Novas regras para a sustentabilidade: sobre agora ser proibido dar com uma mão e tirar com a outra (entre outras boas notícias)

Doutrina, Legislação

No passado dia 20 de fevereiro, foi adotada a Proposta de Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho que altera as Diretivas 2005/29/CE e 2011/83/UE no que respeita à capacitação dos consumidores para a transição ecológica, através de uma melhor proteção contra as práticas desleais e de melhor informação. Já no ano passado, aqui, tínhamos mencionado a iniciativa, apesar de nos termos concentrado na Green Claims Directive, que se encontra ainda em discussão e completará de forma mais eficiente o diploma sobre o qual nos debruçamos hoje.

A Proposta que hoje analisamos tem o intuito de capacitar os consumidores para a tomada de decisões de transação mais informadas, de promover o consumo sustentável, de eliminar práticas que prejudiquem a economia sustentável e de assegurar uma aplicação mais benéfica e mais coerente com o quadro jurídico da UE sobre a defesa do consumidor.

Em termos sintetizados, visa reforçar as regras de Direito do Consumo, nomeadamente (mas não só) no que toca à limitação da proliferação de práticas comerciais desleais que induzem os consumidores em erro quanto ao caráter sustentável do bem. Um hot topic desde que os consumidores aprenderam a pronunciar a palavra sustentabilidade, apesar de ainda não serem fluentes neste idioma.

No seguimento da discussão da Proposta, o Parlamento Europeu sugeriu adensar este mote com regras jurídicas mais específicas, de forma a prevenir práticas comerciais desleais em matéria de sustentabilidade, designadamente as seguintes:

– Obsolescência programada dos bens;

– Práticas de greenwashing;

– (Algumas) práticas de bluewashing; e

– Rotulagem obscura e/ou inidónea.

Dali resultaram as seguintes sugestões:

1. Alterar a Diretiva 2011/83/UE relativa aos direitos dos consumidores, nomeadamente quanto à obrigação do profissional de disponibilizar ao consumidor informações de forma clara e compreensível, tais como:

– Indicação da existência da “garantia legal” de conformidade dos bens e dos seus principais elementos, incluindo a sua duração mínima de dois anos, de forma bem visível, utilizando o aviso harmonizado;

– Em caso de garantia comercial de durabilidade prestada pelo produtor sem custos adicionais, abrangendo a totalidade do bem e com uma duração superior a dois anos, indicação de que o bem beneficia dessa garantia, a respetiva duração e indicação da existência da “garantia legal” de conformidade, de forma bem visível, utilizando o rótulo harmonizado;

– Nos contratos à distância, fornecimento de informações sobre as condições de pagamento e de entrega, incluindo opções de entrega respeitadoras do ambiente (por exemplo, bicicleta);

– Criação de um aviso harmonizado e de um rótulo harmonizado, de fácil reconhecimento e compreensão para os consumidores e fáceis de utilizar e reproduzir pelos profissionais.

2. Alterar a Diretiva 2005/29/CE relativa às práticas comerciais desleais, de forma a serem adicionados os aspetos ambientais, sociais e circulares à lista das principais características de um produto relativamente às quais:

2.1. As práticas do comerciante possam ser consideradas enganosas:

– Alegações ambientais referentes ao desempenho ambiental futuro sem compromissos claros, objetivos, publicamente disponíveis e verificáveis;

– Publicidade alusiva a benefícios para os consumidores que são irrelevantes e/ou que não resultam de qualquer característica própria do bem ou da empresa (por exemplo: “brincos sem glúten”, “telemóvel vegan” ou “shampoo sem lactose”);

– Utilização de alegações ambientais com afirmações genéricas sem fundamento (tais como, “amigo do ambiente”, “natural”, “biodegradável” ou “eco”) ou que, sob o manto da informação ambiental, implicam a retirada de conclusões relacionadas com outras características que não as ambientais (tais como “responsável”, “sustentável”, “consciente”).

E, de forma mais fascinante:

2.2. Aditamento de novas práticas à lista negra de práticas comerciais desleais, como, por exemplo:

– Exibição de rótulos de sustentabilidade não contemplados nos sistemas de certificação oficiais ou marcas de certificação criadas por autoridades públicas;

– Alegar, com base na compensação de emissões de gases com efeito de estufa, que um produto tem um impacto neutro, reduzido ou positivo no ambiente em termos de emissões de gases com efeito de estufa;

– Alegar falsamente que, em condições normais de utilização, um bem tem uma determinada durabilidade em termos de tempo ou intensidade de utilização;

– Fazer uma alegação ambiental sobre a totalidade do produto ou sobre a totalidade da atividade do profissional, quando esta diga respeito apenas a um determinado aspeto do produto ou a uma atividade específica da empresa/do profissional.

Interessa-nos hoje em particular este último ponto. Apesar de as novas regras incluírem, em alguns segmentos, a sustentabilidade social, no que toca a este último ponto parece fixar-se apenas nas alegações ambientais. Para melhor enquadramento, encontramos referência à parte social da sustentabilidade nos seguintes pontos:

– Inclusão de características (ambientais e) sociais não correspondentes à verdade na lista das ações enganosas (no art. 6.º-1 da Diretiva 2005/29/CE);

– Inclusão de características (ambientais e) sociais na prestação de informação durante a comparação de produtos (no art. 7.º da Diretiva 2005/29/CE);

– Inclusão de características (ambientais e) sociais nas regras relativas à rotulagem de sustentabilidade (no art. 2.º da Diretiva 2005/29/CE).

Como se percebe, existe ainda alguma resistência (ou timidez) em legislar para a sustentabilidade social, estando a atividade legislativa em torno da sustentabilidade ambiental muito mais desempoeirada. É compreensível, uma vez que a discussão sobre a ligação entre os problemas sociais e o consumo ainda está em ascensão, mas sobretudo porque não é evidente que tratar ambas as questões em conjunto seja o caminho mais profícuo.

Em todo o caso, há várias hipóteses em que os dois temas dão origem aos mesmos problemas e que encontrarão agora resposta neste diploma. Vejam-se alguns exemplos:

1. Caracterização de um pneu como “superverde”, quando não corresponde à verdade;

2. Alegação de que o consumidor, ao comprar um bem, “melhora a vida dos agricultores”, quando não corresponde à verdade;

3. Alegação de que o bem é “muito mais sustentável/ecológico/responsável/reciclável/durável/biodegradável do que as outras marcas no mercado” (se não for divulgado o método de comparação, os produtos objeto da comparação e os fornecedores desses produtos, bem como as medidas em vigor para manter essas informações atualizadas);

4. Exibição de um rótulo com as seguintes mensagens ou símbolos: “Trade Faire”; “UN”; “Green Piece”; “ESG”.

Por outro lado, não estando a sustentabilidade social incluída em muitos outros preceitos deste diploma, casos há que certas alegações sociais ficarão de fora do escopo destas novas regras, apesar de a lógica de washing ficar protegida nas alegações ambientais. Veja-se:

1. Empresa A: “Compensamos o ambiente”, “impacto climático reduzido” ou “a nossa política tem crédito de carbono”;

2. Empresa B: “Por cada t-shirt vendida, doamos 1€ à UNICEF” (t-shirt produzida com recurso a trabalho infantil).

Neste exemplo, a empresa A pode ser responsabilizada ao abrigo do novo acrescento à “lista negra”, uma vez que faz alegações com base na compensação de emissões. Já a empresa B não pode ser responsabilizada a esta luz, apesar de fazer alegações com base em compensações sociais.

Veja-se ainda:

1. Empresa A: “Feito a partir de material reciclado” (quando só a embalagem o é);

2. Empresa B: “Sapatos produzidos em condições justas” (quando só as solas o são).

Aqui, a empresa A pode ser responsabilizada ao abrigo da nova “lista negra”, uma vez que faz uma alegação ambiental que sugere que todo o bem é composto por material reciclado quando só uma parte dele o é. Já a empresa B não pode ser responsabilizada à luz desta nova inserção, uma vez que o preceito apenas diz respeito a alegações ambientais e não sociais, apesar de se tratar da mesma lógica de distorção da interpretação por parte do consumidor.

1. Empresa A: “Temos certificação [sistema de certificação ecológico]” (quando, por exemplo, apenas um dos bens vendidos pela empresa é certificado);

2. Empresa B: “Temos certificação [sistema de certificação social]” (quando, por exemplo, apenas um dos bens vendidos pela empresa é certificado);

Neste exemplo, também a empresa A poderá vir a ser responsabilizada ao abrigo da nova “lista negra”, já não a empresa B. No primeiro exemplo, tratando-se de uma alegação ambiental, a empresa A procura beneficiar da certificação que obteve para apenas um dos bens da sua gama, parecendo tentar sugerir que essa certificação diz respeito a toda a sua atividade. Já a empresa B, fazendo uma alegação social, não está abrangida pela norma.

Por fim, veja-se este caso:

Numa gama de 10 embalagens de café do mesmo produtor/vendedor, apenas um dos segmentos apresenta certificação Fairtrade.

Este caso não se encontra contemplado nos exemplos anteriormente analisados e não é igualmente subsumível às novas proibições, trazendo um outro problema aplicável quer às alegações ambientais quer sociais. Agora, a mesma empresa apresenta uma gama de produtos certificados e outros não certificados (devidamente identificados), o que levanta dúvidas éticas acerca de uma prática empresarial que tanto aceita transacionar bens resultantes de boas práticas sustentáveis ambientais/sociais como bens que daí não resultam. Será este o próximo nível das práticas de green e bluewashing?

As questões hoje analisadas ainda farão correr muita tinta. Para já, aguardemos as assinaturas da Presidente do Parlamento Europeu de o Presidente do Conselho e a respetiva publicação do diploma.

O vinho mais barato da carta

Doutrina

Em muitos restaurantes, ocorre um fenómeno estranho que consiste na rutura de stock da garrafa de vinho mais barata da carta. O cliente, ao pedir essa garrafa de vinho, é informado de que esta não se encontra disponível, tendo de escolher outra. Por vezes, essa informação é acompanhada de uma sugestão de outra garrafa de vinho, normalmente sem indicação do respetivo preço[1]. Veremos neste texto se estas práticas são lícitas, à luz dos princípios da transparência e da lealdade.

A apresentação de uma lista ou carta com a indicação da comida e das bebidas constitui uma proposta contratual apresentada pela entidade gestora do restaurante (que designaremos simplesmente por restaurante) ao cliente. O restaurante fica numa situação de sujeição e o cliente tem o direito potestativo de fazer um pedido consistente com a informação constante da carta, pedindo o que aí estiver indicado. Se o cliente pedir uma garrafa de vinho constante da carta, celebra-se então um contrato relativo a essa garrafa. Este contrato é um contrato misto, pois inclui, além da própria garrafa (objeto principal do contrato, que aponta no sentido de se tratar de um contrato essencialmente de compra e venda), o serviço associado à sua abertura e, por vezes, à colocação nos copos, o aluguer dos copos e tudo o que está subjacente à utilização do espaço (utilização das cadeiras e da mesa, música, etc.). Celebrado o contrato, o restaurante tem de fornecer a garrafa de vinho. Se se recusar a fazê-lo, haverá incumprimento da obrigação por parte do restaurante.

O restaurante pode incluir na carta a indicação de que o vinho não se encontra disponível. Pode haver um risco ou uma cruz ao lado ou por cima da garrafa de vinho em causa. Neste caso, a proposta não inclui essa garrafa de vinho, não se desencadeando os efeitos referidos no parágrafo anterior. Se não for incluída essa informação, poderá ainda considerar-se a possibilidade de uma rutura de stock. No entanto, para que o argumento da rutura de stock seja eficaz, legitimando a conduta do restaurante, é necessário que tal tenha sucedido imediatamente antes do pedido, não tendo dado tempo para, antes da disponibilização da lista, ser incluída a informação referida no início deste parágrafo.

Antes da celebração do contrato, o restaurante deve informar o consumidor sobre os bens e serviços fornecidos e o respetivo preço, nos termos do art. 8.º da Lei de Defesa do Consumidor. Essa informação pode constar da carta, mas a norma não será cumprida se, apresentada a carta, não houver indicação clara relativamente a objetos indisponíveis. Acresce que, qualquer sugestão feita oralmente pelo representante do restaurante, deve igualmente, nos termos da mesma norma, ser acompanhada da informação relativa ao preço. A omissão do preço, ainda que este conste da lista, constitui uma violação do art. 8.º da Lei de Defesa do Consumidor.

Esta prática coloca ainda em causa o princípio da lealdade. Isto porque pode ser suscetível de levar o cliente a adquirir uma garrafa de vinho mais cara do que aquela que pretendia inicialmente.

Aplica-se, então, o regime das práticas comerciais desleais (DL 57/2008).

Podemos estar perante uma omissão enganosa (arts. 9.º e 10.º), por faltar, pelo menos, uma informação essencial para a decisão de contratar do consumidor: a indicação da inexistência do bem. Como indicado anteriormente, poderá faltar igualmente outro elemento essencial: o preço da garrafa de vinho sugerida pelo restaurante.

A prática pode igualmente consubstanciar uma ação enganosa. Com efeito, nos termos do art. 8.º-e), é proibida a prática que consiste em “propor a aquisição de bens ou serviços a um determinado preço sem revelar a existência de quaisquer motivos razoáveis que o profissional possa ter para acreditar que não pode, ele próprio, fornecer ou indicar outro profissional que forneça os bens ou serviços em questão ou equivalentes, àquele preço (…)”. A alínea f) proíbe ao profissional “propor a aquisição de bens ou serviços a um determinado preço e, com a intenção de promover um bem ou serviço diferente, recusar posteriormente apresentar aos consumidores o bem ou o serviço publicitado”.

Para a aplicação destas alíneas, é necessário que a prática seja intencional, ou seja, que haja uma estratégia no sentido de levar o consumidor a, no caso, adquirir uma garrafa de vinho mais cara. A circunstância de a garrafa mais barata não estar muitas vezes disponível aponta nesse sentido, mesmo quando o menu indica que a garrafa está temporariamente indisponível, se de facto estiver excecionalmente disponível[2].

Havendo uma prática comercial desleal, o restaurante está sujeito à aplicação de sanções contraordenacionais (art. 21.º). O consumidor pode pedir o livro de reclamações para dar a conhecer a prática à ASAE.

O consumidor tem ainda direito à redução adequada do preço ou à resolução do contrato ou a exigir uma indemnização do restaurante. A resolução do contrato, após ter consumido a garrafa de vinho, parece constituir uma situação de abuso do direito. É mais equilibrada, tendo em conta a situação, a redução adequada do preço, para o preço da garrafa mais barata pedida num primeiro momento, em especial nos casos em que o consumidor não tenha sido informado adequadamente do preço da nova garrafa. O risco de ter sido feita uma sugestão de uma garrafa muito mais cara correrá, assim, por conta do restaurante, o que parece ser uma solução ajustada aos valores subjacentes ao caso.


[1] Este tema já foi discutido aqui no blog no texto “A Garrafa de Vinho mais Cara do que o Jantar”. Nesse caso, o cliente não tinha chegado a ver a lista, tenho sido sugerido pelo representante do restaurante que a refeição fosse acompanhada por um Barca Velha. Também aí se concluiu, como neste texto, que a redução adequada do preço é a solução mais equilibrada.

[2] Num contexto diferente, descreve-se a prática identificada, em Espanha, no sentido de indicar que o terminal de pagamentos se encontra avariado para forçar os consumidores a pagar com dinheiro. A circunstância de o aviso de avaria do terminal estar plastificado e apresentar sinais da passagem do tempo aponta claramente no sentido de que se trata, não de um problema temporário, em vias de resolução, mas de uma prática intencional de forçar o pagamento em notas e moedas.

Outro artigo sobre o ChatGPT? O possível futuro dos modelos fundacionais no Regulamento sobre Inteligência Artificial

Doutrina

Tanto o (ainda) futuro Regulamento sobre Inteligência Artificial (IA) como as ferramentas de Inteligência Artificial Generativa (ChatGPT ou Dall-e, entre outros) foram objeto de ampla discussão ao longo de 2023. As ferramentas de IA generativa, que explodiram em termos de popularidade no início do ano passado, suscitaram propostas de alterações significativas ao texto da Proposta de Regulamento de IA e debates entre Estados. Algumas dessas alterações podem ser encontradas nas Emendas à Proposta de Regulamento sobre IA apresentadas pelo Parlamento Europeu em 14 de junho de 2023. No final de 2023, ainda durante a presidência espanhola da UE, existiam duas posições opostas sobre a regulamentação dos modelos fundacionais: (1) fazê-lo através de códigos de conduta sem um regime de sanções por incumprimento; ou (2) a inclusão de certas obrigações no próprio Regulamento IA, referindo-se principalmente à transparência, embora também relacionadas com os direitos de autor.

Nesta publicação do blog, vamos centrar a nossa atenção em algumas das alterações do Parlamento Europeu sobre modelos fundacionais e na forma como isso afeta a IA generativa.

Para começar, convém esclarecer brevemente três conceitos: IA de objetivo geral, modelos fundacionais e Chat GPT.

Considera-se que os sistemas de IA de uso geral são os concebidos para desempenhar funções de uso geral, como o reconhecimento de texto, imagem e voz, a geração de texto, áudio, imagem ou vídeo, a deteção de padrões, a resposta a perguntas ou a tradução. Estes sistemas não teriam sido possíveis sem a redução dos custos de armazenamento e processamento de grandes quantidades de dados (big data).

Os modelos fundacionais, por outro lado, são modelos de inteligência artificial treinados em grandes quantidades de dados e concebidos para produzir informações gerais de saída capazes de ser adaptados a uma grande variedade de tarefas. Não devemos relacionar os modelos fundacionais exclusivamente com a IA de objetivo geral: um modelo fundacional pode servir tanto para sistemas de IA de objetivo específico como para sistemas de IA de objetivo geral. No entanto, os modelos fundacionais que não sirvam para ferramentas de IA para fins gerais não seriam abrangidos pelo futuro Regulamento relativo à IA (alteração 101 do PE e considerando 60-G).

O ChatGPT colocou desafios sociais e jurídicos significativos, não só em termos de direitos de autor, mas também em termos de cibersegurança e proteção de dados pessoais. Este tema será, no entanto, discutido num texto separado. Por enquanto, vejamos o que o futuro do Regulamento IA pode reservar para os modelos fundacionais, se as alterações do Parlamento Europeu forem aceites.

Os princípios gerais dos sistemas de IA

A alteração 213 do Parlamento Europeu propõe a introdução de um novo artigo 4º-A relativo aos princípios gerais aplicáveis a todos os sistemas de IA. Trata-se, de certa forma, de um equivalente ao artigo 5.º do Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados, relativo aos princípios aplicáveis ao tratamento de dados pessoais.

Nos termos do artigo 4.º-A, todos os operadores abrangidos pelo âmbito de aplicação do Regulamento IA devem envidar todos os esforços para desenvolver e utilizar sistemas ou modelos fundacionais em conformidade com os seguintes princípios, destinados a promover uma abordagem europeia coerente, centrada no ser humano, de uma IA ética e fiável:

– Intervenção humana e vigilância

– Robustez técnica e segurança

– Privacidade e governação dos dados

– Transparência (e explicabilidade)

– Diversidade, não discriminação e equidade

– Bem-estar social e ambiental

Estes seis princípios serão aplicáveis tanto aos sistemas de IA como aos modelos fundacionais. No entanto, no caso dos modelos fundacionais, devem ser cumpridos pelos fornecedores ou responsáveis pela aplicação em conformidade com os requisitos estabelecidos nos artigos 28.-B. Note-se que os artigos 28.º a 28.º-B fazem parte do Título III relativo aos sistemas de alto risco. Já salientámos no início que as últimas discussões na negociação do Regulamento no que se refere aos modelos fundacionais não os consideram sistemas de alto risco. O mesmo não parece resultar das alterações do Parlamento. Por conseguinte, deve entender-se que os modelos fundacionais serão regulados nas disposições que os mencionam expressamente, como é o caso do artigo 4º-A ou dos artigos 28º a 28º-B, mas não no Título III do RIA no seu conjunto.

O artigo 28.º do PRIA diz respeito às obrigações dos distribuidores, importadores, utilizadores e terceiros. As alterações do Parlamento propõem a substituição do título por “Responsabilidades ao longo da cadeia de valor da IA dos fornecedores, distribuidores, importadores, responsáveis pela aplicação ou terceiros”.  A referência a toda a cadeia de valor da IA é, na minha opinião, uma boa medida, uma vez que sublinha a importância de todo o processo de IA: não só o seu desenvolvimento, mas também a sua utilização. Tenho mais dúvidas em substituir a palavra “obrigações” por “responsabilidades” ou em incluir no título uma lista pormenorizada de todas as partes envolvidas.

A maior parte das obrigações relativas aos modelos fundacionais encontra-se no n.º 3 do artigo 28.º (novo, alteração 399), que se intitula “Obrigações do fornecedor de um modelo fundacional” (o termo “obrigações” é retomado aqui).

Podemos agrupar as obrigações do fornecedor de modelos fundacionais em três grupos:

– Obrigações anteriores à comercialização de modelos fundacionais (n.ºs 1 e 2). Estas obrigações aplicam-se ao fornecedor, independentemente de o modelo ser fornecido autonomamente ou integrado num sistema de IA ou noutro produto ou de ser fornecido ao abrigo de licenças gratuitas e de fonte aberta.

– Obrigações pós-comercialização (n.º 3), e

– Obrigações específicas relativas aos sistemas de IA generativa, ou seja, especificamente destinados a gerar conteúdos, como texto, imagem, áudio ou vídeo complexos (secção 4).

Obrigações anteriores à comercialização do modelo fundacional

De acordo com o art. 28.ter.2, o fornecedor de um modelo fundacional, antes de comercializar ou colocar o modelo em funcionamento, deve (tendo em conta o estado da arte num dado momento):

– Demonstrar a deteção, redução e mitigação de riscos razoavelmente previsíveis para a saúde, a segurança, os direitos fundamentais, o ambiente, a democracia ou o Estado de direito.

o Tal deve ser demonstrado através de uma conceção, testes e análises adequados e com a participação de peritos independentes.

o Deve também fornecer documentação sobre os riscos não mitigáveis remanescentes após o desenvolvimento.

– Só deve processar e incorporar conjuntos de dados sujeitos a medidas de governação adequadas para modelos fundacionais.

o Em particular: adequação das fontes, enviesamentos e atenuação adequada.

– Deve conceber e desenvolver o modelo

o de modo a atingir, ao longo do seu ciclo de vida, níveis adequados de desempenho, previsibilidade, interpretabilidade, correção, segurança e cibersegurança, avaliados por métodos adequados;

o utilizando as normas aplicáveis para reduzir o consumo de energia, a utilização de recursos e os resíduos, bem como para aumentar a eficiência energética e a eficiência global do sistema. A este respeito, devem ser desenvolvidos modelos fundacionais com capacidades para medir e registar o consumo de energia e de recursos e o impacto ambiental.

– Desenvolverá uma documentação técnica exaustiva e instruções de utilização inteligíveis.

– Estabelecer um sistema de gestão da qualidade para garantir e documentar a conformidade com todos os elementos acima referidos (responsabilidade proactiva).

– Registar o modelo básico na base de dados da UE para sistemas independentes de alto risco.

Obrigações pós-comercialização do modelo básico

Durante dez anos após o sistema de IA ter sido colocado no mercado ou em serviço, os fornecedores de modelos fundacionais devem manter a documentação técnica à disposição das autoridades nacionais competentes (Agência de Controlo da IA).

Obrigações específicas para os modelos de IA generativa

Para além das obrigações gerais estabelecidas no ponto 28.ter.2, os fornecedores de sistemas de IA generativa devem:

– Cumprir as obrigações de transparência do artigo 52.º, n.º 1 (obrigação de informar as pessoas que interagem com estes sistemas de que estão a interagir com um sistema de IA).

– Conceber e desenvolver o modelo de forma a garantir salvaguardas adequadas contra a produção de conteúdos que infrinjam a legislação da UE.

– Sem prejuízo da legislação em matéria de direitos de autor, devem documentar e disponibilizar publicamente um resumo suficientemente pormenorizado da utilização de dados de formação protegidos por direitos de autor.

Bónus: dois desafios colocados pela IA generativa

Termino este post partilhando duas preocupações (às quais os nossos leitores poderão responder): os desafios em matéria de propriedade intelectual colocados pela IA generativa e a possibilidade de considerar os modelos fundacionais como de alto risco.

Começo pela primeira, porque é mais ousada da minha parte: quando é que eu, uma pessoa singular, posso ser considerado autor de uma obra literária gerada através de IA generativa (Chat GPT, por exemplo)? Desenvolvo um pouco mais a minha preocupação: não é (ou não deveria ser) a mesma coisa para mim introduzir uma simples pergunta no Chat GPT, como “escreva a oitava parte do Harry Potter”, do que introduzir várias perguntas com um certo nível de complexidade (quanto?), nas quais introduzo certas características específicas do romance. Se aceitarmos que as ferramentas de IA não deixam de ser ferramentas tecnológicas (muito complexas, mas tecnológicas), talvez possamos concordar que se trata de um debate semelhante ao que surgiu na altura em torno da fotografia, que permite distinguir legalmente entre “fotografia (artística)” e “mera fotografia (carregar no botão da câmara)”. Outra questão, mais difícil, seria distinguir, em cada caso, quando as instruções introduzidas numa ferramenta de IA generativa nos permitem falar de utilização artística da IA generativa ou de “mera utilização” da IA generativa.

O segundo desafio é, de facto, abrangido pelo Regulamento IA, mas é importante referi-lo. Consiste na consideração dos modelos fundacionais como sendo de alto risco. O anexo III da proposta de Regulamento IA contém uma lista não fechada de sistemas de IA de alto risco. No entanto, não se deve esquecer que a Comissão teria (na proposta de Regulamento relativo à IA, artigo 7.º) teria poderes para adotar atos delegados que alterem o anexo III para acrescentar sistemas de IA que satisfaçam duas condições: destinar-se a ser utilizados em qualquer dos domínios enumerados nos pontos 1 a 8 do anexo (ou seja, identificação biométrica e categorização de pessoas singulares; gestão e funcionamento de infra-estruturas críticas; educação e formação profissional, emprego, gestão de trabalhadores e acesso ao trabalho independente; acesso e usufruto de serviços públicos e privados essenciais e seus benefícios; questões de aplicação da lei; gestão das migrações; asilo e controlo financeiro; administração da justiça e processos democráticos); comportar um risco de danos para a saúde e a segurança ou um risco de consequências negativas para os direitos fundamentais que seja equivalente ou superior aos riscos de danos associados aos sistemas de IA de alto risco já mencionados no Anexo III, tendo em conta vários critérios, tais como, entre outros, o objetivo pretendido do sistema de IA ou a probabilidade de este ser utilizado de uma determinada forma.

Deve uma IA generativa (que é um exemplo de um modelo fundamental) capaz de produzir vídeos destinados a perturbar os processos democráticos ser considerada de alto risco? Parece claro que sim, uma vez que estas utilizações estão enumeradas no ponto 8 do anexo III, quer se destinem especificamente a perturbar os processos democráticos quer sejam suscetíveis de ser utilizadas para o efeito. O que não é claro neste momento (teremos de aguardar a redação final do texto) é se será considerado de alto risco desde o início, ou apenas depois de a Comissão adotar o ato delegado correspondente para alargar o Anexo III. Por outras palavras, se este ato delegado da Comissão seria constitutivo ou meramente declarativo de que um sistema de AI é de alto risco.

Proteção de Dados e Treino de IA: Bases de Licitude e Direito a ser Informado

Doutrina

No domínio da inteligência artificial (“IA”), uma das preocupações fundamentais prende-se com o tratamento de dados pessoais em conformidade com as normas aplicáveis, em particular, o Regulamento Geral de Proteção de Dados (“RGPD”).

Desde a compreensão das bases jurídicas que regem a utilização de dados pessoais até ao cumprimento dos direitos dos titulares dos dados e à promoção da transparência, o nosso objetivo neste post será o de desvendar as complexidades e oferecer conhecimentos práticos sobre como fazer o tratamento de dados no contexto da IA, de uma forma compatível com o RGPD.

Compreender as bases de licitude nos sistemas de IA

Nesta secção, aprofundamos o aspeto crítico das bases de licitude do art. 6.º RGPD para um tratamento lícito de dados pessoais por sistemas de IA, esclarecendo como os dados pessoais podem ser utilizados nestes sistemas.

Em primeiro lugar, é preciso compreender que os sistemas de IA são treinados com dados pessoais obtidos através de diversas fontes. Estes canais incluem principalmente a recolha de dados da Internet (o web scraping, cuja licitude já tem sido questionada por autoridades de supervisão a nível mundial), as informações fornecidas pelo utilizador já após o lançamento do sistema (e.g. ao utilizar o ChatGPT e ao enviar comandos, podem essas instruções conter dados pessoais que são utilizados para treinar o sistema) e, por último, terceiros, como bases de dados de terceiros.

Com base nestas fontes de dados pessoais, é-nos possível elencar três bases de licitude principais incluídas no art. 6.º do RGPD, que poderão ser usadas para treinar sistemas de IA com dados pessoais.

Execução de um contrato

O artigo 6.º, n.º 1, alínea b), do RGPD permite o tratamento de dados pessoais quando tal seja necessário para a execução de um contrato com o respetivo titular de dados. No entanto, a aplicação desta base ao treino de IA está sujeita a condições estritas.

Em particular, deve ser demonstrado que o treino do sistema de IA (e não apenas a sua utilização após o treino) é estritamente necessário para o cumprimento de um contrato com a pessoa em causa. Este requisito tem vindo a ser interpretado de forma restritiva, exigindo que o objeto principal do contrato seja impossível sem esse tratamento dos dados pessoais. No contexto da IA, isto cria cenários limitados nos quais a base contratual pode ser viável, muito provavelmente apenas em circunstâncias em que o sistema de IA é adaptado ao titular de dados (por exemplo, quando output de um modelo linguístico é personalizado para ser semelhante à forma como o consumidor responderia, ou com base em algum conhecimento pré-determinado do mesmo).

Quanto à segunda parte desta base jurídica – a necessidade de tomar diligências pré-contratuais – a sua utilização exige a demonstração de que não há outra forma de satisfazer as exigências de um titular de dados que possa potencialmente querer celebrar um contrato que não sejam treinar (e, mais uma vez, não utilizar apenas depois de treinado) o sistema de IA. Esta parece ser uma opção ainda mais limitada do que a primeira parte desta base de licitude.

Em suma, a possibilidade de utilizar um contrato como base jurídica para treinar sistemas de IA com dados pessoais parece limitada a casos muito específicos, não sendo, em regra, a primeira escolha a ponderar.

Interesses legítimos

Os interesses legítimos do responsável pelo tratamento é das bases mais versáteis do art. 6.º do RGPD, sendo utilizável nestas circunstâncias. Contudo, a utilizá-la, deve efetuar-se uma avaliação caso a caso para garantir que esses interesses não limitam de forma desproporcional os direitos e liberdades dos titulares dos dados. Esta análise torna-se particularmente difícil quando a entidade por detrás do treino do sistema de IA não tem contacto direto com os titulares dos dados. A luta da OpenAI com a Autoridade Italiana de Supervisão da Proteção de Dados é um exemplo claro desta dificuldade. De facto, ao utilizar o interesse legítimo como base legal para o treino do ChatGPT, a empresa vinculou a licitude do treino a uma base legal que é inerentemente vaga e incerta, dado também o direito das pessoas em causa de se oporem a esse tratamento.

Assim, para se fazer valer desta base de forma eficaz, os responsáveis pelo tratamento terão de fazer uma avaliação do interesse legítimo, em que verificam se o tratamento de dados corresponde às expectativas razoáveis das pessoas em causa, demonstram a estrita necessidade do tratamento (por exemplo, demonstrando que a IA não pode funcionar corretamente sem os dados pessoais em questão) e que o tratamento tem devidamente em conta os interesses das pessoas em causa.

Além disso, têm de garantir que as pessoas em causa sejam informadas de forma adequada do tratamento de dados, nos termos dos artigos 13.º e 14.º do RGPD, bem como a criação de um sistema eficaz para a objeção de titulares de dados a este tratamento.

Consentimento

O consentimento como base de licitude apresenta desafios derivados da forma comos os dados pessoais são recolhidos, frequentemente sem contacto direto com os titulares de dados. Embora em casos extremos possa ser a única base jurídica possível (por exemplo, ao processar categorias especiais de dados em conformidade com o art. 9.º do RGPD), o cumprimento dos requisitos do RGPD para um consentimento válido – incluindo a clareza, a especificidade e a inequivocidade – é uma exigência elevada no contexto do treino de sistemas de IA.

Em conclusão, a seleção de uma base jurídica adequada para o treino de sistemas de IA é uma tarefa complexa. Enquanto a execução de um contrato e o consentimento enfrentam limitações práticas, os interesses legítimos do responsável pelo tratamento, embora sendo uma base incerta, surge como a opção potencialmente mais adequada.

Transparência e direito de ser informado

Nesta secção, aprofundamos um aspeto crítico de conformidade com o RGDP: a transparência e o direito a ser informado nos termos dos arts. 13.º e 14.º do RGPD.

Assim sendo, a informação devida a titulares de dados – e o modo como é fornecida – varia consoante a forma como os dados pessoais são recolhidos. Os desafios em cada cenário, quer se trate de recolha de dados indireta ou diretamente do titular de dados, exigem medidas ponderadas para se alinharem com as exigências do RGPD.

Web Scraping

Uma das formas mais comuns de treinar sistemas de IA é por via de web scraping, ou seja através de ferramentas que extraem dados – incluindo dados pessoais – da Internet.

A obtenção de dados pessoais por esta via leva a desafios particulares, não só devido à forma potencialmente ilícita como os dados pessoais são recolhidos, mas também devido à falta de interação direta entre a entidade extratora dos dados e o titular de dados, o que dificulta a transmissão de informação contida no art. 14.º do RGPD. A isto, importa juntar que os operadores de sistemas de IA lidam frequentemente com grandes quantidades de dados extraídos automaticamente da Internet, o que dificulta a própria identificação dos titulares de dados.

Neste contexto, a alínea b) do n.º 5 do artigo 14.º do RGPD define que, quando o fornecimento da informação contida nesse artigo for impossível ou implicar um esforço desproporcionado por parte do responsável pelo tratamento, este fica isento desta obrigação. No entanto, as autoridades de supervisão tendem a interpretar esta exceção de forma restritiva, tornando pouco claro até que ponto os responsáveis pelo tratamento e os criadores de sistemas IA podem utilizá-la de forma eficaz.

Independentemente disso, os criadores de IA devem tomar medidas adequadaspara proteger os direitos e liberdades das pessoas em causa. Isto inclui a publicação de políticas de privacidade nos seus websites e, em alguns casos, a realização de campanhas de informação para garantir que são adotados todos os esforços para informar as pessoas em causa do tratamento de dados.

Embora existam desafios na recolha de dados, medidas proativas e um compromisso com a transparência podem facilitar a resolução destas questões. Os operadores de IA devem esforçar-se por equilibrar o seu tratamento de dados com as normas do RGPD e o direito dos utilizadores a serem informados.

Fornecimento de dados por terceiros

Nos casos em que os dados são fornecidos por terceiros, a colaboração entre as partes envolvidas no tratamento de dados torna-se crucial. Estes terceiros desempenham um papel importante para garantir a transparência no tratamento dos dados, na medida em que são a entidade – idealmente – em contacto com os titulares de dados.

Estas partes, sendo as que obtêm os dados pessoais, ocupam uma posição de ponte entre os criadores de sistemas de IA e os titulares de dados, fornecendo a estes ferramentas e orientações sobre como os seus dados serão processados. O estabelecimento de canais de comunicação claros com estes fornecedores é fundamental, em especial quando se trata de dar resposta ao exercício dos direitos por parte dos titulares de dados.

Dados fornecidos diretamente pelo titular de dados

Finalmente, para os dados recolhidos diretamente dos titulares de dados, aplica-se o artigo 13.º do RGPD. Este artigo exige que os responsáveis pelo tratamento de dados forneçam informações específicas no momento da recolha, incluindo a identidade e os dados de contacto do responsável pelo tratamento de dados, as finalidades do tratamento e a base jurídica. Isto reforça a importância da comunicação e divulgação transparentes, garantindo que os utilizadores são informados sobre a forma como os seus dados serão utilizados. Ao ligar estes pontos, a transparência torna-se um elemento essencial para práticas responsáveis por parte de criadores de sistemas de IA e no alinhamento do seu tratamento de dados com as regras aplicáveis.

Crédito ao consumo, avaliação da solvabilidade e esquecimento oncológico à luz da Diretiva 2225/2023

Doutrina

No dia 18 de outubro de 2023, foi adotada a nova Diretiva 2225/2023 relativa aos Contratos de Crédito aos Consumidores (DCCC). O diploma é o resultado de um debate no seio das instituições europeias para atualizar a anterior Diretiva do Crédito aos Consumidores (de 2008), que resultou na publicação, em 2021, da Proposta de Diretiva relativa aos Contratos de Crédito aos Consumidores.

A avaliação da solvabilidade (ou credit scoring) pode ser definida como o tratamento de dados sobre o potencial consumidor pelo credor no contexto de um contrato de crédito, a fim de avaliar a sua solvabilidade e quantificar o risco de crédito. Por outras palavras, o risco de não pagamento por parte do consumidor devido à sua falta de solvabilidade antes da concessão do crédito ou durante a sua vigência.

Antes de entrarmos na avaliação da solvabilidade tal como regulada no DCCC, convém recordar que estamos perante uma Diretiva, ainda que de harmonização total. De acordo com o artigo 48.º do DCCC, o prazo para a transposição desta Diretiva é 20 de novembro de 2025, sendo as regras nacionais de transposição aplicáveis a partir de 20 de novembro de 2026. Só se não for transposto para o direito nacional é que o texto em apreço produzirá efeitos diretos. Tudo isto faz com que as reflexões publicadas sobre a recém-publicada DCCC sejam extremamente oportunas, na medida em que o seu articulado se encontra pendente de transposição nacional nos próximos dois anos. O Decreto-Lei n.º 133/2009, de 2 de junho, apenas menciona a obrigação do mutuante de avaliar a solvabilidade do candidato, mas não com o pormenor regulamentado pelo DCCC.

Tanto na Proposta de Diretiva como na versão finalmente publicada da Diretiva, a avaliação da solvência ganhou importância em comparação com a Diretiva de 2008, que apenas menciona esta questão três vezes. A avaliação da solvência tornou-se muito importante, especialmente após a crise de 2008, que foi causada, entre outros fatores, por um sobreendividamento da população. É por isso que a nova DCCC se preocupa em promover práticas responsáveis no mercado do crédito, entre as quais a avaliação da solvabilidade prévia efetuada no interesse do consumidor. O considerando 53 da DCCC estabelece que os Estados-Membros devem adotar medidas adequadas para promover práticas responsáveis em todas as fases da relação de crédito, tais como avisos sobre os riscos em caso de não pagamento ou de sobreendividamento. Mais adiante, o mesmo considerando refere que os mutuantes devem ser responsáveis pelo controlo individual da solvabilidade do consumidor.

A avaliação da solvabilidade está regulamentada nos artigos 18º e 19º da DCCC, que devem ser interpretados em conformidade com os considerandos 53 a 57 da DCCC.

Nos termos do n.º 1 do artigo 18.º da DCCC, os Estados-Membros devem exigir que o mutuante efetue uma avaliação aprofundada da solvabilidade do consumidor antes de celebrar um contrato de crédito. A avaliação da solvabilidade é uma condição prévia essencial para a concessão do crédito e deve ser efetuada de acordo com três critérios orientadores: (1) deve ser efetuada no interesse do consumidor; (2) deve ter por objetivo evitar práticas de empréstimo irresponsáveis e o sobreendividamento; e (3) deve ter devidamente em conta os fatores relevantes para verificar as perspetivas de cumprimento pelo consumidor das obrigações decorrentes do contrato de crédito.

De acordo com o considerando 54 do DCCC, é essencial que a capacidade e a vontade do consumidor de reembolsar o crédito sejam avaliadas e testadas antes da celebração do contrato de crédito. Esta avaliação é tão fundamental que o crédito só deve ser concedido ao consumidor se o resultado da avaliação da solvabilidade indicar que as obrigações decorrentes do contrato de crédito são suscetíveis de serem cumpridas em conformidade com os termos do contrato de crédito (55 DCCC). O n.º 6 do artigo 18.º da DCCC retoma este critério, mas remete para os regulamentos nacionais de transposição da DCCC a obrigação dos Estados-Membros de assegurarem o seu cumprimento. Por conseguinte, será fundamental conhecer a evolução das legislações nacionais no que diz respeito aos efeitos da avaliação da solvabilidade do consumidor.

Embora uma avaliação positiva da solvabilidade seja um requisito prévio para a concessão de crédito, uma avaliação positiva não obriga o mutuante a conceder o crédito (considerando 54 DCCC), sem prejuízo do dever do mutuante de informar o requerente dos critérios e dados utilizados na avaliação da solvabilidade e de lhe permitir solicitar uma revisão da avaliação (considerando 56 DCCC in fine).

O último dos requisitos do artigo 18.º, n.º 1 do DCCC, tendo em conta os fatores relevantes para verificar as perspetivas de cumprimento, condiciona a informação que pode ser tratada para a avaliação da solvabilidade: devem ser avaliados todos os fatores necessários e relevantes que possam influenciar a capacidade de o consumidor reembolsar o crédito.

O n.º 2 do artigo 18.º do DCCC clarifica este critério. Devem ser tidas em conta (1) informações pertinentes e precisas sobre os rendimentos e as despesas do consumidor; bem como (2) informações sobre “outras circunstâncias”, financeiras e económicas, necessárias e proporcionais à natureza, à duração, ao valor e aos riscos do crédito. O primeiro dos elementos a avaliar, o extrato de contas do requerente de crédito, é pouco interpretativo e deve ser fornecido de forma completa e atualizada em todos os casos de pedido de crédito ao consumo. O segundo, em contrapartida, deverá ser ajustado em cada caso em função das características do crédito solicitado (natureza, duração, valor e riscos): pode entender-se que quanto maior for a duração, o valor e os riscos do crédito, mais abundantes e precisas deverão ser as informações sobre o consumidor que solicita o crédito.

Mas que informações? O n.º 2 do artigo 18.º do DCCC inclui uma lista aberta de dados que podem ser avaliados: dados sobre os rendimentos ou outras fontes de reembolso, informações sobre ativos e passivos financeiros ou informações sobre outros compromissos financeiros. A própria redação do artigo deixa claro que podem ser fornecidos outros dados relativos à “situação financeira e económica” do consumidor não incluídos na lista. A delimitação das informações que podem ser avaliadas na avaliação de solvabilidade, juntamente com o objetivo da avaliação de solvabilidade, delimita a concretização do princípio da minimização dos dados neste domínio.

A proibição do tratamento de dados relativos às doenças oncológicas do requerente é coerente com a Resolução do Parlamento Europeu, de 16 de fevereiro de 2022, sobre o reforço da Europa na luta contra o cancro, que “apela à integração na legislação pertinente da União do direito a ser esquecido para os sobreviventes de cancro, a fim de evitar a discriminação e melhorar o seu acesso aos serviços financeiros”. Países como a França, os Países Baixos, a Bélgica e o Luxemburgo foram pioneiros na conceção de tais medidas. Portugal publicou, em 2021, a Lei n.º 75/2021, de 18 de novembro, que reforça o acesso ao crédito e aos contratos de seguro por parte das pessoas que tenham superado ou atenuado situações de risco agravado de saúde (não apenas cancro), proibindo práticas discriminatórias contra as mesmas. No que respeita ao tratamento de dados no âmbito da avaliação da solvabilidade, o artigo 2.º desta lei proíbe a utilização, pelas instituições de crédito ou seguradoras, de qualquer tipo de informação de saúde relativa a uma situação clínica que origine um risco grave.

É também interessante notar, no que diz respeito às informações que devem consubstanciar a avaliação da solvabilidade, o disposto no n.º 11 do artigo 18.º do DCCC: a avaliação da solvabilidade não deve basear-se apenas no historial creditício do consumidor. Por outras palavras, a avaliação da solvabilidade não pode basear-se apenas nos dados negativos ou de insolvência do consumidor, mas deve integrar outros dados (positivos) que permitam obter um perfil completo do historial financeiro do consumidor. Esta possibilidade representa um passo em frente relativamente ao disposto no artigo 20.º da lei espanhola relativa à proteção de dados, quanto aos sistemas de informação de crédito, segundo o qual “presume-se lícito o tratamento de dados pessoais relativos ao incumprimento de obrigações pecuniárias, financeiras ou creditícias por parte dos sistemas comuns de informação de crédito”, desde que se verifiquem determinadas condições.

É de notar que grande parte da informação que alimenta a avaliação da solvabilidade será fornecida pelos próprios requerentes, que devem ser honestos e fornecer informações completas, exatas e relevantes (cf. n.º 7 do artigo 18.º do DCCC). Tal não significa que os requerentes consintam no tratamento dos seus dados para efeitos da avaliação da solvabilidade, mas que cumprem um ónus, tal como o mutuante, de avaliar a solvabilidade do requerente de crédito. Isto significa que a base legítima para o tratamento de dados é o cumprimento de uma obrigação legal (artigo 6.º, n.º 1, alínea c), do RGPD): tanto no caso dos dados fornecidos pelo requerente consumidor como dos dados obtidos pelo mutuante por sua própria conta.

Os dois primeiros requisitos do n.º 1 do artigo 18.º do DCCC são os princípios orientadores de qualquer avaliação da solvabilidade. O objetivo da avaliação da solvabilidade é evitar o sobreendividamento e as práticas irresponsáveis de concessão de crédito aos consumidores. Esta situação prejudica tanto o mercado de crédito como os consumidores, pelo que se coloca a questão de saber se o objetivo do controlo do sobreendividamento é preservar o bom funcionamento do mercado ou a qualidade de vida dos consumidores. A resposta, no caso da DCCC, é clara: tanto o n.º 1 do artigo 18.º como o artigo 54.º estabelecem que a avaliação da solvabilidade deve ser efetuada “no interesse do consumidor”. Por conseguinte, a finalidade do tratamento de dados no caso da avaliação da solvabilidade será a seguinte: tratamento de dados para avaliação da solvabilidade, para prevenção do sobreendividamento e de práticas de empréstimo irresponsáveis, a fim de evitar que prejudiquem a qualidade de vida dos consumidores.

Os procedimentos de avaliação da solvabilidade devem ser transparentes e devidamente documentados, em conformidade com o n.º 4 do artigo 18.º. Um procedimento de avaliação deficiente não deve ser utilizado pelo mutuante para alterar as condições do contrato em detrimento do consumidor. A especificação destas duas obrigações será deixada a cargo da regulamentação de cada Estado-Membro.

Sempre que a avaliação da solvabilidade envolva o tratamento automatizado de dados pessoais (pontuação de crédito), o consumidor requerente deve poder solicitar e obter a intervenção humana do mutuante para: (1) explicar, de forma clara e compreensível, a avaliação de crédito, incluindo a sua fundamentação, riscos, significado e efeitos na decisão de crédito; (2) permitir que o consumidor exprima os seus pontos de vista ao mutuante e, se o considerar adequado, (3) solicitar uma revisão da avaliação de crédito e da decisão de crédito. Esta obrigação é coerente com o artigo 22.º do RGPD, nos termos do qual todas as pessoas em causa têm o direito de não ficar sujeitas a uma decisão baseada exclusivamente no tratamento automatizado de dados, incluindo a definição de perfis, que produza efeitos na sua esfera jurídica ou que a afete significativamente de forma similar (como um perfil de solvabilidade), salvo determinadas exceções previstas no n.º 2 do artigo 22.º.

Por último, o artigo 19.º do DCCC estabelece determinadas disposições relativas às bases de dados (públicas e privadas – n.º 3 do artigo 19.º do DCCC) que podem ser consultadas pelos mutuantes em caso de crédito transfronteiriço. Está prevista a obrigação de cada Estado-Membro garantir que os mutuantes de outros Estados-Membros possam aceder às bases de dados utilizadas no seu território para a avaliação da solvabilidade dos consumidores em condições não discriminatórias (n.º 1 do artigo 19.º do DCCC), desde que os mutuantes estejam sob o controlo da autoridade nacional competente e cumpram o RGPD. No que diz respeito a este trabalho, as bases de dados devem conter, pelo menos, dados negativos de solvabilidade (n.º 4 do artigo 19.º do RGPD), não devem tratar categorias especiais de dados ou dados obtidos a partir de redes sociais (n.º 5 do artigo 19.º do RGPD) e as suas informações devem ser atualizadas e exatas (n.º 7 do artigo 19.º do RGPD). Quando a recusa de um pedido de crédito se basear na consulta de uma base de dados, o mutuante deve informar o consumidor, gratuitamente e sem demora, do conteúdo e dos pormenores da consulta e das categorias de dados tidos em conta (artigo 19.º, n.º 6, do DCCC).

O consumidor na nova era da sustentabilidade das embalagens alimentares

Doutrina

A transição para sistemas alimentares mais sustentáveis, que a União Europeia (UE) tem impulsionado desde a adoção do Pacto Ecológico Europeu e da Estratégia do Prado ao Prato, abrange não só os alimentos mas também todos os outros inputs funcionais e necessários à sua produção, distribuição e consumo.

Nestes moldes, o legislador europeu tem progressivamente vindo a reconhecer o impacto negativo que o food packaging e os seus resíduos têm no ambiente e a consequente necessidade de eliminar ou minimizar esse impacto. Este processo legislativo começou nomeadamente com a adoção da Diretiva (UE) 2019/604 – transposta em Portugal através do Decreto-Lei n.º 78/2021 – que impôs restrições de uso de determinados produtos de plástico de utilização única, incluindo recipientes para alimentos e bebidas e copos feitos de poliestireno expandido.

A Comissão Europeia deu seguimento a esta legislação específica publicando, em novembro do ano passado, uma Proposta de regulamento relativo a embalagens e resíduos de embalagens, que se encontra atualmente em fase de discussão a nível europeu. A proposta visa reformar profundamente o quadro jurídico em vigor que regulamenta o fabrico das embalagens, bem como a gestão dos seus resíduos, partindo do pressuposto de que esse quadro é obsoleto (data, de facto, de 1994) e inadequado para garantir a sustentabilidade ambiental do packaging.

Para este efeito, a proposta em causa estabelece um amplo leque de requisitos de sustentabilidade para as embalagens, muitos dos quais têm relevância direta para as embalagens alimentares, como por exemplo:

– Taxas progressivas de incorporação de material reciclado nas garrafas de plástico de utilização única;

– Restrições de uso de determinados formatos (por exemplo, as saquetas de açúcar ou sal que são tipicamente disponibilizadas nos estabelecimentos do canal horeca);

– A obrigação de que as cápsulas de cafés e as saquetas de chá sejam compostáveis.

A proposta de lei europeia coloca também ênfase na necessidade de que as embalagens alimentares sejam reutilizáveis, ou seja, possam desempenhar a mesma função para que foram concebidas múltiplas vezes. Neste sentido, a proposta estabelece metas obrigatórias progressivas de reutilização, em especial para as empresas do setor das bebidas alcoólicas e não alcoólicas.   

Esta nova legislação, portanto, abre uma nova era para as embalagens alimentares: a era da sustentabilidade.

Neste contexto, os consumidores são chamados a desempenhar um papel fundamental, pois são os atores que permitem que, depois da sua utilização, as embalagens alimentares sejam:

– Separadas, recolhidas e encaminhadas para serem subsequentemente tratadas e valorizadas (por exemplo, como material reciclado) da forma mais apropriada; ou

– Reutilizadas quando forem concebidas para esta finalidade.

Posto isso, é essencial que o advento de soluções de food packaging mais sustentáveis seja acompanhado por hábitos de consumo igualmente mais sustentáveis. Algo que só se pode alcançar capacitando os consumidores através de campanhas de sensibilização e da disponibilização da relevante informação ambiental diretamente nas embalagens.

De facto, a rotulagem constitui uma ferramenta particularmente eficaz para ajudar o consumidor a adotar o comportamento mais correto do ponto de vista ambiental na gestão doméstica dos resíduos das embalagens. Para esta matéria específica, a proposta da Comissão Europeia atualmente em discussão pretende assegurar maior harmonização no mercado comunitário, garantindo desta forma o mesmo nível de proteção do ambiente e dos interesses dos consumidores em toda a UE.

Efetivamente, nos últimos anos, vários países europeus introduziram disposições nacionais para a rotulagem ambiental das embalagens.  É o caso de França, onde desde 2022, conforme o artigo L541-9-3 do Code de l’environnement, as embalagens recicláveis devem ostentar um ícone especifico (o logo ‘Triman’) e menções funcionais à sua triagem pós-consumo. Mais recentemente, Itália seguiu o mesmo caminho (Decreto Legislativo 3 settembre 2020 n. 116), enquanto, em Portugal, a rotulagem ambiental das embalagens é atualmente regulamentada através de um sistema voluntário, que tem já bastante expressão no segmento food.

Portanto, neste momento, coexistem no mercado comunitário vários sistemas de rotulagem ambiental das embalagens. Desta forma, a mesma embalagem comercializada em diversos mercados internacionais poderá vir a ostentar, em simultâneo, pictogramas e/ou instruções diferentes para a sua triagem depois da utilização. Aliás, a legislação portuguesa – designadamente o artigo 28.º, n.º. 2, do Decreto-Lei n.º 157-D/2017 (UNILEX) – permite expressamente tal coexistência no mercado nacional no caso das embalagens rotuladas em conformidade com a legislação de outros Estados-membros da UE. No entanto, se não se esclarecer de forma inequívoca que um determinado ícone e/ou menções se referem a um mercado específico, existe o risco concreto de que o consumidor não elimine os resíduos da embalagem como deve fazer.

Que, a nível europeu, o objetivo último seja a definição de um quadro jurídico mais harmonizado para a rotulagem ambiental das embalagens não se infere apenas da proposta legislativa atualmente em discussão.

Em fevereiro deste ano, a Comissão Europeia abriu um procedimento de infração contra a França. Segundo o executivo comunitário, para além de não ter sido previamente notificada em conformidade com a Diretiva (UE) 2015/1535, a legislação francesa em matéria de rotulagem ambiental das embalagens integra uma violação do princípio da livre circulação das mercadorias, exigindo-se tal marcação também no caso das embalagens fabricadas noutros países da UE. Além disso, questiona-se a proporcionalidade da normativa francesa pois, devendo utilizar-se mais material no fabrico das embalagens para efeito das informações ambientais que têm de figurar no rótulo, vai consequentemente aumentar a quantidade de resíduos dessas embalagens.

O novo sistema de rotulagem ambiental europeu para as embalagens (alimentares e não) e para os respetivos ecopontos deverá aplicar-se a partir de 2028. Resta-nos ver, no entanto, se esta medida será suficiente para sensibilizar os consumidores a efetuar a triagem dos resíduos das embalagens na sua própria casa tal como indicado na rotulagem. As disposições legais e os esforços da indústria alimentar que visam tornar as embalagens mais sustentáveis serão frustrados caso os padrões de consumo não evoluam no mesmo sentido.

50% de noção (ou breve reflexão sobre o conceito de «preço mais baixo anteriormente praticado»)

Doutrina

Chegada a época franca do frio e das castanhas, aproxima-se também sem pudores a época dos descontos apocalípticos, das sextas-feiras negras e dos fatídicos dias em que milhares de adultos (em Portugal e no mundo inteiro) renunciam temporariamente à sua dignidade para, num salto mais comprido ou num atropelo mais bem conseguido, sem piedade pelo próximo, arrecadarem de irresistíveis prateleiras milimetricamente organizadas os afamados brinquedos com “descontos nunca antes vistos”.

Mas será mesmo assim? Procurei, de forma perfunctória e sem qualquer pretensão de rigor científico, em 2022 e agora, em 2023, comparar os preços de determinados produtos ao longo do ano e durante este período promocional escatológico. Cheguei à conclusão de que, em muitos casos, bens que em período promocional e com “50% de desconto” apresentavam um determinado preço, eram vendidos a um preço muito semelhante, sem descontos, meses antes, no mesmo estabelecimento comercial.

Não é uma novidade. Uma breve pesquisa pela Internet permite encontrar diversas queixas de particulares e até mesmo de associações ligadas à defesa do consumidor que vão no mesmo sentido da conclusão da minha pesquisa: muitos estabelecimentos comerciais manipulam o preço ao longo do ano de modo a que, embora cumprindo de forma literal o que se encontra legalmente estabelecido, o desconto real para o consumidor seja quase nulo.

O Decreto-Lei n.º 70/2007, de 26 de março, que regula as práticas comerciais com redução de preço nas vendas a retalho praticadas em estabelecimentos comerciais, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 109-G/2021, de 10 de dezembro, que transpôs parcialmente a Diretiva (EU) 2019/2161 do Parlamento Europeu e do Conselho, relativa à defesa dos consumidores (Diretiva Omnibus, já abordada no Blog aqui e aqui), determina, no artigo 6.º, que durante a realização de práticas comerciais com redução de preço, nas modalidades de venda previstas, os letreiros devem exibir de forma clara o novo preço e o preço mais baixo anteriormente praticado. O preço mais baixo anteriormente praticado é, na aceção dada pelo diploma, “o preço mais baixo a que o produto foi vendido nos últimos 30 dias consecutivos anteriores à aplicação da redução do preço” (artigo 3.º, n.º 2, alínea a)).

É evidente que à teleologia da norma subjaz uma proteção e segurança acrescida para o consumidor e não o seu oposto. A leitura dos Considerandos da primitiva Diretiva 98/6/CE do Parlamento e do Conselho, relativa à defesa dos consumidores em matéria de indicações dos preços dos produtos, possibilita inferir de forma clara que o que está em causa é o direito que o consumidor tem a um funcionamento honesto do mercado e à informação “precisa, transparente e inequívoca” sobre os preços dos produtos que lhe estão a ser oferecidos.

No mesmo sentido vai o preâmbulo do Decreto-Lei n.º 109-G/2021 ao declarar que o objetivo de se tomarem por referência os preços praticados nos 30 dias anteriores à redução do preço, incluindo aqueles que o sejam em eventuais períodos de saldos ou de promoções, é garantir uma maior proteção dos consumidores no âmbito das práticas comerciais de redução de preço e assegurar um maior equilíbrio do mercado, acrescentando que as comparações com preços de referência devem ser efetivamente reais, “por forma a assegurar a livre e esclarecida formação de vontade pelos consumidores”.

Não se trata, pois, de um assunto de mera aritmética. Ao adotar esta redação, o legislador teve a pretensão de assegurar que, ao apresentar o preço mais baixo praticado nos 30 dias anteriores à data da redução do preço, o consumidor pudesse fazer uma comparação razoável entre o valor mais baixo que o profissional esteve disposto a atribuir a um determinado bem e o valor desse bem com desconto, a fim de ter uma ideia real da poupança final.

Sabemos que, no que diz respeito aos preços dos produtos, há flutuações de mercado, inflação, e muitos outros fatores que têm impacto na variação do valor final. Por outro lado, pese embora o meu inexperto estudo de mercado me tenha dado sinais de alarme, também é certo que poderá não ser uma prática absolutamente generalizada.

Contudo, a verdade é que, pelo menos nalguns casos, podemos afirmar com segurança que estamos perante um insólito paradoxo, que nos poderá até mesmo remeter para o conceito de prática comercial desleal: o cumprimento formal de uma norma e a concomitante violação da ratio que a preside.

Adaptando livremente um adágio conhecido, “a ignorância do consumidor nunca aproveitará ao próprio”, a verdade é que, em 2023, o “consumidor médio” tem acesso a um conjunto de ferramentas que lhe permite acompanhar a evolução dos preços dos produtos e até mesmo comparar com os preços praticados em diversos estabelecimentos comerciais. Ainda assim, nesta relação assimétrica, incumbe às empresas não só cumprir o que se encontra disposto na lei, mas também promover uma conduta profissional ética que respeite o princípio da boa-fé e a contraparte do negócio.

Os exercícios de benchmarking legal e regulatório são sempre interessantes e permitem conhecer as boas (e más) práticas que poderão (ou não), no futuro, ser adotadas (ainda que com adaptações).

Nos EUA, há cerca de 50 anos, a Federal Trade Commission (FTC)[1] decidiu[2] que a melhor forma de evitar práticas abusivas ou enganadoras no que diz respeito aos preços seria a ausência de enforcement nesta matéria, partindo do princípio que a livre concorrência faria naturalmente a regulação do mercado. Contudo, a realidade provou que nem sempre é assim[3] e as ações judiciais coletivas relacionadas com práticas enganosas de indicação de preços (deceptive pricing practices) têm-se sucedido[4][5].

Ainda assim, parece-me interessante o caminho seguido pela FTC nas suas Guides Against Deceptive Pricing[6]. Nestas orientações, a FTC define cinco situações distintas: (i) comparação com preço anteriormente praticado (former price comparisons); (ii) comparação de preços entre retalhistas (retail price comparisons; comparable value comparisons); (iii) publicidade de preços de retalho estabelecidos ou “PVP recomendado” (advertising retail prices which have been established or suggested by manufacturers or other nonretail distributors); (iv) ofertas de produtos na compra de outro produtos (bargain offers based upon the purchase of other merchandise); e (v) comparações de preços com critérios iguais quando se trata de situações distintas (miscellaneous price comparisons).

Para os propósitos deste texto gostaria de me deter apenas na primeira orientação: comparação com o preço anteriormente praticado. Nesta orientação, a FTC define o preço anteriormente praticado como o preço verdadeiro pelo qual o artigo foi vendido ao público de forma regular, durante um período considerável e estável, e apenas admite como verdadeira a prática de redução de preço que tenha como referência os preços praticados com este critério. Caso a redução de preço apresentada tenha como base um preço anteriormente praticado artificialmente inflacionado, a oferta é considerada falsa ou enganadora[7].

Esta construção normativa alicerçada no princípio da boa-fé onera o profissional e permite adicionar um critério interpretativo importante para a definição do conceito. A comunicação correta e verdadeira da informação relativa ao preço anteriormente praticado é essencial para a formação do animus contrahendi do consumidor que, quando compra um bem com redução de preço, fá-lo por acreditar que vai pagar um preço inferior ao preço de venda habitual e que, naquele momento, conhece qual é a diferença real entre os dois preços.

Por outro lado, o critério de estabilidade e de continuidade temporal do preço anteriormente praticado previne manipulações abusivas ou alterações arbitrárias por parte do profissional e viabiliza um controlo maior do lado do consumidor. A utilização destes parâmetros obriga, como se pode constatar pelo exemplo dos EUA, a uma vigilância mais constante e mais apoiada no poder coercitivo, mas pode significar também uma proteção mais eficaz do consumidor.

Perante o exposto, impõe-se, pois, avaliar a aplicação do artigo 3.º, n.º 2, alínea a) do Decreto-Lei n.º 70/2007 e questionar se a definição de “preço mais baixo anteriormente praticado” tal qual como se encontra descrita nos termos atuais serve de facto os interesses do consumidor; ou se não será tempo de adotar novos critérios que componham uma definição mais robusta e menos permeável a manipulações e violações diretas de direitos fundamentais dos consumidores, como são o direito à informação e à transparência.


[1] Agência governamental americana com a missão de regulamentar e promover a proteção dos consumidores, instituída em 1914 pelo Federal Trade Commission Act (https://www.ftc.gov/about-ftc/history).

[2] https://scholarship.law.stjohns.edu/cgi/viewcontent.cgi?referer=&httpsredir=1&article=4332&context=lawreview

[3] https://journals.sagepub.com/doi/10.1177/00222429231164640 apud https://news.nd.edu/news/disclosing-true-normal-price-recommended-to-protect-consumers-from-deceptive-pricing/  

[4] https://risnews.com/promotional-pricing-right-side-law

[5] https://content.next.westlaw.com/practical-law/document/I6dfb3ee4077511e89bf099c0ee06c731/Beware-of-the-Sale-Complying-with-Promotional-Pricing-Guidelines?viewType=FullText&transitionType=Default&contextData=(sc.Default)

[6] Disponíveis no Code of Federal Regulations, em https://www.ecfr.gov/current/title-16/chapter-I/subchapter-B/part-233, § 233.1 a § 233.5

[7]If the former price is the actual, bona fide price at which the article was offered to the public on a regular basis for a reasonably substantial period of time, it provides a legitimate basis for the advertising of a price comparison. Where the former price is genuine, the bargain being advertised is a true one. If, on the other hand, the former price being advertised is not bona fide but fictitious—for example, where an artificial, inflated price was established for the purpose of enabling the subsequent offer of a large reduction—the “bargain” being advertised is a false one; the purchaser is not receiving the unusual value he expects. In such a case, the “reduced” price is, in reality, probably just the seller’s regular price.

Haverá lojas de segunda mão no Metaverso?

Doutrina

O conceito de Metaverso tem estado em declínio, no entanto, investigadores continuam a avançar no desenvolvimento de tecnologias de dispositivos de realidade virtual e aumentada, com o objetivo de aperfeiçoar a experiência do mundo virtual tridimensional. A perspetiva de um futuro onde cidades são duplicadas em reinos virtuais e as nossas vidas estão entrelaçadas com avatares continua a ser uma possibilidade. Este potencial futuro depende da capacidade que as realidades virtuais terão de replicar com precisão as nossas experiências atuais. Contudo, o atual quadro jurídico pode revelar-se inadequado para lidar com as complexidades resultantes destes avanços.

Uma questão notável gira em torno da revenda de bens adquiridos dentro destes espaços virtuais. Atividade tão comum na atual realidade pode gerar maiores problemas quando transportada para um mundo virtual, devido a entendimentos relativos aos direitos autorais e a doutrina do esgotamento.

A conhecida doutrina do esgotamento proclama que, após a aquisição legítima de um bem com direitos autorais, seu proprietário pode efetuar a revenda sem a necessidade de autorização do detentor dos direitos autorais. Por exemplo, é possível comprar e revender um livro físico sem autorização adicional do editor, autor ou qualquer outra pessoa. A ideia subjacente é que, uma vez que um bem com direitos autorais é vendido legalmente, os direitos autorais de distribuição são esgotados, impedindo-os de exigir uma compensação adicional pela sua revenda.

Entretanto, este princípio não se aplica de forma harmoniosa aos bens digitais. Neste caso, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) tem duas compreensões distintas. No caso UsedSoft de 2012, que dizia respeito à revenda de software, o tribunal estabeleceu que quando é concedida uma licença que permite o uso indefinido do software em troca de uma taxa, este arranjo qualifica-se como venda. Consequentemente, o princípio do esgotamento é aplicável, permitindo ao adquirente revender o software sem a necessidade de obter permissão do detentor dos direitos autorais.

Por outro lado, uma posição diferente surgiu na decisão Tom Kabinet em 2018 envolvendo a revenda de eBooks. Neste caso, o TJUE decidiu que, mesmo que um eBook seja disponibilizado para download por período indefinido e o consumidor pague uma taxa, a presença de conteúdo com direitos autorais para além do software desencadeia uma comunicação ao público, em vez de distribuição. Como resultado, a doutrina do esgotamento é considerada inaplicável e a revenda de tais produtos digitais dependerá da autorização do titular dos direitos autorais.

Para determinar se um bem digital num ambiente de realidade virtual é mais semelhante a um software, aplicando o raciocínio do UsedSoft, ou a um eBook, com base na decisão Tom Kabinet, é importante avaliar a proteção dos direitos autorais que esses bens irão englobar. A lei de direitos autorais da UE protege criações intelectuais que refletem a personalidade do autor, manifestada pelas suas escolhas livres e criativas. Além disso, o tribunal europeu já decidiu na decisão InfoPaq que meras partes da obra já podem ter proteção de direitos autorais.

Especificamente no caso dos videogames, o TJUE decidiu que a proteção de direitos autorais se aplica à criação como um todo, incluindo todas as suas partes de originais, nomeadamente o software, bem como os elementos gráficos e sonoros. É possível transpor, mutatis mutandis, este entendimento para uma realidade virtual. Assim, é razoável assumir que os vários componentes dos mundos virtuais podem ser protegidos por direitos autorais devido à expressão da originalidade dos criadores durante o processo de desenvolvimento.

Dado isso, a proteção de direitos autorais para bens digitais numa realidade virtual vai além do software. Isso aproxima os bens digitais comercializados em mundos virtuais aos eBooks atuais, uma vez que a existência de direitos autorais para além do software foi um fator relevante na decisão Tom Kabinet. Portanto, utilizando esse precedente legal como princípio orientador, quando um consumidor compra um item digital dentro de uma realidade virtual, como o Metaverso, a sua capacidade de revendê-lo dependerá da autorização concedida pelo detentor dos direitos autorais (presume-se que seja a empresa desenvolvedora).

Este cenário difere da garantia convencional oferecida aos consumidores ao adquirir bens físicos, onde a possibilidade de revenda é concedida. Em vez disso, a viabilidade de revender itens digitais dentro de uma realidade virtual dependerá de acordos contratuais, muitas vezes ocultos nos termos de uso raramente lidos.

No cenário atual de eBooks, as empresas comercializam os seus produtos como “vendas” enquanto estabelecem acordos de licenciamento que não transferem a propriedade para os compradores. Em essência, os compradores pagam pela autorização de usar o conteúdo digital perpetuamente em dispositivos designados. Isso explica por que os livros digitais adquiridos em plataformas como Kindle ou Kobo não podem ser transferidos, revendidos ou doados, mas apenas lidos na sua biblioteca pessoal.

Se uma abordagem semelhante for adotada para realidades virtuais, como o Metaverso, a capacidade dos consumidores de revender itens adquiridos, sejam roupas, casas ou obras de arte virtuais, seria severamente limitada. Dependendo dos termos contratuais da plataforma, sua utilização pode estar limitada ao armazenamento nas contas dos usuários, não podendo existir, por exemplo, lojas de segunda mão no Metaverso.

No contexto de tecnologias emergentes como blockchain e NFTs (Tokens Não Fungíveis), muitos bens digitais em realidades virtuais são adquiridos como investimento, impulsionados pela possibilidade de revenda para obter lucro. Por exemplo, Decentraland é uma plataforma de realidade virtual que utiliza as suas criptomoedas para permitir aos utilizadores adquirir ativos virtuais, como roupas e imóveis virtuais. No entanto, como mencionado anteriormente, é possível que a legalidade de revenda de tais ativos varie de acordo com os termos de uso, podendo depender da autorização prévia do detentor dos direitos autorais.

Em conclusão, a perspetiva de ter um mercado de segunda mão de bens virtuais no Metaverso e em realidades virtuais semelhantes está intimamente ligada aos acordos contratuais estabelecidos com a plataforma, em vez de ser inerente ao consumidor, como acontece com bens físicos. O cenário atual, moldado por tecnologias emergentes, urge por uma maior proteção ao consumidor, vulnerável aos termos de uso destas plataformas que regem as transações virtuais.

Uma proposta de proibição de produtos fabricados com recurso a trabalho forçado no mercado da UE

Doutrina, Legislação

No dia 14 de setembro de 2022, a Comissão Europeia apresentou a Proposta de Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho sobre a proibição de produtos fabricados com recurso ao trabalho forçado no mercado da União Europeia, tendo sido agora aprovada, no passado outubro, sem votos contra, por duas comissões do Parlamento Europeu.

Numa altura em que muito se debate sobre sustentabilidade na UE – com especial ênfase, é preciso dizê-lo, na sustentabilidade ambiental – é com entusiasmo que se recebe a notícia de uma proposta de regulamentação que tutela diretamente o S dos pilares ESG. Depois da Diretiva do Reporte de Sustentabilidade e da Proposta de Diretiva relativa ao Dever de Diligência das Empresas (DDD), diplomas que recaem diretamente sobre as obrigações das empresas, surge então agora uma proposta especificamente vocacionada para limitar a comercialização de bens que resultem de trabalho forçado, que vem intervir diretamente sobre os bens e não criando propriamente novas regras para as empresas. A viabilização desta Proposta depende da aprovação do Parlamento Europeu e do Conselho, sendo o Regulamento depois aplicado a todos os Estados-Membros 24 meses após a respetiva entrada em vigor.

Esta iniciativa é, em geral, de aplaudir. É uma iniciativa relevante que dignifica e densifica os princípios comunitários e multilaterais de defesa dos direitos humanos, sendo sobretudo de salientar a ousadia de se iniciar um movimento legislativo que, a ser aprovado, comportará consequências muitíssimo expressivas no panorama do comércio europeu. Se pensarmos, por exemplo, dentro do setor têxtil, apenas nos bens de vestuário produzidos com algodão como matéria-prima, uma em cada cinco peças dessa roupa envolve trabalho forçado na sua produção, sendo, por isso, eliminável do comércio europeu. Não se descarte, por isso, a coragem subjacente à elaboração desta Proposta – ela comporta uma alteração notável do quadro vigente e não se refreia pela circunstância de os consumidores europeus poderem vir a encontrar as prateleiras mais folgadas, com todas as consequências que daí advêm para vários setores.

Não deixa também de ser uma proposta visionária, no sentido em que acolhe as preocupações cada vez mais crescentes dos consumidores europeus em relação à questão.

Sobre os aspetos positivos desta Proposta:

• É de ressaltar, em particular, a potencialidade da sua aplicação aos bens comercializados por todas as empresas – micro, pequenas, médias e grandes empresas – e por todos os operadores económicos, o que significa que tem a potencialidade de impactar (finalmente) absolutamente todos os consumidores europeus que compram bens. Será, neste sentido, uma boa ultrapassagem (ou complemento) das limitações da DDD, ainda que apenas em termos de sustentabilidade social.

• É de aplaudir a ideia de implementação de entidades de investigação do histórico da cadeia de abastecimento dos bens que ingressam no mercado europeu, entidades e competências essas que mais cedo ou mais tarde teriam de ser criadas/adaptadas na União de forma a honrar a expiação do problemático fenómeno do trabalho forçado. De acordo com a Proposta, as autoridades competentes conduzirão investigações e decidirão na sequência dessas investigações. As decisões destas autoridades deverão depois ser comunicadas às autoridades aduaneiras, que serão responsáveis pela identificação dos produtos em causa e pela realização de controlos das importações e exportações na fronteira da UE. Infelizmente, a atribuição deste controlo dividido entre autoridades nacionais e autoridades aduaneiras não prima pela melhor abordagem ao problema, deixando uma larga margem ao contorno do sistema arquitetado .

• A Proposta sugere a criação de uma base de dados relativa a zonas e produtos com exposição ao risco de utilização de trabalho forçado, sendo útil às empresas que queiram contornar fornecedores problemáticos. Este é um aspeto positivo, sobretudo pela transparência e acesso aberto a toda a comunidade, ainda que tivesse sido relevante pensar-se em formas de tornar essa comunicação eficaz junto do consumidor. Apesar de tudo, é um passo bastante importante a assinalar, sobretudo pelo quadro absolutamente dúbio e cinzento que se encontra atualmente nesta matéria.

• É de felicitar o estabelecimento de critérios específicos para a avaliação do risco de os operadores económicos estarem imiscuídos ou não em cadeias de abastecimento enformadas por escravatura moderna. Estes critérios serão muito úteis à condução da investigação que a entidade responsável por este controlo terá de levar a cabo, levantando o véu daqueles que são os sinais de alarme a que empresas, consumidores e mesmo entidades públicas devem estar atentos no momento da contratação.

A avaliação terá em conta os seguintes critérios (não exaustivos):

(i) Observações apresentadas por pessoas singulares ou coletivas ou por qualquer associação sem personalidade jurídica;

(ii) Indicadores de risco e outras informações, que devem basear-se em informações independentes e verificáveis, incluindo relatórios de organizações internacionais, em especial da Organização Internacional do Trabalho, da sociedade civil e de organizações empresariais, e ter em conta a experiência adquirida com a aplicação da legislação da União que estabelece requisitos de dever de diligência em matéria de trabalho forçado;

(iii) A base de dados sobre zonas ou produtos com exposição ao risco de utilização de trabalho forçado;

(iv) Informações e decisões codificadas no sistema de informação e comunicação, incluindo quaisquer casos anteriores de cumprimento ou incumprimento da proibição por parte de um operador económico;

(v) Informações solicitadas pelas autoridades competentes a outras autoridades pertinentes sobre se os operadores económicos objeto de avaliação estão sujeitos ao dever de diligência em matéria de trabalho forçado e exercem esse dever em conformidade com a legislação aplicável da União ou com a legislação dos Estados-Membros que estabeleça requisitos de dever de diligência e de transparência no que diz respeito ao trabalho forçado.

Se a iniciativa é sem dúvida para se elogiar, ocorre, ainda assim, que apresenta também alguns problemas e limitações que podem e devem ser consideradas no futuro do procedimento legislativo.

Além das que foram já sendo assinaladas, é de destacar pela negativa a proposta de destino a oferecer aos bens que venham a ser considerados produzidos em condições de trabalho forçado.

São dois os cenários:

(i) Se, antes da colocação dos bens no mercado, se detetar que o bem não cumpre os requisitos, as autoridades competentes determinarão a proibição de venda no mercado da UE.

(ii) No entanto, se os bens já estiverem no mercado, será ordenada a retirada e eliminação desses bens, a expensas do operador económico, bem como a proibição de exportação desses bens (“os operadores económicos que tenham sido objeto de investigação [devem retirar] do mercado da União os produtos em causa já disponibilizados e [mandá-los] destruir, inutilizar ou de outra forma eliminar” – Considerando 27).

Ainda que a solução do ponto (i) se compreenda, obviamente que a solução do ponto (ii) não pode passar por este desfecho. O bem jurídico que se pretende proteger com a criação deste Regulamento será sobretudo o da proteção da integridade física dos “trabalhadores” (e, no máximo, a expectativa do consumidor ético e de outras entidades), que não sai protegida com a retirada do bem do mercado. Antes pelo contrário, esta consequência é desastrosa para os princípios de sustentabilidade ambiental que pautam a agenda da UE por estes dias. Não pode a UE tratar um bem fruto de escravatura moderna como se de um bem perigoso se tratasse. A situação é exatamente a inversa: a produção do bem é que tornou perigosa a situação para o “trabalhador”. Retirar o bem do mercado não oferece nenhuma vantagem para nenhum deles, ainda que se compreenda que é uma medida de desincentivo ao operador económico. Mesmo que a solução venha a ser a de doar os bens (pelo menos os perecíveis) – que seria uma solução, em geral, mais sustentável – tal não ultrapassa o problema de não responder à verdadeira motivação de criação do Regulamento. Devem, pois, encetar-se medidas de combate à escravatura moderna, sem dúvida, mas em harmonia com todos os pilares da sustentabilidade e em fidelidade à solução do problema de facto.

As alternativas existem.

Comparação da Proteção do Utilizador Profissional e do Consumidor nas Plataformas Digitais

Doutrina

No passado mês de agosto, foi publicado em Diário da República o Decreto-Lei n.º 68/2023, de 16 de agosto, que vem, finalmente, estabelecer coimas para o incumprimento dos  deveres previstos no Regulamento (UE) 2019/1150 do Parlamento Europeu e do Conselho de 20 de junho de 2019 relativo à promoção da equidade e da transparência para os utilizadores profissionais de serviços de intermediação em linha (Regulamento).

Este Regulamento concentra, num único documento, matérias que, no que à proteção do consumidor diz respeito, estão distribuídas por inúmeros diplomas europeus (nomeadamente, as Diretivas (UE) 2019/771 e (UE) 2019/770, a Diretiva (UE) 2019/2161 e o Regulamento (UE) 2022/2065), que estão atualmente refletidos nos mais variados diplomas nacionais.

Assim, o presente texto propõe-se a comparar a proteção conferida aos consumidores com aquela conferida aos utilizadores profissionais de serviços de intermediação em linha.

Em primeiro lugar, cumpre esclarecer qual o papel que, em termos práticos, cada um destes intervenientes tem na relação triangular típica das plataformas digitais. Para tal, o exemplo que se afigura como típico será o das plataformas digitais de transporte, como é o caso da Uber ou da Bolt. Nessa sede, o consumidor será o cliente, o utilizador profissional o condutor e o prestador de serviços de intermediação em linha a plataforma.

Quanto ao regime que protege os utilizadores profissionais, este prevê, à semelhança do que decorre do direito do consumo, deveres de transparência na comunicação por parte dos prestadores de serviços de intermediação em linha (doravante “plataforma”).

Destaca-se, em especial, a necessidade de as cláusulas contratuais gerais estarem disponíveis em local acessível em todas as fases da relação contratual, incluindo em momento prévio à contratação.

Por outro lado, no que ao conteúdo mínimo das cláusulas contratuais gerais diz respeito, é possível afirmar que, quanto a determinados tópicos, o legislador foi mais longe na proteção do utilizador profissional, conferindo-lhe um direito à transparência quanto à afetação dos direitos de propriedade intelectual. Ainda no tópico da proteção da propriedade intelectual do utilizador profissional, o legislador adotou um papel protecionista, ao munir o utilizador profissional de conhecimento quanto ao regime aplicável às informações fornecidas ou geradas pelo próprio, no contexto do serviço de intermediação em linha.

Ao contrário do que se poderia esperar, não são raros os tópicos em que a proteção do utilizador profissional vai além da proteção do consumidor.

Outro exemplo prático desta abordagem, é o requisito, imposto pelo Regulamento, de as plataformas notificarem, num suporte duradouro, os utilizadores profissionais de qualquer proposta de alteração das suas cláusulas contratuais gerais.

Ainda que esta seja a abordagem de muitas empresas, de facto não existe na jurisdição portuguesa uma obrigação tão expressa quanto esta, que imponha a comunicação de alterações em formato duradouro. É facto que o próprio regime das Cláusulas Contratuais Gerais acaba por, indiretamente, obrigar a uma tal comunicação, por decorrência dos deveres de comunicação e informação. Sem prejuízo, não vigora entre nós uma obrigação expressa e direta que imponha uma tal comunicação em formato duradouro aquando de uma alteração das cláusulas.

Em termos práticos, a consequência que daqui advém é que haverá sempre margem para a empresa levar a tribunal a questão da comunicação efetiva dos típicos “termos e condições” a um consumidor. Por outro lado, quanto aos utilizadores profissionais, por decorrência da norma sob análise, ainda que tal opção não esteja, obviamente, proibida, existindo uma norma expressa a determinar a forma de comunicação de alterações às cláusulas, a predisposição de uma empresa para disputar o tema em tribunal será certamente mais reduzida.

Em contraste, encontramos também no âmbito do diploma que nos ocupa, direitos que podem beneficiar o consumidor. Prevê o Regulamento que as plataformas devem garantir que a identidade do utilizador profissional seja claramente visível, espelhando o disposto no artigo 45.º n.º 1 alínea b) do Decreto-Lei n.º 84/2021 de 18 de outubro. Também as obrigações de transparência quanto às classificações, vertidas no artigo 5.º do Regulamento, são semelhantes às aplicáveis à plataforma face ao consumidor, tendo estas obrigações sido introduzidas no direito do consumo por decorrência da transposição da Diretiva (UE) 2019/2161, relativa à defesa dos consumidores.

Destaca-se ainda uma outra obrigação, prevista no Regulamento, ilustrativa da opção do legislador de proteger de forma mais afincada o utilizador profissional do que o consumidor. O artigo 4.º do Regulamento limita a discricionariedade de a plataforma restringir, suspender e cessar a própria prestação de serviços. No fundo, para lançar mão da opção de restrição, suspensão ou cessação dos serviços a determinado utilizador profissional, a plataforma deve fundamentar e esclarecer o utilizador, bem como respeitar um pré-aviso de 30 dias (no caso da cessação).

Por fim, merece destaque o robusto procedimento interno de tratamento de reclamações que o legislador incumbe a plataforma de disponibilizar ao utilizador profissional, sendo este também um elemento sem paralelo no direito do consumo.

Quer o Regulamento, quer o diploma nacional de execução, encontram-se em pleno vigor e preveem coimas que poderão ir até ao valor de 5.000.000 euros.

No fundo, é possível concluir que o legislador europeu considerou que a posição frágil do utilizador profissional merece especial cuidado nos ordenamentos jurídicos dos Estados-Membros, tendo conferido a profissionais informados, que agem para fins relacionados com a sua atividade comercial, industrial, artesanal ou profissional, uma proteção mais abrangente do que ao consumidor, que em muitos casos, poderá dispor de menos informação do que o próprio utilizador profissional.                

Para os entusiastas do mundo das plataformas digitais que tenham interesse em explorar as obrigações legais impostas à parte B2B da relação triangular, recomenda-se a leitura do seguinte texto, que aborda o recente Digital Markets Act, onde são estabelecidas “regras harmonizadas que assegurem para todas as empresas (…) a disputabilidade e a equidade dos mercados no setor digital em que estejam presentes controladores de acesso, em benefício dos utilizadores profissionais e dos utilizadores finais”. Este diploma, ainda que preveja também obrigações para a fração B2B da relação triangular, restringe o seu âmbito de aplicação aos grandes players do mercado.