A questão de saber que tribunais são competentes para as ações de cobrança de dívidas relativas ao contrato de fornecimento de água tem suscitado alguma discussão na doutrina e na jurisprudência ao longo das últimas décadas.
O Tribunal da Relação de Lisboa proferiu um acórdão no passado dia 27 de abril de 2021, no qual se defende a orientação dominante e que nos parece ser a mais correta.
Apesar da referência a serviços públicos essenciais, os contratos a que a Lei n.º 23/96 se refere são contratos de direito privado, independentemente de o prestador de serviço ser uma entidade pública ou privada, sendo competentes para a resolução dos litígios os tribunais comuns e não os tribunais administrativos e fiscais.
O TRL foi chamado a pronunciar-se sobre a questão no âmbito de um recurso interposto pela AdC – Águas de Cascais, S.A., que não se conformou com a decisão do tribunal judicial de 1.ª instância de absolver o réu da instância com fundamento na sua incompetência em função da matéria.
O TRL revogou a decisão impugnada, devolvendo o processo ao tribunal de 1.ª instância. Defende-se na decisão que “a dívida de consumo de água não é uma dívida fiscal emergente de uma relação jurídica-tributária”.
Como também refere o TRL, a questão encontra-se, atualmente, expressamente resolvida. Com efeito, resulta do art. 4.º-4-e) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais que estão “excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal (…) a apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva”. Esta norma foi introduzida pela Lei n.º 114/2019, de 12 de setembro, podendo ler-se na Exposição de Motivos relativa ao Projeto de Lei n.º 167/XIII/4, que deu origem à referida Lei, que “esclarece-se que fica excluída da jurisdição a competência para a apreciação de litígios decorrentes da prestação e fornecimento de serviços públicos essenciais. Da Lei dos Serviços Públicos (Lei n.º 23/96, de 26 de julho) resulta claramente que a matéria atinente à prestação e fornecimento dos serviços públicos aí elencados constitui uma relação de consumo típica, não se justificando que fossem submetidos à jurisdição administrativa e tributária; concomitantemente, fica agora clara a competência dos tribunais judiciais para a apreciação destes litígios de consumo”. Não se trata, portanto, de um novo regime, sendo a nova norma apenas interpretativa.
A norma e a respetiva explicação levantam, no entanto, um problema interpretativo adicional, uma vez que se faz referência a “relações de consumo”. Ora, o âmbito da Lei n.º 23/96 é mais alargado, protegendo-se todos os utentes, independentemente de serem ou não consumidores. Deve interpretar-se em conformidade o novo art. 4.º-4-e), aplicando-se a regra a qualquer litígio relativo a serviços públicos essenciais, independentemente de o utente ser um consumidor ou um profissional.
O TRL não se pronuncia sobre esta questão, que teria sido interessante, uma vez que o réu é um condomínio (que pode ou não ser qualificado como consumidor). Parece assumir-se na decisão a existência de uma relação de consumo em todos os casos em que se aplica a Lei n.º 23/96. Para um aprofundamento desta questão, recomendamos a leitura de um texto citado no acórdão, que corresponde à tese de mestrado de Cátia Sofia Ramos Mendes, colaboradora do NOVA Consumer Lab ao longo de vários anos e que tem como título “O Contrato de Prestação de Serviços de Fornecimento de Água”. Foi defendida em setembro de 2015 na NOVA School of Law e encontra-se disponível aqui.
No mesmo sentido, tomando posição sobre a aplicação da norma da alínea e) do n.º 4 do artigo 4.º do ETAF a ações instauradas antes da sua entrada em vigor, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 08.10.2020, proferido no Processo n.º 40700/19.0YIPRT.L1-8, Relatora: Teresa Sandiães, cujo sumário aqui reproduzo:
“1. Com a entrada em vigor da Lei 114/2019, de 12/09, os tribunais administrativos e fiscais não têm competência para as acções que, como a dos autos, se destinem a apreciar “litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respectiva cobrança coerciva” (cfr. artº 4º, nº 4, al e) do ETAF).
2. Tal norma é aplicável a acção instaurada antes da sua entrada em vigor, tendo em conta o disposto no artº 38º, nº 2 da L.O.S.J., conjugado com os artºs 211, nº 1 e 212º da C.R.P., sendo caso de modificação de direito relevante, em que o legislador teve a intenção manifesta de pôr termo a inúmeros conflitos de competência, excluindo da jurisdição administrativa e fiscal a competência para a apreciação de litígios decorrentes da prestação e fornecimento de serviços públicos essenciais e, “concomitantemente, tornar clara a competência dos tribunais judiciais para a apreciação destes litígios de consumo.”
http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/b5d3d23ac3f9735180258600004e9efd?OpenDocument&fbclid=IwAR37smXa6j3BTBpFqlinZt_7XDWpdcsSNdGgfP3wTsv44AguxUqqkcdYjOs
Muito obrigado pela partilha desta decisão.
Julgo que o novo art. 4.º-4-e) do ETAF resolve em definitivo a questão. Sobra a questão de saber o que fazer quando a relação não for de consumo, apesar de se tratar de um serviço público essencial. Esta questão extravasa, no entanto, o âmbito do direito do consumo.
Sobre as dúvidas e incompletudes da solução normativa da alínea e) do n.º 4 do artigo 4.º do ETAF, tomo a liberdade e – quiçá – a ousadia de dar nota que dei à estampa um artigo, em co-autoria com Inês Santos e Marlene Teixeira de Carvalho, intitulado “A nova alínea e) do n.º 4 do artigo 4.º do ETAF : uma análise crítica à luz dos fundamentos político-legislativos e jurisprudenciais e do princípio da unidade e coerência do sistema jurídico”, Revista de Direito Administrativo, Lisboa, n.º 9 (Set.-Dez. 2020), p. 85-91, com o seguinte índice:
I. Enquadramento. II. O problema que motivou o aditamento da alínea e) do n.º 4 do artigo 4.º do ETAF. II.1. Partindo da jurisprudência para a análise do problema. A) A Lei n.º 23/96, de 26 de julho e a noção de “relação de consumo”. B) Instrumentos de remuneração cobrados pela entidade gestora dos serviços de fornecimento de água e de saneamento de águas residuais: criação, regulamentação e cobrança. III. Dúvidas e incompletudes da solução normativa em análise.