Em post anterior, dedicado à exposição do enquadramento normativo que rege a verificação da prática de procedimento fraudulento e a “determinação do valor do consumo irregularmente feito”, tive oportunidade de defender que a referência ao “distribuidor” enquanto titular do crédito à diferença entre o valor da eletricidade paga e o valor da eletricidade efetivamente consumida (art. 3.º-1,-b) e 2 do DL 328/90) teria de ser objeto de uma interpretação atualista, devendo tal referência entender-se como reportada ao “comercializador”.
Volto ao tema com uma análise mais aprofundada, seguindo de perto a Sentença do Centro de Informação de Consumo e Arbitragem do Porto (CICAP) de 20.09.2017, Processo n.º 1735/2017, Relator: Paulo Duarte.
Ao tempo da entrada em vigor do DL 328/90, «a comercialização estava associada à distribuição de energia elétrica, em correspondência com a realidade infraestrutural da ligação da rede de distribuição (sobretudo da rede em baixa tensão) aos locais de consumo. A situação alterou-se com a privatização e liberalização do mercado da eletricidade, que obrigou à introdução de regras que (…) impõem (…) a separação (…) entre certas atividades e certos operadores, em termos de “proibição de acumulação de missões a desempenhar pelo mesmo sujeito económico”».
Mais desenvolvidamente, com a adoção do DL 29/2006, «instituiu-se um regime de estrita “separação jurídica e patrimonial” (full ownwership unbundling) entre a atividade de transporte de eletricidade e as atividades de produção e de comercialização, impedindo a sua concentração vertical sob o domínio de um mesmo sujeito operador» (art. 25.º-1), sendo que, «[n]o que diz respeito à atividade de distribuição de energia elétrica, o legislador, ainda assim, não é tão severo, ficando-se pela exigência da sua “separação jurídica” (legal unbundling)» – arts. 36.º-1 e 43.º do DL 29/2006 (no mesmo sentido, os arts. 338.º-1, 339.º-1 e 2, 343.º-5, 350.º-1 e 2 e 370.º-1 do Regulamento de Relações Comerciais do Setor Energético e do Gás (RRC)).
Por conseguinte, e ainda de acordo com a mesma decisão arbitral, «segundo a atual arquitetura normativa do SEN [Sistema Elétrico Nacional], o distribuidor de eletricidade não pode vendê-la – atividade que apenas é permitida (mais: que lhes está reservada) aos produtores e aos comercializadores». Daí que o art. 22.º do Regulamento Tarifário (RT) Setor Elétrico (para o qual remete o art. 343.º-6 do RRC) restrinja os “proveitos permitidos” da atividade de distribuição de energia elétrica aos que “são obtidos através da tarifa de uso das redes de distribuição, excluindo qualquer remuneração pela comercialização de energia elétrica – atividade cujo exercício lhe está vedado”.
Como tal, apesar de o DL 328/90 se referir ao “distribuidor” para efeitos do exercício do “direito ao acerto dos valores pagos pelo consumidor (o direito à diferença entre o valor pago e o valor do consumo real, ainda que apurado por estimativa em caso de anomalia ou viciação do contador)”, em face da evolução da realidade histórica existente ao tempo da entrada em vigor daquele compêndio legal, tal menção só pode ser interpretada como se dirigindo ao comercializador, “uma vez que só este pode ligar-se ao consumidor através do contrato de fornecimento (compra e venda) que o legislador considera violado” (cf. arts. 1.º-1 do DL 328/90, 44.º-3 do DL 29/2006 e 7.º-1 do RRC)[1].
Ao entendimento que aqui se acompanha não se opõe o ponto 31.3 do Guia de Medição, Leitura e Disponibilização de Dados de energia elétrica em Portugal continental (GMLDD), no qual se determina que “[a] energia elétrica associada a procedimento fraudulento comprovadamente identificada e registada em cada ano não deve ser imputada a carteiras de comercializadores”. Retomando a jurisprudência que vimos seguindo de perto, a compreensão do alcance da norma do ponto 31.3 do GMLDD depende do conhecimento da distinção que a mesma pressupõe: a destrinça, estabelecida no ponto 31.2.2.1 daquele GMLDD “entre, por um lado, a energia registada, fiavelmente (apesar da prática fraudulenta), pelos equipamentos de medição e, por outro lado, a energia estimada”, admitindo-se, assim, a possibilidade de o procedimento fraudulento não impedir “o conhecimento direto (e não apenas estimado) da eletricidade consumida”. Ora, o ponto 31.3 do GMLDD «apenas se refere à energia “comprovadamente identificada e registada em cada ano”, e não à energia estimada na sequência da deteção do procedimento fraudulento», o que bem se compreende, pois, se a energia já foi considerada em períodos anteriores, carecia de sentido imputá-la, de novo, a carteiras de comercializadores. Já quanto ao consumo de energia elétrica, associado a fraude, apurado por via de estimativa, não se lhe aplica, afinal, o ponto 31.3 do GMLDD.
Em sentido diverso, pronunciou-se o Tribunal da Relação de Coimbra em Acórdão de 21.11.2017, proferido no Processo n.º 502/16.7T8GRD.C1, Relator: Fonte Ramos, no qual se sustenta, a partir do mesmo ponto 31.3 do GMLDD, que “(…) só o Distribuidor, em benefício do SEN, terá competência para exigir do consumidor final o ressarcimento do valor da energia consumida ilicitamente, e nunca o comercializador (ou, no limite, o produtor/múltiplos produtores a operar atualmente no SEN)”.
Acolhendo o entendimento assumido neste último acórdão e ao arrepio de tudo o que defendemos acima (a que acresce o facto, de que partimos no post anterior, segundo o qual a verificação de procedimento fraudulento motiva “acertos de faturação”, da responsabilidade do comercializador, ainda que fundados em estimativas de consumo realizadas pelo distribuidor – art. 43.º-2 e 4 do RRC), a norma do n.º 5 do art. 33.º-5 do recém-adotado RRC veio determinar que “[n]as situações previstas no número anterior [erros de medição da energia e da potência resultantes de qualquer anomalia verificada no equipamento de medição, com origem em procedimento fraudulento], cabe ao operador da rede de distribuição que serve a instalação de consumo assegurar a recuperação integral para o Sistema Elétrico Nacional (…) dos consumos de energia não faturada, neles incluindo o valor da energia, que foi considerada em perdas [diferença entre a energia que entra num sistema elétrico e a energia que sai desse sistema elétrico, no mesmo intervalo de tempo], e a componente dos acessos, valorizada por aplicação da tarifa transitória correspondente, ou na sua ausência, da tarifa de acesso acrescida da tarifa de energia.”
Pela minha parte, em face da antinomia entre as normas dos arts. 1.º-1 do DL 328/90 e 44.º-3 do DL 29/2006, por um lado, e a norma do art. 33.º-5 do RRC, por outro, e lançando mão do critério hierárquico expresso no brocardo latino lex superior derogat legi inferiori (“lei superior derroga leis inferiores”), creio que o primeiro par de normas, portador de um status hierarquicamente superior à norma do diploma regulamentar, continua a determinar que o direito ao valor da energia não faturada tem por sujeito ativo o comercializador.
[1] Tal compreensão não é extensível ao exercício do direito a tutela reparatória em relação ao eventual dano patrimonial sofrido com a destruição (parcial) do equipamento de medição, de que o operador da rede de distribuição é proprietário (art. 29.º-1-b) e 3 do RRC), como nota Pedro Falcão, O Contrato de Fornecimento de Energia Elétrica, Petrony Editora, 2019, pp. 109-114, em especial p. 112.