As ações inibitórias e a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide: breves reflexões

Doutrina

O Direito do Consumo tem assumido uma preponderância cada vez maior na sociedade que hoje conhecemos. Tal relevância é, desde logo, demonstrada pela consagração no art.º 60.º da Constituição da República Portuguesa dos direitos dos consumidores.

Em pleno século XXI, o grau de conhecimento dos consumidores relativo aos seus direitos e ao modo de efetivação dos mesmos tem vindo a aumentar. No atual quadro legislativo nacional, assume especial relevância o Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de outubro (doravante LCCG), que instituiu o Regime Jurídico das Cláusulas Contratuais Gerais, no âmbito do qual se pretende, particularmente, destacar a consagração do regime jurídico das ações inibitórias. Com relevância para o presente texto é de sublinhar o art.º 25.º da LCCG, no qual, sob a epígrafe “Acção inibitória, se prevê o seguinte: “As cláusulas contratuais gerais, elaboradas para utilização futura, quando contrariem o disposto nos artigos 15.º, 16.º, l8.º, 19.º, 21.º e 22.º podem ser proibidas por decisão judicial, independentemente da sua inclusão efectiva em contratos singulares”.

Conforme bem explica João Alves, identificam-se duas importantes finalidades e tipologias das ações inibitórias: “na acção inibitória repressiva, pretende-se fazer cessar a violação de um interesse difuso e o seu objecto é a abstenção da continuação dessa violação. Na acção inibitória preventiva, procura-se prevenir a violação de um interesse difuso, o seu objecto é a abstenção dessa violação[1].

Por conseguinte, a nossa opção temática centrar-se-á numa breve análise do regime das ações inibitórias no âmbito do processo civil, em especial na sua relação com uma das causas de extinção da instância, designadamente, a da impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide (art.º 277.º, al. e) do Código de Processo Civil – adiante denominado por CPC). 

Assim, imaginemos, do ponto de vista prático, que o Ministério Público (na posição processual de Autor) intenta uma ação inibitória contra uma determinada empresa (que ocupa a posição processual de Ré nos autos), na qual peticiona a declaração de nulidade de um conjunto de cláusulas contratuais e a condenação da empresa em abster-se de se prevalecer das referidas cláusulas e da sua utilização em contratos futuros. Nesta hipótese, quando a ação inibitória foi intentada encontravam-se em vigor um conjunto de documentos contratuais com cláusulas contratuais gerais de teor abusivo. Contudo, após a propositura da ação e no decurso da mesma, os referidos documentos foram sendo sucessivamente alterados e substituídos, na medida em que se verificou a necessidade de conformar o conteúdo de todos os clausulados dos documentos contratuais com as novas exigências legais e regulamentares e com as novas regras emanadas das entidades de supervisão.

Neste contexto, na hipótese em equação, a principal questão sob análise é a seguinte: o facto de uma determinada empresa (Ré), após a propositura da ação e durante o seu decurso ter eliminado ou alterado as cláusulas dos documentos contratuais, que o Ministério Público reputava de abusivas, pode tornar inútil a própria decisão final sobre a demanda judicial?

Esta matéria reveste particular interesse teórico e prático, sendo que entendemos que será controverso apontar uma solução consensual e unânime para todas as ações inibitórias que estejam ou venham a correr os seus termos nos Tribunais. Assim, parece-nos estar em causa a função predominantemente preventiva da ação inibitória e a própria utilidade da decisão que venha a ser proferida pelo Tribunal enquanto pressuposto do interesse processual. Veja-se, a título ilustrativo, o acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, no âmbito do processo n.º 403/09.5TJLSB.L1.S1, proferido em 11/04/2013, na parte em que afirma o seguinte: “[…] a questão da utilidade das acções inibitórias não pode ser dissociada, de modo algum, da efectiva utilização dos clausulados contratuais gerais, que eventualmente violem a LCCG, por parte do predisponente, sendo certo que demonstrada a cessação daquela aplicação, e a sua substituição por novos clausulados, poderá ficar comprometida a apreciação judicial da acção inibitória, seja por se entender verificar uma situação de inutilidade superveniente da lide, caso as cláusulas sejam alteradas já no decurso da acção (287.º, al. e), do CPC), seja por se entender que ocorre ilegitimidade processual ou falta de interesse em agir (do MP), se o clausulado tiver sido modificado/alterado ainda antes da instauração da acção inibitória (arts. 493.º, n.º 2, 494.º e 495.º, do CPC)”.

De facto, a finalidade das ações inibitórias, ao contrário das ações que envolvem um consumidor individual, é a de analisar o caráter abusivo de uma cláusula suscetível de ser incorporada em contratos futuros e não de uma cláusula inserida num contrato concreto já celebrado. Por conseguinte, a natureza preventiva das ações inibitórias envolve fundamentalmente a apreciação, em abstrato, de cláusulas relativas a contratos não celebrados, o que significa que tal suscetibilidade de utilização futura necessita de ser comprovada judicialmente. Nesse sentido, cremos que poderão estar reunidas as condições para que a ação inibitória seja extinta por inutilidade superveniente da lide, nos termos e para os efeitos da al. e) do art.º 277.º do CPC.

Por último, parece-nos ainda importante relacionar esta matéria com o regime previsto no art.º 611.º do CPC, que consagra o princípio da atendibilidade dos factos jurídicos supervenientes. Na hipótese equacionada supra, considerando que a empresa alterou as cláusulas constantes nos documentos contratuais após a propositura da ação inibitória, então é defensável dizer-se que o Tribunal deverá ter em consideração, aquando da prolação da sentença, tais alterações contratuais, na medida em que uma decisão judicial deve reportar-se à situação existente no momento em termina a discussão da causa. Neste sentido, atendendo ao princípio do dispositivo e ao princípio ínsito no art.º 611.º do CPC é de considerar que uma decisão judicial não deve ser alheia às situações fácticas que se verificam até à data em que a mesma é proferida, o que significa que pode haver fundamento suficiente para que a ação seja julgada extinta por inutilidade superveniente da lide.


[1] JOÃO ALVES, “Algumas notas sobre a tramitação da ação inibitória de cláusulas contratuais gerais”, in Revista do CEJ, n.º 6, Lisboa, Centro de Estudos Judiciários, 2007, p. 76.