No dia 11 de março de 2021, o Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) proferiu uma decisão muito relevante em matéria de arbitragem de consumo, no âmbito de uma ação de anulação de uma decisão arbitral do Centro de Arbitragem do Setor Automóvel (CASA).
Foram várias as questões (processuais) tratadas nesta decisão, decidindo o TRL, em resumo, o seguinte:
1) A Lei n.º 63/2019, de 16 de agosto, que veio introduzir na Lei de Defesa do Consumidor um mecanismo de arbitragem (dita) necessária para o profissional no caso de o consumidor assim o determinar, aplica-se a processos que se iniciem após a data da sua entrada em vigor.
Neste sentido, defende o TRL que “a Lei n.º 63/2019 não preconiza uma mutação da ordem jurídica intolerável e opressiva dos mínimos de certeza e segurança, vindo apenas facultar ao consumidor uma forma adicional mais acessível de fazer valer os seus direitos, não se congeminando uma expetativa da outra parte a uma «decisão fora da arbitragem» tutelável pelo Direito”. Este argumento está em linha com o que é referido na decisão arbitral: “aquilo que a empresa poderia alegar é que a arbitragem é uma forma mais acessível ao consumidor. Porém, parece-nos que o argumento de que a parte tinha a expectativa de que a outra tivesse maior dificuldade em exigir o cumprimento não é atendível”.
2) Os processos nos centros de arbitragem de consumo têm várias fases, relevando, para este efeito, o momento em que dá entrada o requerimento de arbitragem (e não o momento em que se inicia o processo, na fase da informação ou da mediação).
Neste caso, o consumidor tinha recorrido ao CASA antes da entrada em vigor do novo regime, mas o processo apenas transitou para arbitragem já depois da entrada em vigor. O TRL considera que os procedimentos anteriores à arbitragem são distintos desta e devem ser separados para efeito de aplicação do regime vigente. Assim, o processo arbitral teve início já com o novo regime em vigor, pelo que o consumidor podia impor à empresa a resolução do litígio por arbitragem.
3) A parte que se recusa a proceder ao pagamento do preparo relativo à intervenção do perito no processo arbitral pode, se for informada sobre a referida consequência, ser impedida de colocar questões ou de pedir esclarecimentos ao perito durante a audiência de julgamento.
Neste caso, a demandada, notificada para o efeito, não pagou os cerca de € 30 indicados nem se pronunciou sobre as questões submetidas ao perito. O TRL defende que, “segundo o princípio da autorresponsabilidade das partes, as partes sofrem as consequências jurídicas prejudiciais da sua negligência ou inépcia na condução do processo, que fazem a seu próprio risco”.
4) A ação de anulação não permite a reapreciação da prova produzida.
A demandada pretendia que o TRL reavaliasse a prova produzida, alterando a decisão em matéria de facto. Esta reavaliação poderia ser feita no âmbito de um recurso da decisão arbitral, mas não de uma ação de anulação.
Em suma, o TRL julga improcedente a ação e não anula a decisão arbitral. Trata-se de um acórdão com muita qualidade e relevância prática significativa para a arbitragem de consumo.
Também a propósito da arbitragem de conflitos de consumo, incidindo sobre o prazo máximo de conclusão do processo de arbitragem e a amplitude do dever de fundamentação das decisões arbitrais, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 28.01.2021, Processo n.º 298/20.8YRPRT, Relator: Aristides Rodrigues de Almeida, pronunciou-se nos seguintes termos:
“I – O artigo 43.º da Lei da Arbitragem Voluntária estabelece o prazo máximo dentro do qual a arbitragem deve estar concluída e a respectiva sentença notificada às partes, pelo que não é equiparável nem gera a mesma consequência a disposição do Regulamento do CICAP que estabelece um prazo dentro do qual o árbitro após a conclusão da audiência deve proferir a sentença e esta ser notificada às partes.
II – O prazo do artigo 17.º do CICAP não substitui, nos processos deste tribunal arbitral, o prazo do artigo 43.º da Lei da Arbitragem Voluntária e a sua ultrapassagem não gera os efeitos fixados neste (caducidade do processo arbitral) e no artigo 46.º da mesma lei (a anulabilidade da sentença arbitral).
III – A amplitude do dever de fundamentação das decisões arbitrais não pode ser definida por decalque do dever sinónimo aplicável às sentenças dos tribunais estaduais e deverá ter em conta as especificidades do processo arbitral e os seus objectivos de celeridade, simplicidade e informalidade, mas a fundamentação deve, em qualquer caso, ter o conteúdo mínimo exigível que permita apreender o sentido, as razões e o percurso racional seguido pelo árbitro na interpretação dos meios de prova.”
http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/1f4e46bb1f21bd588025868d005b6c34?OpenDocument
Interessantíssimo. Não conhecia a decisão e claramente merece um post autónomo. Muito obrigado pela partilha.
Na parte respeitante ao prazo máximo de conclusão do processo de arbitragem, o acórdão a que fiz alusão já vem na senda de um outro, prolatado pelo Tribunal da Relação de Coimbra, Processo n.º 211/19.5YRCBR, Relator: Falcão de Magalhães, com o seguinte sumário:
“(…)
IV – No artº 43º da LAV, além do prazo aí previsto ser o de 12 meses, em lugar dos 90 dias (fora a possibilidade de prorrogação), previstos no Regulamento e no artº 10 da RAL, o início desse prazo conta-se, à luz da LAV, da data de aceitação do último árbitro (ou da aceitação, ainda que tácita, do árbitro único), contando-se, diferentemente, o início do referido prazo de 90 dias, desde a data em que a entidade de RAL receba o processo de reclamação completo.
V – Não havendo compatibilização, não só nos prazos neles previstos – um reporta-se à duração do processo e outro ao prazo máximo para notificar a sentença final -, com termos iniciais e duração diversos, o certo é que a cominação da anulação da sentença arbitral só está prevista para o caso de ser notificada às partes depois de decorrido o prazo máximo para o efeito fixado de acordo com o artº 43º da LAV, e, ainda que se aceite, que, por remissão do Regulamento para os nºs 5 e 6 do artº 10º da Lei n.º 144/2015, o prazo de 90 dias (a que acrescerá a prorrogação, sendo esse o caso), este prazo só deve contar da data da aceitação do último árbitro (ou do árbitro único), por ser esse o único termo “a quo” que, com respeito a essa notificação, está prevista (nº 1 do artº 43º da LAV) para contabilizar o prazo cujo excesso tem como consequência a inevitável anulação da sentença arbitral.”
http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/f5df9d790377a3e880258503004f16f8?OpenDocument