MB Way, “engenharia social” e operações fraudulentas

Doutrina

Por Maria Raquel Guimarães, Professora da Faculdade de Direito da Universidade do Porto

As recentes notícias sobre “burlas informáticas” e “cibercrime”, sobretudo associadas a vendas à distância através de plataformas electrónicas, como a OLX, e à aplicação móvel de pagamento MB Way, têm convocado a atenção dos meios de comunicação e criado grande perturbação entre os consumidores.

O MB Way é um instrumento de pagamento para efeitos do art. 2.º do Regime Jurídico dos Serviços de Pagamento e da Moeda Eletrónica (RSP2) — aprovado pelo Decreto-Lei n.º 91/2018, de 12 de Novembro, que transpôs para o direito nacional a Diretiva (UE) 2015/2366 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Novembro de 2015, relativa aos serviços de pagamento no mercado interno —, ainda que o seu utilizador possa não ter plena consciência dessa realidade e não adoptar os cuidados de segurança que asseguraria em relação a outros instrumentos de pagamento, materializados, por exemplo, num cartão de plástico, ou mesmo em relação a uma conta de banca electrónica acessível num computador.

A mobilização dos pagamentos implica um aumento dos riscos de fraude comparativamente com os pagamentos electrónicos “tradicionais”, pela utilização de redes wireless públicas, palavras-chave pouco seguras, descarregamento de potencial software “malicioso” (malware) através de aplicações pouco fiáveis, SMS, vídeos e mensagens partilhadas nas redes sociais, que o utilizador levianamente faz conviver com o acesso à sua conta bancária. Por outro lado, a utilização de aplicações desactualizadas ou mesmo que não permitem a realização de actualizações, em virtude da diminuta capacidade de armazenamento dos dispositivos móveis, abre caminho para vulnerabilidades e intromissões não autorizadas nos processos de autenticação e posterior captação de dados.

Nos casos noticiados, independentemente do efectivo preenchimento ou não de tipos criminais associados à utilização da informática, em termos de sofisticação os esquemas perpetrados são de uma simplicidade gritante e pressupõem uma dose considerável de candura ou de desatenção das vítimas. Não implicam qualquer conhecimento informático por parte dos burlões e são levados a cabo, nas modalidades mais reportadas, com recurso a um telefone. Se já sabíamos que em 91% dos casos o cibercrime começa com um email — e não com “ciber ataques” que explorem as fragilidades do sistema informático da vítima — nas hipóteses em causa é utilizado um método de “engenharia social” que procura tirar partido da tendência natural das pessoas para confiar nos outros, da tensão gerada por uma comunicação telefónica e do constrangimento provocado pela iliteracia tecnológica. Utilizando a expressão ancestral amplamente divulgada na língua portuguesa, estamos perante um “conto do vigário”.

Estes métodos de “engenharia social” têm evoluído rapidamente nos últimos tempos, sobretudo aproveitando a situação de confinamento provocada pela crise pandémica e uma maior propensão para “viver online”, tendo sido considerados como uma das mais importantes ameaças à segurança dos pagamentos no ano de 2020 pelo European Payments Council. Podem ser levados a cabo através de qualquer meio de telecomunicação, desde logo pelo telefone, como nos casos em apreço, correio electrónico, SMS ou redes sociais, com vista a obter as credenciais de acesso do utilizador a um serviço de pagamento (phishing) ou o acesso próprio ao serviço. A vítima é aliciada com compras fantasma, investimentos falsos, negócios com lucros fáceis, ou relações românticas. Em consequência, são efectuadas operações de pagamento fraudulentas, autorizadas ou não pela vítima.

Nas operações fraudulentas realizadas com recurso à aplicação de pagamento móvel MB Way estão em causa quer pagamentos autorizados, quer não autorizados, pelo utilizador do serviço móvel.

Esta aplicação móvel, que se anuncia como “o Multibanco no telemóvel”, permite, entre outras operações, “espelhar” um cartão de débito no telemóvel a fim de realizar pagamentos contactless em terminais de pagamento electrónico, transferir e receber fundos para/de outros dispositivos móveis, e gerar códigos — enviados por SMS — que, associados a um número de telefone móvel, permitem o levantamento de numerário directamente em caixas automáticas.

Os esquemas fraudulentos mais frequentes surgem em resposta a um anúncio de venda de um bem em segunda mão numa plataforma electrónica, visando enganar o vendedor (ou é o próprio burlão que se anuncia como vendedor de um bem na plataforma electrónica, visando enganar o comprador). Numa primeira modalidade de fraude, a vítima é instruída através de uma conversa telefónica para instalar a aplicação MB Way no seu telefone com recurso a uma caixa automática ou, sendo já utilizadora, para efectuar ou receber o pagamento devido, consoante o caso. Depois de inserir o seu cartão de débito e o seu código na caixa automática, é-lhe dito para inserir o número de telefone do falso comprador e o PIN indicado por este, recebendo ele no seu telefone o código de acesso à aplicação MB Way. Em alternativa, é inserido o número de telefone do utilizador (que o terceiro conhece porque este lhe foi facultado precisamente para acordarem o pagamento) e o código indicado pelo terceiro, e é pedido ao utilizador o código de verificação recebido por SMS. Em qualquer dos casos, o utilizador está a dar acesso ao terceiro à sua conta bancária, ainda que sem a consciência de o fazer, e não obstante as mensagens que são exibidas em janela durante o processo de adesão no sentido de nunca associar um número de telefone de um terceiro à aplicação e de não facultar o PIN de acesso ao serviço a outras pessoas.

Nestes casos, o risco das operações não autorizadas que venham a ser realizadas pelo terceiro, de levantamento de numerário ou de transferência de fundos, recairá sobre o utilizador que lhe facultou o acesso à sua conta, na medida em que tenha adoptado um comportamento contrário ao expressamente indicado — de forma adequada e eficaz — pelo prestador de serviços e, assim, tenha actuado com negligência grosseira, para os efeitos do art. 115.º, n.º 4, do RSP2.

A montante desta solução está, portanto, o cumprimento por parte do prestador do serviço de pagamento dos seus deveres de informação no sentido de facultar ao seu cliente a descrição das medidas que este deve adoptar para preservar a segurança do seu instrumento de pagamento. A não se considerarem cumpridos estes deveres de informação, e havendo sempre que apreciar a conduta do utilizador atendendo às particularidades do caso concreto, a este utilizador não poderia, em princípio, ser imputado um juízo de censura para além da negligência leve, com as consequências do n.º 1 do art. 115.º, do RSP2: suportar perdas até 50 euros.

O tempo dirá como os nossos julgadores apreciarão estas condutas, nomeadamente tendo em conta aquilo que é o comportamento do “homem médio”, colocado simultaneamente perante um “isco” camuflado por “engenharia social” e os alertas de fraude do prestador do serviço. Para o efeito seria útil conhecer-se os reais números da fraude e proceder-se a um tratamento sistemático da informação a ela relativa.

Uma segunda categoria de operações fraudulentas tem na sua base um esquema ainda mais simples de actuação: no momento de o utilizador receber um pagamento do terceiro via MB Way, para pagamento do preço de um bem vendido na sequência de um anúncio numa plataforma electrónica, é instruído, também telefonicamente, para “enviar dinheiro” ao falso comprador em vez de lhe “pedir dinheiro” (ou para aceitar um pedido de dinheiro em vez de um pagamento). Nestas hipóteses, as operações de pagamento fraudulentas são operações autorizadas pelo utilizador do instrumento de pagamento, realizadas por ele, devidamente autenticado, e através do seu dispositivo móvel. Estas operações fraudulentas não são abrangidas pelo disposto no RSP2 quanto a operações não autorizadas… porque são operações autorizadas. A fraude tem na sua base a iliteracia do utilizador — agravada pela pressão da “engenharia social” de que é vítima —, e terá que ser resolvido com base nas regras gerais do direito civil, nomeadamente do erro-vício, dolo, ou situação de necessidade.

Eventualmente o mercado incentivará o melhor esclarecimento, a maior diligência e literacia, também informática, dos utilizadores, motivado pelo aumento dos números de adesão a estes serviços, anunciados em Dezembro último, no site da aplicação MB Way, como correspondendo a 3 milhões de utilizadores, mas mais recentemente actualizados para 2,5 milhões. Em alternativa, caberá ao legislador acautelar estas operações fraudulentas, assegurando uma maior consciencialização dos consumidores relativamente aos riscos associados à mobilização dos pagamentos.

A obrigação de indemnizar decorrente do exercício da atividade de distribuição de energia elétrica e os casos de força maior

Doutrina

A atual configuração normativa do Sistema Elétrico Nacional (SEN) está assente, por um lado, numa sucessão de relações jurídicas, económica e juridicamente autonomizadas, que se estabelecem entre os vários sujeitos que operam no mercado da energia elétrica e integram a sua cadeia de valor (a qual compreende as etapas de produção, transporte, distribuição, comercialização e consumo), e, por outro lado, no princípio da separação (unbundling) entre as várias atividades do setor elétrico, nomeadamente as atividades de distribuição e de comercialização (artigos 339.º, n.º 1 e 350.º, n.ºs 1 e 2 do Regulamento de Relações Comerciais do Setor Energético e do Gás (RRC).

O comercializador e o operador da rede de distribuição de energia elétrica acham-se ligados por contrato de uso de redes (artigo 351.º do RRC e artigos 8.º e seguintes do Regulamento de Acesso às Redes e às Interligações – RARI), vínculo negocial por intermédio do qual o operador da rede se obriga a proporcionar ao comercializador o gozo das infraestruturas que tem a seu cargo para o fim de nelas fazer transitar a eletricidade e de nelas criar pontos de ligação (de receção e de entrega de eletricidade), e que se assume como um contrato a favor de terceiro, em que o terceiro beneficiário é o consumidor de eletricidade, com a nuance, face à configuração típica daquela estrutura contratual, de o promissário (no caso, o comercializador com quem o consumidor contratou o fornecimento de energia elétrica) responder (em termos semelhantes àqueles em que o comitente responde perante o comissário – artigo 500.º do Código Civil) pelo cumprimento das obrigações do promitente (no caso, o operador da rede de distribuição), como resulta do disposto pela norma do n.º 1 do artigo 10.º do Regulamento da Qualidade de Serviço dos Setores Elétrico e do Gás – RQS)[1].

Ora, como explica Pedro Falcão, “[p]or força deste contrato a favor de terceiro, scilicet, da cláusula a favor de terceiro consagrada no contrato de uso de redes «para efeitos de acesso às redes das instalações […] dos clientes do comercializador» (ponto 1 do Anexo I do Despacho n.º 18899/2010, publicado no Diário da República de 21 de dezembro de 2010), fica o operador da rede, promitente no âmbito deste contrato, devedor da respetiva prestação ao utente beneficiário, que terá direito a exigi-la nas devidas condições”, as quais se encontram previstas no artigo 5.º do RRC, ao postular que «[n]o exercício das suas atividades, os sujeitos intervenientes no Sistema Elétrico Nacional (…) devem observar as obrigações de serviço público estabelecidas na lei» (n.º 1), sendo uma dessas obrigações «[a] segurança, a regularidade e a qualidade do abastecimento» [n.º 2, alínea a)].

Sucede que, a par da responsabilidade civil obrigacional por factos ilícitos, o operador da rede de distribuição, porque tem a direção efetiva de instalação destinada à condução e entrega de energia elétrica, está sujeito a um outro título de imputação de danos – a responsabilidade pelo risco, independente de culpa, cujo fundamento radica no domínio e aproveitamento de uma fonte de risco, por força da hipótese típica do artigo 509.º do Código Civil –, salvo se demonstrar, como determinado pelo n.º 1 do artigo 11.º da LSPE, que, embora desenvolvendo uma atividade perigosa, sujeita, nomeadamente, aos deveres impostos pelas alíneas a) a d) do n.º 2 do artigo 35.º do Decreto-Lei n.º 29/2006, de 15 de fevereiro, em face das circunstâncias do caso concreto e atendendo às suas capacidades, não lhe era exigível diferente atuação, verificando-se, assim, uma “causa de força maior” (cfr. artigo 509, n.º 2 do Código Civil).

Concretizando o que deve entender-se por “caso de força maior” para efeitos do cumprimento das obrigações de qualidade de serviço de natureza técnica aplicáveis ao SEN, dispõe o artigo 8.º do RQS, no seu n.º 3, que “[c]onsideram-se casos de força maior as circunstâncias de um evento natural ou de ação humana que, embora se pudesse prever, não poderia ser evitado, nem em si, nem nas consequências danos que provoca”, porquanto, nos termos do n.º 1 do mesmo artigo e diploma, tais casos devem reunir “simultaneamente as condições de exterioridade, imprevisibilidade e irresistibilidade face às boas práticas ou às regras técnicas aplicáveis e obrigatórias”. Para efeitos de aplicação do regime regulamentarmente previsto para as interrupções acidentais por caso de força maior (cf. artigo 13.º, n.ºs 1, 2/b) e 3.º/f) do RQS), importa, ainda, atender às normas complementares estabelecidas pelo Manual de Procedimentos da Qualidade de Serviço dos Setores Elétrico e do Gás – Anexo II ao RQS –, particularmente o ponto 4. do Procedimento n.º 1 – Registo e Classificação das Interrupções no Setor Elétrico da sua Parte II.

Neste conspecto, vem-se consolidando uma doutrina jurisprudencial nos nossos tribunais superiores, que acompanhamos, segundo a qual as descargas elétricas atmosféricas (i.e., os raios produzidos pelas trovoadas) não devem ser consideradas uma circunstância de “força maior”[2]. De acordo com esta corrente, «(…) [u]m raio – um simples raio – pode não ser – não é – susceptível de ser dominado pelo homem, se esse homem for o simples consumidor de energia eléctrica, um dos autores. Mas já não pode aceitar-se que esse mesmo simples raio já não seja dominável por uma empresa como a ré, cujo objecto negocial é (…) a distribuição de energia. (…) O funcionamento e a utilização de uma rede de distribuição de energia eléctrica não pode localizar fora de si própria a existência normal de trovoadas e de raios. As trovoadas e os raios não são independentes do funcionamento e utilização da rede de distribuição. Podem ser – são – exteriores, mas não são independentes dessa utilização e funcionamento porque fenómenos naturais comuns e correntes com os quais a empresa que tem o negócio tem de contar em absoluto na montagem dele[3].

De igual modo, a jurisprudência dos nossos tribunais superiores vem afastando a interação de cegonhas ou outras aves nas redes de condução e entrega de energia elétrica geridas e exploradas pelo operador da rede de distribuição como evento idóneo a preencher o conceito de “causa de força maior”, por se tratar de um fenómeno previsível até para o homem comum, suscetível de ser minimizado através da instalação de equipamentos dissuasores de pouso e de nidificação e de sinalizadores nas linhas de distribuição[4]. Em ambas as hipóteses ora destacadas, as doutas instâncias superiores entenderam que não se encontravam preenchidas as já enunciadas condições de imprevisibilidade e de irresistibilidade de que depende a classificação de uma interrupção “por força maior”, sendo as mesmas suscetíveis de serem reconduzidas, de modo diverso, à figura da interrupção “por causas próprias”, prevista na alínea h) do n.º 3 do artigo 13.º do RQS.


[1] Neste sentido, ver, entre outras e sem preocupações de exaustividade, a Sentença do TRIAVE – Centro de Arbitragem de Conflitos de Consumo do Ave, Tâmega e Sousa de 25 de julho de 2018, Processo n.º 1037/2018/FL (relator: Dr. Paulo Duarte).

[2] Corrente essa criada, nomeadamente, pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08.11.2007, proferido no Processo n.º 06B2640, Relator: Pires da Rosa, pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 09.04.2013, proferido no Processo n.º 6391/11.0TBBRG.G1, Relatora: Maria Rosa Tching, pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 22.10.2013, proferido no Processo n.º 2211/10.1TJSB.C2, Relatora: Maria José Guerra, pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 26.04.2018, proferido no Processo n.º 3702/16.6T8BRG.G1, Relator: Alcides Rodrigues e pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23.01.2020, proferido no Processo n.º 1946/19.8YRLSB-6, Relatora: Maria de Deus Correia.

[3] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08.11.2007, proferido no Processo n.º 06B2640, Relator: Pires da Rosa.

[4] Neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03.10.2013, proferido no Processo n.º 3584/04.0TVLSB.L1.S1, Relatora: Maria Prazeres Pizarro Beleza, e o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 16.01.2020, proferido no Processo n.º 1515/18.0T8EVR.E1, Relatora: Cristina Dá Mesquita.

Contrato de Fornecimento de Energia Elétrica e Direito à Cobrança do Preço

Doutrina

O contrato de fornecimento de energia elétrica é um contrato misto, com elementos de compra e venda (art. 874.º do Código Civil) e de prestação de serviço (art. 1154.º do Código Civil) por terceiro, de execução duradoura, nos termos do qual o comercializador, nas palavras de Pedro Falcão, “única contraparte do utente no contrato”, se obriga à “venda da eletricidade e a promessa da prestação do serviço pelo terceiro operador da rede, consubstanciada na instalação e manutenção do contador, na entrega da eletricidade e na medição do consumo” (prestação de execução continuada), encontrando-se o utente adstrito à contraprestação, de execução periódica, consistente no pagamento do preço proporcional à energia elétrica pelo mesmo efetivamente consumida, fixado por unidade de medida (kWh), e reconduzível à figura da venda ad mensuram (art. 887.º do Código Civil).

No âmbito da execução do contrato, impende sobre o comercializador de energia elétrica o cumprimento do dever de informação ao utente (arts. 4.º da LSPE  e 3.º da Lei n.º 5/2019, de 11 de janeiro), sendo um dos seus corolários mais imediatos e mais relevantes, a obrigação de emissão de faturação detalhada, com periodicidade mensal, dotada dos elementos necessários a uma completa, clara e acessível compreensão dos valores faturados, na qual se discrimine, nomeadamente o montante referente aos bens fornecidos ou serviços prestados (arts. 9.º-4 da LSPE e 8.º-1 da Lei 5/2019).

Por força do disposto no art. 43.º-2 a 4 do Regulamento de Relações Comerciais do Setor Energético e do Gás (RRC), a faturação apresentada pelo comercializador ao utente tem por base a informação sobre os dados de consumo disponibilizada pelo operador da rede, obtida por este mediante leitura direta do equipamento de medição (art. 37.º-2 e 7-b) do RRC e ponto 29.1.2. do Guia de Medição, Leitura e Disponibilização de Dados de energia elétrica em Portugal continental – GMLDD) – ou por estimativa de valores de consumo, nos intervalos entre leituras de ciclo, com recurso a método, previsto no GMLDD e escolhido pelo utente no momento da celebração do contrato, que aproxime o melhor possível os consumos faturados dos valores reais de consumo (arts. 39.º e 43.º-5 do RRC), na certeza, porém, que deve prevalecer, sempre que existente, a mais recente informação de consumos obtida por leitura direta do equipamento de medição, nesta se incluindo a que tenha sido comunicada pelo utente (arts. 37.º-1, 3 e 4 e 43.º-3 do RRC).

O primeiro dos pressupostos constitutivos do direito de crédito do comercializador ao pagamento do preço pelo utente consiste no facto de a quantidade de energia elétrica refletida na fatura ter sido registada pelo equipamento de medição instalado, em cada momento, no local de consumo do utente. É, portanto, com base nos dados de consumo obtidos mediante leitura do equipamento de medição afeto à instalação de consumo do utente que se deve aquilatar da correção da quantia peticionada a título de energia ativa consumida, desde que, por sua vez, esses dados tenham sido extraídos de equipamento de medição metrologicamente conforme – o segundo pressuposto constitutivo da posição jurídica ativa do comercializador.

Nos termos do art. 5.º-1 do Decreto-Lei n.º 45/2017, de 27 de abril, só podem ser disponibilizados no mercado e colocados em serviço os instrumentos de medição que satisfaçam os requisitos previstos no diploma e sejam objeto de uma avaliação de conformidade. Os instrumentos de medição que cumpram as exigências previstas no diploma gozam de uma presunção de conformidade.

O ponto 10.5 do Anexo I deste diploma estabelece que, “independentemente de poderem ou não ser lidos à distância, os instrumentos de medição destinados à medição de fornecimentos de serviços públicos devem estar equipados com um mostrador metrologicamente controlado que seja acessível ao consumidor sem a utilização de ferramentas. O valor indicado neste mostrador é o resultado que serve de base para determinar o preço da transação”.

Adicionalmente, importa atender ao disposto no art. 7.º-1 do Anexo à Portaria n.º 321/2019, de 19 de setembro, de acordo com o qual a “verificação periódica dos instrumentos de medição é anual, salvo no caso dos contadores de água, dos contadores de gás e instrumentos de conversão de volume e dos contadores de energia elétrica ativa, cuja periodicidade é a indicada no quadro n.º 1 constante do anexo ao presente Regulamento”, ou seja, 12 anos. Estão previstas normas para os contadores de energia elétrica ativa em utilização e instalados ao abrigo de regulamentos anteriores à portaria. Face a tudo quanto precede e nessa conformidade, forçoso é concluir que, como declarado, entre outras, na Sentença do TRIAVE, de 22 de outubro de 2018, Processo n.º 1601/2018/FL (relator: Dr. Paulo Duarte), “a prova da realização do fornecimento (ou, simetricamente, do consumo) de energia elétrica, e da correspondente quantidade real (a prova, pois, da realização e da real medida da prestação do fornecedor deste “serviço público essencial”), apenas pode fazer-se através de indicação constante de contador metrologicamente conforme, considerando quer os requisitos essenciais de colocação em serviço, quer as exigências de verificação periódica”.

Crédito ao Consumidor e Superendividamento – Aprovação do Projeto de Lei n.º 3515/15

Legislação

Por Fernando Martins, Diretor-Presidente do BRASILCON

Com muita satisfação, o Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor – BRASILCON informa a aprovação em data de 11/05/2021 do Projeto de Lei nº 3515/15, outrora em trâmite na Câmara dos Deputados e que agora retorna ao Senado Federal sob nova designação (PL 1805/21), considerando algumas emendas aditivas e supressivas.

O escopo de referido projeto, além da necessária atualização ao Código de Defesa do Consumidor, é aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor e ao mesmo tempo prevenir e estruturar políticas públicas de tratamento ao superendividamento. Neste aspecto, é o disposto no art. 54-A que cuida em conceituar o superendividamento como a impossibilidade do consumidor, pessoa natural e de boa-fé, em arcar com a totalidade dos débitos, vencidos e vincendos, sem comprometimento do mínimo existencial em plena prejudicialidade ao núcleo familiar.

A iniciativa deste projeto de lei deriva de atuação acadêmica do Programa de Pós-graduação da Faculdade de Direito da UFRGS quando realizou pesquisa empírica em 2004 junto às famílias de Porto Alegre identificando inúmeras pessoas em situação de subconsumo, com sérias restrições ao mercado por órgãos de proteção ao crédito, considerando débitos derivados de empréstimos bancários (e assemelhados) superiores à capacidade de pagamento por conta de acidentes da vida (desemprego, óbito, divórcio etc.). A pesquisa evoluiu em proposta de lei no ano de 2005 em congresso realizado pelo Brasilcon, desencadeando a partir daí inúmeros trabalhos científicos.

Somaram-se à iniciativa pioneira da UFRGS e do Brasilcon, posteriormente, as orientações do Banco Mundial para adoção de normas internas no tratamento ao superendividamento, sem prejuízo da experiência do direito estrangeiro, já que em França a atualização do Code de la Consommation pela Lei Neiertz dispunha sobre modelo de enfrentamento ao tema (em parte recepcionado pelo PL 3515), assim como demais países na experiência quanto à falência civil (bankruptcy).

Anote-se que enquanto o sistema jurídico nacional já dispunha de acolhida propositiva às pessoas jurídicas em estágio pré-falimentar, como na chamada lei de recuperação judicial (Lei nº 11.101/05), de outro lado, quedava-se em políticas públicas aos consumidores sacrificados pelos aumentos significativos de débitos que impediam a continuidade dos padrões mínimos de subsistência. Nestas condições, o consumidor tornava-se insolvente e aos seus bens e eventuais acervos restava nomeado um administrador. Clara hipótese de incapacidade civil (ou morte civil).

Vale a menção que a ‘sociedade de consumo’, através das publicidades, do comércio eletrônico e da extrema facilitação ao acesso crédito induz padrões comportamentais não compatíveis com a baixa educação financeira do brasileiro, por isso a necessidade de promoção aos consumidores nesta condição humana. Entretanto, diante da pandemia proporcionada pela COVID-19 o superendividamento de famílias sofreu enorme impacto (mais de 30 milhões de superendividados) demonstrando ainda mais a pertinência da vigência de lei que possa resolver pragmaticamente conflitos deste naipe. Sem se descurar da advertência de que a futura legislação está a exigir tanto a boa-fé do consumidor como o adimplemento dos débitos (cultura do pagamento). Não se trata de perdão, ao contrário: adimplemento solidário, com a repactuação das dívidas. Como o PL 3515 (agora 1805) teve origem no Senado para lá retorna, a fim de verificar as modificações introduzidas pelos deputados, as quais, contudo, são pontuais e não desnaturam a estrutura e funcionalidade fixadas desde o início. Um passo verdadeiramente importante, na medida em que se torna concreto: i – o estabelecimento do crédito responsável (caracterizado pelo dever de lealdade nas informações prestadas pelos intermediários); ii – a inserção de prevenção (com vedações publicitárias e de ofertas incompatíveis com a real composição do crédito; avaliação do risco quanto ao empréstimo pelo fornecedor; respeito às condições sociais e de saúde dos consumidores); iii – tratamento promocional aos superendividados (com reunião global, repactuação e escalonamento dos débitos, para tanto, instalando-se câmaras de conciliação nos órgãos administrativos componentes do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor e permitindo-se mediação e conciliação perante o Poder Judiciário); iv – atribuindo efetividade ao mínimo existencial estabelecido pela legalidade constitucional.

Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital

Legislação

No dia 17 de maio, foi publicada a Lei 27/2021, que consagra a Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital, que entrará em vigor no dia 16 de julho.

É, como os diplomas desta natureza, um conjunto de normas essencialmente programáticas, que exprimem preocupações, boas intenções e enquadramentos de realidades que se têm vindo a impor globalmente. Não há, atualmente, modo de escapar à evidência de que, além do espaço físico a que estávamos habituados, passou a existir um espaço digital. Esta coexistência pode ocorrer em paralelo, quando todo um processo se passa exclusivamente num ou noutro mundo, ou em interseção, quando ambas as dimensões são usadas. A título de exemplo, pode-se pensar na compra de um livro, que pode ser em papel, comprado numa livraria de rua, pago em dinheiro ou, no extremo oposto, um e-book adquirido online, pago com cartão e descarregado para um dispositivo digital que o permitirá ler naquele formato eletrónico. Pelo meio, há várias combinações possíveis, de físico e digital, como livro de papel comprado e pago online e enviado pelo correio, ou outras.

A Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital (Carta) reconhece esta globalização, e a necessidade de a acompanhar, logo no seu artigo 2.º, n.º 1, em que sob a epígrafe “Direitos em ambiente digital” declara que “A República Portuguesa participa no processo mundial de transformação da Internet num instrumento de conquista de liberdade, igualdade e justiça social e num espaço de promoção, proteção e livre exercício dos direitos humanos, com vista a uma inclusão social em ambiente digital.”.

Claro que se poderia, logo aqui, começar a questionar se estará a existir um processo mundial de transformação da internet num instrumento de conquista de liberdade, igualdade e justiça social e etc, mencionando, só a título de exemplo, as denominadas primaveras árabes (antes de se tornarem invernos), as eleições americanas (amavelmente coadjuvadas por empresas tecnológicas), o crédito social chinês (transparente sistema de vigilância geral), o agravamento imparável das desigualdades sociais, o condicionamento das escolhas dos consumidores. Poder-se-ia, depois, ir esmiuçando cada uma das disposições da Carta, criticando e questionando se e como poderiam ser operacionalizadas, tarefa que o seu caráter geral e utópico não dificultaria. Não é o que se fará.

Estamos perante uma Carta, e uma Carta bastante simpática. Por isso, vamos antes apresentar o seu conteúdo, esperando que seja possível à República Portuguesa e ao mundo concretizar, o mais possível e da melhor forma, o que ali se estabelece.

A Carta, pequena em extensão, já que conta só com vinte e três artigos, é grande em substância. Não apresentando divisões em partes, contém um corpo de disposições coerente, entre o artigo 1.º, relativo ao “Objeto”, e os artigos 22.º e 23.º, relativos a “Direito transitório” e “Entrada em vigor”. Assim, temos, além do já referido e geral artigo 2.º, a consagração dos seguintes direitos, liberdades e garantias, sucessivamente do artigo 3.º ao 21.º: Direito de acesso ao ambiente digital, Liberdade de expressão e criação em ambiente digital, Garantia do acesso e uso, Direito à proteção contra a desinformação, Direitos de reunião, manifestação, associação e participação em ambiente digital, Direito à privacidade em ambiente digital, Uso da inteligência artificial e de robôs, Direito à neutralidade da Internet, Direito ao desenvolvimento de competências digitais, Direito à identidade e outros direitos pessoais, Direito ao esquecimento, Direitos em plataformas digitais, Direito à cibersegurança, Direito à liberdade de criação e à proteção dos conteúdos, Direito à proteção contra a geolocalização abusiva, Direito ao testamento digital, Direitos digitais face à Administração Pública, Direito das crianças, Ação popular digital e outras garantias.

Muito há a dizer sobre cada um e esperamos voltar ao tema em futuros posts. Por ora, parece especialmente relevante uma proclamação e uma espécie de novidade.

Quanto à proclamação, está subjacente a toda a Carta sendo, desde logo, expressa no artigo 2.º, n.º 2 que estabelece que “As normas que na ordem jurídica portuguesa consagram e tutelam direitos, liberdades e garantias são plenamente aplicáveis no ciberespaço.”. Naturalmente. É uma afirmação redundante, como redundantes são de um modo geral as afirmações semelhantes e, portanto, uma parte da Carta. Se direitos, liberdades e garantias são consagrados, os principais e mais relevantes na própria Constituição da República Portuguesa (CRP) e não são legitimamente limitados, não há necessidade de dizer que também se aplicam no ciberespaço, nos estádios de futebol, nos navios ou noutro local físico ou digital sob jurisdição portuguesa. A vantagem, neste como noutros casos, é deixar expresso e sublinhado que assim é.

A novidade poderia ser a proclamação de que todos têm direito de livre acesso à internet, previsto no artigo 3.º, n.º 1. Assim dito, muito poderia significar. No entanto, no contexto em que se encontra, consubstanciará principalmente uma proibição de discriminação ilegítima de, tendo os meios económicos e tecnológicos necessários para tal, alguém ver limitado o exercício da sua liberdade de aceder ao serviço de internet, nomeadamente pelas razões enunciadas no próprio artigo que reproduzem, de perto, as enumeradas no artigo 13.º da CRP, que consagra o princípio da igualdade perante a lei.

É bom ter uma Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital. É bom que seja sucinta, trate do essencial e, dentro da medida do possível em Direito, que seja clara. Muito há a discutir, pecará certamente por excesso e por defeito, boa parte do que consagra nunca, ou muito dificilmente, se concretizará, mas não deixa de ser uma moldura, um enquadramento, um reminder de que no novo faroeste, presente em todos os pontos cardeais, há boas intenções, há Direito e existirá um ou outro xerife justo, de boa vontade e alguma força para o fazer aplicar [1].


[1] Vem pouco depois da Proposta da Comissão Europeia sobre o Regulamento da IA, aqui, e da Proposta de regras da Unesco, aqui.

Incumprimento dos prazos de entrega nas encomendas online

Doutrina

Imaginemos o seguinte cenário: saiu um novo livro da nossa série preferida e queremos lê-lo o mais rapidamente possível. Vamos de imediato à internet e, após várias pesquisas, concluímos que devemos encomendar através da página online da livraria Livros para todos os gostos. Ao lado do livro, aparece a opção: “Disponível para entrega. 2 a 5 dias úteis”.

Passado o 5.º dia útil, contactamos a livraria, que nos informa de que está com problemas com o fornecedor e que não sabe quando poderá proceder à entrega do livro. Remete ainda para um documento disponível no site, designado “Termos e Condições”, que tem uma cláusula 4.ª na qual a empresa se desresponsabiliza pelos prazos indicados nas suas ofertas.

O que fazer?

Deixemos desde já o alerta para a circunstância de o regime legal não ser especialmente protetor do consumidor nestes casos. Tal como não protege, na verdade, os concorrentes daquela livraria. Teríamos certamente optado pela livraria online do lado, que prometia entregar em 6 dias úteis, se soubéssemos que o prazo indicado pela livraria na qual encomendámos o livro não iria ser cumprido.

Comecemos pela parte mais fácil: os chamados “termos e condições”, que não são termos e condições, figuras jurídicas com um sentido próprio e bem diferente deste, mas cláusulas a incluir em contratos, normalmente escondidos nas páginas dos profissionais ou colocados em links pelos quais não se passa ou se passa rapidamente, não estão, em regra, incluídos no contrato, por força da aplicação das normas relativas à inserção das cláusulas contratuais gerais em contratos singulares. Veja-se, em especial, o art. 5.º do DL 446/85. Estando excluídas essas cláusulas do contrato, o profissional não pode invocar que os prazos de entrega são meramente indicativos.

Quanto aos prazos para entrega dos bens, aplica-se o art. 9º-B da Lei de Defesa do Consumidor.

O profissional “deve entregar os bens na data ou dentro do período especificado pelo consumidor” (n.º 1).

Se o profissional não entregar nesse prazo, o consumidor terá ainda, em regra, de dar um prazo adicional ao profissional antes de poder resolver o contrato (n.º 4). Só será possível a resolução imediata no caso de o profissional se recusar a entregar os bens, o prazo for essencial tendo em conta “todas as circunstâncias que rodearam a celebração do contrato” ou tiver havido acordo quanto à essencialidade do prazo (n.º 5).

O problema é que a resolução do contrato, imediata ou diferida, não é normalmente a solução pretendida pelo consumidor. No caso que estamos a analisar, o consumidor não quer a destruição dos efeitos do contrato. Aquilo que quer é o livro. E, já agora, quer também uma compensação por não ter recebido o livro.

Se é certo que o consumidor tem direito a indemnização, nos termos gerais, o dano não é facilmente identificável nestas situações. Num sistema que não admite os danos punitivos e é bastante restritivo na atribuição de danos não patrimoniais, compensa a prática de ser agressivo na indicação dos prazos de entrega, sabendo que se pode depois incumprir.

As dificuldades são exatamente as mesmas se aplicarmos o regime das práticas comerciais desleais (DL 57/2008), acrescendo o problema da prova dos pressupostos previstos no regime. Na prática, o direito a indemnização é limitado também neste diploma. Restam ao consumidor as opções já aqui (e aqui) referidas no blog do boicote e do buycott: opções de consumo conscientes, privilegiando-se quem cumpre.

A admissibilidade da venda de smartphones sem adaptador à luz do direito à informação

Doutrina

Antes da chegada dos smartphones, e numa altura em que o e-waste era um termo desconhecido para a maioria das pessoas, era comum que cada fabricante fosse responsável por, pelo menos, um carregador proprietário. De acordo com a avaliação de impacto inicial, elaborada pelo grupo de peritos da Comissão Europeia sobre equipamentos de rádio (E03587), também conhecido por RED expert group, em 2009, […] mais de 30 soluções proprietárias existiam no mercado”.

Numa perspetiva de sustentabilidade, e para mitigar o impacto ambiental causado pela falta de estandardização, a União Europeia decidiu agir.
O memorando de entendimento relativo à harmonização da capacidade de carregamento para telemóveis, de 5 de junho de 2009, foi um dos primeiros passos neste sentido, e permitiu iniciar o diálogo com as empresas de telemóveis no que concerne à adoção voluntária do micro-USB para efeitos de interoperabilidade e diminuição de lixo eletrónico. É por volta desta altura que começam a proliferar pelo mercado carregadores compostos por duas peças: um cabo micro-USB e um adaptador de corrente. Estes têm um impacto ambiental menor e conferem vantagens económicas para o consumidor pois, ao permitir trocar o cabo, a parte mais frágil e mais propícia a deixar de funcionar, o consumidor prolonga a vida do adaptador de corrente.
A União Europeia continuou os seus esforços no sentido de reduzir o e-waste e, para tal, apostou na padronização dos carregadores com a Diretiva 2014/53/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de abril de 2014 e com um novo Memorando de Entendimento emitido a 20 de março de 2018. Neste memorando, é adotado o USB-C como a nova solução comum para o carregamento de equipamentos eletrónicos, persistindo o caráter voluntário de adoção como no já referido memorando de 2009.
É neste contexto que temos de analisar a nova prática comercial de não incluir adaptadores de corrente juntamente com os telemóveis, procurando dar uma resposta à questão da admissibilidade desta prática.

Oferecendo uma resposta breve, podemos dizer que ao abrigo das regras de mercado livre, e desde que informe devidamente o consumidor, o profissional pode deixar de incluir o adaptador de corrente nas caixas de telemóvel, existindo já uma decisão neste sentido no Brasil[1]. O desequilíbrio na relação comercial em análise surge se o profissional não informar que alterou o conteúdo incluído na caixa do telemóvel, apresentando-o como se nenhuma alteração tivesse sido feita, ferindo as expectativas do consumidor.
O direito à informação está constitucionalmente garantido no art. 60.º-1 da Constituição da República Portuguesa, estando também previsto, em termos gerais, na alínea d) do art. 3.º da Lei de Defesa do Consumidor (LDC). A LDC concretiza este direito nos arts. 7.º e 8.º, relevando o último para efeitos de resolução do caso em questão, por tratar do direito à informação em particular. O art. 8.º-1-a) esclarece que “o fornecedor de bens ou prestador de serviços deve, tanto na fase de negociações como na fase de celebração de um contrato, informar o consumidor de forma clara, objetiva e adequada […] nomeadamente sobre […] as características principais dos bens ou serviços”. Este artigo necessita de alguma adaptação ao caso em análise se quisermos diferenciar os acessórios e o bem principal, em vez de uma análise conjunta do conteúdo da caixa. Não obstante, mesmo que não fosse possível situar o caso em estudo no art. 8.º-1-a), o n.º 1 não apresenta um conjunto fechado de situações para as quais o profissional tem o dever de informar o consumidor. Caso contrário, o consumidor ficaria desprotegido em várias situações. A utilização do termo “nomeadamente” aponta para esse sentido, pelo que é possível enquadrar o caso em análise no espírito da norma.
Como consequência da falta de informação sobre o conteúdo da caixa, o art. 8.º-5 estabelece que “o fornecedor de bens ou o prestador de serviços que viole o dever de informar responde pelos danos que causar ao consumidor”. Este número deve ser articulado com o n.º 4 do mesmo artigo, que esclarece que, quando se verificar falta de informação que comprometa a utilização adequada do bem, o consumidor tem o direito de resolução do contrato no prazo de sete dias úteis a contar da data de receção do bem. A essencialidade do adaptador é evidente por não ser possível carregar, ou carregar eficazmente o telemóvel, recorrendo apenas ao cabo que vem incluído na caixa. Deste modo, a utilização adequada do telemóvel fica comprometida se o profissional não informar que o adaptador, ao contrário do que costuma ser a prática reiterada deste mercado, não está incluído com o telemóvel.
Assim, por efeito da violação do dever de informação pelo profissional, o consumidor tem o direito de resolução do contrato no prazo de sete dias úteis a contar da data de receção do bem, bem como o direito a indemnização, nos termos gerais.


[1] Para aceder ao documento é necessário introduzir o número de processo 1019678-91.2020.8.26.0451 e o código 9463E02

Conceito de litígio de consumo e as pessoas coletivas de utilidade pública

Doutrina

Com vista a estabelecer os princípios e as regras a que deve obedecer o funcionamento das entidades de resolução alternativa de litígios de consumo, a Lei n.º 144/2015, de 8 de setembro, que transpôs a Diretiva 2013/11/UE, no n.º 2 do seu artigo 2.º, procede, para aqueles efeitos, a uma delimitação negativa do conceito de “litígio de consumo”, dele excluindo, nomeadamente, sob alínea a), “[o]s serviços de interesse geral sem contrapartida económica, designadamente os que sejam prestados pelo Estado ou em seu nome, sem contrapartida remuneratória”.

Ora, a solução normativa da alínea a) do n.º 2 do artigo 2.º é decalcada da regra consagrada na alínea c) do n.º 2 do artigo 2.º da Diretiva 2013/11/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de maio de 2013, sobre a resolução alternativa de litígios de consumo, a qual exclui do seu âmbito de aplicação “os serviços de interesse geral sem caráter económico”, categoria essa prevista na Diretiva “Serviços”, cujo considerando (34) tem a seguinte redação: «De acordo com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, a identificação de certas atividades, em particular de atividades que são publicamente financiadas ou prestadas por entidades públicas, como pertencentes à categoria «serviços» tem de ser efetuada caso a caso, à luz de todas as suas características, em particular quanto à forma como são prestadas, organizadas e financiadas no Estado-Membro em questão. O Tribunal de Justiça sustentou que a característica essencial da remuneração reside no facto de constituir uma contrapartida pelos serviços em questão e reconheceu que a característica da remuneração não está presente nas atividades que o Estado realize ou que se realizem em nome do Estado sem contrapartida económica no âmbito da sua missão nos domínios social, cultural, educativo e judiciário, tais como o ensino ministrado no âmbito do sistema educativo nacional, ou a gestão de regimes de segurança social que não participem em atividades económicas. O pagamento de taxas pelos destinatários, por exemplo, as propinas ou a inscrição pagas por estudantes como contributo para os encargos de funcionamento de um sistema, não constitui em si uma remuneração, porque o serviço continua a ser financiado por fundos públicos. Essas atividades não estão, por conseguinte, abrangidas pela definição de serviço do artigo 50.º do Tratado, pelo que não se incluem no âmbito de aplicação da presente diretiva.»

A partir do considerando que se acaba de transcrever, parece poder concluir-se que a categoria dos “serviços de interesse geral sem caráter económico”, igualmente excluída do âmbito de aplicação da Diretiva “Serviços” [artigo 2.º, n.º 2, alínea a)], visa contemplar um conjunto de atividades que, sendo serviços de facto, para efeitos do Direito da União, mormente o artigo 57.º do TFUE (consideram-se “serviços”, para efeitos do disposto nos Tratados, “as  prestações  realizadas  normalmente  mediante  remuneração”) – expressamente acolhido pelo 1) do artigo 4.º da Diretiva “Serviços” – devem considerar-se afastadas da noção jurídico-comunitária de “serviço”, por, em concreto, não revelarem “uma dimensão económica que seja principalmente atestada pela existência de remuneração ou contrapartida financeira, mas também – embora não necessariamente – pela finalidade de obter um lucro, ou/e de ser financiada principalmente por fundos privados”[1], independentemente da forma jurídica pública ou privada do prestador.

Sublinhe-se, ainda, que, em matéria de auxílios estatais e, em termos mais amplos, no contexto do direito da concorrência, a jurisprudência do Tribunal de Justiça vem afirmando um conceito de “empresa” que abrange “qualquer entidade que exerça uma atividade económica”, isto é, uma atividade consistente na “oferta de bens ou serviços num determinado mercado”, independentemente do estatuto jurídico ou do modo de financiamento do ente ou do facto de o serviço ser pago por aqueles que dele beneficiam. Mas certo é também que, por exemplo, no caso de ensino ministrado em certos estabelecimentos financiados, total ou principalmente, por fundos públicos, deve entender-se que o Estado “não pretende[u] envolver-se em atividades remuneradas, mas sim cumprir a sua missão nos domínios social, cultural e educativo para com a sua população”[2].

Isto posto, no caso particular das pessoas coletivas de utilidade pública (associações, fundações ou certas cooperativas), embora o estatuto de utilidade pública que lhes foi atribuído pressuponha, entre outros requisitos cumulativos, o desenvolvimento, sem fins lucrativos, de uma atividade de intervenção em favor da comunidade em áreas de relevo social e o não desenvolvimento, a título principal, de atividades económicas em concorrência com outras entidades que não possam beneficiar do estatuto de utilidade pública (cf. artigo 2.º, n.º 1, alíneas a) e c) do Decreto-Lei n.º 460/77, de 7 de novembro, na sua redação atual, que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 391/2007, de 13 de dezembro), se se constatar, nomeadamente através das suas demonstrações financeiras, que a sua maior fonte de rendimentos consiste em prestações de serviços, nesse caso, ainda que a política de preços a que obedecem os serviços pelas mesmas prestados tenha em vista a promoção de um acesso generalizado pelos beneficiários associados (inclusive aqueles que aufiram baixos rendimentos), deve concluir-se que tais pessoas coletivas desenvolvem profissionalmente uma atividade económica com vista à obtenção de vantagens patrimoniais (o que não se confunde, necessariamente, com escopo lucrativo), não sendo, portanto, prestadoras de serviços não económicos de interesse geral.

Veja-se, a título exemplificativo, o caso da Fundação Inatel. Por intermédio do Decreto-Lei n.º 106/2008, de 25 de junho, foi concretizada a extinção do INATEL – Instituto Nacional para o Aproveitamento dos Tempos Livres dos Trabalhadores, I. P. (artigo 1.º), e instituída, pelo Estado Português, uma fundação privada de utilidade pública – a Fundação INATEL (artigos 2.º e 7.º) –, que sucedeu ao INATEL, I.P. em todos os seus direitos e obrigações, bem como na prossecução dos seus fins de serviço público (artigo 3.º) – nomeadamente, a promoção das melhores condições para a ocupação dos tempos livres e do lazer dos trabalhadores, no ativo e reformados, desenvolvendo e valorizando o turismo social, a criação e fruição cultural, a atividade física e desportiva, a inclusão e a solidariedade social (artigo 5.º) –, deixando a pessoa coletiva de integrar a administração central do Estado – e, mesmo, a Administração Pública (cf. artigo 2.º, n.º 4 do CPA de 2015) –, epassando a assumir natureza jurídica mais consentânea com as características e o tipo de atividades que prossegue (cf. Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 106/2008, de 25 de junho). Mas, por outro lado, mediante consulta das mais recentes demonstrações financeiras da Fundação INATEL, disponíveis online em http://www.inatel.pt/, verifica-se que a maior fonte de rendimentos da Fundação INATEL consiste nas “prestações de serviços” (cf. alínea a) do artigo 7.º dos Estatutos da Fundação INATEL, aprovados em anexo ao Decreto-Lei n.º 106/2008, de 25 de junho), que assumem um peso de cerca de 50 % no total de rendimentos auferidos, enquanto os “subsídios à exploração”, atribuídos, na sua esmagadora maioria, pelo IGFSS – Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I.P. e pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (cf. alíneas e) e f) do artigo 7.º dos Estatutos da Fundação INATEL), representam cerca de 25 % do universo de rendimentos.


[1] Conclusões do advogado-geral Michal Bobek apresentadas em 15 de novembro de 2018, no Processo C-393/17 (Openbaar Ministerie v Freddy Lucien Magdalena Kirschstein and Thierry Frans Adeline Kirschstein) do Tribunal de Justiça, em sede de pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Hof van beroep te Antwerpen (Tribunal de Recurso de Antuérpia, Bélgica), n.ºs 45 a 99, em especial n.ºs 64 e 74.

[2] Acórdão do Tribunal de Justiça (Grande Secção) de 27 de junho de 2017, proferido no Processo C-74/16 (Congregación de Escuelas Pías Provincia Betania c. Ayuntamiento de Getafe), em sede de pedido de decisão prejudicial do Juzgado Contencioso-Administrativo n.º 4 de Madrid (Tribunal do Contencioso Administrativo, n.º 4 de Madrid, Espanha), n.ºs 41 a 51.

Mais questões sobre arbitragem de consumo – Ac. do TRP, de 28/01/2021

Jurisprudência

Ainda há poucos dias publicámos aqui um breve comentário a uma decisão jurisprudencial em matéria de arbitragem de consumo. Chamados à atenção pelo Dr. Carlos Filipe Costa para outra decisão proferida neste domínio no início deste ano, procedemos agora à sua análise.

Está em causa o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto (TRP) no passado dia 28 de janeiro, a qual nos parece também ser bastante acertada no que respeita a todos os aspetos tratados.

Neste acórdão, o TRP trata várias questões, decidindo, em resumo, o seguinte:

1) O prazo para a prolação da sentença arbitral é o prazo previsto no art. 43.º da Lei de Arbitragem Voluntária (12 meses, com possibilidade de sucessivas prorrogações) e não o prazo previsto no art. 10.º-5 e 6 da Lei n.º 144/2015, reproduzido no art. 17.º do Regulamento do Centro de Informação de Consumo e Arbitragem do Porto – CICAP (90 dias, com possibilidade de duas prorrogações por período igual).

A decisão parece-nos totalmente adequada. Como já foi defendido[1], o prazo de 90 dias parece estar pensado sobretudo para a mediação e outros meios não adjudicatórios de resolução de litígios, suscitando dificuldades a sua aplicação à arbitragem. Pensando na tramitação típica de um processo de arbitragem, que envolve a troca de articulados entre as partes, a produção de prova e a realização de audiências, o prazo de 90 dias pode ser insuficiente.

O TRP segue, neste aspeto, o entendimento já anteriormente defendido no Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, de 21/1/2020, referido em comentário ao nosso último post sobre esta matéria.

2) O prazo de 12 meses para a prolação da sentença arbitral conta a partir da data da designação do árbitro.

Só a partir desse momento se pode considerar iniciado, para este efeito, o processo arbitral, uma vez que os poderes jurisdicionais do tribunal arbitral não podem ser anteriores a esse momento. Também aqui se reconhece, tal como na decisão que analisámos há alguns dias, a necessidade de separar claramente o processo de mediação do processo de arbitragem.

3) Não determina o encerramento automático do processo arbitral a ultrapassagem do prazo de 15 dias a contar da data da audiência para notificação da sentença arbitral às partes, previsto no art. 15.º do Regulamento do CICAP.

O incumprimento desta regra não preclude o dever de proferir a sentença arbitral, ainda que em momento posterior, não constituindo, portanto, fundamento de anulação da sentença arbitral.

Uma decisão em sentido oposto seria contrária ao interesse das partes no sentido da celeridade processual. A anulação da decisão implicaria que o processo voltasse ao início, repetindo-se todos os passos anteriores. Ora, se apenas falta a prolação da sentença e não existe qualquer outro problema com o processo, seria manifesta a irrazoabilidade da consequência.

4) O dever de fundamentação da decisão arbitral não é idêntico ao de uma decisão judicial, mas deve “ter o conteúdo mínimo exigível que permita apreender o sentido, as razões e o percurso racional seguido pelo árbitro na interpretação dos meios de prova”.

Concorda-se com a argumentação do tribunal. Já se defendeu[2] que o critério essencial para determinar o alcance do dever de fundamentação é o da inteligibilidade da decisão para as partes. Será inteligível a decisão que as partes puderem compreender, tendo em conta o caso concreto. O grau de fundamentação não deve, assim, ser igual em todas as situações, dependendo da complexidade, devendo ser mais bem explicada a matéria de facto, de direito ou ambas, consoante a dificuldade da questão em termos de compreensão. Numa situação simples, admite-se que a fundamentação pode ser sucinta, bastando, assim, em princípio, o mínimo para que remete a ideia de que só a falta absoluta de fundamentação constitui fundamento de anulação. Deve, no entanto, salientar-se que o aspeto essencial não é a extensão (ou a quantidade) da motivação, mas o seu conteúdo. A necessidade de uma análise crítica da prova também depende das circunstâncias do caso. Quando, para a compreensão da decisão, for necessário perceber como é que o tribunal se posicionou face à prova produzida, é anulável a sentença que não o explique, uma vez que é posta em causa a sua inteligibilidade para as partes.

No caso em análise, a fundamentação ultrapassava, em muito, o mínimo exigido pelo Direito.

5) A ação de anulação da sentença arbitral não visa resolver os problemas causados à parte vencida no processo pela ausência de possibilidade de recurso dessa mesma decisão.

Os fundamentos para a anulação da decisão são essencialmente formais, não servindo esta ação para o tribunal estadual avaliar se a decisão proferida pelo tribunal arbitral foi correta do ponto de vista, quer dos factos, quer do Direito. Em suma, o TRP não anula a decisão arbitral e revela uma total compreensão da arbitragem em geral e da arbitragem de consumo em particular.


[1] Jorge Morais Carvalho, João Pedro Pinto-Ferreira e Joana Campos Carvalho, Manual de Resolução Alternativa de Litígios de Consumo, Almedina, 2017, pp. 129 e segs..

[2] Jorge Morais Carvalho, João Pedro Pinto-Ferreira e Joana Campos Carvalho, Manual de Resolução Alternativa de Litígios de Consumo, Almedina, 2017, pp. 95 e segs..

Tribunal competente e fornecimento de água – Ac. do TRL, de 27/04/2021

Jurisprudência

A questão de saber que tribunais são competentes para as ações de cobrança de dívidas relativas ao contrato de fornecimento de água tem suscitado alguma discussão na doutrina e na jurisprudência ao longo das últimas décadas.

O Tribunal da Relação de Lisboa proferiu um acórdão no passado dia 27 de abril de 2021, no qual se defende a orientação dominante e que nos parece ser a mais correta.

Apesar da referência a serviços públicos essenciais, os contratos a que a Lei n.º 23/96 se refere são contratos de direito privado, independentemente de o prestador de serviço ser uma entidade pública ou privada, sendo competentes para a resolução dos litígios os tribunais comuns e não os tribunais administrativos e fiscais.

O TRL foi chamado a pronunciar-se sobre a questão no âmbito de um recurso interposto pela AdC – Águas de Cascais, S.A., que não se conformou com a decisão do tribunal judicial de 1.ª instância de absolver o réu da instância com fundamento na sua incompetência em função da matéria.

O TRL revogou a decisão impugnada, devolvendo o processo ao tribunal de 1.ª instância. Defende-se na decisão que “a dívida de consumo de água não é uma dívida fiscal emergente de uma relação jurídica-tributária”.

Como também refere o TRL, a questão encontra-se, atualmente, expressamente resolvida. Com efeito, resulta do art. 4.º-4-e) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais que estão “excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal (…) a apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva”. Esta norma foi introduzida pela Lei n.º 114/2019, de 12 de setembro, podendo ler-se na Exposição de Motivos relativa ao Projeto de Lei n.º 167/XIII/4, que deu origem à referida Lei, que “esclarece-se que fica excluída da jurisdição a competência para a apreciação de litígios decorrentes da prestação e fornecimento de serviços públicos essenciais. Da Lei dos Serviços Públicos (Lei n.º 23/96, de 26 de julho) resulta claramente que a matéria atinente à prestação e fornecimento dos serviços públicos aí elencados constitui uma relação de consumo típica, não se justificando que fossem submetidos à jurisdição administrativa e tributária; concomitantemente, fica agora clara a competência dos tribunais judiciais para a apreciação destes litígios de consumo”. Não se trata, portanto, de um novo regime, sendo a nova norma apenas interpretativa.

A norma e a respetiva explicação levantam, no entanto, um problema interpretativo adicional, uma vez que se faz referência a “relações de consumo”. Ora, o âmbito da Lei n.º 23/96 é mais alargado, protegendo-se todos os utentes, independentemente de serem ou não consumidores. Deve interpretar-se em conformidade o novo art. 4.º-4-e), aplicando-se a regra a qualquer litígio relativo a serviços públicos essenciais, independentemente de o utente ser um consumidor ou um profissional.

O TRL não se pronuncia sobre esta questão, que teria sido interessante, uma vez que o réu é um condomínio (que pode ou não ser qualificado como consumidor). Parece assumir-se na decisão a existência de uma relação de consumo em todos os casos em que se aplica a Lei n.º 23/96. Para um aprofundamento desta questão, recomendamos a leitura de um texto citado no acórdão, que corresponde à tese de mestrado de Cátia Sofia Ramos Mendes, colaboradora do NOVA Consumer Lab ao longo de vários anos e que tem como título “O Contrato de Prestação de Serviços de Fornecimento de Água”. Foi defendida em setembro de 2015 na NOVA School of Law e encontra-se disponível aqui.