É possível comprar e-books?

Doutrina

Imagine que você foi a uma livraria comprar um livro, volta para casa e o põe na estante. Certo dia, um amigo o vê e pede o título emprestado. Contudo, ao tentar atravessar a porta, o livro fica para trás. Talvez não seja um amigo, mas seu orientando que, ao ler apenas um capítulo, mudaria toda sua tese. O livro ainda assim não irá sair da sua residência. Talvez um dia você o queira dar de presente ao seu neto para que ele possa ler a história que marcou a sua infância. Não importa. Qualquer parte do livro só pode ser lida dentro da sua biblioteca. Seria absurdo, se não fosse o que ocorre, por regra, ao “comprar” um e-book.

Ao realizar a compra de um objeto, o consumidor tem a expectativa de poder revender, emprestar ou até mesmo doar este item. A ideia de compra atrela-se consequentemente à propriedade plena do bem, ainda que o objeto expresse a propriedade intelectual de outrem. Nesses casos, em traços gerais, a doutrina da exaustão assegura que os direitos do autor irão se exaurir após a primeira venda do objeto no mercado.

Entretanto, ao ver um e-book em sites como Kobo.com ou Amazon.es e clicar em “Comprar agora com 1-Clique”, somente com este clique é realizado o débito do valor e disponibilizado o e-book para download. Com isso, o consumidor poderá ler o e-book nos dispositivos associados à sua conta para sempre, o que difere de um sistema de subscrição, por exemplo. Porém, não é possível emprestá-lo, doá-lo ou revendê-lo; sequer capítulos deste.

É bem verdade que, apesar de ser anunciado como tal, a “compra” do e-book é, de facto, uma mera “licença de uso”, como resta claro nos termos e condições de uso da loja Kindle, por exemplo. Isso significa que não há propriedade sobre o bem, o que justifica as supracitadas limitações. Contudo, não justifica que esta ação seja anunciada enquanto uma “compra”. Sequer justifica que o contrato que explica os reais termos da contratação, em nenhum dos casos, seja claro ou possua tradução para o português (como o resto do site), tampouco que o contrato não seja expressamente aceite pelo consumidor antes da “compra”, já que esta ocorre num único clique.

Ao realizar uma pesquisa sobre o tema, Aaron Perzanowski e Chris Jay Hoofnagle  constataram que 83% dos consumidores acreditavam que, após clicar em “comprar agora”, possuíam o bem digital em questão. Noutro giro, os consumidores conseguiriam entender se tratar de um contrato de licença caso a opção fosse “licencie agora”, com uma breve descrição do que esta ação difere de uma compra comum. Resta claro, portanto, um desequilíbrio entre a oferta realizada e aceita pelo consumidor ao “comprar” o bem digital (e as implicações desta compra) e o real contrato de licença firmado entre as partes.

 Analisando o Direito do Consumo Europeu, a Diretiva (UE) 2019/770, que trata dos contratos de fornecimento de conteúdos e serviços digitais, afirma, em seu artigo 5º, que o profissional cumpre sua obrigação quando são disponibilizados os conteúdos ou quaisquer meios adequados para aceder ou descarregar estes. Nesse quesito, não haveria uma violação legal na forma em que o bem digital é fornecido.

Contudo, é possível que se configure uma prática comercial desleal, como definido na Diretiva 2005/29/CE. Em seu artigo 6º, este diploma enquadra enquanto enganosas as práticas comerciais que contenham informações inverídicas ou que, ainda que contendo informações factualmente corretas, sejam suceptíveis de induzir em erro ou conduzir o consumidor médio a tomar uma decisão de transacção que este não teria tomado de outro modo. Ressalta-se que se considera consumidor médio aquele normalmente informado e razoavelmente atento e avisado.

No caso em apreço, o botão que informa a “compra” do e-book pode se enquadrar enquanto prática comercial enganosa, tendo em vista que não é preformado um contrato de compra e venda, mas sim de licença do conteúdo. Consequentemente, para impulsionar a realização do contrato, o consumidor médio será induzido em erro. Afinal, como demonstrou a supracitada pesquisa, paga-se o valor acreditando ser pela propriedade do bem, incluindo-se aí o poder de realizar as ações como seu empréstimo, revenda ou doação, e recebe-se um bem que não pode deixar a biblioteca dos dispositivos do consumidor.

Portanto, respondendo à pergunta do título, é possível licenciar um e-book, mas não o comprar. Desse modo, parece-nos desleal realizar uma oferta de venda enquanto, na realidade, se performa um contrato de licença de uso, no qual o e-book, diferentemente do livro físico, não poderá sair da biblioteca do consumidor, não importa o que aconteça.

Pink tax: consumidoras podem pagar mais por bens e serviços?

Doutrina

Pink tax é a denominação dada ao aumento no preço de produtos e serviços destinados ao público feminino. Como apontam pesquisas, este fenômeno ocorre em diversos locais do mundo desde a década de 1990.Um exemplo é, num mesmo estabelecimento, a cobrança de valores maiores para cortes de cabelo femininos, sem levar em consideração o real tempo ou complexidade do trabalho. Outra situação é a venda de lâminas de barbear ou brinquedos infantis mais caros apenas por possuírem a cor rosa. Assim, questiona-se: há legitimidade para a cobrança de valores maiores com base apenas no gênero do/a consumidor/a?

Em pesquisa realizada nos anos 2000, constatou-se que, no Reino Unido, um corte de cabelo para mulheres em cabelereiros unissex custava em média 43% a mais do que para um homem. Noutro giro, estudos realizados nos Estados Unidos observaram que, na Califórnia, em 1994, as mulheres gastavam anualmente cerca de US$1.351,00 a mais que os homens para utilizar os mesmos serviços, desde a lavagem de uma blusa de algodão até à compra de carros usados. Já em Nova Iorque, em 2015, havia um sobrepreço de 7% em produtos semelhantes que fossem destinados às mulheres. Indícios análogos puderam ser coletados no Canadá, em 2016, com um aumento de 43% na versão feminina dos mesmos produtos de higiene pessoal. Esse fenômeno também foi constatado no Brasil, com uma elevação de 12,2% nos preços de similares produtos com enfoque no público feminino.

Em que pese não terem sido encontrados estudos que comprovassem a existência desta diferenciação geral em países da União Europeia, existem campanhas para evidenciar e combater a pink tax, como a “#axthepinktax” endossada pelo European wax center, em que consumidoras enviam fotos de artigos que possuem preço mais elevado na versão feminina.Tais diferenças de preços, se analisadas em singular, podem levar a uma falsa impressão de leviandade da questão. Contudo, em conjunto, há um substancial aumento no custo de vida da mulher, principalmente quando considerado juntamente ao gender pay gap, já que, segundo pesquisas realizadas pela ONU Mulheres em 2020, estas ainda recebem, em média, apenas 84% do salário médio masculino.

Ressalta-se que há uma liberdade regulatória do próprio mercado para estabelecer o preço dos seus produtos ou serviços, ainda que sejam valores distintos pelo mesmo bem. Este fenômeno ocorre comumente com os preços dinâmicos praticados no setor da aviação, de acordo com o momento em que se compra um voo, ou até mesmo quando há descontos para bilhetes adquiridos por estudantes e/ou idosos. Nesta última situação, a diferenciação de preços consubstancia uma discriminação positiva, ao buscar amparar e promover maior igualdade material a grupos que são, em regra, economicamente mais  frágeis.

No que tange à pink tax, apesar da denominação de “taxa”, para efeitos jurídicos, esta não pode ser considerada um tributo, principalmente por não ser determinada ou revertida para qualquer ente estatal. Entretanto, é possível visualizar tal diferenciação de preços como uma discriminação negativa face às mulheres, ao acentuar a desigualdade de gênero. Logo, a pink tax extrapola a liberdade do mercado e se torna uma cobrança efetivamente violadora da ética, como concluiu a doutrinadora Alara Efsun Yazicioglu em seu livro Pink tax and the law: discriminating against women consumers. Por isso, já existem legislações específicas contra a pink tax, como o “Gender tax repeal act of California” de 1995, e o “New York City Pink Tax Ban” de 2020.

Na União Europeia, a Directiva 2004/113/CE proíbe a discriminação de preços de serviços de acordo com o gênero do consumidor e determina que  deve ser garantido o acesso a processos judiciais e/ou administrativos para que haja reparação dos danos causados. Inclusive, este diploma foi utilizado pelo acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia no Processo C-236/09 (Test-Achats), para instituir a obrigatoriedade de prêmios e prestações unissex nos regimes de seguro privados. Contudo, o relatório sobre a aplicação desta Directiva afirma que um dos desafios registados é a falta de conhecimento em geral da população, o que resulta num menor número de queixas.

Portanto, em que pese ser uma prática disseminada, a imposição de valores distintos para bens e serviços com base no gênero do consumidor tende a acentuar a desigualdade entre os sexos. Assim, como inclusive ressaltou a Comissão Europeia, em resposta a questionamento acerca da pink tax, a discriminação direta ou indireta de gênero para o acesso a bens e serviços é efetivamente proibida pelo ordenamento europeu, de tal forma que não é possível a cobrança de preços diferenciados com base apenas no sexo do/a consumidor/a.