Contratos II, de Carlos Ferreira de Almeida, tem uma nova edição

Recensão

No início deste mês, o Professor Carlos Ferreira de Almeida deixou-nos e com a sua partida ficámos todos mais pobres, não só do ponto de vista do relacionamento pessoal, mas também como juristas, como cidadãos, como pessoas que estudamos a vida e a sociedade.

Poucos dias depois do seu falecimento, foi publicada pela Almedina a 5.ª edição da obra Contratos II, dedicada ao conteúdo do contrato, em geral, e aos contratos de troca, em particular. Esta edição foi finalizada muito recentemente, com prefácio datado de dezembro de 2020. Tem várias novidades muito relevantes, demonstrando como o Professor estava sempre atualizado, sendo inovador e desafiante nos seus escritos. Tal como, aliás, nas conversas que nunca deixava para depois.

Destaco aqui as novas páginas dedicadas à Convenção de Viena (matéria consideravelmente ampliada), às Diretivas 2019/770 (conteúdos e serviços digitais) e 2019/771 (venda de bens de consumo) e às cripto“moedas” (mantendo a grafia utilizada pelo Autor).

A Convenção de Viena de 1980 sobre contratos para a compra e venda internacional de mercadorias, a que Portugal recentemente aderiu, como aqui demos conta, constitui um instrumento legislativo com grande relevância, não apenas pela sua aplicação prática significativa, mas também por se tratar de uma fonte inspiradora de legislação a nível interno e internacional.

O Professor salienta (p. 133) que, “em 2020, Portugal aderiu (finalmente) à Convenção de Viena”, o que revela como esta adesão era desejada há muito, não só pelo Professor, mas por uma parte significativa da doutrina[1].

Em conferência sobre o tema, realizada em novembro na NOVA School of Law, que pode ser vista aqui e aqui, o Professor assinalava como, atualmente, a Convenção se encontrava já algo desatualizada em matéria de formação do contrato, entre outros aspetos não admitindo a proposta ao público e a relevância contratual da publicidade, mas ainda muito moderna no que respeita às regras relativas ao incumprimento, em especial com a adoção do conceito de conformidade.

Relativamente às Diretivas 2019/770 e 2019/771, as referências surgem ao longo da obra, o que revela que não se trata apenas de um acrescento pontual, demonstrando a ponderação relativa ao assunto.

O Professor salienta (p. 81) que “a diferença do campo de aplicação destas duas diretivas faz-se pela natureza do objeto e não pelo tipo contratual, pelo que a Diretiva 2019/770 é aplicável a contratos de compra e venda, de permuta, de empreitada, de prestação de serviço, de licença e de acesso a redes (…), desde que tenham como objeto conteúdos ou serviços digitais fornecidos a consumidores”.

Salienta ainda o Professor (p. 82) que as Diretivas “ampliaram o âmbito da conformidade para além da prestação do objeto principal, mencionando também a embalagem, os acessórios, as instruções de instalação e de funcionamento e as atualizações do produto, que tenham sido estipuladas ou que o consumidor possa razoavelmente esperar, e esclareceram que a conformidade inclui a compatibilidade e a interoperabilidade com o hardware ou o software normalmente usados por bens do mesmo tipo”.

A propósito dos contratos de troca sem preço (pp. 124 e segs.), o Professor assinala que estes reapareceram em operações sofisticadas, entre as quais a troca de conteúdos ou serviços digitais por dados pessoais.

Em sede de subtipos da compra e venda, salienta o Professor (p. 134) que “o contrato de compra e venda pode ter por efeito a transmissão da generalidade dos direitos, designadamente (…) direitos sobre conteúdos digitais, relativos, por exemplo, a um programa informático ou a outro software ou incorporados em suporte físico, desde que haja transmissão do direito para o adquirente, por direito ao uso exclusivo sem limite de tempo ou à entrega do suporte”.

Já em sede de contratos de troca para o uso de coisa incorpórea, é aberto um ponto relativo a “licença de bens informáticos”, salientando o Professor (pp. 222 e 223) que “os contratos que conferem o direito ao uso de programas de computador, de bases de dados e de outros conteúdos digitais protegidos por exclusividade formam assim mais uma modalidade de contratos de licença de coisa incorpórea”, aplicando-se a Diretiva 2019/770 se o licenciado for um consumidor.

Nos contratos de troca para acesso, há um ponto relativo a “acesso a redes”, podendo este (p. 230) “ser genérico ou referir-se especificamente a determinadas redes”, como “às chamadas redes sociais ou a determinadas plataformas digitais incluindo as que dão acesso a reuniões, presenciais ou não”.

Ainda no âmbito dos contratos de troca para acesso, temos os contratos de acesso a conteúdos. Segundo o Professor (p. 232), “se o objeto for um bem protegido pelo direito de autor ou por outros direitos subjetivos de exclusivo, estarão preenchidos os elementos caraterísticos de um contrato de licença, desde que o utilizador tenha o direito de fixação através de impressão ou de download (…). Se faltar esta faculdade compreendida no direito de autor, como sucede no streaming, ou se o objeto for um bem desprovido de proteção pelo direito de autor, as prestações, calculadas geralmente por unidade de tempo, terão como fonte contratos de acesso a conteúdos, celebrados entre o titular do sítio e cada um dos acedentes, que são portanto contratos diferentes dos eventuais contratos de acesso ao meio, celebrados com o gestor da rede (telefone, internet) onde os sítios estão instalados”.

Nestes últimos casos, aplica-se a Diretiva 2019/770 se o acedente puder ser qualificado como consumidor.

É interessante também referir que, segundo o Professor (p. 137), as expressões “fornecimento de bens” e “contratos de fornecimento” “são usadas na linguagem jurídica e na linguagem comum como designação genérica, quando se pretende evitar uma qualificação precisa ou referir um conjunto de contratos transmissivos de diferente natureza”. É precisamente o que sucede na Diretiva 2019/770, como aliás é salientado na obra.

Sobre criptomoedas (pp. 67 e 68), o Professor considera que não são dinheiro, alertando para um “limbo de a-legalidade”, que parece “fruto de excessiva neutralidade e tolerância”. Chama ainda a atenção para a circunstância de a sua criação e circulação ser “privada e descentralizada, com os inerentes riscos de volatilidade, iliquidez, especulação, fraude e disponibilidade para lavagem de dinheiro”.

Em comentário a um texto meu em que refiro que “as criptomoedas constituem um meio de pagamento, pelo que, se as partes estipularem nesse sentido, devem ser consideradas, para este efeito, como qualquer outra moeda, como contraprestação, qualificável como preço”[2], defende o Professor que, “não sendo dinheiro, o contrato lícito em que as cripto“moedas” sejam aceites em troca de outro objeto tem a natureza de permuta”.

Estas são apenas algumas das novidades que gostaríamos de destacar relativamente a esta nova edição, mas há muitas outras, como as alterações relativas ao estatuto dos animais, ao financiamento colaborativo e aos contratos de alienação de empresa e com juro negativo.

A obra Contratos, composta por seis volumes, entre os quais este Vol. II, é, na minha opinião, uma das melhores obras escritas em Portugal no domínio do Direito: completa, rigorosa, bem escrita, clara, atualizada, desafiante. Imperdível para estudantes e profissionais do Direito.

[1] V., por todos, Joana Farrajota, “Why hasn’t Portugal adopted the convention on contracts for the international sale of goods?”, in Themis – Revista da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, n.º 34, 2018, pp. 119-127.

[2]Desafios do Mercado Digital para o Direito do Consumo”, in Direito do Consumo 2015-2017, Centro de Estudos Judiciários, Lisboa, 2018, pp. 109-123, p. 111.

O início do(s) Caso(s) TikTok? – Cláusulas Contratuais Gerais, Bens Virtuais e Copyright

Doutrina

A Organização Europeia do Consumidor BEUC apresentou uma queixa à Comissão Europeia e à rede de autoridades de defesa do consumidor contra o TikTok, na passada terça-feira, dia 16 de Fevereiro, por várias violações de Direito do Consumo, nomeadamente quanto a cláusulas contratuais abusivas e práticas comerciais desleais. Para além da BEUC, em mais 15 Estados[1], associações de defesa dos direitos dos consumidores também apresentaram queixas às autoridades e entidades reguladoras, de forma coordenada, contra o TikTok – e não, Portugal (ainda?) não se encontra nesta lista.

O TikTok, da chinesa ByteDance, começou em 2016 como uma app que procurava inovar no modelo do Vinee do Musical.ly e tornar-se numa rede social de partilha de vídeos curtos dos utilizadores, em diferentes temáticas e interesses, com enfâse na reprodução de músicas atuais e áudio de cenas de filmes e séries populares – adquirindo para este propósito licenças junto dos right holders. Com a aquisição do Musical.ly no final de 2017 e a fusão de ambas as apps em Agosto de 2018, o TikTok conseguiu sair da bolha do mercado chinês e penetrar no mercado americano (e, por conseguinte, mundial), convertendo-se rapidamente numa das mais populares plataformas em todo o mundo, entre as várias faixas etárias – com uma estimativa de mais de 1,1 mil milhões de utilizadores mensais.

Com a extraordinária popularidade, também vieram controvérsias – desde de a app ser banida na India; executive orders do ex-presidente dos Estados Unidos para bloquear a app devido a receios de espionagem e partilha de dados pessoais com o Governo Chinês, procurando assim forçar a sua venda a uma multinacional americana; ser forçada a bloquear todos os utilizadores italianos e realizar um controlo apertado da sua idade, para a sua readmissão (devido à morte de uma menor de 13 anos); e claro, alegações relativas a invasão de privacidade e tratamento ilícito dos dados dos utilizadores, incluindo a utilização de tecnologia de reconhecimento facial, por autoridades de proteção de dados europeias.

Estas novas queixas da BEUC e das associações de proteção de consumidores vêm abrir um novo capítulo, uma nova frente de combate aos abusos do TikTok (e outras multinacionais que utilizem as mesmas técnicas), centrando as queixas no Direito do Consumo, nomeadamente quanto a práticas comerciais desleais, cláusulas contratuais gerais abusivas e falta de transparência no tratamento de dados pessoais e publicidade.

As práticas sob escrutínio incluem:

  • Publicidade oculta e enganosa, seja colocada pelo TikTok, seja pela utilização de funcionalidades que permitem que marcas usem influencers para campanhas de marketing agressivas junto dos seus fãs – especialmente direcionada a crianças e outras pessoas vulneráveis;
  • Falta de transparência nas obrigações de informação aos titulares de dados pessoais, possível ausência de base de licitude do tratamento, reutilização de dados para finalidades incompatíveis, (…) diversas possíveis violações do Regulamento Geral de Proteção de Dados.

Em paralelo com a abertura deste tema, é de destacar também o recém publicado relatório do Parlamento Europeu sobre a necessidade de “atualizar” a Diretiva das Cláusulas Contratuais Abusivas (93/13/CEE), para os serviços digitais. Este relatório aborda, entre vários temas, as cláusulas predatórias sobre o copyright do user-generated content, como a referida acima do TikTok.

É possível que estas queixas das associações de defesa dos consumidores se convertam no futuro em processos judiciais, sejam movidos pelas entidades reguladores ou como ações coletivas de indeminização dos consumidores – e que, quem sabe, cheguem ao Tribunal de Justiça, de forma a conseguir uma atualização jurisprudencial, uniforme na União Europeia, da aplicabilidade das Diretivas sobre Cláusulas Contratuais Abusivas e Práticas Comerciais Desleais a este tipo de práticas e modelos de negócio.

 

[1] Os Estados em questão: Bélgica, Chipre, República Checa, Dinamarca, França, Alemanha, Grécia, Itália, Países Baixos, Noruega, Eslováquia, Eslovênia, Suécia, Espanha e Suíça.

[2] No contexto de redes socias, este modelo de negócio aparenta ser inspirado no sistema de awards do Reddit, em que os utilizadores premeiam as publicações que gostam mais, dando-lhes maior visibilidade e notoriedade a terceiros, pelo algoritmo.

Cláusulas contratuais gerais e conceito amplo de informação – A propósito do Ac. do TRL, de 28/1/2021

Jurisprudência

Nas relações de consumo, o consumidor encontra-se, na maioria das vezes, numa posição desfavorecida face ao profissional, já que não tem oportunidade para negociar os termos do contrato, limitando-se a aceitar ou recusar a proposta. Por exemplo, quando compramos algo numa loja de uma grande superfície, ou aceitamos o preço que aí está exposto, ou simplesmente não compramos esse artigo. O mesmo sucede nos contratos de seguro: ou aceitamos o formulário, concordando com as condições, ou não fechamos negócio.

E quantas vezes não observamos, neste contexto, as chamadas “letras pequeninas”, ou, nos anúncios publicitários, aquela voz que aparece, no final, à velocidade da luz? Ou seja, aquelas informações importantes que, como na maioria das vezes são desvantajosas e podem desvirtuar o negócio se o consumidor a elas prestar muita atenção, vêm dissimuladas algures no contrato, seja num tamanho de letra mais pequeno, seja em secções cujo nome aponta para a irrelevância.

Nos termos do artigo 1.º do DL 446/85 de 25 de outubro (vulgo, Lei das Cláusulas Contratuais Gerais e, doravante, “LCCG”)[1], às cláusulas elaboradas sem prévia negociação individual, que o preponente se limita a subscrever ou aceitar, chamamos cláusulas contratuais gerais e aplicamos as regras constantes desse diploma. Nomeadamente, e para evitar estas situações em que o o aderente se vincula a certas obrigações contratuais, sem delas ter pleno conhecimento, os artigos 5.º e 6.º da LCCG impõem deveres de informação e de comunicação ao contraente mais forte. Note-se que o diploma se aplica quer a relações de consumo, quer a relações entre profissionais.

Mas, em que se materializam estes deveres? Será que basta, literalmente, informar e comunicar as cláusulas à contraparte?

Ora, é precisamente sobre a concretização destes deveres de informação e de comunicação que se debruça o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 28 de janeiro de 2021.

No caso em foco, foi movida uma ação declarativa por A (empresa de trabalho temporário), contra B (companhia de seguros), com o objetivo de ser declarada a inexistência do direito ao pagamento da cláusula de ajustamento do prémio, no âmbito de um contrato de seguro, com fundamento na violação dos deveres de informação e comunicação impostos pelos artigos 5.º e 6.º da LCCG.

Para o efeito, alegou a Autora que nunca tomou efetivo conhecimento da referida alteração contratual, que foi comunicada através de uma ata, sendo que a cláusula problemática constava de uma pequena rúbrica denominada “Outras Declarações”.

Já a Ré, defendeu-se invocando o facto de o representante legal da Autora ser empresário de profissão, motivo pelo qual estaria familiarizado com os termos utilizados e o tipo de contrato em causa. Logo, tendo sido a alteração comunicada atempadamente, por escrito, e em língua portuguesa, havia cumprido cabalmente com os seus deveres.

Em sede de primeira instância, o Tribunal julgou a ação improcedente, dando, assim, razão aos argumentos da Ré. Porém, inconformada, a Autora interpôs recurso para o Tribunal da Relação, no essencial, com os mesmos argumentos.

O Tribunal da Relação começa por esclarecer, que, não tendo a Ré logrado provar que as referidas cláusulas haviam sido negociadas, se aplica o regime da LCCG, estando adstrita aos deveres de informação e comunicação aí contidos.

Mas, no cumprimento destes deveres, diz este Acórdão que “não importa atender ao nível subjetivo, a um estado psicológico das partes, mas a um parâmetro objetivo”. Desta forma, contrariamente ao alegado pela Ré, não é relevante qual a profissão do representante legal da Autora, nem se está, ou não, familiarizado com os termos técnicos.

Assim, enquanto barómetro na apreciação do cumprimento destes deveres deve ser utilizado um outro “standard valorativo”: o padrão de razoabilidade, tal como expresso no artigo 6.º-2 da LCCG. Este será tanto mais elevado quanto mais nocivos forem as consequências da disparidade de poder para as partes.

Aliás, o princípio da razoabilidade tem ganho força no plano do direito europeu, estando, de certo modo, a ocupar o lugar da tradicional boa-fé em muitas situações. Segundo este aresto, “a razoabilidade representaria critério de valoração dos comportamentos levados a cabo pelas partes a fim de individualizar certas responsabilidades e distinguir-se-ia da boa fé porquanto inidónea a fundar novas obrigações a cargo dos sujeitos da relação obrigacional”.

É então referido que, à luz do princípio da razoabilidade, e na esteira de Paulo Lôbo,a informação deve preencher três requisitos: (i) adequação – deve ser transmitida por meios eficientes e com conteúdo adequado; (ii) suficiência – a informação deve ser suficiente e completa; (iii) veracidade – a informação deve revelar as reais componentes das cláusulas.

Com especial relevância, é ainda assinalada a existência de um conceito amplo de informar, que engloba não só o dever de informação strictu sensu (mera comunicação à contraparte do essencial do negócio), mas também o dever de conselho (orientação das melhores condutas a adotar) e o dever de advertência.

Neste caso, o dever de informação strictu sensu estava, sem dúvida, cumprido – a alteração foi comunicada por escrito, e em língua portuguesa – e não parece haver dever de conselho. Porém, considera o Tribunal que não foi cumprido o dever de advertência que é imposto a cláusulas de especial importância, como é o caso do valor dos prémios de seguro anualmente arrecadado, especialmente quando é alterada uma relação contratual com mais de 10 anos de duração.

Isto posto, e tendo o Tribunal da Relação concluído pelo incumprimento do dever de informação (na aceção ampla do conceito de informar), aplica-se ao caso o artigo 8º da LCCG, que impõe, em consequência, que a cláusula se tenha por excluída do contrato.

Concluindo, e sintetizando, este Acórdão vem, a meu ver, realçar dois aspetos muito significativos: a importância das regras de proteção dos contraentes mais fracos no plano nacional e europeu[2], e a necessidade de adotar um conceito amplo no que toca ao dever de informar. De facto, não se pode aceitar que cumprir os requisitos formais, remetendo a informação sem mais, dissimulando informações relevantes pelos meios já referidos, corresponda ao cumprimento de um dever que foi equacionado, em primeira linha, para proteger o contraente que já se encontra numa posição mais fragilizada, sob pena de frustrar totalmente a ratio legis destas normas.

[1] Resultou da transposição da Diretiva nº 93/11/CEE do Conselho, de 5 de abril de 1993

[2] A nível europeu – o Draft Common Frame of Reference, esboço para um futuro Código Europeu dos Contratos, no artigo 9:402 do Livro II estabelece, precisamente, o dever de informação e comunicação; e a nível nacional, no caso concreto dos contratos de seguro, o artigo 22º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro constante no Decreto-Lei 72/08 de 16 de abril, impõe um especial dever de esclarecimento; e de forma mais geral, vide a Lei das Cláusulas Contratuais Gerais.

O quadro atual do superendividamento dos consumidores no Brasil

Legislação

Por Claudia Lima Marques, Professora Titular da UFRGS, Porto Alegre, Brasil

 

A sociedade brasileira tem testemunhado o crescimento do fenômeno do superendividamento, aqui compreendido como a impossibilidade global de o devedor pessoa física, de boa-fé, pagar todas suas dívidas atuais e futuras sem prejudicar o mínimo existencial (Art. 54-A, §° do Projeto de Lei-PL 3515/2015 de Atualização do Código de Defesa do Consumidor). Segundo dados da Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic), elaborada pela Confederação Nacional do Comércio, em janeiro de 2021, 66,5% das famílias entrevistadas encontravam-se endividadas, sendo que a inadimplência é 25,2% e em 79,4% das famílias o motivo das dívidas era o cartão de crédito. Para as famílias que recebem até 10 salários mínimos mensais, o percentual de famílias endividadas aumenta para 67,7% no Brasil. (PEIC | Índices | Pesquisas | FecomercioSP).

Desde 2015, tramita na Câmara de Deputados o Projeto de Lei 3515, aprovado por unanimidade no Senado Federal, dispondo sobre o “aperfeiçoamento da disciplina do crédito ao consumidor e a prevenção e o tratamento do superendividamento”. O projeto propõe o estabelecimento de um plano de pagamento das dívidas, com medidas de dilação de prazos e redução dos encargos, que permita garantir o pagamento dos credores sem sacrifício do mínimo existencial do consumidor pessoa natural (art. 104-A). O plano advém de uma conciliação em bloco e extrajudicial com os credores (Art. 104-A e Art. 104-C), e se não exitosa, um plano compulsório será determinado pelo juiz (Art. 104-B). Além disso, o Projeto dispõe sobre a prevenção do superendividamento dos consumidores ao estabelecer limites à publicidade de crédito, proibir práticas comerciais e o assédio de consumo, em especial a consumidores idosos, crianças e analfabetos, expandindo a lista de práticas e cláusulas abusivas (Art. 54-A a G) do Código de Defesa do Consumidor. A proposta foi objeto de amplo debate, seja no âmbito da sociedade civil, na época da redação do anteprojeto que lhe deu origem, seja no Senado Federal e na Câmara dos Deputados, cujas comissões encarregadas da análise de seu texto realizaram diversas audiências públicas e apresentaram pareceres dos respectivos relatores que aperfeiçoaram o seu texto. Em junho de 2019, o PL passou a ser debatido por uma Comissão Especial, apontando, assim, para um progresso promissor na aprovação do projeto.

Em 2020, em virtude da pandemia mundial da Covid-19 e seus desdobramentos econômicos e sociais, uma resposta ao quadro brasileiro de superendividamento se tornou urgente. No mesmo período, foi aprovado o pedido de urgência na tramitação do PL 3515, o qual, contudo, continua em pauta para votação. Em dezembro, apesar de pautado não houve tempo para seu exame e agora em fevereiro, a liderança da Câmara espera poder votá-lo no plenário. Esperamos que seja em breve, antes do CDC completar 30 anos de vigência em março de 2021!

A aprovação do PL 3515/2015, em meio à crise da COVID-19, implementaria uma disciplina específica para o crédito responsável e o tratamento do superendividamento, a partir de uma nova sistemática de renegociação de dívidas – a conciliação em bloco -, aproximando o direito brasileiro do standard internacional. O PL 3515/2015 não prevê o perdão de dívidas, mas cria pela primeira vez no Brasil, um direito de arrependimento do crédito consignado por 7 dias. Esperamos para breve aprovação!

A responsabilidade das plataformas digitais pela segurança dos consumidores – A propósito do Ac. do STJ, de 10/12/2020

Jurisprudência

Numa realidade em que a pegada digital de cada consumidor se tornou maior do que a sua pegada física, é no reino das plataformas que o consumidor se vê, de forma evidente, mais fragilizado.

Certo é que a corrida entre o direito e as tecnologias está desequilibrada desde o momento da partida. Todavia, há que notar que cada vez mais são feitos esforços para fornecer ao consumidor a rede de proteção que lhe é devida, tanto a nível legislativo, como jurisprudencial.

Por ora, em Portugal, a responsabilidade das plataformas vem regulada pelo Decreto-Lei n.º 7/2004, de 7 de janeiro, que transpôs para o direito interno a Diretiva 2000/31/CE.

Apesar de navegar nas redes sociais ser talvez o hobbie mais generalizado dos consumidores, as plataformas são, em regra, qualificadas enquanto meros prestadores intermediários de serviços, o que resulta na sua generalizada desresponsabilização.

Todavia, apesar de não estarem sujeitos a uma obrigação geral de vigilância sobre as informações que transmitem ou armazenam, ou a uma obrigação de investigação de eventuais ilícitos praticados no seu âmbito, os prestadores intermediários de serviços não estão isentos de deveres, sendo estes, por exemplo, o de informar as autoridades competentes sobre as atividades ilícitas que se desenvolvam por via dos serviços que prestam, o de satisfazer os pedidos de identificar os destinatários dos serviços com quem tenham acordos de armazenagem, o de cumprir prontamente as determinações destinadas a prevenir ou pôr termo a uma infração, bem como o de fornecer listas de titulares de sítios que alberguem, quando lhes for pedido.

Mas o que são afinal os prestadores intermediários de serviços em rede? De acordo com o disposto no art. 4.º-5 do diploma que regula o comércio eletrónico, serão prestadores intermediários de serviços em rede os que “prestam serviços técnicos para o acesso, disponibilização e utilização de informações ou serviços em linha, independentes da geração da própria informação ou serviço”. Nesta definição cabem então o Facebook, a Booking, o Instagram, o TikTok e muitos outros gigantes que dominam o mercado.

Enquanto entidades dominantes do oligopólio gerado em volta da atenção do consumidor, não estarão estas plataformas em posição de assumir uma maior responsabilidade pela segurança dos seus consumidores? Afinal, apesar de não serem elas as responsáveis pelos conteúdos partilhados, a verdade é que é devido à sua existência que o discurso de ódio tem um palco acessível a qualquer interessado, ou que qualquer um se pode tornar num revendedor de produtos falsificados sem comprometer a sua identidade.

O diploma português que regula o comércio eletrónico prevê três modalidades de serviços em rede: o simples transporte (art.º 13), a armazenagem intermediária (art.º 14) e a armazenagem principal (art.º 15). O véu da responsabilidade é mais denso nas últimas duas modalidades do que na primeira.

De facto, muito se tem escrito sobre os prestadores intermediários de serviços em rede, mas em termos nacionais, foi apenas a 10 de dezembro de 2020 que foi esboçada uma definição jurisprudencial para tal figura ambígua. Assim, e de acordo com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 10/12/2020, no âmbito do Processo n.º 44/18.6YHLSB.L1.S2, que teve como relator Ferreira Lopes, os prestadores intermediários de serviços em rede são, de facto “as pessoas, singulares ou coletivas, que intervindo de forma autónoma, permanente e organizada, criam e disponibilizam os meios técnicos para que um determinado conteúdo circule na internet”.

Neste Acórdão, o Supremo Tribunal de Justiça veio desresponsabilizar uma sociedade de direito espanhol (a Ré), pelo uso, no seu sítio na internet, dos sinais distintivos de que a Autora é titular, sem as devidas autorizações necessárias para efeitos legais.

Uma vez que a Recorrente se dedica à “criação e desenvolvimento, alojamento, assessoria, gestão e exploração de páginas web, plataformas de formação e páginas de venda online e gestão de cobrança e pagamentos por conta dos seus clientes”, prestando serviços de intermediação, e não sendo responsável pelos conteúdos colocados nos endereços eletrónicos que detém, o Tribunal decidiu que a mesma deve ser classificada enquanto prestadora intermediária de serviços em rede, dado que “os serviços que presta são de ordem meramente técnica, (…) sem qualquer intervenção nos conteúdos da informação ou serviço, que eram da exclusiva responsabilidade do cliente”.

Assim, apesar de ser titular do site a partir do qual foi violado o direito da Autora, o Tribunal deliberou que a mesma não será responsável pelos conteúdos aí disponibilizados, o que só sucederia, à luz do princípio do art. 12.º, se de alguma forma participasse ou tivesse interferência sobre o conteúdo da informação transmitida ou armazenada. Ademais, nos termos do art. 16.º do diploma sob análise, a “Recorrente só seria responsável se soubesse ou devesse ter conhecimento da ilicitude da atividade ou informação, ou que a ilicitude fosse manifesta”, o que, na opinião do Tribunal a quo, não sucedeu.

Desta forma, regista-se mais uma decisão que propugna pela desresponsabilização das plataformas, ainda que neste caso, o alvo da decisão, não tenha sido um consumidor.

Impressiona, contudo, que o Tribunal não tenha analisado, para resolução desta questão, o que já muito foi discutido a nível europeu e, nomeadamente, pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE).

A nível europeu, e conforme descrito supra, vigora a Diretiva 2000/31/CE, que naturalmente consagra o mesmo sistema de desresponsabilização que o diploma português que a transpõe.

Releva, para estes efeitos, o Processo C‑324/09 (L’Oréal v. eBay), que esclarece a definição do conceito de “ter conhecimento”, consagrado no art. 14.º-1 da Diretiva (e no 16.º-1 do Decreto-Lei 7/2004).

No fundo, o TJUE considera que, quando o prestador de serviços em rede, em vez de se limitar a uma prestação neutra, através de um processamento puramente técnico e automático dos dados fornecidos pelos seus clientes, desempenha um papel ativo suscetível de lhe facultar um conhecimento ou um controlo destes dados, não deverá ser considerado enquanto prestador intermediário e beneficiar da isenção de responsabilidade, nos termos previstos na legislação que aborda o comércio eletrónico. Ademais, é suficiente para levantar este véu de irresponsabilidade que tal operador tenha tido conhecimento de factos ou de circunstâncias com base nos quais um operador económico diligente devesse constatar a ilicitude em causa. Para estes efeitos, o TJUE esclarece que o “conhecimento”, neste caso deve ser interpretado no sentido de que se refere a qualquer situação na qual “o prestador em causa toma conhecimento, por qualquer forma, desses factos ou circunstâncias, abarcando as situações em que o operador de um sítio de comércio eletrónico toma conhecimento da existência de uma atividade ou de uma informação ilegais na sequência de um exame efetuado por sua própria iniciativa, e em que a existência dessa atividade ou dessa informação lhe é notificada”. Neste segundo caso, se é verdade que uma notificação não pode automaticamente retirar o direito à isenção de responsabilidade sob análise, podendo as notificações revelar-se insuficientemente precisas e demonstradas, não é menos certo que constitui, regra geral, um elemento que o juiz nacional deve levar em conta para apreciar, tendo em consideração as informações transmitidas ao operador, a realidade do conhecimento por este dos factos ou das circunstâncias com base nos quais um operador económico diligente devesse constatar a ilicitude.

Por outro lado, há que referir que o considerando 42 da Diretiva 2000/31/CE esclarece que as situações de exoneração de responsabilidade abrangem exclusivamente os casos em que a atividade da sociedade da informação exercida pelo prestador de serviços reveste carácter “puramente técnico, automático e de natureza passiva”, o que implica que o referido prestador de serviços “não tem conhecimento da informação transmitida ou armazenada, nem o controlo desta”.

Neste contexto o TJUE defendeu, no âmbito dos processos apensos C‑236/08 a C‑238/08 (Google France v. Louis Vuitton) que, a fim de verificar se a responsabilidade do prestador de serviços da sociedade de informação poderia ser limitada, “deve examinar‑se se o papel desempenhado pelo referido prestador é neutro, ou seja, se o seu comportamento é puramente técnico, automático e passivo, implicando o desconhecimento ou a falta de controlo dos dados que armazena”.

Sem prejuízo destas conclusões jurisprudenciais, a Comissão Europeia, na sua Comunicação da Comissão sobre a Economia Colaborativa, avança que a isenção de responsabilidade sob análise permanece limitada à prestação de serviços de armazenagem e não se estende a outros serviços ou atividades realizadas pelas plataformas. Tal isenção não exclui, nomeadamente, a responsabilidade decorrente da legislação de proteção de dados pessoais, no que diz respeito às atividades da própria plataforma.

Acresce que o simples facto de uma plataforma também realizar outras atividades – além de fornecer serviços de armazenagem – não significa necessariamente que essa plataforma já não possa contar com a isenção de responsabilidade relativamente aos seus serviços de armazenagem. Em qualquer caso, a forma como as plataformas concebem o seu serviço da sociedade da informação e implementam medidas voluntárias para combater conteúdos ilegais em linha continua a ser, em princípio, uma decisão empresarial e a questão de saber se beneficiam da isenção de responsabilidade intermédia deve ser sempre avaliada caso a caso.

Em termos conclusivos, é possível assumir que tanto a Diretiva 2000/31/CE como o Decreto-Lei 7/2004 estão largamente desatualizados em relação à realidade em que vivemos. Estes instrumentos foram pensados e construídos numa época em que o Tik Tok ainda não dominava os dias de grande maioria dos menores de idade ou em que ter uma página de Facebook ou Instagram não era requisito essencial para construir uma amizade.

Neste contexto, tem grande relevo o Digital Services Act, uma iniciativa recente da Comissão Europeia, já analisada por nós em posts anteriores: aqui, aqui e aqui.

Chocolate: Exploração de Cacau?

Doutrina

Álvaro de Campos foi bem perentório no poema Tabacaria: “olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates”. Se ele soubesse como é que têm sido feitos.

A International Rights Advocates moveu, pela primeira vez num tribunal dos Estados Unidos, uma ação em Washington DC contra as gigantes do cacau: Nestlé, Cargill, Barry Callebaut, Mars, Olam, Hershey e Mondelēz encontram-se entre os réus. Em causa está uma acusação por sujeição a trabalho escravo de oito (então) crianças originárias do Mali, por terem sido forçadas a trabalhar nas plantações de cacau da Costa do Marfim sem remuneração, sem documentos legais e sem conhecimento do lugar onde se encontravam efetivamente.

Consumidores assíduos de pelo menos uma destas marcas de chocolate poderão deslocar-se ao frigorífico e verificar que, no rótulo, existem as indicações “placer responsable” e “cocoa plan: mejora la vida de los agricultores y la calidad de sus productos”.

Isto não se inventa. Em 2001, em resultado do Protocolo Harkin-Engel, as empresas haviam prometido eliminar gradualmente o trabalho infantil até 2005. Parece que o novo prazo é agora 2025.

Questionadas sobre o problema, as empresas citadas que se dignaram a fazer um comentário sobre o processo convocaram as suas políticas de tolerância zero face à violação de direitos humanos nas suas cadeias de abastecimento. Vinte e quatro anos para tomar medidas efetivas para combater o problema não é uma política de tolerância zero, é uma política de tolerância escandalosamente inadmissível.

Entre as principais alegações do processo encontra-se o velho problema da terceirização: as empresas citadas não são proprietárias das fazendas do cacau em discussão. De seguida vão afirmar que nem sequer tinham um vínculo com o trabalhador.

Olhem o que vos digo: isto só lá vai com o direito do consumo. Que bom é ser consumidor, o maior juiz de todos os tempos.

Cláusulas abusivas, sanções contraordenacionais e transposição da Diretiva (UE) 2019/2161

Legislação

O ano de 2021 será um ano muito exigente para o legislador nacional em matéria de direito do consumo, sendo necessário transpor até 1 de julho de 2021 a Diretiva (UE) 2019/770 (conteúdos e serviços digitais) e a Diretiva (UE) 2019/771 (venda de bens de consumo) e até 28 de novembro de 2021 a Diretiva (UE) 2019/2161 (modernização das regras da União em matéria de defesa dos consumidores).

É precisamente sobre esta última que falamos hoje, em particular sobre uma norma que esta introduz na Diretiva 93/13/CEE (cláusulas abusivas).

Trata-se do novo art. 8.º-B, que impõe aos Estados-Membros que estabeleçam sanções efetivas, proporcionadas e dissuasivas em caso de violação das disposições do diploma.

Concluiu-se que a consequência da nulidade das cláusulas, prevista no direito português (art. 12.º do DL 446/85), em linha com o art. 6.º-1 da Diretiva 93/13/CEE (“não vinculem o consumidor”), não é suficiente para dissuadir os profissionais de recorrer a cláusulas abusivas.

Apesar de não se referir expressamente a aplicação de coimas, o cumprimento do art. 8.º-B pressupõe, na lógica do sistema português, a previsão de sanções contraordenacionais em caso de violação do regime das cláusulas contratuais gerais.

Com a transposição da Diretiva (EU) 2019/2161 passará, assim, a estar prevista uma sanção contraordenacional, em certas situações, se for incluída num contrato uma cláusula abusiva.

Que situações são essas?

Segundo o art. 8.º-B-2 da Diretiva 93/13/CEE, na versão de 2019, as situações em que terá de estar prevista a aplicação de sanções contraordenacionais são, no mínimo, aquelas em que as cláusulas contratuais:

  • sejam expressamente definidas como abusivas segundo o direito nacional; ou
  • em que o profissional continue a recorrer a cláusulas contratuais que tenham sido consideradas abusivas numa decisão definitiva adotada numa ação inibitória.

O primeiro ponto parece remeter para as listas de cláusulas consideradas abusivas nos termos do diploma, excluindo apenas as cláusulas abusivas segundo a cláusula geral. Incluirá também seguramente os casos em que o profissional continue a utilizar uma cláusula que já tenha sido considerada abusiva por decisão administrativa ou judicial.

O procedimento poderá ser administrativo ou judicial, admitindo-se que as autoridades administrativas possam decidir sobre o caráter abusivo das cláusulas contratuais (considerando 14 da Diretiva (EU) 2019/2161). Esta possibilidade é muito interessante, uma vez que permite uma ação eficaz e setorial com vista à prevenção e repressão da utilização de cláusulas abusivas. Deveria prever-se esta possibilidade em Portugal, permitindo, naturalmente, o controlo posterior da decisão administrativa pelos tribunais. Assim, a entidade fiscalizadora ou reguladora poderá analisar os clausulados contratuais, decidir que cláusulas são abusivas e aplicar sanções contraordenacionais.

Este controlo pode ser uma via de esperança para o efetivo cumprimento das normas aplicáveis.

Se se tratar de uma infração generalizada (que afete pelo menos os interesses dos consumidores de três Estados-Membros) ou de uma infração generalizada ao nível da União (que afete pelo menos os interesses de dois terços dos Estados-Membros, que correspondam a dois terços dos consumidores da União), sendo aplicável o art. 21.º do Regulamento (UE) 2017/2394 (cooperação entre as autoridades nacionais responsáveis pela aplicação da legislação de proteção dos consumidores), as sanções previstas a nível nacional devem prever “a possibilidade de aplicar coimas por meio de procedimentos administrativos ou de intentar uma ação judicial para aplicação de coimas, ou ambas, sendo o montante máximo dessas coimas de, pelo menos, 4% do volume de negócios anual do profissional no(s) Estado(s)-Membro(s) em causa” (art. 8.º-B-4 da Diretiva 93/13/CEE, na versão de 2019).

Um montante máximo tão elevado deverá passar a estar consagrado no direito português, embora esta imposição se limite às infrações generalizadas e às infrações generalizadas ao nível da União. Nos restantes casos, têm de estar previstas sanções contraordenacionais, mas o montante máximo pode ser mais baixo, desde que a sanção em causa seja efetiva, proporcionada e dissuasora da inserção de cláusulas abusivas em contratos singulares.

Em qualquer caso, como refere aqui Mateja Durovic (pp. 74-75), as normas europeias encorajam os Estados-Membros a prever coimas de montante elevado também a infrações que não se enquadrem naquelas categorias, ou seja, que afetem apenas consumidores de um ou dois Estados-Membros.

O grande objetivo é evitar que, para um profissional, seja melhor arriscar a previsão de uma cláusula abusiva, sendo mais benéfico para si as vantagens que daí retira do que as desvantagens associadas às sanções aplicáveis.

Responsabilidade na Internet: o Ato dos Serviços Digitais garante a liberdade de expressão?

Legislação

Por Nuno Sousa e Silva

www.nsousaesilva.pt

 

Este texto apresenta uma breve reflexão sobre o regime de responsabilidade dos prestadores de serviços da sociedade da informação na proposta de Regulamento “Ato dos Serviços Digitais” (doravante “Proposta”). Para uma panorâmica da Proposta veja-se aqui, e, especificamente sobre a regulação das grandes plataformas, aqui.

A Diretiva do comércio eletrónico (transposta em Portugal pelo DL 7/2004, de 7 de Janeiro) tem mais de 20 anos, o que, tendo em conta a dinâmica da Internet equivalerá a mais de um século de existência. Quando esta Diretiva foi aprovada não conhecíamos o Facebook, o Youtube, o Whatsapp, o Flickr ou o Uber, e a Netflix e a HBO ainda não ofereciam serviços de streaming. A Internet teve uma evolução mais rápida que a cidade de Xangai, onde antes existiam barracas e descampados estão agora arranha-céus. Não obstante, a Diretiva foi um sucesso. Os seus princípios aguentaram bem o teste do tempo e as transformações que este trouxe. Apesar disso, há um consenso quanto à necessidade de atualizar o quadro normativo aplicável. A vida contemporânea depende mais intensamente da Internet e o ciberespaço mudou muito.

Os Estados-Membros foram adaptando as suas regras, procurando responder a alguns destes desafios, o que, naturalmente, levou a uma certa fragmentação das regras, indesejável do ponto de vista do mercado único.[1] Nessa linha, a forma mais eficaz de evitar competência regulatória/dumping passa pela intervenção da União Europeia. Nesta Proposta isso é levado muito a sério, até porque também se centraliza o enforcement.

Como refere o art. 1.º/1 da Proposta, esta lida essencialmente com três aspetos: a) as isenções de responsabilidade de intermediários; b) os deveres dos intermediários, que variam de acordo com a sua categoria e dimensão e c) a supervisão e tutela relativamente a estas regras. Vou concentrar-me no primeiro.

Em relação às isenções de responsabilidade (mas não de deveres) a Proposta reconhece o valor da Diretiva do comércio eletrónico, replicando, no essencial, os seus arts. 12.º a 15.º, nos arts. 3.º (simples transporte), art. 4.º (armazenagem temporária – “caching”), 5.º (armazenagem principal – “hosting”) e 7.º (ausência de obrigação geral de vigilância) respetivamente. Por isso mesmo, o art. 71.º da Proposta prevê a revogação dos arts. 12.º a 15.º da Diretiva. O remanescente, nomeadamente a cláusula do mercado interno e as regras relativas à conclusão de contratos mantêm-se em vigor (ainda que, à luz da Proposta, haja alguma relativização do princípio do país de origem).

Em geral as regras básicas de isenção de responsabilidade dos intermediários permanecem inalteradas. O art. 6.º esclarece que a adoção voluntária de medidas de fiscalização por parte dos intermediários não afasta a isenção de responsabilidade.

Uma relevante novidade, animada por uma ideia de tutela da confiança/aparência, é a exclusão da isenção de responsabilidade “nos termos da legislação de defesa do consumidor de plataformas em linha que permitam aos consumidores celebrar contratos à distância com profissionais, sempre que tal plataforma em linha apresente o elemento específico de informação ou permita de outra forma que a transação específica em causa leve um consumidor médio e razoavelmente bem informado a acreditar que a informação, ou o produto ou serviço objeto da transação, é fornecida pela própria plataforma em linha ou por um destinatário do serviço que atue sob a sua autoridade ou controlo” (art. 5.º/3). O objetivo é abranger aqueles casos em que as empresas, além de venderem produtos ou prestarem serviços diretamente também gerem “marketplaces”, permitindo a terceiros oferecer os seus produtos ou serviços na sua página. Este artigo colocará, para ser aplicado, um problema da qualificação – porque é que esta regra está limitada às regras de defesa do consumidor? Pode ser uma questão de competência da UE, mas não creio que seja a melhor solução.

Além disso, há pequenas nuances que podem ou não ser relevantes. Na Diretiva do comércio eletrónico falava-se em atividade ilegal ou informação ilegal, agora fala-se em conteúdo ilegal (ver considerando 12, que o concretiza dando exemplos muitos diferentes, desde o discurso de ódio, noção que me parece muito difícil de concretizar, à pornografia infantil). Haverá uma diferença?

Chegou a ser discutida, e na posição do PPE volta a fazer-se a proposta, de incluir também obrigações relativas a conteúdo nocivo (“harmful content”). Se definir conteúdo ilegal já não é fácil, bem mais difícil será saber o que é conteúdo nocivo. A meu ver, certas músicas ou programas de televisão muito populares cairiam facilmente nessa categoria…

Acresce ainda, obviamente, o tema das fake news, que toda a gente concorda serem um problema (deep fakes e, mais insidiosos, os shallow fakes), mas o consenso acaba aí. Aliás, será sequer possível traçar uma fronteira entre o que é diferença factual e diferença de opinião? O que é que são factos? Muito daquilo que há vinte anos eram factos ou pelo menos consensos em vários domínios científicos estão hoje em dia ultrapassados. Com efeito, como é que a ciência avançou? Graças à liberdade de expressar opiniões “contra-factuais”. O dissenso é uma fonte de progresso de inexcedível importância.

Não por acaso, na Proposta há alguma preocupação com a salvaguarda da liberdade de expressão e de criação. Nesse sentido, o considerando 47 e o art. 20.º parecem equilibrados ao referir a necessidade de o conteúdo ser manifestamente ilegal ou de as denúncias serem manifestamente infundadas para os intermediários poderem (respetivamente) remover ou suspender um utilizador. No entanto, não parece que haja qualquer exigência de carácter evidente ou manifesto da ilegalidade do conteúdo para que se afaste a isenção de responsabilidade prevista no art. 5.º. Creio que essa qualificação deveria existir.

Se eu escrever na minha página do Twitter ou Facebook “Miguel Sousa Tavares é um palhaço”.[2] Isto é conteúdo ilegal? Pode ser, mas certamente não será manifestamente ou claramente ilegal.

Há quem proponha que não deve haver diferença entre o online e o offline. A dificuldade está em encontrar as equivalências certas. O jornal que publique um artigo em que eu escreva as palavras “Miguel Sousa Tavares é um palhaço” será responsável por isso? Devemos tratar de forma igual um editor de um livro ou de um jornal e quem gere uma plataforma? Não é certamente igual um jornal que tem controlo editorial sobre um número limitado de conteúdos e uma plataforma que recebe e aloja centenas de conteúdos por segundo. E, mesmo quanto ao regime, não é claro que os editores sejam e devam ser responsáveis pela informação que publicam.

Há um fascinante caso norte-americano de 1991 – Winter v. Putnam – relativo à responsabilidade do editor de um livro sobre cogumelos que continha erros graves e que, por isso, causou o envenenamento de alguns leitores. Mesmo assim, em atenção à liberdade de expressão, o editor não foi considerado responsável. Esta talvez seja uma postura extrema (até porque o livro seria um produto defeituoso), mas a decisão parte da valorização do discurso e da liberdade.

Há um risco de consequências imprevistas ou de distorção dos objetivos desta Proposta – quanto mais severos formos com os intermediários, maior o perigo para os pequenos negócios e para os cidadãos. Se os incentivos não estiverem devidamente alinhados, isto pode facilmente levar ao empobrecimento do discurso, da diversidade cultural e em última análise da democracia.

Nesse sentido, a Eurodeputada Christel Schaldemose já sublinhou que não se devem equiparar as plataformas a editores e que devemos distinguir aquelas que se dedicam à venda de produtos (“marketplaces”), daquelas que promovem e alojam discurso. O debate ainda está a começar, mas promete ser animado.

 

[1] Cfr. o estudo de Jan Bernd Nordemann https://www.europarl.europa.eu/RegData/etudes/STUD/2020/648802/IPOL_STU(2020)648802_EN.pdf e, mais recente, o estudo de Andrea Bertolini https://www.europarl.europa.eu/RegData/etudes/STUD/2021/656318/EPRS_STU(2021)656318_EN.pdf (sublinhando a complexidade regulatória emergente, mesmo no Direito Europeu).

[2] https://www.publico.pt/2013/07/02/sociedade/noticia/mp-arquivou-processo-de-cavaco-contra-miguel-sousa-tavares-1598996

The Game did not Stop

Doutrina

Fevereiro abriu com o que parecia ser uma corrida à prata, que se seguiu ao rally das ações da empresa de jogos GameStop no final de janeiro. Dentro da realidade psicadélica que globalmente se vive, procurando com êxito ainda incerto combater a pandemia de Covid-19, poderia fazer sentido.

O descontrolo que grassa por todo o lado, chegou (de novo) aos mercados financeiros provocando, também ali, uma enorme volatilidade. Tristemente habituados aos gráficos, dos infetados, hospitalizados, mortos e recuperados, já não nos fere a vista uma linha que sobe a pique, sem razão aparente, e rapidamente intuímos que significa que o que estávamos habituados a que fosse, deixou de ser. É temporário, não se sabe é por quanto tempo e com que efeitos.

No final de janeiro assistimos a uma aparente vitória de pequenos investidores sobre grandes fundos, abordada neste blog aqui. A notícia da vertiginosa subida das ações de uma empresa de jogos, a GameStop, originada em dicas e conselhos num fórum online, do Reddit, foi título em várias publicações, principalmente por ter causado uma semana de excecional volatilidade e grandes perdas para os que habitualmente ganhavam, as grandes empresas e os grandes fundos.

Enquanto esse frenesim ocorria, iniciava-se a corrida à prata, diziam uns que impulsionada pelo Reddit, como é noticiado aqui e outros que não, antes pelo contrário, como é noticiado aqui e aqui.

A corrida à prata poderia fazer sentido por várias razões.

A primeira é uma razão clássica, os metais são um refúgio quando os mercados ficam estranhos. Têm existência física pouco perecível e valor intrínseco. A segunda seria a razão agora em curso, a do fenómeno Reddit ou de quem dele se esteja a aproveitar, que consiste em alardear que os grandes fundos podem ser prejudicados se o preço subir, por terem apostado na descida, tratando de diligenciar para que suba. A terceira, mais prosaica, poderia ter a ver com a natureza humana. Depois do jogo e do entretenimento, os metais preciosos e, para os menos abonados, especificamente a prata, é sinal de riqueza. Quem sabe se a escolha da próxima ascensão vertiginosa não poderia ter também algo a ver com os básicos da psicologia humana.

Como tanto do que acontece na Bolsa, faria sentido, aconteceu, mas durou quatro dias, atingindo o pico durante o dia 2 de fevereiro, estando a prata, ao que parece, a voltar a valores anteriores ao sprint.

Quanto à GameStop, já não parece estar a correr nada bem. No gráfico a um ano, percebe-se melhor o fenómeno extraordinário que aconteceu. Em início de fevereiro de 2020, a ação valia 3.95 USD, iniciou uma pequena subida em agosto e fechou o ano de 2020 nos 18.84 USD. Em 20 de janeiro de 2021, iniciou uma subida vertiginosa, atingindo no dia 27 de janeiro, quarta-feira, os 347.5 USD. Baixou na quinta (193,6) e fechou com nova subida acentuada na sexta (325). Esta semana desce a pique, tendo fechado ontem a 90 USD e andando hoje por aí.

O mercado, se for livre, assenta na lei da oferta e da procura. Se a procura aumenta, o preço sobe, se a procura diminui o preço baixa. Havendo equilíbrio, o preço é estável. Aumentando muitíssimo a procura, sem ajustamento da oferta, o preço dispara para valores que podem ser completamente desajustados ao valor real daquilo que é transacionado. Quando acontece nas Bolsas de Valores, chamam-lhe bolha.

Desde há muito que existem Bolsas, mercados em que se comercializam mercadorias, ações e outros ativos financeiros. Desde há muito que existem bolhas, que por vezes assumiram a denominação de manias, como aconteceu com a Tulip Mania, que ocorreu entre novembro de 1636 e maio de 1637, em Amesterdão[1] e que muitos consideram a primeira da história.

Na Bolsa, as bolhas rebentam. O efeito é o de se voltar, com fortes perdas para alguns, a uma situação mais perto da normalidade.

Vamos ver no que isto dá.

Para já, registe-se a situação atual da GameStop – “Power to the players”, no mercado de Nova York. Registe-se, também, que o fenómeno GameStop da semana passada já foi repetido na Malásia, onde pequenos investidores criaram um grupo para apoiar uma empresa fabricante de luvas. Registe-se, ainda, a existência de alertas oficiais para o risco de investimentos em ambiente de grande volatilidade e a qualificação do fenómeno como “insane Ponzi Scheme”.

Os aderentes aos fenómenos de perspetivas de lucro rápido e fácil vão, à medida que o prodígio avança, sendo cada vez mais e cada vez mais inexperientes. A informação vai chegando progressivamente aos menos conhecedores que, convencidos de que podem enriquecer instantaneamente, engrossam a coluna e contribuem decisivamente para a subida. Estão lá e permanecem, quando os conhecedores vão saindo. Quem, na quarta-feira, comprou ações a 340 USD e as vendeu, por exemplo, hoje a meio da manhã, por 90 USD, perdeu 250 USD por ação.

O economista Nouriel Roubini, que ficou conhecido por prever a crise financeira, terá afirmado sobre o tema, numa conferência na última quinta-feira no Porto, que “Parece manipulação e vai acabar em lágrimas”.

Esperemos que, ao contrário do que parece, desta vez não tenha razão.

 

[1] A Holanda ainda hoje tem algo semelhante a uma Bolsa de Flores, o Aalsmeer Flower Auction.

Golias foi ao chão – o fenómeno GameStop e o efeito Reddit

Doutrina

Os pequenos e frágeis uniram-se esta semana e conseguiram aplicar uns golpes certeiros que desequilibraram alguns gigantes de Wall Street, numa semana em que uma surpreendente volatilidade foi ali a caraterística dominante. Golias foi ao chão e nós, os pequenos, sentimo-nos poderosos o que, para variar, é bastante bom.

A história, complexa como tudo nas Bolsas, conta-se em poucas palavras. Esta semana Wall Street fechou com os seus índices em queda acentuada, no que foi a pior semana desde outubro, segundo o JN, porque houve uma “revolta de pequenos investidores contra os fundos especulativos, que foram forçados a vender ativos para cobrir as suas perdas.”. Esses fundos tinham apostado na baixa da cotação de empresas em dificuldades, como a cadeia de lojas de videojogos GameStop, fazendo “short-selling”, coisa que fazem todos os dias e que consiste em “obter ações, emprestadas, vendendo-as, antecipando a sua descida, para depois de esta ocorrer as recomprarem, devolverem e encaixarem os ganhos realizados.”, também explicado aqui. Normalmente funciona. Esporadicamente, sai-lhes o tiro pela culatra e têm de recomprar. Precisando de liquidez, vendem as “posições longas” (investimentos previstos para médio/longo prazo) em ações de empresas que estão ganhadoras (e que, com a venda, desvalorizam). Pelo caminho podem perder dinheiro durante um bocadinho, o que não deixa de ser desagradável.

A especulação bolsista dos grandes investidores, leia-se gigantescos fundos, assenta em ordens quase exclusivamente automáticas, produzidas por ferozes algoritmos, enviadas por sistemas de computação poderosíssimos, estrategicamente situados, sempre que possível fisicamente ao lado das Bolsas de Valores, o que permite que cheguem uns milissegundos mais rapidamente que as dos outros gigantes o que, em negociação bolsista, faz toda a diferença. O fenómeno foi magistralmente analisado, já em 2006, por Saskia Sassen, no seu livro “Territory, Authority, Rights[1]. Esta extraordinária, versátil e surpreendente investigadora, alia à solidez dos métodos científicos clássicos, originalidades como a de ir à noite para o Goldman Sachs, falar com funcionários da limpeza e segurança, para melhor compreender a crise financeira que culminou em catástrofe em 2008. E compreendeu muito bem que, há mais de uma década, os “mercados” já funcionavam essencialmente em modo automático, dominados pela tecnologia só acessível aos incrivelmente ricos e poderosos que, assim, se tornavam mais incrivelmente ricos e poderosos, como a realidade desde aí, passando pela crise de 2008 e respetiva recuperação, foram demonstrando.

Esta dinâmica foi, então, interrompida esta semana. A revolta é notícia por todo o lado, aparecendo no Expresso, com o interessante título “Wall Street. O efeito Reddit ultrapassa o fenómeno da GameStop” o que, no essencial, significa que o que começou por ser uma rebelião contra um ataque à empresa de videojogos GameStop, se propagou a outras ações, devido a um movimento que se desenvolveu online, no fórum da Reddit. Segundo o Expresso “os investidores compram ações de acordo com as notícias que vão sendo divulgadas na rede social Reddit, muito partilhada pelos investidores e personalidades norte-americanas”. Neste movimento, as ações da GameStop foram objeto de intensíssima transação e tiveram ganhos extraordinários, outras tiveram perdas inesperadas e o fórum da Reddit praticamente duplicou o número de utilizadores que terá aumentado “de 2,8 milhões para 4,3 milhões”.

A moral da história consiste em que a união faz a força, David vence Golias, juntos venceremos e assim, o que é bonito, nos redime um pouco e nos alimenta a esperança de que as coisas podem ser diferentes, o que é especialmente importante para quem se interessa por Direito do Consumo.

Essa expetativa assumiu contornos muito vincados na aurora das redes sociais. O Facebook foi lançado em 4 de fevereiro de 2004, rapidamente ganhou adeptos, e outras redes sociais se lhe seguiram num movimento crescente e imparável. Parecia que nascia uma possibilidade de todos terem voz, palco, relevância. A ideia de uma espécie de democracia direta despontava intensamente.

O livro de Glenn Reynolds, de 2007, “An Army of Davids: How Markets and Technology Empower Ordinary People to Beat Big Media, Big Government, and Other Goliaths” expressa muito bem e amplamente, a ideia de que os indivíduos ganhavam relevantes poderes que lhes iam possibilitar grandes feitos.

Poucos anos depois, a ideia for perdendo força, para o que contribuíram, por exemplo, as denominadas “primaveras árabes”, em parte possíveis pela mobilização e comunicação online, e que, em muitos casos, se tornaram sombrios invernos. Mais recentemente, a eleição de Trump, também não ajudou. Os fenómenos associados às compras online, as fake news, a monetarização dos dados pessoais, a obtenção de foros de soberania de facto pelos gigantes tecnológicos, entre muitos outros, têm originado reflexão e recuo em relação às grandes expetativas iniciais.

Voltando ao caso desta semana em Wall Street, há que estar com atenção aos tempos vindouros.

Embora não tenha nada a ver para o caso, assinale-se que é curioso que uma empresa que vive de vender jogos se chame GameStop. Dir-se-ia uma contradição nos termos, uma suscetibilidade de induzir em erro desde a denominação e será, provavelmente uma gracinha imaginativa assente num trocadilho com GameShop. Do ponto de vista linguístico é interessante e funciona. Os trocadilhos tendem a funcionar. Do ponto de vista legal, é duvidoso. No entanto, esta é uma questão lateral, que não deve perturbar o facto de a GameStop ser o herói desta história e um herói charmoso que parece que ficou rico, pelo menos para já. Curioso, também, é o facto de o fenómeno da semana se ter intensificado muito após a publicação de um tweet de Elon Musk no tal fórum, sendo que as ações da Tesla eram das que mais perdiam. Podia ter algum interesse aplicar uma lupa neste ponto.

Vamos, portanto, estar com atenção à próxima semana, e à outra, e à outra. Existe a possibilidade de verificarmos que os algoritmos dos fundos foram ajustados e que os gigantes que fecharam a descer vão recuperar extremamente. Em relação à GameStop, ou se salva, ou aproveita para encaixar uns milhões e, eventualmente fechar para ir abrir no quarteirão a seguir, com denominação igualmente (des)elucidativa, talvez StopLossGame. Em relação ao Reddit, e sendo certo que Golias foi ao chão e se levanta antes de terminar a contagem para o KO, o tempo dirá se foi a causa ou a consequência e já diz que veio, viu e venceu.

[1] V. Saskia Sassen, “Territory, Authority, Rights – from Medieval to Global Assemblages”, Princeton University Press, 2006, pp. 348 e ss..