apenas “representa” a música[3] – é a autenticidade e exclusividade que atrai os colecionadores. Qualquer pessoa pode ser proprietária de uma cópia da Mona Lisa, mas existe apenas um original autêntico que se encontra no Louvre. 

Em termos de Direito de Consumo Europeu – enquanto a proposta de Regulamento de Mercados de Cripto-ativos (MiCA) (que já abordamos neste Blog) não é aprovada – o contrato realizado para a obtenção de um NFT trata-se de um contrato para o fornecimento de conteúdos digitais, sendo de destacar a aplicação dos seguintes diplomas (assumindo que estamos perante uma relação profissional-consumidor): 

-Diretiva das Cláusulas Contratuais Abusivas (93/6/CEE); 

-Diretiva das Práticas Comerciais Desleais (2005/29/CE);

-Diretiva dos Direitos dos Consumidores (2011/83/UE);

-Diretiva dos Conteúdos e Serviços Digitais (UE 2019/770)[4];

Quanto à Diretiva de Bens de Consumo (UE) 2019/771, é de destacar que mesmo quando bens de consumo são vendidos acompanhados por um NFT que representa aquele bem físico – o fenómeno da tokenização de certos bens exclusivoscomo ténis da Nike –  esta não será aplicável à transmissão do NFT. Neste contrato misto, o fornecimento do NFT é uma prestação separada da venda do bem, dado que o token não está incorporado ou interligado com o bem físico, segundo as definições do nº 3 e 4 do artigo 2º, e o nº 4 do artigo 3º da Diretiva da Conteúdos Digitais e os nº 5-B e nº 10 do artigo 1º e o nº3 do artigo 3º da Diretiva de Bens de Consumo. 

No entanto, mesmo com aplicação das normas destes diplomas, a melhor forma de proteção dos consumidores neste caso é o seu conhecimento sobre este tipo de ativos e a moderação das suas expetativas – neste momento há muitas pessoas que estão a adquirir estes ativos apenas com o objetivo de aproveitar o potencial especulativo do seu valor. Todas as semanas há vendas que batem recordes e é fácil cair no entusiamo. 

Existem receios fundados que algumas destas vendas podem frustrar seriamente as expectativas dos seus detentores – é possível que exista ou se esteja a formar uma “bolha” e que estes ativos estejam sobrevalorizados – da mesma forma que existem alegações similares para outros tipos de cripto-ativos, e mesmo quanto aos mercados financeiros tradicionais. A possibilidade de uma inflação galopante se abater sobre o dólar também alimenta estes receios.

A verdade é que os NFT representam várias realidades muito diferentes entre si, sendo difícil de falar destes no seu todo. Por um lado, é muito provável que vários estejam sobrevalorizados e que uma bolha rebente – de forma similar à especulação dos colecionadores no mercado de bandas desenhadas nos anos 90 – e ou que continuem a ser bastante procurados, mantendo-se o interesse – de forma semelhante ao mercado de venda de arte, onde os colecionadores continuam bastante participativos em grandes leilões


[1] Dominic Cummings, ex-conselheiro do Primeiro-Ministro do Reino Unido Boris Johnson, ameaçou vender um NFT de documentos cruciais que demonstravam a incompetência e negligência do governo britânico na gestão da pandemia.

[2] Exceto no caso dessa transmissão estiver mesmo incluída nas cláusulas do contrato celebrado com o comprador do cripto-ativo. Neste caso a transmissão dos direitos de autor acontece devido a esta cláusula, não devido à transmissão do cripto-ativo, são prestações diferentes de um contrato misto. 

[3] Geralmente, devido à quantidade de memória exigida, a própria obra de arte digital que o token representa não se encontra armazenada na Blockchain, mas num website, geralmente de terceiros. O token funciona assim como um certificado, um registo de detenção. Devido a isto, surge frequentemente o problema de links mortos (dead links, due to link rot), isto é, o website onde estava alojada a obra foi apagado ou o link foi alterado. 

[4] O problema dos links mortos será particularmente relevante para a questão da conformidade do conteúdo digital com o contrato, de acordo com os artigos 7º e 8º da Diretiva dos Conteúdos e Serviços Digitais.