Práticas discriminatórias e direito ao esquecimento no contrato de seguro: as alterações introduzidas pela Lei n.º 75/2021 de 18 de novembro

Legislação

O presente texto foi redigido em co-autoria por Lua Mota Santos e Patrícia Assunção Soares.

Recentemente, a Lei n.º 75/2021, de 18 de novembro veio reforçar o acesso ao crédito e a contratos de seguros por pessoas que tenham superado ou mitigado situações de risco agravado de saúde[1] ou de deficiência, alterando a Lei n.º 46/2006, de 28 de agosto (disponível aqui), e o Regime Jurídico do Contrato de Seguro (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de abril, doravante “RJCS”, e disponível aqui).

Na verdade, eram comuns os casos em que, por exemplo, o facto de se ter padecido de uma doença oncológica no passado dificultava, de forma determinante, o acesso a seguros de saúde ou de vida, ou até mesmo o acesso ao crédito. Eram, por isso, frequentes as situações em que alguém que tivesse ultrapassado um cancro numa idade muito jovem visse, mais tarde, a possibilidade de lhe ser concedido um crédito à habitação bastante limitada[2].

Por outro lado, a jurisprudência já vinha clarificando e insistindo na importância desta proibição de discriminação. Por exemplo, veja-se, a propósito de um caso relacionado com uma doente oncológica a quem havia sido recusada a celebração de um seguro de vida, o Acórdão da Relação do Porto de 23 de fevereiro de 2016 (disponível aqui) que refere o seguinte: “Mas o facto gerador (a morte) ocorrerá necessariamente, seja qual for a origem, para qualquer dos dois proponentes, razão pela qual se considera totalmente injustificada a discriminação quanto ao autor a este respeito, pois em termos clínico-oncológicos o mesmo conseguiu debelar a doença oncológica de que padeceu”.

No fundo, já existe entre nós, desde 2006, uma proibição de discriminação nestas situações[3]. No entanto, subsistia por resolver uma questão: no que aos seguros diz respeito, aquando da celebração de um contrato, verifica-se a obrigação de mencionar problemas de saúde anteriores na declaração inicial de risco (artigo 24.º do RJCS), sendo que estes factos eram dificilmente ignorados pelas seguradoras, que se alicerçavam na indeterminabilidade dos conceitos utilizados na Lei n.º 46/2006.

Deste modo, uma das inovações da Lei n.º 75/2021 é, neste plano, a consagração de um direito ao esquecimento. Assim, prevê o artigo 3.º n.º 2 da referida Lei que, decorrido um certo lapso temporal[4], não poderá ser recolhida nenhuma informação de saúde relativa à situação de risco agravado de saúde ou de deficiência por parte das instituições de crédito ou seguradoras, em contexto pré-contratual.

Deste modo, e à luz do n.º 1 do mesmo artigo, é garantido que estas pessoas (i) não podem ser sujeitas a um aumento de prémio de seguro ou exclusão de garantias de contratos de seguro, e que (ii) nenhuma informação de saúde relativa à situação médica que originou o risco agravado de saúde ou a deficiência pode ser recolhida ou objeto de tratamento pelas instituições ou seguradores em contexto pré-contratual.

A Lei n.º 75/2021, de 18 de novembro também alterou o RJCS nas matérias referentes às práticas discriminatórias e à temática da cessação do contrato de seguro. Neste sentido, importa verificar quais as alterações relevantes introduzidas no que concerne às práticas discriminatórias. Identificam-se, nomeadamente, as seguintes:

1. A remissão para a Lei n.º 46/2006, de 28 de agosto, que proíbe e pune a discriminação em razão da deficiência e da existência de risco agravado de saúde (novo artigo 15.º, n.º 2 do RJCS);

2. A sujeição à supervisão da Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões (ASF) das práticas e técnicas de avaliação, seleção e aceitação de riscos próprias do segurador para efeitos de celebração, execução e cessação do contrato de seguro, que não estejam proibidas, estatuindo-se, pelo artigo 15.º-A do RJCS, que as mesmas devem ser objetivamente fundamentadas, tendo por base dados estatísticos e atuariais rigorosos considerados relevantes para a técnica seguradora;

3. A prestação de informação, por parte do Segurador, com base nos dados obtidos, sobre o rácio entre os fatores de risco específicos e os fatores de risco de uma pessoa em situação comparável, mas não afetada por aquela deficiência ou risco agravado de saúde, nos termos do n.º 3 a 6 do artigo 178.º do RJCS[5], no caso de recusa de celebração de um contrato de seguro ou de agravamento do prémio em razão de deficiência ou de risco agravado de saúde e sem dependência de pedido nesse sentido (novo artigo 15.º, n.º 3 do RJCS);

4. A proibição das práticas que discriminem a saúde mental, física ou psíquica aquando da celebração, execução e cessação do contrato (novo artigo 15.º, n.º 10 do RJCS).

Além das inovações e alterações já referidas, a Lei n.º 75/2021 introduziu ainda dois aditamentos ao RJCS. O primeiro está previsto no artigo 15.º-A e diz respeito ao acordo nacional de acesso ao crédito e aos seguros, aí se prevendo a celebração de um acordo entre o Estado e as associações setoriais representativas de instituições de crédito, sociedades financeiras, sociedades mútuas, instituições de previdência e empresas de seguros e resseguros, bem como das organizações nacionais que as representam, relativas ao acesso ao crédito e a contratos de seguros por parte de pessoas que tenham superado ou mitigado situações de risco agravado de saúde ou de deficiência.[6]

Nestes termos, destacamos dois dos objetivos deste Acordo: (i) garantir a não discriminação no acesso ao crédito à habitação e ao crédito aos consumidores, e (ii) assegurar que as instituições já mencionadas tenham em conta os direitos, liberdades e garantias das pessoas que tenham um histórico clínico com as características já apresentadas.

No que concerne aos seguros, a lei prevê também como objetivo do Acordo o desenvolvimento de um mecanismo de mediação entre os seguradores e as instituições de crédito e as pessoas que tenham superado ou mitigado situações de risco agravado de saúde ou de deficiência (novo artigo 15.º, n.º 10 do RJCS). Assim, qualquer pessoa que tenha superado ou mitigado situações de risco agravado de saúde ou de deficiência tem direito a beneficiar do referido acordo na contratação de seguros obrigatórios ou facultativos associados aos referidos créditos[7].

O segundo aditamento introduzido no RJCS, correspondente ao artigo 15.º-B, prevê uma equiparação entre as pessoas que superaram situações de risco agravado e as que, apesar de terem comprovadamente cessado a fase de tratamentos ativos, ainda tenham de realizar tratamentos coadjuvantes (n.º 1).

Por último, é ainda de salientar a alteração introduzida em matéria de cessação do contrato prevista no artigo 217.º do RJCS, por via da qual se passa a determinar que, em caso de não renovação do contrato ou da cobertura, e se o risco não estiver coberto de forma proporcional por um contrato de seguro posterior, o segurador não poderá, nos dois anos subsequentes e até que se esgote o capital seguro no último período de vigência do contrato, recusar a cobertura decorrente das prestações resultantes de doença manifestada, de outros cuidados de saúde relacionados ou outro facto ocorrido na vigência do contrato.

Em suma, com a Lei n.º 75/2021, de 18 de novembro, que entra em vigor no dia 1 de janeiro de 2022, e de acordo com as alterações supra identificadas, o legislador teve como objetivo essencial a promoção e defesa dos valores de igualdade e proibição da discriminação das pessoas que tenham superado ou mitigado situações de risco agravado de saúde ou de deficiência no acesso aos contratos de seguro e ao crédito, estabelecendo, através das alterações vertidas no presente texto, medidas de proteção conducentes a esse fim.


[1] Com relevância para este efeito, a Lei n.º 75/2021 alterou o artigo 3.º alínea c) da Lei n.º 46/2006, de 28 de agosto passando a definir o conceito de “Pessoas com risco agravado de Saúde” como sendo aquelas que “sofrem de toda e qualquer patologia que determine uma alteração orgânica ou funcional, de longa duração, evolutiva, potencialmente incapacitante e que altere a qualidade de vida do portador a nível físico, mental, emocional, social e económico e seja causa potencial de invalidez precoce ou de significativa redução de esperança de vida.”

[2] Trata-se de uma alteração bastante aguardada, sobretudo pelos sobreviventes de cancro pediátrico ou outros doentes que tenham superado situações de risco agravado de Saúde, conforme divulgado pela Liga Portuguesa contra o Cancro.

[3] Deve ser ressalvado que este tipo de práticas discriminatórias já constava da Lei n.º 46/2006, cujo sumário, aliás, esclarecia que esta lei “proíbe e pune a discriminação em razão a deficiência e da existência de risco grave de saúde”.

[4] Embora nos termos do novo artigo 15.º-A, n.º 7 do RJCS, e a propósito do Acordo Nacional de Acesso ao Crédito e a Seguros, possam ser concedidos prazos mais favoráveis ao consumidorem sede de direito ao esquecimento, o artigo 3.º, n.º 2 da Lei n.º 75/2021 prevê os seguintes prazos: i) 10 anos desde o término do protocolo terapêutico, no caso de risco agravado de saúde ou deficiência superada; ii) Cinco anos desde o término do protocolo terapêutico, no caso de a patologia superada ter ocorrido antes dos 21 anos de idade; iii) Dois anos de protocolo terapêutico continuado e eficaz, no caso de risco agravado de saúde ou deficiência mitigada.

[5] O artigo 178.º do RJCS tem como epígrafe “Informação sobre exames médicos” e os n.º 3 a 6 da referida norma estabelecem o seguinte: “3 – O resultado dos exames médicos deve ser comunicado, quando solicitado, à pessoa segura ou a quem esta expressamente indique. 4 – A comunicação a que se refere o número anterior deve ser feita por um médico, salvo se as circunstâncias forem já do conhecimento da pessoa segura ou se puder supor, à luz da experiência comum, que já as conhecia. 5 – O disposto no n.º 3 aplica-se igualmente à comunicação ao tomador do seguro ou segurado quanto ao efeito do resultado dos exames médicos na decisão do segurador, designadamente no que respeite à não aceitação do seguro ou à sua aceitação em condições especiais. 6 – O segurador não pode recusar-se a fornecer à pessoa segura todas as informações de que disponha sobre a sua saúde, devendo, quando instado, disponibilizar tal informação por meios adequados do ponto de vista ético e humano.”

[6] A este propósito importa referir que a Lei n.º 75/2021, de 18 de novembro alterou o artigo 9.º, n.º 1 da Lei n.º 46/2006, de 28 de agosto prevendo que “a prática de qualquer ato discriminatório referido no capítulo II da presente lei ou a violação do acordo que concretiza o disposto no artigo 15.º-A do Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de abril, por pessoa singular constitui contraordenação punível com coima graduada entre 5 e 10 vezes o valor da retribuição mínima mensal garantida, sem prejuízo do disposto no n.º 5 e da eventual responsabilidade civil ou da aplicação de outra sanção que ao caso couber.” Nos termos do n.º 2 do mesmo preceito prevê-se que “a prática de qualquer ato discriminatório referido no capítulo II da presente lei ou a violação do acordo que concretiza o disposto no artigo 15.º -A do Decreto -Lei n.º 72/2008, de 16 de abril, por pessoa coletiva de direito privado ou de direito público constitui contraordenação punível com coima graduada entre 20 e 30 vezes o valor da retribuição mínima mensal garantida, sem prejuízo do disposto no n.º 5 e da eventual responsabilidade civil ou da aplicação de outra sanção que ao caso couber.”

[7] Estão, no entanto, excluídos deste âmbito, os beneficiários do regime de concessão de crédito bonificado à habitação a pessoa com deficiência, aprovado pela Lei n.º 64/2014, de 26 de agosto (nos termos do n.º 3 e 4).