Que razões levam a uma escassa aplicação prática do Direito do Consumo em Portugal?

Doutrina

Por Ana Rita Agostinho, Andreia Gouveia, Carolina Furtado, Catarina Teixeira, Jorge Morais Carvalho, Laís Tourinho, Madalena Duarte, Mafalda Coimbra, Margarida Riso, Mariana Pais Albuquerque e Rafael Carvalho

No dia 11 de setembro, teve início a Pós-Graduação em Direito do Consumo, organizada pela Jurisnova e pela NOVA School of Law. Os participantes foram desafiados, desde logo, a responder à seguinte questão: que razões levam a uma escassa aplicação prática do Direito do Consumo em Portugal? A escassa aplicação prática reflete-se não só na perceção de um nível de cumprimento baixo, em comparação com uma legislação especialmente exigente, mas também na pouca jurisprudência dos tribunais judiciais, poucos reenvios prejudiciais, poucas decisões administrativas.

Neste texto, responde-se a essa questão, salientando os aspetos que foram assinalados na análise feita pelos participantes[1].

Destaca-se, em primeiro lugar, o nível baixo de literacia da generalidade dos consumidores. Os consumidores estão, em geral, pouco (e mal) informados sobre os seus direitos e deveres. A formação escolar a este nível é deficiente, o que leva a que o problema comece, desde cedo, na vida das pessoas, acentuando-se ao longo da vida, tendo em conta a falta de formação para a cidadania em geral e para o consumo em especial.

A falta de conhecimento da legislação aplicável está ligada a este baixo nível de literacia, sendo acentuada pela dispersão legislativa característica do Direito do Consumo em Portugal. A existência de normas dispersas pelo ordenamento jurídico, de forma pouco clara e organizada, constitui um entrave ao seu conhecimento efetivo. Neste sentido, assinala-se as vantagens que poderiam advir da aprovação de um código ou, pelo menos, de uma lei mais ampla, que agrupasse e sistematizasse os principais direitos e deveres dos consumidores.

O desconhecimento é especialmente evidente no que respeita a consumidores mais vulneráveis, com especial destaque para os imigrantes, que têm uma dificuldade no acesso e na compreensão da realidade, por não estarem tão adaptados à cultura jurídica e prática das relações de consumo.

O nível de conhecimento dos profissionais é também bastante baixo. Com um tecido empresarial dominado por micro e pequenas empresas, os aspetos indicados a propósito dos consumidores aplicam-se, quase sem variações, aos profissionais. Assim, as pessoas que devem cumprir a generalidade das normas de Direito do Consumo também não as conhecem em toda a sua extensão e complexidade. A dispersão legislativa torna o Direito de difícil apreensão, verificando-se ainda algumas incongruências e contradições em diferentes diplomas legais. A codificação poderia contribuir para melhorar a literacia dos profissionais em matéria de Direito do Consumo. Outro aspeto assinalado é a necessidade de formação dos profissionais, em especial os que têm contacto direto com o público, que deveria ser incentivada ou mesmo tornada obrigatória.

Por vezes, mesmo que o profissional queira cumprir, não o consegue fazer, pois, além de ser difícil, mesmo para quem procure, saber ao certo o que tem de ser feito, o nível de exigência é muito elevado, passando por um conjunto excessivo de deveres, por vezes sem eficácia prática, com custos muito elevados (quer financeiros quer organizacionais). Uma microempresa não tem, muitas vezes, condições para dar resposta a tudo aquilo que lhe é, no Direito escrito (ou em teoria), exigido. O Direito em ação (ou na prática) acaba, depois, por isso, por corresponder a menos do que a lei prevê.

É igualmente assinalada uma questão cultural, ligada à anterior, com impacto no nível de cumprimento da legislação de consumo. Os consumidores e os profissionais concordam muitas vezes, ainda que tacitamente, que ao negócio em causa não é aplicável toda a legislação de consumo. Estamos a falar de relações pessoais existentes entre o cliente habitual e o dono do café, do cabeleireiro ou da papelaria, muitas vezes a única pessoa que nele trabalha, que levam a uma informalidade com efeitos na consciência dos direitos subjacentes. Um pouco como se, nesses pequenos estabelecimentos, as regras não fossem as mesmas. O traço cultural de não conflituosidade confrontativa leva também os consumidores a, muitas vezes, não assinalar o incumprimento da lei perante o profissional

Outro aspeto indicado é a insuficiência da fiscalização de práticas contrárias ao Direito do Consumo.

Por um lado, salienta-se a falta de meios humanos das entidades fiscalizadoras e a ausência de orientações claras e transversais quanto à aplicação das normas de consumo. Acresce a perceção da inexistência de uma ação concertada por parte das várias entidades competentes nos casos em que a competência é partilhada.

Por outro lado, realça-se a inexistência de sanções adequadas em caso de incumprimento dos deveres por parte dos profissionais.

Do ponto de vista das normas de direito substantivo, é realçada, em especial por comparação com o direito brasileiro, a circunstância de o ressarcimento por danos não patrimoniais ser raro nas relações de consumo em Portugal e de, nos casos em que são atribuídas indemnizações, o seu valor ser baixo. Também as dificuldades de prova, por parte do consumidor, não são porventura compensadas por uma suficiente inversão do ónus. A utilização de conceitos indeterminados em vários diplomas constitui igualmente uma dificuldade no que respeita à aplicação prática do Direito do Consumo.

A verificação de pouca jurisprudência dos tribunais judiciais em matéria de Direito do Consumo estará relacionada com o valor médio baixo dos litígios, o que leva a que os consumidores internalizem o risco e não recorram a tribunal. Os custos associados ao acesso aos tribunais judiciais não compensam, na maioria dos casos, a propositura da ação. Os centros de arbitragem têm um papel importante neste domínio, sendo importante que se tornem mais conhecidos e que as suas decisões sejam publicadas. Por fim, é ainda realçado o papel que poderão ter algumas vias privadas de resolução de litígios, como as redes sociais ou os portais dedicados a inserção de queixas pelos consumidores. Estes mecanismos podem ser, em alguns casos, mais eficazes, mas fazem de certa forma concorrência à própria legislação e à sua aplicação, pois não se baseiam, em regra e no essencial, na estrita consideração do Direito aplicável.


[1] Tratando-se de um texto coletivo, é possível que alguma ideia não corresponda à perspetiva de todos os autores.

O que a Siri não diz sobre o que faz com dados pessoais

Doutrina

Os assistentes de voz virtuais são cada vez mais integrados no nosso dia a dia, permitindo realizar tarefas com simples comandos de voz. No entanto, as implicações da sua utilização para a privacidade dos utilizadores muitas vezes passam despercebidas.

Neste blogpost, vamos explorar os desafios que estes dispositivos apresentam em termos de proteção de dados, focando-nos nas bases de licitude para o tratamento de dados e nos requisitos de transparência que os responsáveis pelo tratamento devem observar.

O que são assistentes de voz virtuais?

Essencialmente, os assistentes de voz virtuais são concebidos para facilitar a execução de tarefas e, ao mesmo tempo, proporcionar ao consumidor acesso a informação. Por exemplo, smartphones já utilizam estes assistentes virtuais para definir alarmes ou lembretes. Da mesma forma, alguns automóveis integram assistentes que permitem ao condutor e ocupantes controlar o GPS por via de comandos de voz. O seu alcance é vasto, não se limitando, portanto, a ser um altifalante inteligente integrado em smartphones, smartwatch ou outro qualquer dispositivo com capacidades de Internet, um microfone e altifalantes.

Contudo, estes assistentes são também softwares complexos que levam ao tratamento de dados do consumidor – por exemplo, comandos de voz – e de eventuais terceiros, como palavras faladas, dados de texto, informações pessoais partilhadas e dados biométricos (reconhecimento de voz). Por exemplo, quando o consumidor pede ao seu assistente virtual para acender as luzes de casa, este capta a sua voz, converte o seu discurso em texto, processa o comando e implementa-o através, por exemplo, de ligação a outros sistemas a que o consumidor lhe tenha dado acesso.

Assim, para traduzir os comandos dos consumidores em ações, os assistentes virtuais têm uma contraparte de software que complementa o suporte físico onde estão integrados e que trata os dados pessoais de modo a executar as tarefas para que foram programados. Este tratamento de dados é complexo, envolvendo frequentemente diversas entidades e protocolos.

Dada a utilização quotidiana destes sistemas e a quantidade – e sensibilidade – dos dados pessoais tratados, dois problemas em particular surgem aquando da sua utilização: a necessidade de uma base de licitude para o tratamento de dados e o cumprimento de deveres de transparência por parte do responsável pelo tratamento.

Bases de licitude aplicáveis

O Regulamento Geral de Proteção de Dados (‘RGPD’) exige que o tratamento de dados pessoais dependa da aplicação de uma base de licitude do seu art. 6.º. Para categorias especiais de dados (por exemplo, dados biométricos), é também exigida a aplicação de uma das exceções do art. 9.º(2). Por isso, um dos elementos essenciais para um tratamento lícito de dados pessoais no contexto de assistentes de voz virtuais será a definição da base (ou bases) legal aplicável.

A escolha passa por compreender os vários tratamentos a que os dados pessoais estão sujeitos. Inicialmente, o assistente está em estado de espera até ser ativado por uma expressão-chave. Com a deteção dessa expressão (e, em alguns casos, o reconhecimento de voz do consumidor), o áudio é transmitido para fora do dispositivo, sendo processado pelo operador do software. Em seguida, o comando do utilizador é transcrito, interpretado e, dependendo da solicitação, pode ser compartilhado com aplicativos de terceiros (por exemplo, para controlar outros dispositivos inteligentes). A resposta ou ação solicitada é então executada.

Neste contexto, diferentes finalidades poderão estar em causa, pelo que a escolha de base de licitude pode variar.

Como vimos, o principal uso de um assistente de voz virtual é executar comandos de voz. Quando este tratamento envolve o armazenamento ou o acesso a informações no dispositivo terminal do consumidor, aplica-se o art. 5.º(3) da Diretiva ePrivacy, que exige o consentimento prévio. Contudo, há uma exceção: se o armazenamento ou o acesso for “estritamente necessário” para fornecer o serviço solicitado, o consentimento não é exigido.

Portanto, quando o tratamento de dados é necessário para a execução do pedido do consumidor, como a captura, transcrição e interpretação de comandos de voz, a base de licitude a utilizar será a execução de um contrato com o consumidor, conforme ao art. 6.º(1)(b) do RGPD. Todo o tratamento de dados suplementar a este – e que não seja necessário para a prestação do serviço solicitado – será, na maioria dos casos, sujeito a consentimento. Isto engloba três casos tipicamente relacionados com assistentes de voz virtuais.

Em primeiro lugar, nos casos em que a voz do utilizador é também utilizada para o identificar, estamos perante o tratamento de dados biométricos conforme definido no art. 4.º(14) do RGPD. O tratamento de tais dados requer não apenas uma base de licitude do art. 6.º, mas também uma exceção constante do artigo 9.º. A exceção será o consentimento explícito do titular dos dados (art. 9.º(2)(a) do RGPD).

Outra situação típica prende-se com o aperfeiçoamento contínuo dos assistentes virtuais levado a cabo pelos seus operadores. Em geral, este tratamento não pode ser enquadrado como necessário para a execução do contrato com o consumidor, pelo que a melhoria do serviço ou o desenvolvimento de novas funcionalidades requerem uma base legal distinta. Com base no raciocínio anterior, em princípio será necessário o consentimento do titular dos dados.

Por último, estes assistentes virtuais podem ter funcionalidades adicionais. Por exemplo, a personalização de conteúdos, embora esperada por alguns consumidores, nem sempre é um elemento intrínseco ao serviço oferecido por estes assistentes. Assim, quando a personalização não é estritamente necessária para a execução do contrato, o consentimento do titular de dados será novamente necessário.

O responsável pelo tratamento deve, assim, garantir que o tratamento de dados está em conformidade com os padrões definidos pelo RGDP e a Diretiva ePrivacy. Caso o consentimento do titular de dados seja necessário – nos casos em que o tratamento de dados não é essencial para a prestação do serviço solicitado, ou aquando do tratamento de categorias especiais de dados – este deve ser fornecido livremente e de forma específica, informada e inequívoca.

Direito de informação

A transparência é outro elemento fundamental. Os responsáveis pelo tratamento devem cumprir os requisitos estabelecidos pelo RGPD, nomeadamente nos arts. 5.º(1)(a), 12.º e 13.º, que impõem a obrigação de informar os utilizadores de forma concisa, transparente e acessível sobre o tratamento dos seus dados pessoais.

Cumprir estas exigências de transparência pode, contudo, ser um desafio significativo para os fornecedores de assistentes de voz virtuais, devido às particularidades tecnológicas desses sistemas.

Um dos principais obstáculos é a necessidade de informar todos os utilizadores — não apenas o consumidor que inicialmente adquire o dispositivo, mas também os utilizadores acidentais que podem interagir com o assistente de voz. Por exemplo, em dispositivos pessoais, como um smartphone, pode haver um único utilizador, mas em dispositivos partilhados, como os utilizados em casas inteligentes ou em automóveis, estaremos potencialmente perante múltiplos utilizadores. A situação torna-se ainda mais complexa quando, por exemplo, um smartphone pessoal se conecta a um carro e o assistente de voz passa a estar disponível para todos os passageiros. Nestes casos, os responsáveis pelo tratamento de dados devem garantir o cumprimento do dever de informação perante todos os titulares de dados cujos dados pessoais trate.

A forma de interação com estes assistentes gera também dificuldades na transmissão desta informação. Políticas de privacidade extensas e complexas, resultantes da integração de múltiplos serviços, podem agravar esta dificuldade. Por isso, embora esta tecnologia seja desenhada para interações por voz, por vezes torna-se necessário incluir ecrãs auxiliares que permitam um acesso facilitado à informação. Outros modelos são possíveis, como por exemplo o envio de hiperligações por e-mail. De igual forma, é recomendado que o dispositivo informe o consumidor e outros titulares de dados de quando está ‘à escuta’ de comandos, através de sinais visuais, como ícones ou luzes. Desta forma, os responsáveis pelo tratamento de dados gerado por estes assistentes podem facilitar o acesso à informação devida nos termos do RGPD, garantindo um tratamento de dados transparente e leal.

Estará a sua trolley bag pronta para descolar consigo sem surpresas na fatura?

Jurisprudência, Uncategorized

No passado dia 10 de setembro de 2024, o Tribunal Judicial da Comarca de Braga [1](“Tribunal de Braga”) foi notícia com uma decisão pioneira proferida a propósito do pagamento de valores adicionais para o transporte de trolley bags na cabine. Na base do litígio está um contrato de prestação de serviços de transporte aéreo. A consumidora foi forçada a adquirir os serviços de embarque prioritário e de reserva de lugar, apesar de não os pretender, somente para poder transportar consigo a sua trolley bag, com dimensões até 55x40x20 cm. Com a tarifa normal, este transporte não era permitido, tendo assim pagado um valor suplementar de € 23,50 para o segmento de voo entre o Porto e Bergamo e de € 33 para o segmento de voo entre Bergamo e o Porto.

Para resolver a questão de saber se a companhia aérea pode cobrar um valor suplementar pelo transporte da sua bagagem de mão (ou seja, as malas ou mochilas de pequenas dimensões em que o passageiro transporta normalmente a sua roupa e outros objetos pessoais), que, devido às suas reduzidas dimensões e peso, o passageiro decidiu não registar e levar consigo a bordo do avião, nos compartimentos superiores habilitados para o efeito, o tribunal começa por recorrer ao art. 2.º-1 do Regulamento (CE) n.º 1008/2008, que permite às companhias aéreas fixarem livremente tarifas, entendidas como aquilo que a companhia aérea cobra pelo transporte de passageiros. Adicionalmente, o art. 2.º-18 estabelece os preços dos serviços aéreos e as condições de fixação desses preços.

O Tribunal de Braga baseia grande parte da sua argumentação no acórdão do TJUE, proferido no caso Vueling Airlines (C-487/12), a 18 de dezembro de 2014, no qual se estabelece, nos considerandos, que deve ser feita uma distinção entre bagagem registada e bagagem não registada. No entender do TJUE, a “bagagem registada” é a bagagem que é transportada no porão da aeronave, relativamente à qual se considerou que não se trata de um serviço obrigatório ou indispensável para o transporte de passageiros, e por essa razão as companhias aéreas podem cobrar um valor suplementar sobre o preço do bilhete, com base no princípio da liberdade de preços. No que diz respeito à “bagagem de mão” ou a “bagagem não registada”, foi considerada um elemento indispensável do transporte aéreo e, por conseguinte, a companhia aérea seria obrigada a transportá-la sem poder exigir ao passageiro um valor adicional sobre o preço do bilhete.

A razão que justifica a distinção está relacionada com a circunstância de a bagagem faturada implicar um acréscimo de custos para o transportador aéreo: aumento do consumo de combustível em virtude do aumento do peso, custos de pessoal com a equipa necessária em terra nos mostradores de faturação, custos com as empresas de manuseio, a acrescer à responsabilidade de assumir, vigiar e cuidar da bagagem do passageiro até que esta lhe seja entregue no destino final.

Note-se, no entanto, que, no Acórdão Vueling Airlines, não estava em causa o transporte de bagagem de mão, mas uma lei espanhola que proibia a cobrança de um valor pela bagagem registada. O TJUE considerou que essa lei era contrária ao direito europeu, parecendo abrir a porta, com a argumentação exposta nos parágrafos anteriores, à possibilidade de uma norma de um Estado-Membro que proíba a cobrança pela bagagem de mão. Na ausência de uma norma nacional nesse sentido, não estamos certos de que se possa retirar do acórdão a conclusão de que o TJUE considera que é proibido cobrar pela bagagem de mão face ao Regulamento 1008/2008.

Ao analisar a legislação nacional de proteção do consumidor, o Tribunal de Braga acaba por concluir que a prática em causa viola um conjunto muito alargado de normas quer da Lei de Defesa do Consumidor quer do Decreto-Lei n.º 57/2008 (práticas comerciais desleais). A referência em bloco a uma série de preceitos fragiliza um pouco a argumentação. Concordo, no entanto, com a decisão, especialmente porque a informação não foi prestada à consumidora de forma clara, objetiva e transparente. Assim, não pôde tomar uma decisão livre, esclarecida e consciente quanto a transportar consigo a sua trolley bag, tendo sido surpreendida com um custo que não se encontrava previsto e forçada a adquirir serviços adicionais, apenas com o objetivo de levar consigo a bordo a sua companheira de viagem. Veremos qual será a evolução da questão após esta decisão e o seu efeito mediático, sendo certo que não é claro se, cumpridos todos os requisitos de informação, e sendo a oferta totalmente transparente, poderá ser cobrado um valor.


[1] Sentença Judicial, Processo n.º 87/24.0T8BRG, Juiz de Direito: Bruno António Oliveira Mestre.

Pet Welfare: A New Realm for Consumer Protection?

Doutrina

Products and services intended for pets, including pet food, toys and other accessories, veterinary drugs and insurances, have been regulated for quite some time in the EU. Conversely, pet welfare is an emerging concept that reflects changing societal attitudes towards companion animals and their status in households. Especially cats and dogs are increasingly viewed as family members rather than property items, thus warranting legal protection as far as their physical and mental welfare is concerned (Duarte Cardoso et al, 2017).

Still, the regulation of pet welfare may also have important implications in terms of consumer protection, namely if one considers pet owners as consumers in the context of B2C commercial transactions.  

The European Union (EU) is moving exactly in this direction.

On 7 December 2023, the European Commission published a legislative proposal for the welfare of dogs and cats, which is undergoing ordinary legislative procedure at EU level. This proposal is meant to lay down a comprehensive set of welfare requirements for such animals when involved in commercial activities, i.e., when kept in and sold by breeding establishments, pet shops (where national legislation so allows) or animal shelters. 

In the last 50 years, the EU has developed a wide-ranging body of law for the protection of animals. In 2009, the Treaty of Lisbon gave more political prominence to animal welfare by formally recognising animals as sentient beings and by requiring the EU and its Member States to take their welfare into account when developing and implementing other EU policies, such as agriculture, fisheries, research, or the internal market (Article 13 of the Treaty on the Functioning of the European Union).

However, until now EU legislation has mainly focussed on the protection of the welfare of farmed animals. General welfare requirements exist for the rearing, transport and slaughter of farmed animals, in addition to standards that are species-specific (e.g., laying hens, broilers, calves, pigs, etc.).

Conversely, references to pet welfare in EU animal welfare legislation are scant. One notable exception is Regulation (EC) No 1/2005, which regulates animal welfare during transport and sets out specific standards for the transport of dogs and cats in the context of commercial activities (notably, minimum age as well as feeding and watering requirements). These standards are currently being reviewed to ensure a higher level of protection for those companion animals.

Other than that, EU legislation currently requires dogs and cats to be identified through a microchip, but only when imported into the EU or moved from one EU Member State to another one. This requirement – which is laid down in the Animal Health Law – pursues animal health objectives rather than animal welfare ones and acknowledges that even the most seemingly harmless pet may carry diseases that can be transmitted to other animals as well as to humans (e.g., rabies).

But why are EU-wide welfare rules for companion animals necessary in the long run? And why are such rules also relevant for pet owners as consumers?

The number of dogs and cats living in European households has grown exponentially over the last years and turned into a commercial activity of great economic significance (valued 1.3 billion EUR annually and employing around 300,000 workers). This makes the trade of dogs and cats particularly exposed to illegal activities. Two EU control plans coordinated by the European Commission (the first one in 2018 and the second one in 2022 -2023) have shown that  illegal trade of dogs and cats is a highly profitable business for rogue traders with online platforms providing new opportunities for them to operate undisturbed and undetected. Forgeries of documents (e.g., vaccination and health certificates), sale of underage and/or unvaccinated pets and cross-border trafficking are amongst the most recurrent violations reported.

While the economic impact of this illegal trade remains quite hard to estimate, its prevalence and the associated risks – for animal health and welfare but also for human health – have warranted it the legal status of ‘organised crime’, following the adoption of the EU Strategy to Tackle Organised Crime 2021-2025.  

In addition, higher consumer demand for specific aesthetic traits – like shortened limbs in Basset Hounds or extremely folded ears in Scottish fold cats – have resulted in the adoption of industry breeding strategies that may be detrimental to the welfare of the animal as well as of its offsprings.

From this standpoint, prospective pet owners engaging in a commercial transaction for the purchase of a companion animal are no different from any other consumer. As such, they may reasonably expect law to afford adequate protection of their financial interests, their health and safety, for instance, by ensuring they receive complete, accurate and reliable information about the animal before purchasing it. This information might include:

– The identity of the pet (e.g., date of birth, sex, breed, etc.);

– Its origin (e.g., country, but also breeding / selling establishment, litter etc.); and

– Its health status as attested, e.g., by the vaccinations administered, genetic tests and other veterinary records, but also its physical and mental welfare resulting from the way in which the animal was bred and kept just before being sold.

The latest draft text of the European Commission’s proposal under exam – which was adopted in June this year and is the outcome of the first round of discussions held by EU Member States in Council – recognises the right of prospective pet owners to be duly informed by introducing more stringent traceability requirements for the whole EU.

Against this background, in the future most breeding establishments will have to be registered, audited and approved by national competent authorities before being able to operate (Articles 7 and 7a). In addition, all dogs and cats will have to be identified and duly registered in national databases (currently, most EU Member States ensure that for dogs but not for cats), which will be interconnected with an EU database to be managed by the European Commission (Articles 17 and 19). Prospective pet owners will be given the possibility to access the information kept in such databases, free of charge, with the objective to verify the authenticity of the information provided by the seller about the animal (Article 17, par. 6). As an additional guarantee, future EU legislation will require owners introducing their pets into the EU to pre-notify this movement to an additional IT system yet to be built, i.e., the EU Pet Traveller’s database (Article 21, par. 4a). This last requirement is intended to ensure stricter surveillance at EU borders to unveil cases where pets are introduced into the EU market for commercial purposes under the disguise of non-commercial movements.

Of course, the contours of the EU protection that prospective pet owners may come to enjoy in the future will ultimately depend on the outcome of the ongoing interinstitutional negotiations. Besides, EU tertiary legislation is poised to set out further details for its exercise, application and enforcement.    All in all, even if the primary goal of the European Commission’s legislative proposal is to regulate pet welfare, both as an element of EU’s agricultural policy and of a well-functioning internal market, its current text clearly shows that consumer protection has a role to play in this context. Ultimately, this may be regarded as the latest evolution in the broader societal shift we have been witnessing towards the recognition of the moral and legal status of companion animals in our lives.

Gold-Plating na Transposição do Direito Europeu do Consumo para o Ordenamento Jurídico Português

Doutrina

O conceito de gold-plating[1]

Quando o procedimento legislativo europeu acaba, com a publicação final dos diplomas no Jornal Oficial da União Europeia, começa frequentemente uma “fase intermédia” antes das novas normas se efetivarem. Nas diretivas, os destinatários são os Estados-Membros, que têm a obrigação de as transpor; os regulamentos, embora sejam diretamente aplicáveis, muitas vezes carecem de atos legislativos nacionais para a sua implementação efetiva.

É nesta fase em que um fenómeno muito particular frequentemente ocorre: o gold-plating.

Gold-Plating é o processo pelo qual um Estado-Membro, ao transpor ou implementar diplomas europeus, acrescenta requisitos, obrigações ou normas[2] que vão além do que está previsto na legislação transposta.

É importante frisar que o goldplating é uma prática lícita e conforme o direito da União Europeia. O Estado-Membro exerce apenas a sua competência legislativa, discricionariamente, de forma permitida e frequentemente até prevista pelo diploma europeu em causa.

O gold-plating é frequentemente discutido no contexto de sistemas legislativos de multinível como uma ocorrência que, embora natural e admissível, deve ser acautelada devido aos seus possíveis efeitos nefastos. Na OCDE, e na União Europeia em particular, é tipicamente criticado devido à falta de transparência, por um lado, e os custos e barreiras inesperados que pode causar ao funcionamento do mercado interno, por outro lado. Se o objetivo é garantir a livre circulação de bens, serviços, pessoas e capital (além de dados), quaisquer discrepâncias entre os diplomas europeus, que pretendem uniformizar ou harmonizar o direito aplicável o máximo possível, e os diplomas nacionais que os transpõem ou implementam, são vistas como contradições, constituindo entraves ao mercado interno.

Neste sentido, se o gold-plating pode ter custos económicos avultados, incluindo a perda de competitividade das empresas e dos agentes económicos sediados nessas jurisdições, podemos perguntar-nos porque é que ocorre.

Múltiplas razões podem motivar o legislador nacional “a ir mais longe” do que o necessário. Pode ocorrer por razões puramente políticas, culturais, obrigações internacionais previamente assumidas ou outras, como preocupações sociais e ambientais.

Ocorrências de gold-plating são, por vezes, fáceis de antecipar, tendo em atenção o procedimento legislativo europeu. Nas (cada vez mais frequentes) diretivas de harmonização máxima, é relativamente fácil identificar as matérias em que houve discordância entre os Estados-Membros nas negociações e se optou por permitir a adoção de medidas diferentes. Estes pontos encontram-se normalmente sinalizados nos próprios diplomas, quando apresentam derrogações expressas, “válvulas de escape”, múltiplas opções para o mesmo objetivo ou mesmo intervalos admissíveis em certas obrigações (com tetos mínimos e/ou máximos). Noutros casos, são os considerandos que “reconhecem” esta discricionariedade aos Estados-Membros, admitindo que vários já têm normas e regimes anteriores que vão além do necessário, podendo mantê-los.

Gold-plating no Direito do Consumo Português

Tipicamente o Legislador Português não costuma afastar-se muito do texto dos diplomas europeus, recorrendo, na generalidade dos casos, à técnica de “copy-paste”, que resulta num elevado número de transposições mínimas, incorrendo assim em pouco gold-plating.

No entanto, no domínio do Direito do Consumo, o legislador português é mais criativo, porventura por razões históricas ou políticas, exercendo mais esta prática.

Cláusulas abusivas

Começando por um caso exemplar, em que os motivos históricos são patentes, temos a transposição da Diretiva 93/13/CEE (cláusulas abusivas), integrada no Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de outubro, o Regime Jurídico das Cláusulas Contratuais Gerais.

As discrepâncias entre os dois diplomas são óbvias. A Diretiva, com os seus 13 artigos[3], aplica-se apenas a contratos de consumo e tem um anexo com uma “curta” lista de (17) cláusulas, meramente indicativa, que podem ser consideradas abusivas, dependendo das circunstâncias. Uma grey list.

Por sua vez, o diploma nacional, atualmente com 50 artigos[4], tem um regime aplicável a todos os contratos, incluindo os concluídos entre profissionais, e um regime aplicável apenas a contratos de consumo. Tem 4 listas de cláusulas bastante extensas, com cláusulas que são sempre consideradas abusivas, independentemente das circunstâncias, em todos os contratos e em contratos de consumo, e cláusulas tendencialmente abusivas, em todos os contratos e em contratos de consumo.

Compreende-se as razões que justificam este fenómeno. O Decreto-Lei é muito anterior à Diretiva (8 anos), sendo que a Diretiva é de harmonização mínima, permitindo esta “marca nacional” no regime jurídico. Finalmente, a Diretiva, na sua génese, resulta de uma teia de compromissos entre 4 visões bastante diferentes[5] de conceptualizar e considerar o seu objeto, e o caráter abusivo de cláusulas gerais. O seu texto teve, assim, de permitir formas bastante diferentes de conseguir alcançar o mesmo objetivo.

“Garantia legal” na compra e venda

Outra matéria em que é visível que, ao longo dos anos, o legislador português se quis demarcar do Direito da União Europeia, na medida do possível, diz respeito ao período de responsabilidade do profissional nos contratos de compra e venda de bens de consumo, comummente designado por prazo da “garantia legal”.

Temos dois exemplos claros, um na transposição da antiga Diretiva 1999/44/CE pelo Decreto-Lei n.º 67/2003, e o outro na mais recente transposição da Diretiva (UE) 2019/771 pelo Decreto-Lei n.º 84/2021, em que nos vamos focar de seguida.

A Diretiva (UE) 2019/771, de harmonização máxima, estabelece que os Estados-Membros têm de transpor para o seu ordenamento jurídico um período de responsabilidade (com um período mínimo de 2 anos, mas permitindo períodos superiores) e de período de inversão do ónus da prova da existência de falta de conformidade no momento da entrega, a favor do consumidor (num período mínimo de 1 ano e máximo de 2 anos), deixando os Estados-Membros incluir medidas que suspendam ou interrompam o decurso deste prazo no caso de uma reparação ou substituição[6].

Portugal optou por estabelecer (i) um período de 3 anos de responsabilidade, (ii) um período de 2 anos no qual se prevê inversão do ónus da prova, (iii) que a substituição do bem tenha como efeito o recomeço do período de responsabilidade e (iv) prorrogações de 6 meses por cada reparação, até um máximo de 4 reparações ou 2 anos “extra” no período de responsabilidade.

Se compararmos a transposição portuguesa com o panorama nos restantes Estados-Membros, há muita diversidade nas soluções adotadas. A Alemanha e a Itália estabeleceram períodos de 2 anos no que respeita à responsabilidade do profissional e de 1 ano quanto à inversão do ónus da prova. Por sua vez, em França, ambos são de 2 anos, prevendo-se prorrogações de 6 meses em caso de caso de reparação.

Um olhar para o futuro

O gold-plating é um dos temas da Legística e da Ciência da Legislação com mais impacto e ramificações multidisciplinares. Em áreas como o Direito do Consumo, em que a influência europeia é tão vincada e em que as divergências entre ordenamentos jurídicos nacionais têm tanto impacto nos agentes económicos, nas expectativas dos consumidores e no funcionamento do mercado interno, o tema é especialmente interessante, quer para os juristas quer para os policy makers.

Aliás, um dos primeiros passos na preparação de uma proposta legislativa, no procedimento europeu[7], consiste na avaliação de impacto (“Legislative Impact Assessment”), que considera os efeitos desta prática, antes da intervenção ou a posteriori. Nos fitness check europeus, a Comissão tem de considerar sempre esta dimensão na sua análise da adequabilidade dos diplomas em vigor (se estão “fit for purpose”). A partir destes estudos, casos de gold-plating em transposições anteriores podem acabar por ser incorporados em novas propostas.

Estas questões são importantes quando consideramos as transposições recentes para o ordenamento jurídico português e aquelas que terão de ser realizadas nos próximos dois anos. Entre os diversos casos de gold-plating do DL 84/2021 que poderíamos estudar (desde o conceito abrangente de consumidor à como a “arrojada” responsabilidade dos prestadores de mercados em linha, prevista no art. 44.º), temos de regressar ao período de responsabilidade do profissional.

A Diretiva (UE) 2024/1799 (direito à reparação) prevê, no seu artigo 16.º, uma série de alterações à Diretiva (UE) 2019/771. Entre estas, o art. 16.º-2-a) indica que o exercício do direito de reparação de um bem por falta de conformidade prorroga o período de responsabilidade do profissional, por uma vez, em 12 meses (ou 1 ano). A alínea seguinte permite aos Estados-Membros manter ou introduzir prorrogações adicionais e/ou prazos mais longos. Este artigo e o considerando 40 colocam um desafio interessante ao legislador português, que reflete a importância desta reflexão.

O art. 18.º-4 do DL 84/2021 terá de ser necessariamente alterado. Embora os consumidores portugueses beneficiem atualmente de 3 anos de proteção + 6 meses + 6 meses + 6 meses + 6 meses (ou 3+2 anos), a primeira prorrogação de 6 meses, na sequência da primeira reparação, é incompatível com a nova letra da Diretiva. 

A alteração necessária pode culminar em inúmeros cenários:

  1. Sem qualquer tipo de gold-plating (2+1) – reduz-se o período de proteção “inicial” para 2 anos e estabelece uma única prorrogação de 1 ano com a reparação em caso de falta de conformidade. Os consumidores portugueses perdem efetivamente 2 anos de proteção.
  2. Sem gold-plating na nova medida (3+1) – período de 3 anos mantém-se e passa a ser possível uma única prorrogação de 12 meses. Os consumidores portugueses perdem 1 ano de “garantia”.
  3. Gold-plating (3+1+6m+6m) – mantém-se o período inicial de 3 anos, cumpre-se com 1 ano “extra” relativo à primeira reparação e mantém-se o direito a duas prorrogações adicionais de 6 meses. Mantém-se, no essencial, o nível de proteção pata os consumidores, embora a primeira prorrogação seja mais longa.
  4. Outras variações da hipótese acima, com diferentes valores no número de prorrogações adicionais que podem ser mais/menos longas. Por exemplo, 3+2 ou 3+1+1, 2+2+1, etc..

Uma única medida, que pode parecer tão simples e direta, oferece inúmeras hipóteses de transposição, com resultados radicalmente diferentes para consumidores e operadores económicos, num único Estado-Membro. Este exemplo demonstra a complexidade e a importância deste fenómeno e a necessidade do seu estudo ao nível do Direito do Consumo.


[1] Parte deste texto tem como base o artigo Martim Farinha e Manuel Cabugueira, “Metodologia de Identificação e Análise de Gold-Plating na Transposição de Diretivas Europeias”, e-Publica Vol. 10(3) Dez 2023, e resultou da investigação realizada no âmbito do projeto “LegImpact – A produção legislativa enquanto meio de realização de políticas públicas: análise quantitativa e de impacto socioeconómico”, financiado pela FCT com a bolsa de investigação PTDC/DIR-OUT/32353/2017.

[2] A antecipação da produção de efeitos de normas também é uma forma de gold-plating.

[3] Na versão original, tinha apenas 11 artigos.

[4] Originariamente, tinha 36 artigos.

[5] A perspetiva do Reino Unido, que não reconhecia uma regra geral sobre o caráter abusivo de cláusulas, a perspetiva alemã, a perspetiva francesa e a perspetiva nórdica.

[6] Na Diretiva de 1999/44/CE, estava previsto um prazo mínimo de 2 anos de responsabilidade do profissional (art. 4.º), que foi seguido à letra no Decreto-Lei n.º 67/2003 (art. 5.º), que manteve os 2 anos. No entanto, quanto à inversão do ónus da prova, a Diretiva previa apenas um período de 6 meses após a entrega do bem, enquanto a nossa lei equiparou este período ao da responsabilidade do profissional (2 anos).

[7] E a nível nacional também, nos decretos-lei e propostas do Conselho de Ministros.

Consumidor promitente-comprador (muito) menos protegido

Doutrina

Sem qualquer discussão pública e muito pouca publicidade ou preocupação (mediática), foi publicado recentemente no Diário da República o Decreto-Lei n.º 48/2024, de 25 de julho, que limita as situações em que o direito de retenção prevalece sobre a hipoteca, por via de uma alteração do art. 759.º do Código Civil.

O que é que está, no essencial, em causa?

Imaginemos um casal jovem que pretende comprar uma casa para viver e descobre um apartamento perfeito, num prédio a estrear, quase pronto, por € 250 000. Alguns dias depois, a empresa construtora e o casal celebram um contrato-promessa de compra e venda do imóvel com eficácia obrigacional, pagando este, a título de sinal, € 50 000. O casal passa a habitar o apartamento de imediato, apesar de as obras não estarem ainda totalmente concluídas. Entretanto, o casal está em contacto com várias entidades bancárias para conseguir um bom crédito à habitação para financiar a compra da casa. Fica combinado entre as partes que o contrato definitivo (de compra e venda) será celebrado mais tarde, quando o casal tiver conseguido o financiamento.

Entretanto, uns dias depois, a empresa construtora é declarada insolvente. Não tendo o contrato-promessa eficácia real, o administrador da insolvência poderá recusar o seu cumprimento (v. arts. 102.º e 106.º-1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas – CIRE), não se celebrando o contrato de compra e venda. Este regime é muito duvidoso do ponto de vista do equilíbrio e da justiça da solução, colocando o promitente-comprador a quem foi entregue o imóvel numa situação de tremenda fragilidade (jurídica e não só). Discutível, do ponto de vista da justiça material da solução, é igualmente a regra que não permite ao casal, neste caso, exigir a devolução do sinal em dobro, ou seja, € 100 000 (v. art. 442.º-2 do Código Civil), como crédito sobre a insolvência, nos termos do art. 102.º-3-c) do CIRE. Em qualquer caso, não há dúvida de que terá direito ao sinal em singelo, ou seja, aos € 50 000.

Neste momento, o casal é surpreendido com a notícia de que, sobre o imóvel, estava já constituída uma hipoteca, a favor de uma entidade financiadora da empresa construtora, no valor de € 5 000 000. Este valor é muito superior ao património da construtora, pelo que o casal apenas receberá qualquer valor se for pago antes da entidade financiadora.

Vejamos qual a solução legal consagrada até agora.

Nos termos do art. 755.º-1-f) do Código Civil, goza do direito de retenção “o beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do artigo 442.º”. Apesar de alguma doutrina se manifestar contrária à existência de direito de retenção nos casos em que o administrador de insolvência pode licitamente recusar o cumprimento do contrato-promessa, o Ac. do STJ, de 27/4/2021, concluiu que isso é conciliável com o reconhecimento de um direito de retenção ao promitente-comprador[1]. Concordo com esta decisão, por se tratar da solução mais justa, do ponto de vista material, salvaguardando de forma adequada quer o princípio fundamental do pacta sunt servanda quer o equilíbrio social subjacente ao problema. O crédito do casal goza, portanto, de direito de retenção.

O art. 759.º-1 do Código Civil, na versão anterior, atribuindo relevância prática a este direito de retenção, previa que o titular do direito de retenção tinha o direito “de ser pago com preferência aos demais credores do devedor”, prevalecendo o direito de retenção “sobre a hipoteca, ainda que esta [tivesse] sido registada anteriormente” (n.º 2).

É importante realçar que o Ac. do STJ, de 20/3/2014, já limitara o âmbito deste regime, uniformizando jurisprudência no sentido de que, em contrato-promessa com eficácia obrigacional e tradição da coisa, apenas beneficia do direito de retenção, no âmbito da graduação de créditos em insolvência, o promitente-comprador que possa ser qualificado como consumidor[2]. No Ac. do STJ, de 12/2/2019, foi uniformizada jurisprudência no sentido de que tem a qualidade de consumidor, para este efeito, “o promitente-comprador que destina o imóvel, objeto de traditio, a uso particular, ou seja, não o compra para revenda nem o afeta a uma atividade profissional ou lucrativa”.

Portanto, este regime aplicava-se (apenas) a consumidores, como o jovem casal da nossa história. O seu crédito seria graduado antes do crédito da entidade financiadora da construtora, o que aumentaria a probabilidade de receber o valor devido (ou, pelo menos, uma parte deste valor, se o património do insolvente não fosse suficiente para satisfazer a totalidade).

Vejamos agora qual a solução para o caso à luz do novo regime.

A alteração parece cirúrgica, tendo em conta as poucas palavras utilizadas, mas é muito significativa, retirando, sem lhe mexer, quase toda a relevância prática ao art. 755.º-1-f) do Código Civil.

A parte final do n.º 1 do art. 759.º do Código Civil é alterada, passando a circunscrever-se o direito ao pagamento preferencial, leia-se, antes do credor hipotecário (v. art. 759.º-2) aos “casos em que o crédito assegura o reembolso de despesas para a conservar ou aumentar o seu valor”. Estão em causa, por exemplo, as obras feitas pelo titular do direito de retenção para garantir que a coisa não se deteriora ou que aumenta o seu valor.

Deixa de estar abrangido o crédito do promitente-comprador a quem o imóvel tenha sido entregue e decorrente do incumprimento do contrato-promessa pelo promitente-vendedor (quer este tenha ou não eficácia real). Trata-se de um regime que visa, no essencial, apenas reduzir os direitos dos consumidores, uma vez que esta regra protegia apenas o promitente-comprador que fosse consumidor.

O casal da nossa história terá de abandonar o apartamento e, provavelmente, não irá receber nada, perdendo os € 50 000 do sinal, uma vez que o crédito da entidade financiadora passa a ser graduado antes do seu e dificilmente haverá no património da empresa construtora, que se encontra insolvente, bens suficientes para a satisfação de qualquer outro crédito.

Esta alteração legislativa encontrava-se prevista, segundo o preâmbulo do Decreto-Lei n.º 48/2024, no projeto 18.3 do Plano de Recuperação e Resiliência. Terá sido, assim, imposta pelas instituições europeias. No confronto entre o direito do consumidor que adquiriu uma casa a uma empresa a não perder, além do direito a adquirir e a residir no imóvel, o valor do sinal e o da entidade financiadora, em princípio o banco ou outra instituição de crédito que financiou a construtora, a receber o seu crédito, prefere-se atualmente este último.

A justificação está na circunstância de este ser anterior àquele, ou seja, de a hipoteca ser anterior ao direito de retenção. A solução anterior frustrava as expectativas do credor hipotecário, que era confrontado com uma alteração (relativamente) imprevisível da sua posição, na medida em que o direito de retenção não é passível de registo.

No entanto, do ponto de vista social parecia ser essa a única via aceitável – e legítima, do ponto de vista da justiça. Parece iníquo que o consumidor, provavelmente desconhecendo a existência da hipoteca, ou sequer da existência da possibilidade de não-celebração do contrato de compra e venda, não veja, no mínimo, satisfeito, o direito à devolução do valor pago.

Das duas, uma: (i) ou a alteração deste regime tem uma importância efetiva (e significativa) para a atividade financeira em geral, caso em que é muito preocupante a solução adotada, uma vez que estaremos a falar de muitas situações reais de consumidores que ficam simultaneamente sem o imóvel e sem o dinheiro; (ii) ou a alteração tem escassa relevância efetiva para a atividade financeira em geral e alguns consumidores ficarão prejudicados sem que haja uma vantagem significativa para os credores hipotecários, não sendo aquela justificada. Uma alteração tão significativa deveria ter sido acompanhada, desde o início, ou seja, desde o momento da sua inclusão no Plano de Recuperação e Resiliência, de alguma discussão, justificando-se ainda a adoção simultânea de outras medidas com vista a mitigar os efeitos desta.


[1] O tribunal justifica assim a manutenção do direito de retenção: “(…) tendo em vista a tutela da intensa expetativa do promitente-adquirente, no caso de promessa sinalizada em que tenha havido tradição da coisa, de a vir a adquirir e que se justifica, tanto em caso de incumprimento imputável ao promitente-alienante, como no caso de recusa lícita de cumprimento pelo administrador de insolvência, até porque esta é reflexamente imputável ao incumprimento daquele”.

[2] Note-se que, neste acórdão, o STJ entendeu que a recusa de cumprimento é um ato ilícito e culposo e, como tal, o promitente-comprador consumidor tinha direito à devolução do sinal em dobro (e direito de retenção). Em 2021, o STJ alterou a perspetiva, apontando no sentido de se tratar de um ato lícito, que não confere o direito ao sinal em dobro, mantendo-se, no entanto, o direito de retenção. Esta é, sem dúvida, a solução mais equilibrada, que permite ao consumidor promitente-comprador a quem foi entregue o imóvel receber preferencialmente o valor do sinal que pagou. Esse equilíbrio, como se verá, é totalmente colocado em causa pela alteração legislativa de 2024.