Covid-19, espetáculos artísticos e festivais de verão

Legislação

No dia 29 de maio de 2020, caracterizado por uma atividade legiferante particularmente intensa, o legislador voltou à temática dos espetáculos culturais e artísticos, alterando algumas das medidas excecionais e temporárias de resposta à pandemia da doença Covid-19 que haviam sido estabelecidas pelo Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 de março, que em boa hora foi comentado no nosso blog.

A Lei n.º 19/2020, de 29 de maio, além de alterar algumas das medidas excecionais e temporárias introduzidas por aquele diploma, vem regular de forma especial (além de excecional) os festivais (de verão) e espetáculos de natureza análoga.

Comecemos a nossa análise pelas alterações introduzidas.

Quanto ao âmbito temporal de aplicação, estende-se a aplicação do regime aos espetáculos reagendados ou cancelados cuja realização estivesse prevista até dia 30 de setembro deste ano (2.º-1), eliminando-se a referência ao final do estado de emergência que constava da versão original.

Note-se que este regime excecional se aplica aos eventos que não possam ser realizados na data e hora previstas (1.º-1 do DL n.º 10-I/2020, de 26 de março). O novo n.º 2 do art. 2.º vem  auxiliar a interpretação daquele preceito, considerando-se que um evento não pode realizar-se quando seja proibido/interdito por lei ou quando as restrições que são colocadas pelas autoridades de saúde pública para a sua realização o “desvirtuem” ou tornem “economicamente inviável”. Estes dois conceitos indeterminados concedem ampla margem aos promotores de espetáculos para invocar a aplicação deste regime, sabendo que este lhes é favorável. De facto, o essencial deste regime excecional, que constava já do diploma original, é prever que aos espetáculos não realizados neste período não se aplica art. 9.º-1-a) do Decreto-Lei n.º 23/2014, pelo que o portador do bilhete não pode exigir de imediato a restituição da importância correspondente ao preço dos bilhetes, salvo se o evento for cancelado.

A alteração mais relevante ficou reservada para o artigo 4.º. No seu n.º 1, onde antes se referia apenas o dever de reagendamento dos espetáculos, sempre que tal fosse possível, passou a constar também uma limitação temporal para esse reagendamento. Assim, se a nova data para a realização do evento não for marcada até 30 de setembro, tal adiamento valerá e será tratado como um cancelamento, para todos os efeitos. Mantém-se o limite de 1 ano para a realização do evento adiado (n.º 2).

Não pode deixar de notar-se uma inversão legislativa, ainda que tímida, reduzindo o âmbito da prevalência do reagendamento sobre o cancelamento e limitando o período de incerteza a que os consumidores poderiam ficar submetidos.

Assim, no caso dos eventos adiados sem marcação de nova data até 30 de setembro, os portadores de bilhete terão direito ao reembolso do valor dos mesmos, a realizar no prazo máximo de 60 dias úteis a contar dessa data, nos termos do art. 5.º-3 do diploma (não alterado).

Vejamos, por fim, os aditamentos mais relevantes.

Primeiro, atenta a provisoriedade de qualquer medida adotada neste momento, compromete-se o Governo a anunciar com uma periodicidade mínima mensal a manutenção, levantamento ou adequação das restrições à realização de espetáculos ao vivo.

Por fim, estabelece-se um regime especial para os festivais e eventos e natureza análoga, proibindo-se a sua realização até 30 de setembro de 2020 (art. 5.º-A-1). Salvaguarda-se a possibilidade de o Governo, mediante recomendação da Direção-Geral da Saúde (DGS), prorrogar ou antecipar o fim da proibição, nos termos do n.º 3 do mesmo preceito.

Excecionalmente, estes eventos poderão realizar-se, desde que cumpridas as regras de lotação máxima definidas pela DGS e mediante a marcação de lugares (n.º 2).

Não podendo ser realizados os festivais, têm os portadores de bilhetes direito à emissão de um vale de valor igual ao pago no momento da celebração do contrato, válido até 31 de dezembro de 2021, que pode ser utilizado para adquirir bilhetes para a nova data do mesmo espetáculo ou para outro espetáculo do mesmo produtor. Não utilizando o vale, o seu portador terá 14 dias para pedir o reembolso do valor correspondente.

Covid-19 e venda de bens de consumo

Legislação

A propósito do Decreto-Lei n.º 24-A/2020, de 29 de maio, que aditou o artigo 18.º-A ao Decreto-Lei n.º 10-A/2020

Os nossos leitores já teriam certamente estranhado a circunstância de, em quase dois meses de legislação em torno da Covid-19, ainda não ter sido aprovada qualquer norma sobre venda de bens de consumo.

Aí está ela, no contexto da décima terceira alteração ao Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março.

O novo artigo 18.º-A, que tem como epígrafe “prorrogação dos prazos para exercício de direitos do consumidor”, estabelece que “os prazos para o exercício de direitos previstos no artigo 5.º-A do Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de abril, na sua redação atual, cujo término se tenha verificado entre os dias 18 de março de 2020 e 31 de maio de 2020, são prorrogados até 30 de junho de 2020”.

Esta medida reforça de forma clara os direitos dos consumidores, tendo como objetivo dar resposta à impossibilidade ou dificuldade de contacto com o profissional durante o período da crise pandémica, quer pelo eventual encerramento de estabelecimentos comerciais quer pela necessidade de confinamento do consumidor.

O artigo 5.º-A-1 do Decreto-Lei n.º 67/2003 estabelece prazos (i) para a denúncia da falta de conformidade (dois meses ou um ano a contar da deteção da falta de conformidade, consoante se trate de um bem móvel ou imóvel, respetivamente) e (ii) para a caducidade da ação (dois ou três anos a contar da data da denúncia, consoante se trate de um bem móvel ou imóvel, respetivamente).

A prorrogação prevista no artigo 18.º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020 implica que, se o prazo para a denúncia, por exemplo, tiver terminado no dia 19 de abril (por ter sido detetada a falta de conformidade no bem móvel no dia 19 de fevereiro), a denúncia ainda poderá ser feita até ao dia 30 de junho. Do mesmo modo, se o prazo para propor a ação terminasse no dia 19 de abril (por a denúncia ter sido feita nesse mesmo dia em 2018), prolonga-se até ao dia 30 de junho.

E se o período da garantia legal de conformidade, que não é prorrogado por este novo regime, terminar entre os dias 18 de março e 31 de maio sem que o consumidor tenha feito a denúncia? Nos termos do artigo 5.º-A-1 do Decreto-Lei n.º 67/2003, os direitos do consumidor caducariam nessa data, não sendo possível a denúncia em momento posterior. No entanto, deve fazer-se uma interpretação do artigo 18.º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020 tendo em conta a sua teleologia, permitindo que a denúncia da falta de conformidade seja feita após o termo final do prazo da garantia legal de conformidade, no limite até ao dia 30 de junho.

Salienta-se aqui um problema levantado pelo novo art. 18.º-A. Ao prever-se a prorrogação dos prazos que terminavam entre os dias 18 de março e 31 de maio até ao dia 30 de junho, os prazos que terminavam  depois (entre os dias 1 de junho e 29 de junho) vão terminar efetivamente na data prevista, ou seja mais cedo do que aqueles.

Recorrendo a um exemplo, imaginemos que o consumidor A detetou a falta de conformidade no dia 20 de janeiro, o consumidor B no dia 31 de março e o consumidor C no dia 1 de abril. Os consumidores A e B poderão cumprir o ónus de denúncia até ao dia 30 de junho, enquanto o consumidor C, apesar de ter detetado a falta de conformidade mais tarde, apenas o poderá fazer até ao dia 1 de junho.

Mais sobre Covid-19 e serviços públicos essenciais

Legislação

A propósito da Lei n.º 18/2020, de 29 de maio.

Quem nos acompanha com regularidade lembra-se seguramente do texto que publicamos há pouco menos de um mês sobre o art. 4.º da Lei n.º 7/2020 e o impacto da Covid-19 nos contratos relativos a serviços públicos essenciais.

O legislador volta agora ao tema, alterando o art. 4.º da Lei n.º 7/2020, o que vem resolver alguns problemas, mas criar outros.

As duas principais novidades introduzidas agora pela Lei n.º 18/2020 consistem (i) no alargamento do prazo relativo à proibição de suspensão do fornecimento dos serviços públicos essenciais abrangidos (água, energia elétrica, gás natural e comunicações eletrónicas) e (ii) na limitação da proteção aos utentes, quer em função da sua natureza quer em função da situação em que se encontram.

Quanto ao prazo, a proibição de suspensão alarga-se agora até ao dia 30 de setembro. Ultrapassa-se, assim, a dúvida interpretativa suscitada pelo art. 4.º-1 da Lei n.º 7/2020, que consistia em saber se a proibição de suspensão se aplicava até ao dia 2 de junho (prazo de um mês a contar do termo final do estado de emergência) ou 30 de junho (mês subsequente ao do termo final do estado de emergência).

No que respeita à limitação da proteção dos utentes, por um lado, é necessário ter em conta que, no que concerne à prestação dos serviços de fornecimento de água, de energia elétrica e de gás natural, a regra se aplicava, na versão originária do diploma, independentemente da verificação de qualquer pressuposto. Ora, na versão atual, “a proibição de suspensão (…) aplica-se quando motivada por situação de desemprego, quebra de rendimentos do agregado familiar igual ou superior a 20 %, ou por infeção por Covid-19”. Equipara-se, por baixo, ou seja, com um nível menor de proteção, os quatro serviços públicos essenciais abrangidos por este regime, uma vez que já era esta a regra para os serviços de comunicações eletrónicas.

Por outro lado, na versão originária do diploma, no que respeita à prestação dos serviços de fornecimento de água, de energia elétrica e de gás natural, o regime protegia qualquer utente (incluindo empresas) e não apenas a consumidores. Atualmente, com a inclusão de pressupostos que remetem para “desemprego”, “agregado familiar” ou “infeção”, teremos de estar necessariamente perante pessoas singulares, o que aponta para a restrição da proteção a utentes/consumidores.

Esta restrição entra em vigor no dia 1 de junho de 2020 (art. 3.º-2), o que significa que teremos uma redução do nível de proteção dos utentes, que poderá ser mais ou menos significativa em função da interpretação do prazo da proibição de suspensão previsto na versão originária do art. 4.º-1.

Lembramos, contudo, que, nos termos dos Regulamentos 255-A/2020 e 356-A/2020, da ERSE, não podem ser interrompidos os serviços de fornecimento de energia elétrica e de gás natural a qualquer utente/consumidor, independentemente da existência de um fundamento, até 30 de junho de 2020.

O diploma prolonga igualmente até 30 de setembro de 2020 o prazo dentro do qual o utente/consumidor de serviços de comunicações eletrónicas (em situação de desemprego ou com uma quebra de rendimentos do agregado familiar igual ou superior a 20 % face aos rendimentos do mês anterior) se pode desvincular do contrato, mesmo que se encontre dentro do período de fidelização. Atribui-se igualmente ao utente/consumidor o direito à suspensão temporária do contrato.

Placa de carregamento avariada e módulo de ecrã partido – Comentário à Sentença do Tribunal Arbitral do CICAP, de 8-5-2018, Juiz-árbitro Rui Saavedra

Jurisprudência

Resumo do caso

O Requerente comprou à Requerida um telemóvel pelo preço de € 299, o qual, menos de dois anos depois da entrega deixou, subitamente, de ligar e de permitir o carregamento da bateria.

Após entrega do aparelho à requerida para reparação, a análise técnica por esta efetuada concluiu pela existência de uma anomalia na placa de carregamento, o que havia originado a falta de funcionamento denunciada pelo Requerente.

No entanto, para proceder à reparação daquela anomalia, a Requerida exigiu ao Requerente o pagamento da quantia de € 143,43, relativa à reparação de outro componente (módulo de ecrã), que apresentava fissuras.

O Requerente pediu a condenação da Requerida a proceder à reparação do telemóvel ou, a título subsidiário, a entregar-lhe uma placa de carregamento em estado de nova.

Consultar sentença integral

Comentário

A questão mais interessante que se levanta na análise deste caso é a possibilidade de o profissional condicionar o exercício do direito à reparação de um componente de um bem de consumo ao pagamento de determinada quantia associada à reparação de outro componente, cuja avaria não esteja abrangida pela garantia.

No caso, interessava aferir se a reparação da placa de carregamento, que subitamente avariara, poderia ser condicionada pelo profissional ao pagamento da reparação do outro componente (o módulo de ecrã) que apresentava fissuras derivadas de quedas reconhecidas pelo proprietário.

Por um lado, a avaria relativa à bateria do equipamento deve ser considerada uma desconformidade para os efeitos do art. 2.º-1, al. c) do Decreto-lei n.º 67/2003, de 8 de abril (1), presumindo-se que existia já no momento da entrega do bem, nos termos do art. 3.º-2. Por outro lado,  as fissuras no módulo do ecrã não existiam no momento da entrega do bem e derivaram, como o requerente reconhece, de quedas acidentais, não conferindo qualquer direito ao requerente.

Para apreciar tal questão é importante ter presente que as fissuras no módulo de ecrã não causaram a avaria da bateria (2), nem impediam a reparação do equipamento (3). Os problemas poderiam surgir no momento de recolocação das peças no equipamento, na medida em que, se o módulo de ecrã estivesse danificado por dentro (o que não era possível verificar sem abrir o equipamento), poderia não se conseguir voltar a fixar e aparafusar todas as peças.

Tendo em conta estes factos, parece-nos que a decisão do tribunal arbitral de condenar a requerida a proceder à reparação do telemóvel é correta e adequada.

Para a decisão ser, pelo contrário, de improcedência do pedido, teria de ficar provado, em alternativa, que:

  • A avaria da placa de carregamento não existia no momento da entrega do bem, mas fora provocada pela utilização incorreta/indevida do equipamento pelo requerente, nomeadamente pelas fissuras no módulo de ecrã;
  • Que a reparação da placa de carregamento era impossível devido às fissuras no módulo de ecrã.

No primeiro caso, provar-se-ia a inexistência de uma desconformidade no momento da entrega do bem, nos termos do art. 3.º-1, não se reconhecendo ao requerente os direitos previstos no art. 4.º, nomeadamente o da reparação. Ora, a verificar-se tal enquadramento, muito dificilmente (para não dizer nunca) o profissional condicionaria a reparação de um componente ao pagamento dos custos de reparação do outro, recusando justificada e simplesmente a responsabilidade pela reparação de qualquer um deles.

No segundo caso, provar-se-ia a impossibilidade do exercício do direito à reparação, nos termos do art. 4.º-5. Ora, é em casos como este que talvez se torne mais questionável a admissibilidade de um condicionamento como o que está em analise. Assim, se uma desconformidade se manifesta dentro do prazo de garantia e não é ilidida a presunção de que ela existia no momento da entrega do bem, ou inclusive o profissional reconhece a sua responsabilidade e se disponibiliza para proceder à reparação, mas se conclui que é tecnicamente impossível fazê-lo devido a outros defeitos no equipamento não cobertos pela garantia (nomeadamente porque provocados por facto imputável ao consumidor), parece abstratamente admissível o profissional exigir ao consumidor o pagamento dos custos de reparação do componente do equipamento cujo defeito impossibilita a reparação do componente desconforme. Em alternativa, poderá ser equacionada a viabilidade de o consumidor optar pelo exercício dos outros direitos previstos pelo art. 4.º, a saber, a substituição do equipamento, a redução do preço e a resolução do contrato, com destaque para os primeiros dois.

Quanto à substituição do equipamento, a adequação depende do valor relativo dos componentes avariados. No caso de o componente que impossibilita a reparação e cuja avaria não é abrangida pela garantia ter um elevado custo, e, pelo contrário, o componente desconforme cuja avaria é abrangida pela garantia ter um valor reduzido, o exercício deste direito manifestar-se-á necessariamente abusivo, nos termos do art. 334.º do Código Civil, aplicável por via do art. 4.º-5.

Ainda que a substituição do equipamento não se mostre adequada à composição justa do litígio, sempre poderá ser exercido o direito de redução do preço, ainda que essa redução possa ser de pequeno montante quando o valor do componente que manifesta a desconformidade abrangida pela garantia assim o determine.

Notas

(1) Os artigos citados sem referência a qualquer diploma legal pertencem a este decreto-lei, disponível aqui.

(2) Resulta do facto indiciário de as fissuras haverem ocorrido 6 meses antes da avaria da bateria e da não ilisão da presunção de existência da desconformidade no momento da entrega do bem, quando esta se manifeste no prazo de dois anos (art. 3.º-2 do DL n.º 67/2003).

(3) Ficou provado que, abstratamente, a substituição da placa da bateria pode ser executada sem necessidade de substituir o módulo de ecrã.

Inteligência Artificial na Sociedade e no Consumo

Doutrina

Consumo e Inteligência Artificial, à partida, poderiam não ter muito em comum. O consumo é efetuado por humanos que vêm providos de uma dose variável de inteligência natural, diligentemente aplicada nas compras que realizam. Para as relações jurídicas que estabelecem, que o Direito denomina contratos, usam a sua inteligência humana e, na tradição cimentada vinda da Economia, são até agentes racionais que, com base na informação que recebem, comparando as alternativas que se lhe apresentam, ponderam longa e disciplinadamente sobre o assunto, de modo a exercerem a sua assim esclarecida vontade de contratar.

Por estas razões, é defendido que o consumidor, um estereótipo cuja existência real não é tão abundante como poderia parecer, deve ser iluminado não só pela informação que recebe, como abençoado pela literacia, de modo a que compreenda os itens que lhe são obrigatoriamente facultados. Isto com vista ao equilíbrio duma relação, em abstrato, desequilibrada.

Sucede que, principalmente desde o início do milénio, com uma aceleração enorme nos últimos anos, a internet e a tecnologia digital vieram alterar substancialmente o modo como se vive e se consome. A disponibilidade individual de dispositivos móveis, a descomunal produção de dados, denominada big data, que é o alimento que potencia o desenvolvimento da Inteligência Artificial, o gigantesco aumento da capacidade de computação e a interligação de tudo em rede (por exemplo, com a Internet das Coisas) determinam que, hoje em dia, o consumo – seja online ou offline, isto é, no mundo digital ou físico – esteja umbilicalmente ligado, comandado, condicionado por Inteligência Artificial. Desde a produção, à distribuição, ao marketing, à venda, ao pagamento, potencialmente em todos os pontos da cadeia de valor de um negócio que deposita o bem ou serviço nas mãos ou no telemóvel do consumidor, está presente Inteligência Artificial. No Ocidente e no Oriente, em países desenvolvidos e em desenvolvimento o consumo em massa tem subjacente a Inteligência Artificial.

Por isso, é importante que entidades tendencialmente globais, como a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), publiquem informação atual e de qualidade sobre o tema, como o Relatório “Artificial Intelligence in Society”, disponível aqui em inglês, francês e coreano.

OECD (2019), Artificial Intelligence in Society, OECD Publishing, Paris.

Primeiros textos sobre as relações de consumo em tempos de Covid-19

Recensão

Hoje dedicamo-nos aos primeiros textos escritos a propósito da influência da epidemia SARS-CoV-2 e da infeção epidemiológica por Covid-19 no direito português do consumo.

Uma das características fundamentais dos textos escritos em tempos de crise pandémica é a sua inevitável desatualização, dada a incrível profusão de diplomas legislativos. A título de exemplo, refere-se o Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, que já conta com 11 alterações, o que corresponde a uma média superior a uma alteração por semana.

No dia 9 de abril de 2020, publicamos no Observatório Almedina o texto “Direito do Consumo em Tempos de Pandemia – O Efeito das Crises no Nível de Proteção dos Consumidores“, no qual, além da breve análise de alguns diplomas legais até então aprovados, chamamos a atenção para duas tendências dos momentos de crise: (i) desproteger os consumidores para aliviar os profissionais de alguns custos e assim garantir a sua subsistência; (ii) acentuar a proteção de grupos de pessoas particularmente desprotegidas pelas dificuldades económicas em que se encontram. Os diplomas entretanto aprovados confirmam estas tendências.

Ainda sobre a realidade portuguesa, destacamos o texto de Nuno Manuel Pinto Oliveira “Covid-19, Contratos de Crédito, Contratos de Arrendamiento y Contratos de Viajes del Sector Turístico en Portugal“, publicado no Vol. VII, n.º 2 (2020), da Revista de Derecho Civil. Neste número são ainda publicados textos sobre o impacto da crise nos direitos alemão, austríaco, espanhol, francês, italiano, inglês, romeno, suíço, colombiano e mexicano. É ainda apresentado um quadro comparativo relativo a algumas medidas relativas a contratos de crédito.

Depois de uma breve introdução, em que salienta que o regime da alteração de circunstâncias foi considerado insuficiente, por se aplicar indistintamente a todos os contratos e por invocar conceitos indeterminados, cuja concretização causa incerteza jurídica, o autor analisa sucessivamente as medidas temporárias aprovadas em matéria de crédito ao consumo, arrendamento e viagens organizadas e reservas em alojamentos turísticos e estabelecimentos de alojamento local.

O autor conclui que existem indícios preocupantes de incoerência nos regimes jurídicos aprovados, chamando a atenção para a dificuldade que consumidores e empresas poderão ter para cumprir os contratos de crédito em outubro de 2020, reembolsando o capital e os juros agravados.

Sobre o crédito ao consumo em tempos de Covid-19 também já se pronunciou Miguel Pestana de Vasconcelos, na Revista de Direito Comercial, com um texto que tem como título “Contratos de Crédito Bancário e Covid-19. O Regime da Moratória Decorrente do Dec.-Lei n.º 10-J/2020” (pp. 1107-1134).

Salienta o autor que o regime constante do Decreto-Lei n.º 10-J/2020 é “muito complexo, mas gera diversas dúvidas – o que em grande parte, mas não só, se explica pela urgência com que foi elaborado -, quanto a seu âmbito de aplicação, em termos objetivos, ou seja, quanto aos créditos, de articulação com os regimes gerais de direito bancário, no âmbito da insolvência e recuperação, assim como no da responsabilidade bancária”.

Covid-19 e a cobrança de equipamentos de proteção individual em estabelecimentos de prestação de cuidados de saúde

Legislação

Muitos dos leitores já terão tido a oportunidade de se dirigir a um estabelecimento privado, social ou cooperativo de prestação de cuidados de saúde e sido informados sobre o aumento do preço da consulta, por motivos relacionados com a aquisição de equipamentos de proteção individual, utilizados no âmbito da epidemia SARS-CoV-2 e da infeção epidemiológica por Covid-19.

O crescente número de pedidos de informação suscitou, inclusive, a necessidade de a Entidade Reguladora da Saúde (ERS) emitir o Alerta de Supervisão n.º 3/2020. Assim, assevera a ERS que é permitida a inclusão no preço de tais equipamentos, desde que haja a previsão desses custos numa tabela de preços disponível ao público. Decorrerá tal entendimento da já conhecida necessidade de o utente ter, na sua esfera, os necessários elementos a uma tomada de decisão esclarecida no momento da contratação, dos quais o montante a pagar é, naturalmente, um ponto fundamental no processo decisório.

Resta esclarecer, no entanto, qual o raciocínio jurídico a aplicar às consultas anteriormente agendadas, cujo preço estava já previamente acordado. Isto é, deverá a situação ímpar dos tempos em que vivemos justificar a alteração unilateral do preço? Ou deverá, em alternativa, ser honrado o contrato anteriormente celebrado e abster-se o profissional da cobrança do montante adicional, onerando a sua própria posição contratual?

Fica também por ilustrar qual o limite de aumento que uma tal cobrança poderá implicar. É sabido que a estas entidades prestadoras de cuidados de saúde é permitido o estabelecimento do preço. Contudo, não deixará de preocupar que uma determinada prestação de serviço que, numa situação normal, implicaria, por exemplo, o pagamento de 10 euros, permita agora a cobrança de um valor total de 25 euros, à ordem do cumprimento de aquisição de equipamentos de proteção individual.

Aproximam-se tempos curiosos. E de muita substância para o direito do consumo.

Covid-19, transporte aéreo e outras viagens

Legislação

Já aqui trouxemos há algumas semanas as novidades legislativas nacionais em matéria de viagens organizadas e reservas em empreendimentos turísticos e estabelecimentos de alojamento local, tendo então previsto que teríamos novidades em breve em matéria de transporte aéreo. É este o tema a que hoje nos dedicamos, embora, como verão, indo um pouco além, a outras viagens, incluindo as organizadas.

Em matéria de cancelamento de voos, vigora o Regulamento (CE) n.º 261/2004, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de fevereiro de 2004, que estabelece regras comuns para a indemnização e a assistência aos passageiros dos transportes aéreos em caso de recusa de embarque e de cancelamento ou atraso considerável dos voos.

No dia 18 de março de 2020, foi emitida uma Comunicação pela Comissão Europeia com orientações interpretativas relativas aos direitos dos passageiros no contexto da pandemia.

Neste documento, defende-se que o cancelamento resultante de medidas restritivas adotadas a nível nacional se ficou a dever a circunstâncias extraordinárias, para efeito do art. 5.º-3 do Regulamento 261/2004, o que determina que a transportadora aérea não é obrigada a pagar uma indemnização aos passageiros.

Não fica, naturalmente, afastado o direito ao reembolso do valor total pago, previsto nos arts. 5.º-1-a) e 8.º-1-a) do Regulamento, o qual deve ser feito no prazo máximo de sete dias, “em numerário, através de transferência bancária eletrónica, de ordens de pagamento bancário, de cheques bancários ou, com o acordo escrito do passageiro, através de vales de viagem e/ou outros serviços”.

O passageiro não tem, portanto, de aceitar qualquer solução que passe pelo reagendamento da viagem ou pela atribuição de um vale para utilização em momento posterior. Em alterativa ao reembolso do preço, o passageiro pode também exigir o reencaminhamento. O direito a assistência (art. 9.º do Regulamento) também se mantém.

Esta orientação é, no essencial, mantida pela Comissão Europeia na Recomendação, de 13 de maio de 2020, sobre vouchers oferecidos aos passageiros e viajantes como alternativa ao reembolso para viagens e serviços de transporte cancelados no contexto da pandemia da Covid-19, integrada no contexto da Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões, de 13 de maio de 2020, sobre turismo e transporte em 2020 e mais além.

A Recomendação aplica-se, não apenas às viagens aéreas, mas também ao transporte ferroviário, marítimo e rodoviário e às viagens organizadas.

A aceitação de vouchers por parte dos clientes, em alternativa ao reembolso, é fortemente incentivada por esta Recomendação. Com efeito, no ponto 21 pode ler-se que “as organizações de consumidores e de passageiros nacionais e europeias devem incentivar viajantes e passageiros a aceitar, em alternativa ao reembolso em dinheiro, vouchers que apresentem as caraterísticas e beneficiem da proteção em caso de insolvência descritas nesta recomendação”.

Recomenda a Comissão, no ponto 2, que os vouchers tenham as caraterísticas indicadas nos pontos 3 a 12 e estejam cobertos por uma proteção em caso de insolvência “que seja suficientemente efetiva e robusta”.

No que respeita às caraterísticas dos vouchers, estes devem ter um período de validade mínima de doze meses, findo o qual, em caso de não utilização, o cliente deve ser automaticamente reembolsado no prazo de catorze dias. O cliente deve ser reembolsado do valor total do voucher ou do valor remanescente no caso de o ter utilizado parcialmente. Se o voucher tiver um período de validade superior aos doze meses, o cliente deve ter a possibilidade de solicitar o reembolso no máximo após doze meses.

O voucher deve poder ser utilizado para a reserva de viagens em data posterior ao seu período de validade. Deve igualmente poder ser utilizado junto do profissional para o pagamento de qualquer viagem que este comercialize, sugerindo-se aos profissionais que estendam esta possibilidade a viagens comercializadas por outros profissionais do mesmo grupo empresarial. No caso de a viagem ter sido contratada através de agência de viagens ou outro intermediário, nomeadamente plataforma digital, os vouchers devem poder ser utilizados para reservas através dessa agência de viagens ou intermediário.

Os profissionais devem ainda assegurar que os vouchers permitem aos clientes realizar a viagem inicialmente marcada (mesmo trajeto, mesmos serviços), independentemente do preço que a viagem tenha no momento da nova reserva. Esta possibilidade pode ficar sujeita, naturalmente, à disponibilidade de lugares.

O voucher deve poder ser transferido, sem custos, para qualquer outra pessoa (exceto, no caso das viagens organizadas, os custos que possam ser exigíveis por algum dos prestadores dos serviços incluídos no pacote).

Recomenda-se, ainda, que, “para tornar os vouchers mais atraentes”, os profissionais ponderem a atribuição de vouchers com um valor superior ao valor pago, exemplificando-se com a atribuição de um valor monetário adicional ou com a inclusão de outros serviços.

Por fim, recomenda-se que os vouchers indiquem o período de validade e os direitos conferidos ao cliente e sejam emitidos num suporte duradouro, sendo remetidos ou entregues, por exemplo, em papel ou através de mensagem de correio eletrónico.

Trata-se de (meras) recomendações, mas parece-nos que, na prática, estas recomendações vão servir de referência nesta matéria ao longo dos próximos meses.

Covid-19 e saldos – Lei n.º 20-E/2020

Legislação

O Decreto-Lei n.º 20-E/2020, de 12 de maio, vem, na senda de outros diplomas aprovados nos últimos meses, estabelecer um regime excecional e temporário motivado pela crise pandémica em curso, neste caso em matéria de venda em saldos.

A problemática da comercialização de bens ou serviços com redução de preço encontra-se no limiar entre o direito do consumo e o direito da concorrência: por um lado, o objetivo é assegurar o conhecimento dos preços pelo consumidor, garantindo que existe uma diferença efetiva entre o preço praticado antes e depois da promoção; por outro lado, pretende defender-se o funcionamento regular dos mercados.

A matéria encontra-se regulada pelo Decreto-Lei n.º 70/2007.

O art. 3.º contém uma enumeração taxativa das práticas comerciais com redução de preços: saldos, promoções e liquidação. Os profissionais apenas podem publicitar uma redução de preços se esta consistir numa destas práticas (art. 3.º-3) e não podem utilizar uma expressão que não corresponda à prática utilizada (art. 3.º-4).

Note-se que, uma vez que o preço dos bens ou serviços pode ser livremente fixado, um profissional pode, em qualquer momento, fazer um desconto no valor da contraprestação. Ao contrário do que se poderia supor da letra da lei (“só são permitidas as práticas comerciais com redução de preço nas modalidades referidas no número anterior”), não está em causa a permissão da prática, mas o seu anúncio ao público em geral.

Assim, se um bem custa € 20 num estabelecimento comercial e, na semana seguinte, o comerciante o coloca à venda por € 10, sem fazer qualquer publicidade ao desconto, trata-se de uma redução do preço, que é válida e não tem de respeitar o regime do diploma em análise (com exceção das poucas normas que não dependem da existência de uma redução de preço, como os arts. 7.º-2 e 9.º). O que não é permitido é anunciar que é conferido um desconto e não cumprir as determinações da lei.

Se o conceito de promoção é bastante amplo, abrangendo qualquer redução de preços, independentemente da duração e do período do ano, o conceito de saldos é mais limitado.

Com efeito, o Decreto-Lei n.º 10/2015 alterou significativamente a teleologia subjacente aos saldos, tendo estes deixado de ter como caraterística a circunstância de se realizarem em fim de estação, em datas predefinidas pela lei (28 de dezembro e 28 de fevereiro e entre 15 de julho e 15 de setembro), podendo realizar-se em quaisquer períodos do ano, desde que não ultrapassassem, no total, quatro meses por ano. O Decreto-Lei n.º 109/2019 foi ainda mais longe, alargando ligeiramente a duração máxima da comercialização em saldos, que corresponde agora a 124 dias por ano (art. 10.º-1). Os saldos caraterizam-se atualmente apenas pelo seu objetivo: escoamento acelerado de bens ou serviços [art. 3.º-1-a)].

É precisamente com o objetivo de ajudar os profissionais a escoar produtos que o art. 3.º do Decreto-Lei n.º 20-E/2020 estabelece que “a venda em saldos que se realize durante os meses de maio e junho de 2020 não releva para efeitos de contabilização do limite máximo de venda em saldos de 124 dias por ano, previsto no n.º 1 do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 70/2007, de 26 de março, na sua redação atual”.

Pode ler-se no preâmbulo do diploma que se torna “imperioso atender a que os estabelecimentos comerciais que se mantiveram encerrados ou cuja atividade foi suspensa se viram privados da possibilidade de escoar os respetivos produtos, diretamente ou através dos serviços prestados, acumulando agora existências nos respetivos inventários, que se revela essencial escoar, não apenas para permitir um esvaziamento e renovação dos produtos, como também para dinamizar a respetiva atividade económica”. Acrecenta-se ainda no preâmbulo que importa “introduzir soluções que permitam aos estabelecimentos comerciais escoar as respetivas existências, o que passa, nomeadamente, pela modificação provisória do regime das práticas comerciais com redução de preço, criando oportunidades de venda ou de prestação de serviços para os operadores económicos e novas oportunidades de compra de bens e serviços para os consumidores”.

É interessante que a lei reconheça que o anúncio de “saldos” é especialmente eficaz (provavelmente no subconsciente do consumidor) para a comercialização de bens e serviços, tendo um efeito mais significativo na decisão de contratar do consumidor do que o anúncio de “promoções”, que sempre estaria acessível aos profissionais nos termos do Decreto-Lei n.º 70/2007, sem necessidade de qualquer alteração da lei.

É bem mais duvidosa a afirmação de que a simples permissão do anúncio de comercialização de bens e serviços em saldos crie “novas oportunidades” para os consumidores. As oportunidades já estão nos bens não comercializados anteriormente, vindo a lei permitir apenas que a redução do preço seja anunciada de uma forma mais eficiente para o profissional.

O art. 4.º do Decreto-Lei n.º 20-E/2020 vem ainda estabelecer que “o operador económico que pretenda vender em saldos durante os meses de maio e junho de 2020 está dispensado de emitir, para este período, a declaração, prevista no n.º 5 do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 70/2007, de 26 de março, na sua redação atual, dirigida à Autoridade de Segurança Alimentar e Económica”. Flexibiliza-se, portanto, ainda um pouco mais o anúncio de uma operação de saldos durante o período indicado.

É interessante notar que, em Espanha, a mensagem que se pretende passar é diferente no que respeita a promoções feitas em estabelecimentos comerciais físicos. Vejamos a disposição adicional segunda da Orden SND/399/2020, de 9 de mayo, para la flexibilización de determinadas restricciones de ámbito nacional, establecidas tras la declaración del estado de alarma en aplicación de la fase 1 del Plan para la transición hacia una nueva normalidad: “Os estabelecimentos não podem anunciar ou adotar práticas comerciais que possam ter como efeito a aglomeração de pessoas dentro do estabelecimento comercial ou na sua vizinhança. Esta restrição não afeta as vendas com desconto ou as vendas em oferta ou promoção realizada através do site”.

Proíbe-se, portanto, em Espanha, durante este período, o anúncio de promoções ou saldos nos estabelecimentos comerciais. Sobrepõe-se, assim, o objetivo de evitar aglomerações ao objetivo de garantir o escoamento de existências por parte dos profissionais.

“Box de televisão, Serviços Públicos Essenciais e Arbitragem” – Comentário ao Ac. TRC, 24-09-2019, rel. Fernando Monteiro

Jurisprudência

Consultar acórdão

Sumário

“1. A Lei dos Serviços Públicos Essenciais ( Lei nº 23/96 de 26/7 ) é aplicável à relação que se estabelece entre a concessionária do serviço de comunicações electrónicas e o utilizador de tais serviços.

2. A box é um elemento imprescindível para o serviço de televisão prestado pela concessionária, fazendo parte da rede de transmissão do seu sinal.

3. O litígio entre a concessionária e o utente, relativo a dano provocado pela box na televisão, é um litígio de consumo no âmbito de um serviço público essencial, podendo ser sujeito a arbitragem necessária, ao abrigo do disposto no artigo 15º da Lei nº 23/96 de 26/7.”

 

Comentário

Resumidamente, o caso em análise respeita a um televisor que avariou (deixou de dar imagem e som) por haver sofrido uma descarga elétrica a partir da box. Esta box foi fornecida e instalada no âmbito de um contrato de telecomunicações entre o requerente (proprietário da televisão) e a requerida (empresa de telecomunicações).

O litígio foi inicialmente submetido e solucionado pelo tribunal arbitral constituído no âmbito do Centro de Arbitragem de Conflitos de Consumo do Distrito de Coimbra, tendo a requerida proposto ação de anulação da decisão arbitral com base na arguição de incompetência do tribunal.

A questão a decidir pelo TRC era saber se o litígio em causa se inseria ou não na prestação de um serviço público essencial. No caso de a resposta ser afirmativa, o tribunal arbitral seria competente para decidir, sem necessidade de existir uma convenção arbitral, por via do artigo 15.º da Lei dos Serviços Públicos Essenciais (Lei n.º 23/96, de 26 de julho).

Nos termos desta disposição, os litígios de consumo que surjam no âmbito de contratos relativos a serviços públicos essenciais são obrigatoriamente solucionados por tribunal arbitral, se essa for a opção expressa do utente (arbitragem necessária).

Adiante-se que o TRC considerou, sem margem para dúvidas, ser aplicável o mencionado regime, confirmando a decisão que o tribunal arbitral havia emitido quanto à sua própria competência.

Ora, o contrato celebrado entre o requerente e a requerida insere-se no serviço público de comunicações eletrónicas (art. 1.º-2, al. d) da LSPE), como ambas as partes o reconhecem.

No âmbito deste tipo de contratos, é prestado um serviço “que consiste total ou principalmente no envio de sinais através de redes de comunicações eletrónicas, incluindo os serviços de telecomunicações (serviços de telefone fixo, telefone móvel, internet fixa, internet móvel e televisão por subscrição) e os serviços de transmissão em redes utilizadas para a radiodifusão”, contra remuneração paga pelo utente.

A questão é saber se a avaria da TV provocada pela box instalada pela empresa concessionária pode ser relacionada com aquele serviço, o que é recusado por esta.

Apelando ao espírito do sistema legal de especial proteção do utente-consumidor e levando em consideração a imprescindibilidade da box para a transmissão do sinal para o televisor, o TRC concluiu que o litígio relativo à avaria da televisão é um litígio de consumo no âmbito de um serviço público essencial, sujeito a arbitragem necessária, ao abrigo do disposto no artigo 15º da lei 23/96.

Em consequência, considerou o tribunal arbitral competente e a ação de anulação da decisão arbitral improcedente.