Jogar Sai Caro: A Manipulação Silenciosa dos Preços nos Videojogos

Doutrina

Por Leonor Gomes Martins e Tiago Ribeiro Longa

Numa era fortemente marcada pela digitalização, é compreensível que o elevado consumo de videojogos seja uma tendência crescente. A nível europeu, mais de metade dos consumidores jogam videojogos regularmente, sendo que as crianças jogam ainda mais, com 84% dos jovens entre os 11 e 14 a fazê-lo.

No passado dia 12 de setembro de 2024, o BEUC e outras 22 organizações membros de 17 países apresentaram uma queixa às autoridades europeias (Comissão Europeia e a CPC-Network – Consumer Protection Cooperation Network) sobre as práticas comerciais desleais das principais empresas de jogos online, como a Electronic Arts, a Epic Games e a Mojang Studios, responsáveis por jogos como EA Sports FC, Minecraft e Fortnite. A base da queixa assenta no facto de os consumidores não terem uma perceção clara do custo real dos itens digitais, o que acaba por levar a gastos excessivos. Desta forma, a ausência de transparência nos preços das moedas premium nos jogos (itens digitais, como jóias, pontos ou moedas, que podem ser comprados com dinheiro real, geralmente nos próprios jogos) e as “promoções” de moedas adicionais em pacotes incentivam os consumidores a gastar mais do que pretendem.

Ao visitar uma loja dentro do jogo para verificar as compras disponíveis, os consumidores costumam encontrar os preços apenas nas moedas utilizadas no próprio jogo, sem qualquer indicação do custo em dinheiro real, isto é, a informação sobre os preços efetivos não está acessível, exceto quando se adquirem moedas virtuais premium, o que constitui violação das leis de proteção do consumidor da União Europeia.

Esta prática cria um distanciamento entre o verdadeiro gasto de dinheiro real da ação de obter o item do jogo, o que torna desnecessariamente difícil para o jogador consumidor saber o custo monetário exato do que está a comprar (a título exemplificativo, podemos afirmar que um preço de 1.000 X – moeda fictícia – é significativamente menos concreto do que 10€).

Consequentemente, com este afastamento, as empresas de jogos conseguem reduzir a chamada “dor de pagar” (refere-se aos sentimentos negativos que as pessoas sentem ao gastar dinheiro) para os consumidores, diminuindo o seu limite, e aumentando a sua disposição para gastar. Este fenómeno é documentado por estudos recentes, que revelaram que o uso de moedas premium aumentou os gastos dos consumidores nos jogos, e que 92,3% dos jogadores que fizeram compras num jogo por meio de moedas virtuais e moedas reais declararam que era mais doloroso pagar em moeda real do que em moeda virtual.

Embora muitos consumidores escolham não usar dinheiro real nestes jogos, a introdução de moedas premium pode ser usada para explorar pessoas em situações vulneráveis, como aquelas com dependência de jogo, dificuldades em controlar impulsos, ou crianças. Os jogos “free to play” atraem especialmente estas últimas, já que não exigem uma compra inicial por parte dos pais. Esta barreira de entrada baixa deixa as crianças mais expostas a práticas manipuladoras incorporadas em diversos jogos.

Apesar da ausência de uma legislação específica na União Europeia para jogos e aplicações, o quadro legal atual garante uma proteção abrangente aos consumidores, incluindo a indústria dos videojogos.

Assim, no âmbito do direito substantivo, a Diretiva sobre os Direitos dos Consumidores, no artigo 6.º-1-a), transposto para o nosso ordenamento jurídico pelo Decreto-Lei n.º 24/2014) e a Diretiva relativa às Práticas Comerciais Desleais, no artigo 7.º-4 (transposto pelo Decreto-Lei n.º 57/2008), que são totalmente aplicáveis aos setores em causa, estabelecem que os consumidores devem ser devidamente informados acerca de elementos essenciais e pertinentes antes de celebrarem um contrato. Entre os dados que devem ser comunicados, destaca-se o preço efetivo do produto ou serviço que se pretende adquirir, informação que não está presente em muitas destas lojas virtuais. Por outras palavras, as compras dentro dos jogos deveriam ser sempre apresentadas em dinheiro real (por exemplo: euros), ou, pelo menos, indicar claramente a equivalência em moeda real. Se por alguma razão o preço não puder ser calculado razoavelmente com antecedência, deve estar indicado como é que este o será, caso contrário configura uma omissão enganosa à luz do regime das práticas comerciais desleais. O quadro jurídico europeu já prevê a proteção dos direitos dos consumidores, mas é essencial que as autoridades e reguladores adaptem essas normas às novas realidades digitais, promovendo um ambiente de jogo mais justo e transparente, uma vez que esta é uma prática recorrente e antiga. Só assim será possível proteger os jogadores, especialmente as crianças, e garantir que a indústria dos videojogos evolui de forma responsável e ética, sem colocar em risco o bem-estar financeiro dos seus consumidores.

Agressividade ou Lealdade? O Dilema do Modelo “Consent or Pay”

Doutrina

Em novembro de 2023, os utilizadores europeus das redes sociais Facebook e Instagram foram confrontados com uma escolha quanto à utilização dos seus dados pessoais, para efeitos da sua utilização em publicidade comportamental pela gigante Meta. De repente, um consumidor utilizador destas redes sociais recebe uma notificação persistente, na qual a Meta informa que terá de optar entre continuar a “utilizar gratuitamente com anúncios”, ou pagar uma subscrição mensal de pelo menos € 9.99 para aceder a uma versão da rede social sem publicidade comportamental. Para a maior parte dos milhares de milhões de utilizadores esta foi uma escolha simples (e obrigatória), uma vez que não era fácil remover a notificação que bloqueava o acesso à página do utilizador na rede.

Contudo, as instituições europeias e a doutrina têm feito correr muita tinta quanto à legalidade deste modelo de negócio implementado pela Meta e comumente designado de “Consent or pay” ou “Pay or okay”. Esta novidade surgiu na sequência do Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia Bundeskartellamt, no qual o Tribunal reconhece que os utilizadores têm o direito de recusar dar o seu consentimento de forma individual a operações de tratamento de dados que não sejam necessárias à execução do contrato, sem serem obrigados a abdicar da utilização do serviço digital no seu todo. Assim, é referido que o operador do serviço deve fornecer uma “alternativa equivalente não acompanhada de tais operações de tratamento de dados” e, se necessário, “mediante uma remuneração adequada” (Parágrafo 150).

Este tema está longe de estar encerrado, e encontra-se em discussão aberta à luz de vários ramos do direito da União, nomeadamente à luz do direito à proteção de dados pessoais, do direito da concorrência, e ainda do direito do consumo.

Após o lançamento do modelo de subscrição, o Bureau Européen des Unions de Consommateurs (doravante BEUC) emitiu um comunicado de imprensa expressando a sua convicção de que este modelo viola a Diretiva da Práticas Comercias Desleais, consubstanciando uma prática agressiva pelo exercício de influência indevida sobre o consumidor, e uma prática comercial enganosa por ação. Em julho de 2024, a Comissão Europeia e a CPC anunciaram o seguimento da ação e enviaram uma carta à Meta pedindo-lhe que proponha soluções até 1 de setembro de 2024 (as quais são, até ao momento, desconhecidas).

Cabe-nos aqui desenvolver o modelo “Consent or pay” pelo olhar da Diretiva das Práticas Comerciais Desleais, cingindo-se esta análise à validade dos argumentos que sustentam a agressividade desta prática.

Prática Comercial Agressiva

A Organização de Consumidores argumenta que o design da notificação consubstancia um “dark pattern”, que não possibilita que o consumidor utilizador aceda à sua página, contactos e fotos, e o pressiona a tomar uma decisão quanto ao modelo de subscrição.

De facto, uma configuração tendenciosa da interface da rede, se apresentada num contexto B2C, pode consubstanciar uma prática comercial enganosa, agressiva ou contrária à diligência profissional imposta pelo artigo 5.º da Diretiva. Tal dependerá do padrão em concreto, e se for suscetível de afetar o comportamento económico do consumidor médio (ou, tratando-se uma prática dirigida a um grupo de consumidores particularmente vulneráveis, o consumidor médio desse grupo).

No caso em análise, o argumento prende-se especificamente com a persistência da notificação da alteração do modelo de negócio, e a urgência que cria no consumidor para tomar uma decisão para poder aceder à sua conta. Ainda que este tipo de “subscrição forçada” não conste do elenco exemplificativo apresentado pela Comissão na UCPD Guidance, a verdade é que os elementos do caso concreto nos levam facilmente à conclusão de que tal prática é suscetível de distorcer o comportamento económico e transacional do consumidor médio.

Como nos indica o Acórdão Orange Polska[1] (C-628/17 [2019] ECLI:EU:C:2019:480), os Tribunais nacionais devem ter cautela ao qualificar uma prática comercial como o “exercício de influência indevida”, e na análise deste conceito as “informações prestadas antes da celebração de um contrato sobre as condições contratuais e as consequências da referida celebração são de importância fundamental para o consumidor” (para. 35).

Ora, por um lado, voltando ao nosso caso, a Meta anunciou no seu site oficial, a 30 de outubro de 2023, que iria “oferecer uma subscrição sem anúncios para os utilizadores na Europa”. Não obstante, o consumidor médio não é suficientemente diligente ao ponto de verificar este site, pelo que um email ou notificação prévia na própria interface da rede social teria mais oportunidades de retirar o elemento surpresa da notificação. É aqui que reside uma diferença factual muito relevante face ao Acórdão Orange Polska e que poderá por analogia, porventura, nortear uma decisão favorável ao BEUC.

Por outro lado, o formato binário e a persistência da notificação criam indubitavelmente uma pressão para o consumidor fazer a sua escolha de imediato, que penderá, tendencialmente, para a opção que afirma a continuação da utilização “gratuita”, mas com anúncios.

O formato e modo da notificação utilizado pela Meta é suscetível de prejudicar significativamente o período de ponderação do consumidor, nomeadamente, quanto ao impacto que cada opção tem nos seus dados pessoais e na sua carteira, levando-nos a tomar uma decisão de transação que, possivelmente, não tomaríamos em circunstâncias comerciais leais. Aliás, muitos de nós não lemos o texto até ao fim, com a pressa de verificar se tínhamos notificações novas.

Assim, a natureza da notificação, qualificável como “dark pattern”, e a persistência da mesma, intercedem a favor do argumento de que a Meta exerceu influência indevida sobre os seus utilizadores.

Ademais, não era evidente, para o consumidor médio, a opção de apagar a sua conta de utilizador ou de fazer o download dos seus dados pessoais, uma vez que tal não aparecia diretamente na notificação que bloqueava a página principal da rede.

É aqui que reside o fundamento da qualificação desta prática como “subscrição forçada”, como argumenta o BEUC.

Este elemento, por si só, justifica a invocação do Artigo 9(d) da Diretiva, consubstanciando um entrave desproporcional ao exercício pelo consumidor dos seus direitos, nomeadamente, a resolução do contrato ou troca de serviço.

Noutra perspetiva, esta é também uma clara violação do normativo do RGPD (Regime Geral de Proteção de Dados), segundo o qual retirar o consentimento deve ser tão fácil para o sujeito de dados, como dá-lo (Artigo 7(3), in fine). Esta violação de direito da proteção de dados pessoais deverá ser considerada e pesada na qualificação da prática comercial como agressiva, como o refere várias vezes a Comissão na UCPD Guidance.

Conclusão

A alteração do modelo de negócio da Meta per se não viola a Diretiva da Práticas Comerciais Desleais. A questão é mais profunda que isto, pois estão aqui essencialmente em conflito o direito fundamental à proteção dos dados pessoais (Artigo 8.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia) e o direito fundamental à liberdade de empresa (Artigo 16.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia) e de livre iniciativa económica (Artigo 61.º da Constituição da República Portuguesa). A análise que aqui se fez reporta-se sobretudo ao modo como o modelo foi apresentado aos consumidores europeus. E, nessa medida, a ponderação geral destes argumentos leva-nos a acompanhar a posição do BEUC quanto à qualificação como prática comercial desleal agressiva. No entanto, considerando a falta de precedente, não é inteiramente evidente se os Tribunais acompanharão este juízo.


[1] O caso em questão envolvia um consumidor que solicitou um contrato de telecomunicações por via do site da empresa de telecomunicações. Durante o processo de solicitação do contrato, o consumidor teve a possibilidade de consultar os detalhes da oferta e os contratos-padrão diretamente no site da empresa. Contudo, a celebração do contrato só seria possível na presença do funcionário da empresa, tendo o consumidor de declarar que tomou conhecimento dos documentos e que aceitava o seu conteúdo. O TJUE acabou por concluir que não se tratava de uma prática comercial agressiva por influência indevida, tendo, contudo, deixado orientações para a interpretação do conceito.

Que razões levam a uma escassa aplicação prática do Direito do Consumo em Portugal?

Doutrina

Por Ana Rita Agostinho, Andreia Gouveia, Carolina Furtado, Catarina Teixeira, Jorge Morais Carvalho, Laís Tourinho, Madalena Duarte, Mafalda Coimbra, Margarida Riso, Mariana Pais Albuquerque e Rafael Carvalho

No dia 11 de setembro, teve início a Pós-Graduação em Direito do Consumo, organizada pela Jurisnova e pela NOVA School of Law. Os participantes foram desafiados, desde logo, a responder à seguinte questão: que razões levam a uma escassa aplicação prática do Direito do Consumo em Portugal? A escassa aplicação prática reflete-se não só na perceção de um nível de cumprimento baixo, em comparação com uma legislação especialmente exigente, mas também na pouca jurisprudência dos tribunais judiciais, poucos reenvios prejudiciais, poucas decisões administrativas.

Neste texto, responde-se a essa questão, salientando os aspetos que foram assinalados na análise feita pelos participantes[1].

Destaca-se, em primeiro lugar, o nível baixo de literacia da generalidade dos consumidores. Os consumidores estão, em geral, pouco (e mal) informados sobre os seus direitos e deveres. A formação escolar a este nível é deficiente, o que leva a que o problema comece, desde cedo, na vida das pessoas, acentuando-se ao longo da vida, tendo em conta a falta de formação para a cidadania em geral e para o consumo em especial.

A falta de conhecimento da legislação aplicável está ligada a este baixo nível de literacia, sendo acentuada pela dispersão legislativa característica do Direito do Consumo em Portugal. A existência de normas dispersas pelo ordenamento jurídico, de forma pouco clara e organizada, constitui um entrave ao seu conhecimento efetivo. Neste sentido, assinala-se as vantagens que poderiam advir da aprovação de um código ou, pelo menos, de uma lei mais ampla, que agrupasse e sistematizasse os principais direitos e deveres dos consumidores.

O desconhecimento é especialmente evidente no que respeita a consumidores mais vulneráveis, com especial destaque para os imigrantes, que têm uma dificuldade no acesso e na compreensão da realidade, por não estarem tão adaptados à cultura jurídica e prática das relações de consumo.

O nível de conhecimento dos profissionais é também bastante baixo. Com um tecido empresarial dominado por micro e pequenas empresas, os aspetos indicados a propósito dos consumidores aplicam-se, quase sem variações, aos profissionais. Assim, as pessoas que devem cumprir a generalidade das normas de Direito do Consumo também não as conhecem em toda a sua extensão e complexidade. A dispersão legislativa torna o Direito de difícil apreensão, verificando-se ainda algumas incongruências e contradições em diferentes diplomas legais. A codificação poderia contribuir para melhorar a literacia dos profissionais em matéria de Direito do Consumo. Outro aspeto assinalado é a necessidade de formação dos profissionais, em especial os que têm contacto direto com o público, que deveria ser incentivada ou mesmo tornada obrigatória.

Por vezes, mesmo que o profissional queira cumprir, não o consegue fazer, pois, além de ser difícil, mesmo para quem procure, saber ao certo o que tem de ser feito, o nível de exigência é muito elevado, passando por um conjunto excessivo de deveres, por vezes sem eficácia prática, com custos muito elevados (quer financeiros quer organizacionais). Uma microempresa não tem, muitas vezes, condições para dar resposta a tudo aquilo que lhe é, no Direito escrito (ou em teoria), exigido. O Direito em ação (ou na prática) acaba, depois, por isso, por corresponder a menos do que a lei prevê.

É igualmente assinalada uma questão cultural, ligada à anterior, com impacto no nível de cumprimento da legislação de consumo. Os consumidores e os profissionais concordam muitas vezes, ainda que tacitamente, que ao negócio em causa não é aplicável toda a legislação de consumo. Estamos a falar de relações pessoais existentes entre o cliente habitual e o dono do café, do cabeleireiro ou da papelaria, muitas vezes a única pessoa que nele trabalha, que levam a uma informalidade com efeitos na consciência dos direitos subjacentes. Um pouco como se, nesses pequenos estabelecimentos, as regras não fossem as mesmas. O traço cultural de não conflituosidade confrontativa leva também os consumidores a, muitas vezes, não assinalar o incumprimento da lei perante o profissional

Outro aspeto indicado é a insuficiência da fiscalização de práticas contrárias ao Direito do Consumo.

Por um lado, salienta-se a falta de meios humanos das entidades fiscalizadoras e a ausência de orientações claras e transversais quanto à aplicação das normas de consumo. Acresce a perceção da inexistência de uma ação concertada por parte das várias entidades competentes nos casos em que a competência é partilhada.

Por outro lado, realça-se a inexistência de sanções adequadas em caso de incumprimento dos deveres por parte dos profissionais.

Do ponto de vista das normas de direito substantivo, é realçada, em especial por comparação com o direito brasileiro, a circunstância de o ressarcimento por danos não patrimoniais ser raro nas relações de consumo em Portugal e de, nos casos em que são atribuídas indemnizações, o seu valor ser baixo. Também as dificuldades de prova, por parte do consumidor, não são porventura compensadas por uma suficiente inversão do ónus. A utilização de conceitos indeterminados em vários diplomas constitui igualmente uma dificuldade no que respeita à aplicação prática do Direito do Consumo.

A verificação de pouca jurisprudência dos tribunais judiciais em matéria de Direito do Consumo estará relacionada com o valor médio baixo dos litígios, o que leva a que os consumidores internalizem o risco e não recorram a tribunal. Os custos associados ao acesso aos tribunais judiciais não compensam, na maioria dos casos, a propositura da ação. Os centros de arbitragem têm um papel importante neste domínio, sendo importante que se tornem mais conhecidos e que as suas decisões sejam publicadas. Por fim, é ainda realçado o papel que poderão ter algumas vias privadas de resolução de litígios, como as redes sociais ou os portais dedicados a inserção de queixas pelos consumidores. Estes mecanismos podem ser, em alguns casos, mais eficazes, mas fazem de certa forma concorrência à própria legislação e à sua aplicação, pois não se baseiam, em regra e no essencial, na estrita consideração do Direito aplicável.


[1] Tratando-se de um texto coletivo, é possível que alguma ideia não corresponda à perspetiva de todos os autores.

O que a Siri não diz sobre o que faz com dados pessoais

Doutrina

Os assistentes de voz virtuais são cada vez mais integrados no nosso dia a dia, permitindo realizar tarefas com simples comandos de voz. No entanto, as implicações da sua utilização para a privacidade dos utilizadores muitas vezes passam despercebidas.

Neste blogpost, vamos explorar os desafios que estes dispositivos apresentam em termos de proteção de dados, focando-nos nas bases de licitude para o tratamento de dados e nos requisitos de transparência que os responsáveis pelo tratamento devem observar.

O que são assistentes de voz virtuais?

Essencialmente, os assistentes de voz virtuais são concebidos para facilitar a execução de tarefas e, ao mesmo tempo, proporcionar ao consumidor acesso a informação. Por exemplo, smartphones já utilizam estes assistentes virtuais para definir alarmes ou lembretes. Da mesma forma, alguns automóveis integram assistentes que permitem ao condutor e ocupantes controlar o GPS por via de comandos de voz. O seu alcance é vasto, não se limitando, portanto, a ser um altifalante inteligente integrado em smartphones, smartwatch ou outro qualquer dispositivo com capacidades de Internet, um microfone e altifalantes.

Contudo, estes assistentes são também softwares complexos que levam ao tratamento de dados do consumidor – por exemplo, comandos de voz – e de eventuais terceiros, como palavras faladas, dados de texto, informações pessoais partilhadas e dados biométricos (reconhecimento de voz). Por exemplo, quando o consumidor pede ao seu assistente virtual para acender as luzes de casa, este capta a sua voz, converte o seu discurso em texto, processa o comando e implementa-o através, por exemplo, de ligação a outros sistemas a que o consumidor lhe tenha dado acesso.

Assim, para traduzir os comandos dos consumidores em ações, os assistentes virtuais têm uma contraparte de software que complementa o suporte físico onde estão integrados e que trata os dados pessoais de modo a executar as tarefas para que foram programados. Este tratamento de dados é complexo, envolvendo frequentemente diversas entidades e protocolos.

Dada a utilização quotidiana destes sistemas e a quantidade – e sensibilidade – dos dados pessoais tratados, dois problemas em particular surgem aquando da sua utilização: a necessidade de uma base de licitude para o tratamento de dados e o cumprimento de deveres de transparência por parte do responsável pelo tratamento.

Bases de licitude aplicáveis

O Regulamento Geral de Proteção de Dados (‘RGPD’) exige que o tratamento de dados pessoais dependa da aplicação de uma base de licitude do seu art. 6.º. Para categorias especiais de dados (por exemplo, dados biométricos), é também exigida a aplicação de uma das exceções do art. 9.º(2). Por isso, um dos elementos essenciais para um tratamento lícito de dados pessoais no contexto de assistentes de voz virtuais será a definição da base (ou bases) legal aplicável.

A escolha passa por compreender os vários tratamentos a que os dados pessoais estão sujeitos. Inicialmente, o assistente está em estado de espera até ser ativado por uma expressão-chave. Com a deteção dessa expressão (e, em alguns casos, o reconhecimento de voz do consumidor), o áudio é transmitido para fora do dispositivo, sendo processado pelo operador do software. Em seguida, o comando do utilizador é transcrito, interpretado e, dependendo da solicitação, pode ser compartilhado com aplicativos de terceiros (por exemplo, para controlar outros dispositivos inteligentes). A resposta ou ação solicitada é então executada.

Neste contexto, diferentes finalidades poderão estar em causa, pelo que a escolha de base de licitude pode variar.

Como vimos, o principal uso de um assistente de voz virtual é executar comandos de voz. Quando este tratamento envolve o armazenamento ou o acesso a informações no dispositivo terminal do consumidor, aplica-se o art. 5.º(3) da Diretiva ePrivacy, que exige o consentimento prévio. Contudo, há uma exceção: se o armazenamento ou o acesso for “estritamente necessário” para fornecer o serviço solicitado, o consentimento não é exigido.

Portanto, quando o tratamento de dados é necessário para a execução do pedido do consumidor, como a captura, transcrição e interpretação de comandos de voz, a base de licitude a utilizar será a execução de um contrato com o consumidor, conforme ao art. 6.º(1)(b) do RGPD. Todo o tratamento de dados suplementar a este – e que não seja necessário para a prestação do serviço solicitado – será, na maioria dos casos, sujeito a consentimento. Isto engloba três casos tipicamente relacionados com assistentes de voz virtuais.

Em primeiro lugar, nos casos em que a voz do utilizador é também utilizada para o identificar, estamos perante o tratamento de dados biométricos conforme definido no art. 4.º(14) do RGPD. O tratamento de tais dados requer não apenas uma base de licitude do art. 6.º, mas também uma exceção constante do artigo 9.º. A exceção será o consentimento explícito do titular dos dados (art. 9.º(2)(a) do RGPD).

Outra situação típica prende-se com o aperfeiçoamento contínuo dos assistentes virtuais levado a cabo pelos seus operadores. Em geral, este tratamento não pode ser enquadrado como necessário para a execução do contrato com o consumidor, pelo que a melhoria do serviço ou o desenvolvimento de novas funcionalidades requerem uma base legal distinta. Com base no raciocínio anterior, em princípio será necessário o consentimento do titular dos dados.

Por último, estes assistentes virtuais podem ter funcionalidades adicionais. Por exemplo, a personalização de conteúdos, embora esperada por alguns consumidores, nem sempre é um elemento intrínseco ao serviço oferecido por estes assistentes. Assim, quando a personalização não é estritamente necessária para a execução do contrato, o consentimento do titular de dados será novamente necessário.

O responsável pelo tratamento deve, assim, garantir que o tratamento de dados está em conformidade com os padrões definidos pelo RGDP e a Diretiva ePrivacy. Caso o consentimento do titular de dados seja necessário – nos casos em que o tratamento de dados não é essencial para a prestação do serviço solicitado, ou aquando do tratamento de categorias especiais de dados – este deve ser fornecido livremente e de forma específica, informada e inequívoca.

Direito de informação

A transparência é outro elemento fundamental. Os responsáveis pelo tratamento devem cumprir os requisitos estabelecidos pelo RGPD, nomeadamente nos arts. 5.º(1)(a), 12.º e 13.º, que impõem a obrigação de informar os utilizadores de forma concisa, transparente e acessível sobre o tratamento dos seus dados pessoais.

Cumprir estas exigências de transparência pode, contudo, ser um desafio significativo para os fornecedores de assistentes de voz virtuais, devido às particularidades tecnológicas desses sistemas.

Um dos principais obstáculos é a necessidade de informar todos os utilizadores — não apenas o consumidor que inicialmente adquire o dispositivo, mas também os utilizadores acidentais que podem interagir com o assistente de voz. Por exemplo, em dispositivos pessoais, como um smartphone, pode haver um único utilizador, mas em dispositivos partilhados, como os utilizados em casas inteligentes ou em automóveis, estaremos potencialmente perante múltiplos utilizadores. A situação torna-se ainda mais complexa quando, por exemplo, um smartphone pessoal se conecta a um carro e o assistente de voz passa a estar disponível para todos os passageiros. Nestes casos, os responsáveis pelo tratamento de dados devem garantir o cumprimento do dever de informação perante todos os titulares de dados cujos dados pessoais trate.

A forma de interação com estes assistentes gera também dificuldades na transmissão desta informação. Políticas de privacidade extensas e complexas, resultantes da integração de múltiplos serviços, podem agravar esta dificuldade. Por isso, embora esta tecnologia seja desenhada para interações por voz, por vezes torna-se necessário incluir ecrãs auxiliares que permitam um acesso facilitado à informação. Outros modelos são possíveis, como por exemplo o envio de hiperligações por e-mail. De igual forma, é recomendado que o dispositivo informe o consumidor e outros titulares de dados de quando está ‘à escuta’ de comandos, através de sinais visuais, como ícones ou luzes. Desta forma, os responsáveis pelo tratamento de dados gerado por estes assistentes podem facilitar o acesso à informação devida nos termos do RGPD, garantindo um tratamento de dados transparente e leal.

Pet Welfare: A New Realm for Consumer Protection?

Doutrina

Products and services intended for pets, including pet food, toys and other accessories, veterinary drugs and insurances, have been regulated for quite some time in the EU. Conversely, pet welfare is an emerging concept that reflects changing societal attitudes towards companion animals and their status in households. Especially cats and dogs are increasingly viewed as family members rather than property items, thus warranting legal protection as far as their physical and mental welfare is concerned (Duarte Cardoso et al, 2017).

Still, the regulation of pet welfare may also have important implications in terms of consumer protection, namely if one considers pet owners as consumers in the context of B2C commercial transactions.  

The European Union (EU) is moving exactly in this direction.

On 7 December 2023, the European Commission published a legislative proposal for the welfare of dogs and cats, which is undergoing ordinary legislative procedure at EU level. This proposal is meant to lay down a comprehensive set of welfare requirements for such animals when involved in commercial activities, i.e., when kept in and sold by breeding establishments, pet shops (where national legislation so allows) or animal shelters. 

In the last 50 years, the EU has developed a wide-ranging body of law for the protection of animals. In 2009, the Treaty of Lisbon gave more political prominence to animal welfare by formally recognising animals as sentient beings and by requiring the EU and its Member States to take their welfare into account when developing and implementing other EU policies, such as agriculture, fisheries, research, or the internal market (Article 13 of the Treaty on the Functioning of the European Union).

However, until now EU legislation has mainly focussed on the protection of the welfare of farmed animals. General welfare requirements exist for the rearing, transport and slaughter of farmed animals, in addition to standards that are species-specific (e.g., laying hens, broilers, calves, pigs, etc.).

Conversely, references to pet welfare in EU animal welfare legislation are scant. One notable exception is Regulation (EC) No 1/2005, which regulates animal welfare during transport and sets out specific standards for the transport of dogs and cats in the context of commercial activities (notably, minimum age as well as feeding and watering requirements). These standards are currently being reviewed to ensure a higher level of protection for those companion animals.

Other than that, EU legislation currently requires dogs and cats to be identified through a microchip, but only when imported into the EU or moved from one EU Member State to another one. This requirement – which is laid down in the Animal Health Law – pursues animal health objectives rather than animal welfare ones and acknowledges that even the most seemingly harmless pet may carry diseases that can be transmitted to other animals as well as to humans (e.g., rabies).

But why are EU-wide welfare rules for companion animals necessary in the long run? And why are such rules also relevant for pet owners as consumers?

The number of dogs and cats living in European households has grown exponentially over the last years and turned into a commercial activity of great economic significance (valued 1.3 billion EUR annually and employing around 300,000 workers). This makes the trade of dogs and cats particularly exposed to illegal activities. Two EU control plans coordinated by the European Commission (the first one in 2018 and the second one in 2022 -2023) have shown that  illegal trade of dogs and cats is a highly profitable business for rogue traders with online platforms providing new opportunities for them to operate undisturbed and undetected. Forgeries of documents (e.g., vaccination and health certificates), sale of underage and/or unvaccinated pets and cross-border trafficking are amongst the most recurrent violations reported.

While the economic impact of this illegal trade remains quite hard to estimate, its prevalence and the associated risks – for animal health and welfare but also for human health – have warranted it the legal status of ‘organised crime’, following the adoption of the EU Strategy to Tackle Organised Crime 2021-2025.  

In addition, higher consumer demand for specific aesthetic traits – like shortened limbs in Basset Hounds or extremely folded ears in Scottish fold cats – have resulted in the adoption of industry breeding strategies that may be detrimental to the welfare of the animal as well as of its offsprings.

From this standpoint, prospective pet owners engaging in a commercial transaction for the purchase of a companion animal are no different from any other consumer. As such, they may reasonably expect law to afford adequate protection of their financial interests, their health and safety, for instance, by ensuring they receive complete, accurate and reliable information about the animal before purchasing it. This information might include:

– The identity of the pet (e.g., date of birth, sex, breed, etc.);

– Its origin (e.g., country, but also breeding / selling establishment, litter etc.); and

– Its health status as attested, e.g., by the vaccinations administered, genetic tests and other veterinary records, but also its physical and mental welfare resulting from the way in which the animal was bred and kept just before being sold.

The latest draft text of the European Commission’s proposal under exam – which was adopted in June this year and is the outcome of the first round of discussions held by EU Member States in Council – recognises the right of prospective pet owners to be duly informed by introducing more stringent traceability requirements for the whole EU.

Against this background, in the future most breeding establishments will have to be registered, audited and approved by national competent authorities before being able to operate (Articles 7 and 7a). In addition, all dogs and cats will have to be identified and duly registered in national databases (currently, most EU Member States ensure that for dogs but not for cats), which will be interconnected with an EU database to be managed by the European Commission (Articles 17 and 19). Prospective pet owners will be given the possibility to access the information kept in such databases, free of charge, with the objective to verify the authenticity of the information provided by the seller about the animal (Article 17, par. 6). As an additional guarantee, future EU legislation will require owners introducing their pets into the EU to pre-notify this movement to an additional IT system yet to be built, i.e., the EU Pet Traveller’s database (Article 21, par. 4a). This last requirement is intended to ensure stricter surveillance at EU borders to unveil cases where pets are introduced into the EU market for commercial purposes under the disguise of non-commercial movements.

Of course, the contours of the EU protection that prospective pet owners may come to enjoy in the future will ultimately depend on the outcome of the ongoing interinstitutional negotiations. Besides, EU tertiary legislation is poised to set out further details for its exercise, application and enforcement.    All in all, even if the primary goal of the European Commission’s legislative proposal is to regulate pet welfare, both as an element of EU’s agricultural policy and of a well-functioning internal market, its current text clearly shows that consumer protection has a role to play in this context. Ultimately, this may be regarded as the latest evolution in the broader societal shift we have been witnessing towards the recognition of the moral and legal status of companion animals in our lives.

Gold-Plating na Transposição do Direito Europeu do Consumo para o Ordenamento Jurídico Português

Doutrina

O conceito de gold-plating[1]

Quando o procedimento legislativo europeu acaba, com a publicação final dos diplomas no Jornal Oficial da União Europeia, começa frequentemente uma “fase intermédia” antes das novas normas se efetivarem. Nas diretivas, os destinatários são os Estados-Membros, que têm a obrigação de as transpor; os regulamentos, embora sejam diretamente aplicáveis, muitas vezes carecem de atos legislativos nacionais para a sua implementação efetiva.

É nesta fase em que um fenómeno muito particular frequentemente ocorre: o gold-plating.

Gold-Plating é o processo pelo qual um Estado-Membro, ao transpor ou implementar diplomas europeus, acrescenta requisitos, obrigações ou normas[2] que vão além do que está previsto na legislação transposta.

É importante frisar que o goldplating é uma prática lícita e conforme o direito da União Europeia. O Estado-Membro exerce apenas a sua competência legislativa, discricionariamente, de forma permitida e frequentemente até prevista pelo diploma europeu em causa.

O gold-plating é frequentemente discutido no contexto de sistemas legislativos de multinível como uma ocorrência que, embora natural e admissível, deve ser acautelada devido aos seus possíveis efeitos nefastos. Na OCDE, e na União Europeia em particular, é tipicamente criticado devido à falta de transparência, por um lado, e os custos e barreiras inesperados que pode causar ao funcionamento do mercado interno, por outro lado. Se o objetivo é garantir a livre circulação de bens, serviços, pessoas e capital (além de dados), quaisquer discrepâncias entre os diplomas europeus, que pretendem uniformizar ou harmonizar o direito aplicável o máximo possível, e os diplomas nacionais que os transpõem ou implementam, são vistas como contradições, constituindo entraves ao mercado interno.

Neste sentido, se o gold-plating pode ter custos económicos avultados, incluindo a perda de competitividade das empresas e dos agentes económicos sediados nessas jurisdições, podemos perguntar-nos porque é que ocorre.

Múltiplas razões podem motivar o legislador nacional “a ir mais longe” do que o necessário. Pode ocorrer por razões puramente políticas, culturais, obrigações internacionais previamente assumidas ou outras, como preocupações sociais e ambientais.

Ocorrências de gold-plating são, por vezes, fáceis de antecipar, tendo em atenção o procedimento legislativo europeu. Nas (cada vez mais frequentes) diretivas de harmonização máxima, é relativamente fácil identificar as matérias em que houve discordância entre os Estados-Membros nas negociações e se optou por permitir a adoção de medidas diferentes. Estes pontos encontram-se normalmente sinalizados nos próprios diplomas, quando apresentam derrogações expressas, “válvulas de escape”, múltiplas opções para o mesmo objetivo ou mesmo intervalos admissíveis em certas obrigações (com tetos mínimos e/ou máximos). Noutros casos, são os considerandos que “reconhecem” esta discricionariedade aos Estados-Membros, admitindo que vários já têm normas e regimes anteriores que vão além do necessário, podendo mantê-los.

Gold-plating no Direito do Consumo Português

Tipicamente o Legislador Português não costuma afastar-se muito do texto dos diplomas europeus, recorrendo, na generalidade dos casos, à técnica de “copy-paste”, que resulta num elevado número de transposições mínimas, incorrendo assim em pouco gold-plating.

No entanto, no domínio do Direito do Consumo, o legislador português é mais criativo, porventura por razões históricas ou políticas, exercendo mais esta prática.

Cláusulas abusivas

Começando por um caso exemplar, em que os motivos históricos são patentes, temos a transposição da Diretiva 93/13/CEE (cláusulas abusivas), integrada no Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de outubro, o Regime Jurídico das Cláusulas Contratuais Gerais.

As discrepâncias entre os dois diplomas são óbvias. A Diretiva, com os seus 13 artigos[3], aplica-se apenas a contratos de consumo e tem um anexo com uma “curta” lista de (17) cláusulas, meramente indicativa, que podem ser consideradas abusivas, dependendo das circunstâncias. Uma grey list.

Por sua vez, o diploma nacional, atualmente com 50 artigos[4], tem um regime aplicável a todos os contratos, incluindo os concluídos entre profissionais, e um regime aplicável apenas a contratos de consumo. Tem 4 listas de cláusulas bastante extensas, com cláusulas que são sempre consideradas abusivas, independentemente das circunstâncias, em todos os contratos e em contratos de consumo, e cláusulas tendencialmente abusivas, em todos os contratos e em contratos de consumo.

Compreende-se as razões que justificam este fenómeno. O Decreto-Lei é muito anterior à Diretiva (8 anos), sendo que a Diretiva é de harmonização mínima, permitindo esta “marca nacional” no regime jurídico. Finalmente, a Diretiva, na sua génese, resulta de uma teia de compromissos entre 4 visões bastante diferentes[5] de conceptualizar e considerar o seu objeto, e o caráter abusivo de cláusulas gerais. O seu texto teve, assim, de permitir formas bastante diferentes de conseguir alcançar o mesmo objetivo.

“Garantia legal” na compra e venda

Outra matéria em que é visível que, ao longo dos anos, o legislador português se quis demarcar do Direito da União Europeia, na medida do possível, diz respeito ao período de responsabilidade do profissional nos contratos de compra e venda de bens de consumo, comummente designado por prazo da “garantia legal”.

Temos dois exemplos claros, um na transposição da antiga Diretiva 1999/44/CE pelo Decreto-Lei n.º 67/2003, e o outro na mais recente transposição da Diretiva (UE) 2019/771 pelo Decreto-Lei n.º 84/2021, em que nos vamos focar de seguida.

A Diretiva (UE) 2019/771, de harmonização máxima, estabelece que os Estados-Membros têm de transpor para o seu ordenamento jurídico um período de responsabilidade (com um período mínimo de 2 anos, mas permitindo períodos superiores) e de período de inversão do ónus da prova da existência de falta de conformidade no momento da entrega, a favor do consumidor (num período mínimo de 1 ano e máximo de 2 anos), deixando os Estados-Membros incluir medidas que suspendam ou interrompam o decurso deste prazo no caso de uma reparação ou substituição[6].

Portugal optou por estabelecer (i) um período de 3 anos de responsabilidade, (ii) um período de 2 anos no qual se prevê inversão do ónus da prova, (iii) que a substituição do bem tenha como efeito o recomeço do período de responsabilidade e (iv) prorrogações de 6 meses por cada reparação, até um máximo de 4 reparações ou 2 anos “extra” no período de responsabilidade.

Se compararmos a transposição portuguesa com o panorama nos restantes Estados-Membros, há muita diversidade nas soluções adotadas. A Alemanha e a Itália estabeleceram períodos de 2 anos no que respeita à responsabilidade do profissional e de 1 ano quanto à inversão do ónus da prova. Por sua vez, em França, ambos são de 2 anos, prevendo-se prorrogações de 6 meses em caso de caso de reparação.

Um olhar para o futuro

O gold-plating é um dos temas da Legística e da Ciência da Legislação com mais impacto e ramificações multidisciplinares. Em áreas como o Direito do Consumo, em que a influência europeia é tão vincada e em que as divergências entre ordenamentos jurídicos nacionais têm tanto impacto nos agentes económicos, nas expectativas dos consumidores e no funcionamento do mercado interno, o tema é especialmente interessante, quer para os juristas quer para os policy makers.

Aliás, um dos primeiros passos na preparação de uma proposta legislativa, no procedimento europeu[7], consiste na avaliação de impacto (“Legislative Impact Assessment”), que considera os efeitos desta prática, antes da intervenção ou a posteriori. Nos fitness check europeus, a Comissão tem de considerar sempre esta dimensão na sua análise da adequabilidade dos diplomas em vigor (se estão “fit for purpose”). A partir destes estudos, casos de gold-plating em transposições anteriores podem acabar por ser incorporados em novas propostas.

Estas questões são importantes quando consideramos as transposições recentes para o ordenamento jurídico português e aquelas que terão de ser realizadas nos próximos dois anos. Entre os diversos casos de gold-plating do DL 84/2021 que poderíamos estudar (desde o conceito abrangente de consumidor à como a “arrojada” responsabilidade dos prestadores de mercados em linha, prevista no art. 44.º), temos de regressar ao período de responsabilidade do profissional.

A Diretiva (UE) 2024/1799 (direito à reparação) prevê, no seu artigo 16.º, uma série de alterações à Diretiva (UE) 2019/771. Entre estas, o art. 16.º-2-a) indica que o exercício do direito de reparação de um bem por falta de conformidade prorroga o período de responsabilidade do profissional, por uma vez, em 12 meses (ou 1 ano). A alínea seguinte permite aos Estados-Membros manter ou introduzir prorrogações adicionais e/ou prazos mais longos. Este artigo e o considerando 40 colocam um desafio interessante ao legislador português, que reflete a importância desta reflexão.

O art. 18.º-4 do DL 84/2021 terá de ser necessariamente alterado. Embora os consumidores portugueses beneficiem atualmente de 3 anos de proteção + 6 meses + 6 meses + 6 meses + 6 meses (ou 3+2 anos), a primeira prorrogação de 6 meses, na sequência da primeira reparação, é incompatível com a nova letra da Diretiva. 

A alteração necessária pode culminar em inúmeros cenários:

  1. Sem qualquer tipo de gold-plating (2+1) – reduz-se o período de proteção “inicial” para 2 anos e estabelece uma única prorrogação de 1 ano com a reparação em caso de falta de conformidade. Os consumidores portugueses perdem efetivamente 2 anos de proteção.
  2. Sem gold-plating na nova medida (3+1) – período de 3 anos mantém-se e passa a ser possível uma única prorrogação de 12 meses. Os consumidores portugueses perdem 1 ano de “garantia”.
  3. Gold-plating (3+1+6m+6m) – mantém-se o período inicial de 3 anos, cumpre-se com 1 ano “extra” relativo à primeira reparação e mantém-se o direito a duas prorrogações adicionais de 6 meses. Mantém-se, no essencial, o nível de proteção pata os consumidores, embora a primeira prorrogação seja mais longa.
  4. Outras variações da hipótese acima, com diferentes valores no número de prorrogações adicionais que podem ser mais/menos longas. Por exemplo, 3+2 ou 3+1+1, 2+2+1, etc..

Uma única medida, que pode parecer tão simples e direta, oferece inúmeras hipóteses de transposição, com resultados radicalmente diferentes para consumidores e operadores económicos, num único Estado-Membro. Este exemplo demonstra a complexidade e a importância deste fenómeno e a necessidade do seu estudo ao nível do Direito do Consumo.


[1] Parte deste texto tem como base o artigo Martim Farinha e Manuel Cabugueira, “Metodologia de Identificação e Análise de Gold-Plating na Transposição de Diretivas Europeias”, e-Publica Vol. 10(3) Dez 2023, e resultou da investigação realizada no âmbito do projeto “LegImpact – A produção legislativa enquanto meio de realização de políticas públicas: análise quantitativa e de impacto socioeconómico”, financiado pela FCT com a bolsa de investigação PTDC/DIR-OUT/32353/2017.

[2] A antecipação da produção de efeitos de normas também é uma forma de gold-plating.

[3] Na versão original, tinha apenas 11 artigos.

[4] Originariamente, tinha 36 artigos.

[5] A perspetiva do Reino Unido, que não reconhecia uma regra geral sobre o caráter abusivo de cláusulas, a perspetiva alemã, a perspetiva francesa e a perspetiva nórdica.

[6] Na Diretiva de 1999/44/CE, estava previsto um prazo mínimo de 2 anos de responsabilidade do profissional (art. 4.º), que foi seguido à letra no Decreto-Lei n.º 67/2003 (art. 5.º), que manteve os 2 anos. No entanto, quanto à inversão do ónus da prova, a Diretiva previa apenas um período de 6 meses após a entrega do bem, enquanto a nossa lei equiparou este período ao da responsabilidade do profissional (2 anos).

[7] E a nível nacional também, nos decretos-lei e propostas do Conselho de Ministros.

Consumidor promitente-comprador (muito) menos protegido

Doutrina

Sem qualquer discussão pública e muito pouca publicidade ou preocupação (mediática), foi publicado recentemente no Diário da República o Decreto-Lei n.º 48/2024, de 25 de julho, que limita as situações em que o direito de retenção prevalece sobre a hipoteca, por via de uma alteração do art. 759.º do Código Civil.

O que é que está, no essencial, em causa?

Imaginemos um casal jovem que pretende comprar uma casa para viver e descobre um apartamento perfeito, num prédio a estrear, quase pronto, por € 250 000. Alguns dias depois, a empresa construtora e o casal celebram um contrato-promessa de compra e venda do imóvel com eficácia obrigacional, pagando este, a título de sinal, € 50 000. O casal passa a habitar o apartamento de imediato, apesar de as obras não estarem ainda totalmente concluídas. Entretanto, o casal está em contacto com várias entidades bancárias para conseguir um bom crédito à habitação para financiar a compra da casa. Fica combinado entre as partes que o contrato definitivo (de compra e venda) será celebrado mais tarde, quando o casal tiver conseguido o financiamento.

Entretanto, uns dias depois, a empresa construtora é declarada insolvente. Não tendo o contrato-promessa eficácia real, o administrador da insolvência poderá recusar o seu cumprimento (v. arts. 102.º e 106.º-1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas – CIRE), não se celebrando o contrato de compra e venda. Este regime é muito duvidoso do ponto de vista do equilíbrio e da justiça da solução, colocando o promitente-comprador a quem foi entregue o imóvel numa situação de tremenda fragilidade (jurídica e não só). Discutível, do ponto de vista da justiça material da solução, é igualmente a regra que não permite ao casal, neste caso, exigir a devolução do sinal em dobro, ou seja, € 100 000 (v. art. 442.º-2 do Código Civil), como crédito sobre a insolvência, nos termos do art. 102.º-3-c) do CIRE. Em qualquer caso, não há dúvida de que terá direito ao sinal em singelo, ou seja, aos € 50 000.

Neste momento, o casal é surpreendido com a notícia de que, sobre o imóvel, estava já constituída uma hipoteca, a favor de uma entidade financiadora da empresa construtora, no valor de € 5 000 000. Este valor é muito superior ao património da construtora, pelo que o casal apenas receberá qualquer valor se for pago antes da entidade financiadora.

Vejamos qual a solução legal consagrada até agora.

Nos termos do art. 755.º-1-f) do Código Civil, goza do direito de retenção “o beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do artigo 442.º”. Apesar de alguma doutrina se manifestar contrária à existência de direito de retenção nos casos em que o administrador de insolvência pode licitamente recusar o cumprimento do contrato-promessa, o Ac. do STJ, de 27/4/2021, concluiu que isso é conciliável com o reconhecimento de um direito de retenção ao promitente-comprador[1]. Concordo com esta decisão, por se tratar da solução mais justa, do ponto de vista material, salvaguardando de forma adequada quer o princípio fundamental do pacta sunt servanda quer o equilíbrio social subjacente ao problema. O crédito do casal goza, portanto, de direito de retenção.

O art. 759.º-1 do Código Civil, na versão anterior, atribuindo relevância prática a este direito de retenção, previa que o titular do direito de retenção tinha o direito “de ser pago com preferência aos demais credores do devedor”, prevalecendo o direito de retenção “sobre a hipoteca, ainda que esta [tivesse] sido registada anteriormente” (n.º 2).

É importante realçar que o Ac. do STJ, de 20/3/2014, já limitara o âmbito deste regime, uniformizando jurisprudência no sentido de que, em contrato-promessa com eficácia obrigacional e tradição da coisa, apenas beneficia do direito de retenção, no âmbito da graduação de créditos em insolvência, o promitente-comprador que possa ser qualificado como consumidor[2]. No Ac. do STJ, de 12/2/2019, foi uniformizada jurisprudência no sentido de que tem a qualidade de consumidor, para este efeito, “o promitente-comprador que destina o imóvel, objeto de traditio, a uso particular, ou seja, não o compra para revenda nem o afeta a uma atividade profissional ou lucrativa”.

Portanto, este regime aplicava-se (apenas) a consumidores, como o jovem casal da nossa história. O seu crédito seria graduado antes do crédito da entidade financiadora da construtora, o que aumentaria a probabilidade de receber o valor devido (ou, pelo menos, uma parte deste valor, se o património do insolvente não fosse suficiente para satisfazer a totalidade).

Vejamos agora qual a solução para o caso à luz do novo regime.

A alteração parece cirúrgica, tendo em conta as poucas palavras utilizadas, mas é muito significativa, retirando, sem lhe mexer, quase toda a relevância prática ao art. 755.º-1-f) do Código Civil.

A parte final do n.º 1 do art. 759.º do Código Civil é alterada, passando a circunscrever-se o direito ao pagamento preferencial, leia-se, antes do credor hipotecário (v. art. 759.º-2) aos “casos em que o crédito assegura o reembolso de despesas para a conservar ou aumentar o seu valor”. Estão em causa, por exemplo, as obras feitas pelo titular do direito de retenção para garantir que a coisa não se deteriora ou que aumenta o seu valor.

Deixa de estar abrangido o crédito do promitente-comprador a quem o imóvel tenha sido entregue e decorrente do incumprimento do contrato-promessa pelo promitente-vendedor (quer este tenha ou não eficácia real). Trata-se de um regime que visa, no essencial, apenas reduzir os direitos dos consumidores, uma vez que esta regra protegia apenas o promitente-comprador que fosse consumidor.

O casal da nossa história terá de abandonar o apartamento e, provavelmente, não irá receber nada, perdendo os € 50 000 do sinal, uma vez que o crédito da entidade financiadora passa a ser graduado antes do seu e dificilmente haverá no património da empresa construtora, que se encontra insolvente, bens suficientes para a satisfação de qualquer outro crédito.

Esta alteração legislativa encontrava-se prevista, segundo o preâmbulo do Decreto-Lei n.º 48/2024, no projeto 18.3 do Plano de Recuperação e Resiliência. Terá sido, assim, imposta pelas instituições europeias. No confronto entre o direito do consumidor que adquiriu uma casa a uma empresa a não perder, além do direito a adquirir e a residir no imóvel, o valor do sinal e o da entidade financiadora, em princípio o banco ou outra instituição de crédito que financiou a construtora, a receber o seu crédito, prefere-se atualmente este último.

A justificação está na circunstância de este ser anterior àquele, ou seja, de a hipoteca ser anterior ao direito de retenção. A solução anterior frustrava as expectativas do credor hipotecário, que era confrontado com uma alteração (relativamente) imprevisível da sua posição, na medida em que o direito de retenção não é passível de registo.

No entanto, do ponto de vista social parecia ser essa a única via aceitável – e legítima, do ponto de vista da justiça. Parece iníquo que o consumidor, provavelmente desconhecendo a existência da hipoteca, ou sequer da existência da possibilidade de não-celebração do contrato de compra e venda, não veja, no mínimo, satisfeito, o direito à devolução do valor pago.

Das duas, uma: (i) ou a alteração deste regime tem uma importância efetiva (e significativa) para a atividade financeira em geral, caso em que é muito preocupante a solução adotada, uma vez que estaremos a falar de muitas situações reais de consumidores que ficam simultaneamente sem o imóvel e sem o dinheiro; (ii) ou a alteração tem escassa relevância efetiva para a atividade financeira em geral e alguns consumidores ficarão prejudicados sem que haja uma vantagem significativa para os credores hipotecários, não sendo aquela justificada. Uma alteração tão significativa deveria ter sido acompanhada, desde o início, ou seja, desde o momento da sua inclusão no Plano de Recuperação e Resiliência, de alguma discussão, justificando-se ainda a adoção simultânea de outras medidas com vista a mitigar os efeitos desta.


[1] O tribunal justifica assim a manutenção do direito de retenção: “(…) tendo em vista a tutela da intensa expetativa do promitente-adquirente, no caso de promessa sinalizada em que tenha havido tradição da coisa, de a vir a adquirir e que se justifica, tanto em caso de incumprimento imputável ao promitente-alienante, como no caso de recusa lícita de cumprimento pelo administrador de insolvência, até porque esta é reflexamente imputável ao incumprimento daquele”.

[2] Note-se que, neste acórdão, o STJ entendeu que a recusa de cumprimento é um ato ilícito e culposo e, como tal, o promitente-comprador consumidor tinha direito à devolução do sinal em dobro (e direito de retenção). Em 2021, o STJ alterou a perspetiva, apontando no sentido de se tratar de um ato lícito, que não confere o direito ao sinal em dobro, mantendo-se, no entanto, o direito de retenção. Esta é, sem dúvida, a solução mais equilibrada, que permite ao consumidor promitente-comprador a quem foi entregue o imóvel receber preferencialmente o valor do sinal que pagou. Esse equilíbrio, como se verá, é totalmente colocado em causa pela alteração legislativa de 2024.

Uma reflexão sobre a Comissão Von der Leyen (2019-2024) e o Direito Europeu do Consumo

Doutrina

No passado dia 9 de junho, ocorreram as eleições para o Parlamento Europeu, nas quais os cidadãos europeus puderam votar nos seus representantes. O início de um novo ciclo é a oportunidade ideal para refletir sobre o ciclo que termina da Comissão Von der Leyen (2019-2024).

A Comissão Von der Leyen

Como sabemos, este ciclo teve um início atribulado com as eleições europeias de 2019 e com o falhanço do sistema do Spitzenkandidaten. Ursula Von der Leyen acabou por ser a escolhida para liderar a Comissão Europeia como um compromisso Franco-Germânico, depois de Manfred Weber (a escolha avançada pelo PPE, que vencera as eleições) ter sido rejeitado. A Comissão mal tinha iniciado os seus trabalhos, preparando as agendas legislativas que iriam marcar as propostas do seu mandato, quando a pandemia da COVID-19 se abateu com estrondo. Depois de muita desconfiança inicial, é mais ou menos consensual que as instituições europeias sobreviveram a este teste de fogo.

Mas, se o desafio monumental que foi pandemia da COVID-19 marcou a atuação do trio Comissão-Conselho-Parlamento durante a primeira metade do mandato 2019-2024 (com a coordenação da compra e distribuição de vacinas, o fecho de certas fronteiras, a autorização de auxílios de estado extraordinários, a emissão de dívida conjunta e o PRR (Recovery and Resilency Plan), entre outros aspetos), os últimos dois anos foram marcados por outra tragédia que abalou profundamente a posição da União Europeia no mundo, o seu papel, em política externa e económica (com destaque para a sua política energética): a invasão da Ucrânia pela Rússia.

No entanto, a atuação da Comissão e das instituições europeias não se restringiu a estes acontecimentos, não foram unicamente reativas. A Comissão lançou várias agendas legislativas para o mandato, a partir das quais surgiram vários documentos e posições, dos quais destacamos algumas propostas legislativas, que após serem recebidas e trabalhadas pelo Parlamento e pelo Conselho, culminaram em diretivas e regulamentos aprovados e publicados no Jornal Oficial da União Europeia.

A política da Comissão para o Direito do Consumo – A Nova Agenda do Consumidor

Neste âmbito, e focando a nossa análise em políticas de Direito do Consumo e proteção dos consumidores, temos de destacar a Nova Agenda do Consumidor – Reforçar a resiliência dos consumidores para uma recuperação sustentável (New Consumer Agenda), aprovada em novembro de 2020.

Nesta comunicação, a Comissão apresentou a sua visão e os objetivos que pretendia prosseguir nesta área, ainda muito marcada pelas consequências da pandemia (desde as dificuldades económicas, às burlas e práticas comerciais desleais): a) transição ecológica; b) transformação digital; c) exercício efetivo dos direitos dos consumidores (em específico quanto às dificuldades causadas pela pandemia e o papel da UE através do Regulamento 2017/2394 do mecanismo de cooperação das autoridades e as ações coordenadas); d) necessidades de consumidores vulneráveis; e) cooperação internacional.

Desta “Nova Agenda”, dois pontos acabam por receber o grosso da atenção e dos trabalhos, tendo acabado por ser englobados nas duas principais agendas-bandeiras da Comissão Von der Leyen:

  1. O programa da Década Digital 2030 (Europe’s Digital Decade) lançada pela Comunicação da Comissão em 2021 sobre Orientações para a Digitalização até 2030: a via europeia para a Década Digital (COM/2021/118 final), que foi depois implementada pela Decisão (UE) 2022/2481 (acompanhada pelo Staff Working Document (2021) 247 final, que detalha as várias áreas de atuação e objetivos); e o
  2. O Pacto Ecológico Europeu (European Green Deal), lançado pela Comunicação da Comissão (COM/2019/640 final), em dezembro de 2019.

A transição digital e a transição ecológica e sustentável foram os motes que guiaram grande parte das prioridades legislativas da Comissão e, por consequência, uma parte muito considerável dos trabalhos dos outros vértices do triângulo institucional do procedimento legislativo europeu.

Principais Procedimentos Legislativos para o Direito do Consumo

Com este enquadramento, destacamos alguns dos principais procedimentos legislativos relacionados com o Direito do Consumo Europeu, de forma não exaustiva:

  1. O Regulamento (UE) 2022/2065 dos Serviços Digitais (Digital Services Act, DSA), inicialmente lançado no final de 2020 como uma das metades do Pacote dos Serviços Digitais, é um dos principais diplomas deste mandato, atualizando substancialmente o regime jurídico da responsabilidade dos prestadores de serviços intermediários digitais, criando um framework para a moderação e combate à proliferação de conteúdos ilegais com medidas que visam a proteção dos direitos fundamentais dos utilizadores, como a liberdade de expressão e o direito de acesso à informação. Embora medidas de Direito do Consumo não constassem da proposta original, através de emendas propostas pelo Parlamento Europeu, a versão que agora temos em vigor tem um conjunto de normas com implicações diretas nesta área, protegendo os consumidores online quanto a dark patterns e publicidade e nos contratos celebrados com comerciantes através de mercados em linha.
  2. O Regulamento (UE) 2022/1925 dos Mercados Digitais (Digital Markets Act, DMA), proposto como a segunda metade do Pacote dos Serviços Digitais, é um diploma essencialmente de Direito da Concorrência, que procura regular várias práticas dos controladores de acesso (gatekeepers) na prestação de serviços essenciais de plataforma (core platform services), e sua relação com outros prestadores de serviços. Embora não seja um diploma intrinsecamente de Direito do Consumo, tem bastantes implicações para este, com destaque para o artigo 5.º, também relacionado com Proteção de Dados.
  3. O Regulamento (UE) 2024/1689 de Inteligência Artificial, o muito aguardado AI Act. Vai ter muito impacto no futuro, nos serviços prestados a consumidores, com algumas questões multidisciplinares a serem consideradas.
  4. A Diretiva (EU) 2024/1799 do Direito à Reparação vem reforçar este direito dos consumidores, tanto no período da garantia legal, como depois, procurando promover a economia circular e a sustentabilidade.
  5. A Diretiva (UE) 2024/825 da Capacitação dos Consumidores vem alterar as diretivas das práticas comerciais desleais e dos direitos dos consumidores para reforçar os deveres de informação e transparência.
  6. A Diretiva (UE) 2023/2225 sobre os contratos de crédito aos consumidores e que revoga a Diretiva 2008/48/CE, vem reforçar as obrigações de informação, a avaliação da condição económica e solvabilidade do consumidor, com um maior âmbito de aplicação.
  7. A Diretiva (UE) 2013/2673 dos contratos de serviços financeiros celebrados à distância, que procura clarificar as normas sobre a prestação de informação pré-contratual e o direito de “retratação”[1] e que introduz novas regras para a comercialização de serviços financeiros no contexto digital, desde o combate a dark patterns na interface e o direito de solicitar intervenção humana em certos casos, quando as informações tenham sido prestadas de forma automatizada (roboadvice).
  8. O Regulamento (UE) 2024/1781 de EcoDesign vem reforçar os requisitos de sustentabilidade dos produtos, delegar poderes à Comissão para adotar decisões sobre estes requisitos e estabelecer um “passaporte digital do produto” para contratos públicos ecológicos, e um regime para evitar a destruição de produtos não vendidos.
  9. A proposta de Diretiva das Alegações Ecológicas (Green Claims) procura combater as práticas de greenwashing. Aprovada pelo PE, aguarda decisão do Conselho.
  10. A proposta de nova Diretiva da responsabilidade civil dos produtores por produtos defeituosos vem finalmente substituir a antiga Diretiva 85/374/CEE e modernizar este importante regime jurídico. Aprovada pelo PE, aguarda decisão do Conselho.
  11. A proposta de Diretiva de Responsabilidade Civil de Inteligência Artificial, que terá bastante impacto para os consumidores, devido às presunções e o acesso à prova e documentação.
  12. O pacote de Resolução Alternativa de Litígios de Consumo (RALC), tem duas propostas muito relevantes para esta área: a proposta de uma nova Diretiva RALC, a substituir a anterior, e a revogação (sob a forma de regulamento) do Regulamento de plataforma ODR (online dispute resolution), o sistema que permite a consumidores e profissionais resolverem por negociação(via contacto direto)/mediação/arbitragem os seus litígios transfronteiriços e que nunca teve a adesão e o sucesso desejados.
  13. A proposta de Diretiva dos Passageiros Aéreos, que vem alterar alguns aspetos da Diretiva 2015/2302. Ainda não foi provada pelo Conselho ou pelo PE, não existindo acordo político.
  14. A proposta de Diretiva dos Serviços de Pagamento (PSD3) e uma proposta de Regulamento dos Serviços de Pagamentos. Ambas aprovadas pelo PE, aguardam aprovação no Conselho. Não houve um acordo político anterior.
  15. A proposta de Regulamento sobre a Segurança dos Brinquedos. Aprovada pelo PE, aguarda aprovação no Conselho, não existindo um acordo político anterior.

Como se pode observar, uma parte substancial da lista é constituída por procedimentos que ainda estão a decorrer. Em alguns casos, os acordos interinstitucionais foram celebrados a tempo e o PE aprovou os diplomas em vésperas das eleições, tendo estes apenas ficado “pendentes” junto do Conselho.

É ainda necessário destacar dois pontos, relativos a procedimentos “herdados” da Comissão anterior e às transposições realizadas neste período.

Ainda antes da efetivação da Nova Agenda para os Consumidores, o Parlamento Europeu que tomou posse com as eleições de 2019 teve de fechar vários temas que herdou do mandato anterior.

Estavam pendentes dois importantes procedimentos legislativos do Pacote Novo Acordo para os Consumidores de 2018 (New Deal for Consumer) da Comissão Juncker 2014-2019. Foram fechadas neste período a Diretiva (UE) 2019/2161 de Modernização do Direito do Consumo Europeu (Diretiva Omnibus), ainda em dezembro de 2019, e a Diretiva (UE) 2020/1828 relativa às ações coletivas de proteção dos consumidores, em novembro de 2020.

Durante os anos de 2019-2024, os Estados-Membros tiveram de realizar a transposição de diversas diretivas de Direito do Consumo do ciclo legislativo anterior, da Comissão Junker, da sua agenda do Mercado Único Digital e do Novo Acordo dos Consumidores. Temos de destacar a Diretiva (UE) 2019/770 (conteúdos e serviços digitais), a Diretiva (UE) 2019/771 (compra e venda), e a já referida Diretiva 2019/2161 que alterou as antigas diretivas sobre as cláusulas contratuais abusivas, práticas comerciais desleais, indicação de preços e direitos dos consumidores.

A transposição destes diplomas representou, num curto período de tempo, em especial entre 2021 e 2022, uma reforma transversal e estrutural do Direito de Consumo, dos seus principais diplomas, em todos os Estados-Membros. A eficácia destas medidas e a sua transposição estão a ser estudadas neste momento. Em especial, no que respeita às matérias digitais e à vulnerabilidade dos consumidores, aguarda-se a publicação do estudo Digital Fairness – fitness check on EU Consumer Law. As conclusões deste estudo deverão ter um grande impacto na política legislativa da próxima Comissão.

Olhando agora para os trabalhos da Comissão Von der Leyen 2019-2024, o Direito Europeu do Consumo teve bastante importância, mas o modus operandi foi diferente. Após as Diretivas de 2019, existia a necessidade de permitir a transposição e consolidação destes regimes, recorrendo-se antes a alterações incisivas para responder a casos de “obsolescência precoce” dessas normas e responder às reforçadas preocupações no âmbito digital e ambiental. O desfasamento causado pelos períodos de transposição vai “mascarar” superficialmente um pouco o impacto dos novos diplomas, mas apenas para aqueles que não estão a prestar a devida atenção. Os novos diplomas (e os que forem fechados entretanto[2]) introduzem medidas com grande impacto económico, ambiental, social e digital. O Direito Europeu do Consumo mantém-se, assim, em constante evolução, com grande importância para todos os atores e agentes no mercado interno, incluindo consumidores, profissionais, produtores e plataformas.


[1] Ou de livre resolução do contrato, nos primeiros 14 dias ou 12 meses, dependendo do cumprimento dos deveres de informação pré-contratual.

[2] As notícias sobre o boicote de vários Estados-Membros às reuniões do Conselho e também da Comissão Europeia em participar nas negociações, devido às ações da presidência húngara, lançam muitas dúvidas neste calendário.

Sharenting, responsabilidade parental e o DSA: responsabilidade civil, conhecimento efetivo e risco sistémico

Doutrina

A prática de partilhar imagens ou vídeos de crianças nas redes sociais pelos pais (share + parenting) e outros familiares é conhecida como “sharenting”. Note-se que, apesar do caráter expressivo do termo, os pais não são os familiares que mais partilham fotografias de crianças. Os primos, os irmãos mais velhos e os tios e tias partilham mais frequentemente do que os avós e os pais das crianças. Esta é uma prática que põe em risco os direitos fundamentais dos menores nas redes sociais e à qual a resposta da lei e das autoridades públicas tem sido bastante limitada. Os processos de responsabilidade civil revelam-se excessivamente lentos, tendo em conta a importância do tempo quando se trata da exposição de menores no ambiente digital, e os meios de intervenção das autoridades (por exemplo, o artigo 84.º, n.º 2, da LOPDgdd, que obriga o Ministério Público a atuar) não foram até hoje utilizados.

Talvez o Regulamento dos Serviços Digitais (DSA) nos permita, enquanto consumidores e utilizadores de redes sociais, contribuir para a proteção dos menores contra estas práticas, especialmente quando aqueles que publicam estes conteúdos lucram com eles (influenciadores).

Existem poucos estudos sobre a incidência do sharenting entre os menores, um dos quais é o relatório EU Kids Online, que analisa comportamentos como os seguintes: (1) pais que publicam fotografias sem perguntar aos menores, (2) menores que pedem aos pais para eliminarem conteúdos, (3) menores que se sentem frustrados quando veem conteúdos publicados e (4) consequências negativas para a vida social dos menores em resultado da publicação de conteúdos. As respostas por país podem ser vistas no gráfico abaixo:

A maioria das situações de sharenting tende a envolver práticas sociais com uma influência relativamente baixa (o que não significa que não representem um risco para as crianças), que correspondem ao equivalente funcional no ambiente digital de mostrar fotografias ou vídeos de crianças a familiares e amigos: pessoas cujas contas nas redes sociais têm poucos seguidores, que são cuidadosas nas definições de privacidade das contas e que publicam conteúdos neutros (não íntimos ou humilhantes) sobre crianças. Podemos referir-nos a esta prática como “partilha social”. Se a conta atingir um certo nível de notoriedade, ou se o número de publicações exceder um número significativo, falamos de “oversharenting”, o que não é aceitável devido ao risco que representa para os direitos dos menores. No entanto, deve ter-se em conta que qualquer prática de sharenting comporta um risco para os menores, na medida em que, uma vez carregado o conteúdo na Internet, há pouco controlo sobre a sua difusão (e muito menos sobre a sua eliminação).

A prática de sharenting que representa o maior risco para os menores é o sharenting lucrativo, efetuado por aqueles conhecidos como “instamamis” ou “instapapis”: influenciadores cujo conteúdo está em grande parte (ou mesmo quase inteiramente) relacionado com menores. O sharenting lucrativo deve ser sempre considerado como “oversharenting”.

A prática do sharenting comporta riscos para os direitos fundamentais dos menores, que serão mais ou menos acentuados consoante o nível de notoriedade e o número de publicações. Concretamente, estão em risco o direito à honra (menores em situações domésticas que podem causar constrangimento), o direito à privacidade (menores em situações que gostariam de excluir do conhecimento geral, quer causem ou não constrangimento), o direito à própria imagem (em fotografias ou vídeos em que aparecem sem o seu consentimento) e o direito à proteção de dados (não só imagens ou vídeos, uma vez que a autoimagem também é um dado pessoal, mas também áudios ou textos em que são mencionados menores). A prática do sharenting é igualmente prejudicial ao direito ao livre desenvolvimento da personalidade e contrária ao interesse superior da criança. Por fim, a segurança dos menores também é posta em causa, como alertou o Tribunal da Relação de Évora em 2015, precisamente num caso de sharenting.

Todos estes direitos são reconhecidos tanto a nível internacional como nacional. Podemos citar, sem sermos exaustivos, o artigo 26.º da Constituição Portuguesa, segundo o qual “todos têm direito à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à proteção jurídica contra quaisquer formas de discriminação (nº 1) e “a lei estabelecerá garantias efetivas contra a obtenção e utilização abusivas, ou contrárias à dignidade humana, de informações relativas às pessoas e famílias” (nº 2), o artigo 18.º, segundo o qual “é garantido o direito à honra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à imagem” (n.º 1), e “a lei limita a utilização da informática para garantir a honra e a reserva da intimidade da vida privada e familiar dos cidadãos e o pleno exercício dos seus direitos” (nº 4); e o artigo 10.º da Constituição espanhola (“a dignidade da pessoa humana, os direitos invioláveis que lhe são inerentes, o livre desenvolvimento da personalidade, o respeito pela lei e pelos direitos dos outros são a base da ordem política e da paz social”). O direito à proteção de dados é reconhecido no artigo 8.º da Carta dos Direitos Fundamentais da UE, juntamente com o direito ao respeito pela vida privada e familiar (artigo 7.º), bem como pelo RGPD e respetivas implementações nacionais.

O consentimento da criança é essencial para avaliar se algum dos direitos acima mencionados foi violado (outros, como a honra ou a privacidade, dependem não só do conteúdo, mas também das características do conteúdo e das repercussões sociais que este tem). No âmbito dos seus deveres de responsabilidade parental (art. 1877.º e 1878.º CC-PT; art. 154.º CC-ESP, art. 18.º Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989), os pais devem proteger a identidade digital da criança e, se esta ainda não tiver capacidade jurídica para consentir, fazê-lo em seu nome. No entanto, o consentimento que os pais podem dar em nome dos filhos deve ser utilizado em benefício destes e não para pôr em risco os seus direitos. Os menores devem adquirir progressivamente a autonomia negocial (art. 127.º do CC-PT; art. 2.º da LOPJM), razão pela qual é por vezes difícil determinar o momento a partir do qual têm capacidade para consentir, consoante as circunstâncias. No que diz respeito ao sharenting, parece que a idade a partir da qual podem consentir (ou opor-se) é de 13 anos, que é a idade a partir da qual podem exprimir o seu consentimento em conformidade com o artigo 8.º do RGPD. Este limite mínimo de idade é seguido em Portugal (art. 16.º da Lei da Proteção de dados pessoais) e é aumentado em um ano em Espanha (art. 7.2 da LOPDgdd).

Tendo em conta os riscos que a prática do sharenting representa para os menores, vale a pena perguntar se existem elementos de defesa contra a mesma.

Podemos começar por dizer que é possível exigir a responsabilidade civil derivada da lesão de direitos de personalidade (arts. 70.º e 483.º CC-PT; art. 1902.º CC-ESP) associada a um exercício ilegítimo dos deveres de responsabilidade parental (art. 334.º CC-PT). É certo que a posição jurisprudencial tradicional da imunidade dos ilícitos familiares deve ser ultrapassada, como bem salienta Mariana García Duarte Marum (pp. 114-115), embora não seja menos verdade que um dos primeiros casos conhecidos de condenação por sharenting condena precisamente uma mãe por publicar posts sobre o quão mal a atitude do filho para com ela a fazia sentir (Sentença do Tribunal de Roma de 21 de dezembro de 2017). Do mesmo modo, pode ser invocada a responsabilidade civil pela violação do direito à proteção de dados, nos termos do art. 82.º do RGPD. Neste caso, colocar-se-ia a questão de saber se os pais devem ser considerados “responsáveis pelo tratamento de dados” nos termos do art. 82.º, n.º 1, do RGPD, ou apenas as próprias redes sociais. Neste último caso, parece razoável estabelecer como critério mínimo para a responsabilidade o facto de terem conhecimento efetivo da ilegalidade do conteúdo, uma questão que discutiremos mais adiante. Em todo o caso, é necessário provar a conduta negligente ou dolosa do arguido para que se possa invocar a responsabilidade civil, não sendo suficiente a mera violação do RGPD (Sentença do TJUE de 4 de maio de 2023).

As dúvidas que acabámos de apontar não são o maior obstáculo à proteção dos menores contra o sharenting através da responsabilidade civil (quer geral, quer por violação das normas de proteção de dados). De facto, em Portugal, Itália e Espanha já existem sentenças de tribunais regionais ou provinciais que condenam o sharenting. O maior problema é a lentidão (associada a qualquer procedimento judicial) com que os conteúdos seriam removidos e o consequente prejuízo que a sua permanência nas redes geraria para os menores. Neste contexto, é possível que o Regulamento dos Serviços Digitais, que entrou em vigor em fevereiro de 2024, possa proporcionar um meio mais ágil de bloquear e, se for caso disso, remover conteúdos relativos a menores nas redes sociais.

Nos termos do artigo 6.º do Regulamento Serviços Digitais (DSA), “em caso de prestação de um serviço da sociedade da informação que consista na armazenagem de informações prestadas por um destinatário do serviço (por exemplo, redes sociais), o prestador do serviço não é responsável pelas informações armazenadas a pedido de um destinatário do serviço, desde que: não tenha conhecimento efetivo da atividade ou conteúdo ilegal e, no que se refere a uma ação de indemnização por perdas e danos, não tenha conhecimento de factos ou de circunstâncias que evidenciem a ilegalidade da atividade ou do conteúdo” (art. 6.1.a). É considerado “conhecimento efetivo” aquelas notificações que “permitem a um prestador diligente de alojamento virtual identificar a ilegalidade da atividade ou das informações em causa sem um exame jurídico pormenorizado” (art. 16.3).

É importante notar que, para que a notificação obrigue a rede social a agir, deve ser suficientemente pormenorizada e precisa, em conformidade não só com o n.º 3 do artigo 16.º do DSA, mas também com o considerando 53, que estabelece que “os mecanismos de notificação e ação deverão permitir a apresentação de notificações que sejam suficientemente precisas e devidamente fundamentadas para permitir que o prestador de serviços de alojamento virtual em causa tome uma decisão informada e diligente, compatível com a liberdade de expressão e de informação, relativamente aos conteúdos a que se refere a notificação, em especial se esses conteúdos devem ser ou não considerados ilegais e devem ser suprimidos ou o acesso aos mesmos deve ser bloqueado. Esses mecanismos deverão facilitar a apresentação de notificações com uma explicação das razões pelas quais a pessoa ou a entidade que apresenta a notificação considera que o conteúdo é ilegal e uma indicação clara da localização desse conteúdo. Sempre que uma notificação contenha informações suficientes para permitir a um prestador diligente de serviços de alojamento virtual identificar, sem um exame jurídico pormenorizado, que é evidente que o conteúdo é ilegal, deverá considerar-se que a notificação dá origem ao conhecimento efetivo ou ao conhecimento da ilegalidade”.

Quando a rede social recebe uma notificação (por exemplo, através das suas caixas de correio de denúncia de conteúdos) que a informa de forma suficientemente pormenorizada sobre conteúdos de partilha de conteúdos e indica os direitos fundamentais dos menores que podem ser afetados, deve agir de forma diligente e imediata para bloquear ou remover esses conteúdos, sob pena de ser considerada responsável pelos mesmos, uma vez que, de acordo com o n.º 1, alínea b), do artigo 6.1.b do DSA, o prestador de um serviço da sociedade da informação será responsável pelo conteúdo que aloje “a partir do momento em que tenha conhecimento da ilicitude, atue com diligência no sentido de suprimir ou desativar o acesso aos conteúdos ilegais”.

O artigo 6.º, em conjugação com o artigo 16.º e o considerando 53, permite a adoção de medidas contra práticas específicas de partilha de bens, independentemente da frequência com que os pais ou familiares praticam a partilha de bens (desde que os direitos dos menores estejam efetivamente em risco, embora seja esse o caso na maioria das situações de partilha de bens) e independentemente da dimensão da plataforma.

Se a plataforma for considerada de grande dimensão (very large online platform, VLOP) nos termos do artigo 33.º do DSA, devem aplicar-se medidas de atenuação dos riscos que sejam razoáveis, proporcionadas e eficazes e adaptadas aos riscos sistémicos específicos identificados nos termos do artigo 34.º. Em 25 de abril de 2023, a Comissão Europeia publicou a primeira lista de plataformas de muito grande dimensão, incluindo redes sociais como o Facebook, o Instagram, o TikTok ou o YouTube. Em 16 de maio de 2024, a Comissão Europeia abriu um processo contra a Meta em relação ao risco de dependência em menores e ao chamado efeito de orifício dos coelhos, mas ainda não se tem conhecimento de ter iniciado um processo semelhante em relação aos riscos de sharenting. Em Espanha, a Lei Orgânica de Proteção de Dados Pessoais e Garantia dos Direitos Digitais foi além do mero desenvolvimento nacional do RGPD e, no n.º 2 do artigo 84.º, estabelece que “a utilização ou difusão de imagens ou dados pessoais de menores nas redes sociais e serviços equivalentes da sociedade da informação que possam implicar uma ingerência ilícita nos seus direitos fundamentais determinará a intervenção do Ministério Público, que solicitará as medidas cautelares e de proteção previstas na Lei Orgânica 1/1996, de 15 de janeiro, de Proteção Jurídica de Menores”. Apesar da clareza da redação literal da norma, não se conhecem ainda ações intentadas pelo Ministério Público em casos de lenocínio lucrativo.

O consumidor médio e a imoralidade de Pablo Escobar

Doutrina

No dia 17 de Abril de 2024, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) manteve a recusa do Instituto da Propriedade Intelectual da União Europeia (EUIPO) em registar a marca “Pablo Escobar” para uma grande variedade de bens e serviços em toda a União Europeia (UE). A recusa baseia-se no fato de que a marca em questão seria contrária à ordem pública ou aos bons costumes, motivo para recusa previsto no artigo 7 (1)(f) do Regulamento sobre a Marca Comunitária.

A decisão não é a primeira do tribunal a seguir esta tendência. Por exemplo, a marca “La mafia se sienta a la mesa” já teve seu registo cancelado na UE. A corte argumenta que ao remeter a agentes criminosos, tais marcas banalizam a seriedade das atividades criminosas cometidas e, assim, entram em conflito com valores fundamentais da UE, a exemplo da dignidade da pessoa humana (Para mais, veja EUIPO Case-law Research Report: Trade marks contrary to public policy or accepted principles of morality).

No presente caso, o curioso reside na argumentação do requerente, Escobar Inc., empresa estabelecida nos Estados Unidos (EUA). Além de afirmar que Pablo Escobar nunca foi condenado criminalmente, é também ressaltada sua reputação enquanto “Robin Hood Colombiano”, diante das boas obras que também haveria realizado para a população da Colômbia. A requerente constrói uma argumentação de que o nome Pablo Escobar já estaria descolado das atividades criminosas um dia cometidas pelo próprio, tornando-se uma figura da cultura pop geral, amplamente aceite (e até mesmo querida) pela sociedade, como representado na famosa série da Netflix “Narcos”. A requerente ainda traz exemplos como “Al Capone”, também um famoso antigo líder de grupo criminoso nos EUA, e que é uma marca registada na UE.

A corte, por sua vez, é taxativa em afirmar que tais fatos não retiram a associação do nome Pablo Escobar a um símbolo do crime organizado o que, portanto, não deve ser protegido pela UE enquanto marca registada. Segundo o tribunal, o consumidor médio espanhol – frisa-se: aquele com parâmetros médios de sensitividade e tolerância – iria considerar a marca como contrária aos standards morais da sociedade espanhola, a qual possui maiores vínculos com a história de Pablo Escobar e seus atos na Colômbia.

A decisão do caso, assim como de todos os outros que abordam similares questões, é fundamentado na ideia de “consumidor médio”. Este conceito é amplamente debatido pela doutrina, sendo considerado, muitas vezes, uma noção das cortes que não reflete a realidade (Para mais, veja Rossella Incardona & Cristina Poncibò e Lotte Anemaet). Entretanto, um ponto que não foi levantado no caso em questão, e que pode ter grande importância numa análise de moralidade e bons costumes, é o contexto em que os produtos associados à marca seriam vendidos.

Para registar uma marca, é necessário indicar a quais bens ela se destina. Ao observar a marca “Al Capone”, seu registo restringe-se a produtos de tabaco, charutos, cigarrilhas e cigarros. A marca “Pablo Escobar”, por outro lado, destinava-se a uma grande variedade de bens, desde veículos, a cosméticos, utensílios de casa, comidas, bebidas alcoólicas e não-alcoólicas, roupas e jogos. Ademais, incluía também serviços como propaganda, construção civil, telecomunicação, viagens, educação, restauração, e até mesmo babysitting.

Apesar de não ressaltado pela corte, o consumidor médio de cada um desses produtos irá inevitavelmente variar. Enquanto ao tratar de produtos para cigarros é necessário que o consumidor seja maior de 18 anos, o mesmo não ocorre para produtos como brinquedos ou serviços educacionais e de babysitting. Muito pelo contrário, nesse caso imagina-se enquanto consumidor médio uma criança ou adolescente. Assim, levanta-se uma questão: há parâmetros diferentes ao considerar tão distintos consumidores médios? Poderia uma marca como “Pablo Escobar” ser registada, por exemplo, apenas para bebidas alcoólicas?

O Advogado-Geral Szpunar levantou semelhante questão na sua opinião para o caso “Fack Ju, Goethe”, marca que também gerou discussão em torno da sua moralidade por ser um trocadilho em alemão com a expressão inglesa “Fuck you, Goethe”. No parágrafo 85, ele afirma que, embora o pedido da requerente abranja uma diversa lista de bens e serviços, a viabilidade do registo em apenas algumas categorias não foi levantada durante o recurso. Por isso, ele optou por não se pronunciar sobre essa possibilidade. A decisão da corte no caso Pablo Escobar traz à tona os mesmos debates sobre marcas, moralidade, a interpretação da perceção cultural da sociedade atual e a definição do “consumidor médio”. No entanto, não oferece novas respostas. Como podemos avançar na compreensão desses conceitos? Será que uma definição clara de tal “consumidor médio” é possível? Como garantir uma aplicação justa e consistente de padrões morais em diferentes contextos?