O Fenómeno “Black Friday”

Doutrina

A última sexta-feira de novembro tornou-se conhecida como “Black Friday”, um dia estrategicamente situado antes da época natalícia, em que os consumidores são bombardeados com e-mails, mensagens e alertas de várias lojas, anunciando horários de início, percentagens de desconto e uma enorme variedade de produtos disponíveis a preços reduzidos.

Se na ponta do iceberg os consumidores podem ver oportunidades de poupar algum dinheiro na compra dos presentes de Natal para a sua família e amigos, ou mesmo para os próprios; na parte inferior desse iceberg podemos ter vários problemas que nem sempre são evidentes como práticas comerciais desleais, erros na apresentação de preços, marketing direto agressivo, problemas de sustentabilidade e direitos humanos.

Infelizmente, com o aquecimento global e descongelamento dos glaciares, a subida dos níveis do mar pode gerar o desgelo acelerado da parte submersa dos icebergs, o que, por sua vez, pode provocar o colapso de grandes massas de gelo superficiais, afetando os ecossistemas marinhos e contribuindo para impactos potencialmente devastadores para as zonas costeiras e para a fauna local. Paralelamente, na nossa metáfora podemos interpretar a subida dos níveis do mar como o aumento da consciencialização sobre os problemas reais que, muitas vezes, permanecem ocultos, quer por estarem submersos, quer por a nossa atenção ser repetitivamente desviada para montras e e-mails promocionais. Assim, versemo-nos sobre questões importantes que podem e devem, eventualmente, “vir à tona”.

Uma das principais questões que surgem no contexto da Black Friday são as práticas comerciais desleais, que podem comprometer os direitos dos consumidores e prejudicar a sua confiança nas ofertas. De acordo com o Decreto-Lei n.º 57/2008, de 26 de março, que regula as referidas práticas comerciais, um exemplo comum é a falsa redução de preços, em que os profissionais aumentam artificialmente o preço de um produto antes da Black Friday para, depois, oferecer um “desconto” que, na realidade, é fictício e não representa uma verdadeira vantagem comercial para os consumidores.

Outra prática frequente é a falsa urgência, em que os profissionais criam uma sensação de escassez, como por exemplo, anunciando que as promoções são válidas apenas por um período reduzido, ou que as quantidades de um determinado produto são limitadas, mesmo que isso não corresponda verdade. Essa tática leva os consumidores a tomarem decisões de compra apressadas, sem a oportunidade de avaliar adequadamente os produtos ou compará-los com outras ofertas disponíveis no mercado.

Estes tipos de comportamento são considerados desleais, nomeadamente, por explorarem a pressão emocional e a falta de tempo dos consumidores para avaliarem concientemente as ofertas comerciais que lhes são apresentadas, ao invés de proporcionar uma experiência de compra justa e transparente.

Durante a Black Friday, uma prática recorrente é o marketing direto agressivo, que leva os consumidores a serem incessantemente bombardeados com ofertas, seja por e-mail, mensagens de texto ou notificações nas redes sociais. A pressão constante para aproveitar os descontos pode comprometer o direito do consumidor de tomar decisões bem-informadas, violando assim o princípio da boa-fé contratual.

Ainda no mesmo contexto, surge também uma preocupação crescente com as questões de sustentabilidade e direitos humanos. Muitos profissionais, ao promoverem grandes descontos, não garantem que os produtos oferecidos sejam fabricados de forma ética e sustentável, podendo até envolver condições de trabalho precárias em países em desenvolvimento. O artigo 8.º da Lei n.º 24/96, de 31 de julho (Lei de Defesa do Consumidor) tem como objetivo garantir aos consumidores o direito de informação acerca das características principais dos bens que lhes são apresentados, incluindo a sua origem, para que estes mesmos consumidores possam tomar uma decisão de compra mais informada, com a devida consciência dos impactos ambientais e sociais negativos que podem estar na origem da produção de certos produtos.

Além disso, a Diretiva (UE) 2024/825 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 28 de fevereiro de 2024, respeitante à capacitação dos consumidores para a transição ecológica através de uma melhor proteção contra práticas desleais e melhor informação, incentiva práticas de consumo que respeitem o meio ambiente e os direitos dos trabalhadores. Os profissionais devem ser transparentes quanto à origem dos seus produtos e às condições de fabrico, sendo reforçada a necessidade de durabilidade dos produtos. São ainda proibidas alegações ambientais sobre o desempenho futuro dos produtos, a menos que estejam acompanhadas de compromissos claros, objetivos, publicamente acessíveis e verificáveis, assim como publicidade que sugira benefícios para os consumidores que são manifestamente irrelevantes.

Por fim, e antes que chegue a “Cyber Monday”, é importante refletirmos sobre as consequências destas práticas comerciais, que, embora possam ser vantajosas num primeiro momento, muitas vezes escondem problemas significativos que afetam tanto os consumidores, quanto o nosso meio ambiente. Dessa forma, é fundamental que os consumidores se tornem mais conscientes e críticos das ofertas que recebem, questionando a transparência dos profissionais e prioritizando decisões mais esclarecidas.

Como disse o filósofo Henry David Thoreau, em 1854 no seu livro Walden, “um homem é rico na proporção do número de coisas que pode permitir-se deixar de lado”, pois ao adotar uma abordagem mais simples e consciente, podemos concentrar-nos no que realmente importa, evitando a armadilha do consumo excessivo e das falsas promessas que, frequentemente, encobrem a verdadeira natureza de muitas ofertas comerciais.

Gold-Plating na Transposição do Direito Europeu do Consumo para o Ordenamento Jurídico Português

Doutrina

O conceito de gold-plating[1]

Quando o procedimento legislativo europeu acaba, com a publicação final dos diplomas no Jornal Oficial da União Europeia, começa frequentemente uma “fase intermédia” antes das novas normas se efetivarem. Nas diretivas, os destinatários são os Estados-Membros, que têm a obrigação de as transpor; os regulamentos, embora sejam diretamente aplicáveis, muitas vezes carecem de atos legislativos nacionais para a sua implementação efetiva.

É nesta fase em que um fenómeno muito particular frequentemente ocorre: o gold-plating.

Gold-Plating é o processo pelo qual um Estado-Membro, ao transpor ou implementar diplomas europeus, acrescenta requisitos, obrigações ou normas[2] que vão além do que está previsto na legislação transposta.

É importante frisar que o goldplating é uma prática lícita e conforme o direito da União Europeia. O Estado-Membro exerce apenas a sua competência legislativa, discricionariamente, de forma permitida e frequentemente até prevista pelo diploma europeu em causa.

O gold-plating é frequentemente discutido no contexto de sistemas legislativos de multinível como uma ocorrência que, embora natural e admissível, deve ser acautelada devido aos seus possíveis efeitos nefastos. Na OCDE, e na União Europeia em particular, é tipicamente criticado devido à falta de transparência, por um lado, e os custos e barreiras inesperados que pode causar ao funcionamento do mercado interno, por outro lado. Se o objetivo é garantir a livre circulação de bens, serviços, pessoas e capital (além de dados), quaisquer discrepâncias entre os diplomas europeus, que pretendem uniformizar ou harmonizar o direito aplicável o máximo possível, e os diplomas nacionais que os transpõem ou implementam, são vistas como contradições, constituindo entraves ao mercado interno.

Neste sentido, se o gold-plating pode ter custos económicos avultados, incluindo a perda de competitividade das empresas e dos agentes económicos sediados nessas jurisdições, podemos perguntar-nos porque é que ocorre.

Múltiplas razões podem motivar o legislador nacional “a ir mais longe” do que o necessário. Pode ocorrer por razões puramente políticas, culturais, obrigações internacionais previamente assumidas ou outras, como preocupações sociais e ambientais.

Ocorrências de gold-plating são, por vezes, fáceis de antecipar, tendo em atenção o procedimento legislativo europeu. Nas (cada vez mais frequentes) diretivas de harmonização máxima, é relativamente fácil identificar as matérias em que houve discordância entre os Estados-Membros nas negociações e se optou por permitir a adoção de medidas diferentes. Estes pontos encontram-se normalmente sinalizados nos próprios diplomas, quando apresentam derrogações expressas, “válvulas de escape”, múltiplas opções para o mesmo objetivo ou mesmo intervalos admissíveis em certas obrigações (com tetos mínimos e/ou máximos). Noutros casos, são os considerandos que “reconhecem” esta discricionariedade aos Estados-Membros, admitindo que vários já têm normas e regimes anteriores que vão além do necessário, podendo mantê-los.

Gold-plating no Direito do Consumo Português

Tipicamente o Legislador Português não costuma afastar-se muito do texto dos diplomas europeus, recorrendo, na generalidade dos casos, à técnica de “copy-paste”, que resulta num elevado número de transposições mínimas, incorrendo assim em pouco gold-plating.

No entanto, no domínio do Direito do Consumo, o legislador português é mais criativo, porventura por razões históricas ou políticas, exercendo mais esta prática.

Cláusulas abusivas

Começando por um caso exemplar, em que os motivos históricos são patentes, temos a transposição da Diretiva 93/13/CEE (cláusulas abusivas), integrada no Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de outubro, o Regime Jurídico das Cláusulas Contratuais Gerais.

As discrepâncias entre os dois diplomas são óbvias. A Diretiva, com os seus 13 artigos[3], aplica-se apenas a contratos de consumo e tem um anexo com uma “curta” lista de (17) cláusulas, meramente indicativa, que podem ser consideradas abusivas, dependendo das circunstâncias. Uma grey list.

Por sua vez, o diploma nacional, atualmente com 50 artigos[4], tem um regime aplicável a todos os contratos, incluindo os concluídos entre profissionais, e um regime aplicável apenas a contratos de consumo. Tem 4 listas de cláusulas bastante extensas, com cláusulas que são sempre consideradas abusivas, independentemente das circunstâncias, em todos os contratos e em contratos de consumo, e cláusulas tendencialmente abusivas, em todos os contratos e em contratos de consumo.

Compreende-se as razões que justificam este fenómeno. O Decreto-Lei é muito anterior à Diretiva (8 anos), sendo que a Diretiva é de harmonização mínima, permitindo esta “marca nacional” no regime jurídico. Finalmente, a Diretiva, na sua génese, resulta de uma teia de compromissos entre 4 visões bastante diferentes[5] de conceptualizar e considerar o seu objeto, e o caráter abusivo de cláusulas gerais. O seu texto teve, assim, de permitir formas bastante diferentes de conseguir alcançar o mesmo objetivo.

“Garantia legal” na compra e venda

Outra matéria em que é visível que, ao longo dos anos, o legislador português se quis demarcar do Direito da União Europeia, na medida do possível, diz respeito ao período de responsabilidade do profissional nos contratos de compra e venda de bens de consumo, comummente designado por prazo da “garantia legal”.

Temos dois exemplos claros, um na transposição da antiga Diretiva 1999/44/CE pelo Decreto-Lei n.º 67/2003, e o outro na mais recente transposição da Diretiva (UE) 2019/771 pelo Decreto-Lei n.º 84/2021, em que nos vamos focar de seguida.

A Diretiva (UE) 2019/771, de harmonização máxima, estabelece que os Estados-Membros têm de transpor para o seu ordenamento jurídico um período de responsabilidade (com um período mínimo de 2 anos, mas permitindo períodos superiores) e de período de inversão do ónus da prova da existência de falta de conformidade no momento da entrega, a favor do consumidor (num período mínimo de 1 ano e máximo de 2 anos), deixando os Estados-Membros incluir medidas que suspendam ou interrompam o decurso deste prazo no caso de uma reparação ou substituição[6].

Portugal optou por estabelecer (i) um período de 3 anos de responsabilidade, (ii) um período de 2 anos no qual se prevê inversão do ónus da prova, (iii) que a substituição do bem tenha como efeito o recomeço do período de responsabilidade e (iv) prorrogações de 6 meses por cada reparação, até um máximo de 4 reparações ou 2 anos “extra” no período de responsabilidade.

Se compararmos a transposição portuguesa com o panorama nos restantes Estados-Membros, há muita diversidade nas soluções adotadas. A Alemanha e a Itália estabeleceram períodos de 2 anos no que respeita à responsabilidade do profissional e de 1 ano quanto à inversão do ónus da prova. Por sua vez, em França, ambos são de 2 anos, prevendo-se prorrogações de 6 meses em caso de caso de reparação.

Um olhar para o futuro

O gold-plating é um dos temas da Legística e da Ciência da Legislação com mais impacto e ramificações multidisciplinares. Em áreas como o Direito do Consumo, em que a influência europeia é tão vincada e em que as divergências entre ordenamentos jurídicos nacionais têm tanto impacto nos agentes económicos, nas expectativas dos consumidores e no funcionamento do mercado interno, o tema é especialmente interessante, quer para os juristas quer para os policy makers.

Aliás, um dos primeiros passos na preparação de uma proposta legislativa, no procedimento europeu[7], consiste na avaliação de impacto (“Legislative Impact Assessment”), que considera os efeitos desta prática, antes da intervenção ou a posteriori. Nos fitness check europeus, a Comissão tem de considerar sempre esta dimensão na sua análise da adequabilidade dos diplomas em vigor (se estão “fit for purpose”). A partir destes estudos, casos de gold-plating em transposições anteriores podem acabar por ser incorporados em novas propostas.

Estas questões são importantes quando consideramos as transposições recentes para o ordenamento jurídico português e aquelas que terão de ser realizadas nos próximos dois anos. Entre os diversos casos de gold-plating do DL 84/2021 que poderíamos estudar (desde o conceito abrangente de consumidor à como a “arrojada” responsabilidade dos prestadores de mercados em linha, prevista no art. 44.º), temos de regressar ao período de responsabilidade do profissional.

A Diretiva (UE) 2024/1799 (direito à reparação) prevê, no seu artigo 16.º, uma série de alterações à Diretiva (UE) 2019/771. Entre estas, o art. 16.º-2-a) indica que o exercício do direito de reparação de um bem por falta de conformidade prorroga o período de responsabilidade do profissional, por uma vez, em 12 meses (ou 1 ano). A alínea seguinte permite aos Estados-Membros manter ou introduzir prorrogações adicionais e/ou prazos mais longos. Este artigo e o considerando 40 colocam um desafio interessante ao legislador português, que reflete a importância desta reflexão.

O art. 18.º-4 do DL 84/2021 terá de ser necessariamente alterado. Embora os consumidores portugueses beneficiem atualmente de 3 anos de proteção + 6 meses + 6 meses + 6 meses + 6 meses (ou 3+2 anos), a primeira prorrogação de 6 meses, na sequência da primeira reparação, é incompatível com a nova letra da Diretiva. 

A alteração necessária pode culminar em inúmeros cenários:

  1. Sem qualquer tipo de gold-plating (2+1) – reduz-se o período de proteção “inicial” para 2 anos e estabelece uma única prorrogação de 1 ano com a reparação em caso de falta de conformidade. Os consumidores portugueses perdem efetivamente 2 anos de proteção.
  2. Sem gold-plating na nova medida (3+1) – período de 3 anos mantém-se e passa a ser possível uma única prorrogação de 12 meses. Os consumidores portugueses perdem 1 ano de “garantia”.
  3. Gold-plating (3+1+6m+6m) – mantém-se o período inicial de 3 anos, cumpre-se com 1 ano “extra” relativo à primeira reparação e mantém-se o direito a duas prorrogações adicionais de 6 meses. Mantém-se, no essencial, o nível de proteção pata os consumidores, embora a primeira prorrogação seja mais longa.
  4. Outras variações da hipótese acima, com diferentes valores no número de prorrogações adicionais que podem ser mais/menos longas. Por exemplo, 3+2 ou 3+1+1, 2+2+1, etc..

Uma única medida, que pode parecer tão simples e direta, oferece inúmeras hipóteses de transposição, com resultados radicalmente diferentes para consumidores e operadores económicos, num único Estado-Membro. Este exemplo demonstra a complexidade e a importância deste fenómeno e a necessidade do seu estudo ao nível do Direito do Consumo.


[1] Parte deste texto tem como base o artigo Martim Farinha e Manuel Cabugueira, “Metodologia de Identificação e Análise de Gold-Plating na Transposição de Diretivas Europeias”, e-Publica Vol. 10(3) Dez 2023, e resultou da investigação realizada no âmbito do projeto “LegImpact – A produção legislativa enquanto meio de realização de políticas públicas: análise quantitativa e de impacto socioeconómico”, financiado pela FCT com a bolsa de investigação PTDC/DIR-OUT/32353/2017.

[2] A antecipação da produção de efeitos de normas também é uma forma de gold-plating.

[3] Na versão original, tinha apenas 11 artigos.

[4] Originariamente, tinha 36 artigos.

[5] A perspetiva do Reino Unido, que não reconhecia uma regra geral sobre o caráter abusivo de cláusulas, a perspetiva alemã, a perspetiva francesa e a perspetiva nórdica.

[6] Na Diretiva de 1999/44/CE, estava previsto um prazo mínimo de 2 anos de responsabilidade do profissional (art. 4.º), que foi seguido à letra no Decreto-Lei n.º 67/2003 (art. 5.º), que manteve os 2 anos. No entanto, quanto à inversão do ónus da prova, a Diretiva previa apenas um período de 6 meses após a entrega do bem, enquanto a nossa lei equiparou este período ao da responsabilidade do profissional (2 anos).

[7] E a nível nacional também, nos decretos-lei e propostas do Conselho de Ministros.

TOI Story: Crónicas de uma Desvinculação

Consumo em Ação

Por Guilherme Bica Vicente, João Maria Dias e Sara de Almeida Patrício Mendes

Caso prático: No dia 1 de fevereiro, António recebeu uma chamada de um representante da TOI propondo-lhe a celebração de um contrato de prestação de serviços de comunicações eletrónicas incluindo internet, televisão, telefone e telemóvel.

Foi ainda informado de que, se aderisse de imediato, receberia totalmente grátis um telemóvel iCoiso XII, sendo a instalação do serviço (estimada pela empresa em € 300) também oferecida. O valor mensal seria, neste caso, de € 120, com um período de fidelização de 24 meses.

António aceitou de imediato. Recebeu, cinco minutos depois, uma mensagem SMS com a referência ao acordo e um pedido para confirmar se realmente pretendia aderir. António respondeu dizendo que sim.

No dia seguinte (2 de fevereiro), a TOI foi a casa de António instalar o serviço e este ficou operacional. No dia 8 de fevereiro, o telemóvel foi entregue também na casa de António. António reparou que se tratava de um iCoiso X (e não de um iCoiso XII conforme prometido). Estava tão atarefado que decidiu que reclamaria mais tarde.

No dia 21 de fevereiro, António ficou desempregado. Pretende reduzir despesas, pelo que o/a contactou nesse mesmo dia para saber se tem alguma forma de se desvincular do contrato celebrado com a TOI sem o pagamento de qualquer valor.

Resolução: Em primeiro lugar, cumpre fazer o enquadramento jurídico do contrato celebrado para depois invocar os diplomas de Direito do Consumo que são relevantes para o caso sub judice.

Ora, neste caso, estamos perante a celebração entre António (doravante “A”) e a TOI de um contrato misto com elementos de prestação de serviços/empreitada (em relação ao serviço de internet, da televisão e do telefone e respetiva instalação), de compra e venda (em relação ao telemóvel) e de locação (quanto aos bens associados aos serviços prestados – box, router, telefone fixo).

Por sua vez, trata-se de um contrato com período de fidelização, muito frequente no que respeita a contratos de comunicações eletrónicas, e que corresponde ao “período durante o qual o utilizador final se compromete a não denunciar um contrato ou a não alterar as condições acordadas” [art. 3.º, n.º 1, al. ee), da Lei n.º 16/2022, de 16 de agosto].

Nos termos da Lei n.º 16/2022, só é possível estabelecer-se períodos de fidelização mediante a atribuição de vantagens específicas ao consumidor (art. 131.º, n.º 4), que, neste caso, são, por um lado, a oferta do serviço de instalação (no valor de €300) e, por outro, a entrega “gratuita” de um telemóvel iCoiso XII.

No respeitante à oferta do telemóvel, desde logo, é importante esclarecer que, por muito que a TOI anuncie ao A que este irá receber o mesmo de forma totalmente gratuita, tal não significa que estejamos perante um negócio de doação que mereça autonomização.

Isto porque o consumidor não deixa de ter de pagar um preço para aceder ao conjunto de benefícios contratados (onde se inclui o telemóvel). Assim, a partir do momento em que A tem de pagar uma mensalidade de €120 durante 24 meses para que lhe seja entregue o telemóvel, não existe qualquer liberalidade.

Trata-se também de um contrato de adesão, na medida em que implica a aceitação por A de um conjunto de cláusulas não negociadas, predispostas unilateralmente pela TOI, pelo que o Decreto-Lei n.º 446/85 será também relevante.

Releva desde logo o Decreto-Lei n.º 84/2021, sendo que a sua aplicação (e dos demais diplomas) está dependente da circunstância de podermos classificar esta relação contratual como sendo uma relação de consumo. Olhando para a alínea g) do art. 2.º-A, é com efeito um consumidor ao abrigo deste diploma: trata-se de uma pessoa singular (elemento subjetivo) que celebra um contrato objetivamente abrangido pelo diploma e que atua com fins não-profissionais (elemento teleológico). Dada a informação da hipótese, é seguro assumir que os serviços e bens contratados são para uso doméstico.

Por sua vez, para compreender o elemento objetivo, devemos atender ao art. 3.º, n.º 1, alíneas a) e b). Daí, resulta que estão abrangidos os “contratos de compra e venda celebrados entre consumidores e profissionais” [al. a)] e os “bens fornecidos no âmbito de um contrato de empreitada ou de outra prestação de serviços (…)” [al. b)]. Dito isto, o diploma é também aplicável aos bens fornecidos pela TOI como resultado dos serviços prestados, (router, box, telefone, entre outros). Já no que respeita à entrega do telemóvel, a conclusão de que este não se trata de um negócio gratuito autónomo permite a sua inclusão na alínea a) deste art. 3.º. Por fim, temos de averiguar se a TOI pode ou não ser considerada profissional nos termos da al. o) do art. 2.º (elemento relacional). Com a informação de que dispomos, tudo indica que a TOI se dedica à prestação deste tipo de serviços, atuando assim no âmbito da sua atividade profissional.

Concluímos, então, pela existência de uma relação de consumo nos termos do DL 84/2021. Por sua vez, sabemos que este diploma só se aplica aos contratos celebrados após 1 de janeiro de 2022, sendo que os negócios celebrados em data anterior continuam a ser regidos pelo já revogado Decreto-Lei nº 67/2003. Não tendo informação específica sobre o ano em que o contrato foi celebrado, vamos assumir que as datas mencionadas se referem ao presente ano de 2023. Assim, tendo o contrato sido celebrado a 1 de fevereiro de 2023, o DL 84/2021 é aplicável.

Estamos ainda perante um contrato celebrado por via telefónica, na sequência de um contacto promovido pela TOI, pelo que devemos ter também em conta o Decreto-Lei nº 24/2014.

Em primeiro lugar, no que se refere à definição dos elementos que compõem a relação de consumo, o DL 24/2014 aproxima-se do DL 84/2021, como podemos ver no art. 3.º, alíneas e) e n), do primeiro. Logo, os elementos subjetivo, teleológico e relacional estão também preenchidos no que toca a este novo diploma, sendo que só em relação ao elemento objetivo é que existem algumas particularidades, dada a natureza dos contratos que se incluem no âmbito objetivo de aplicação do diploma.

Em termos de âmbito de aplicação objetivo, este contrato é um contrato celebrado à distância (art. 2.º, n.º 1, do DL 24/2014). Isto porque se enquadra na definição prevista pela alínea h) do art. 3.º: além de o consumidor e o representante da TOI estarem fisicamente em locais diferentes, são utilizadas duas técnicas de comunicação à distância até à celebração do contrato (chamada telefónica e SMS). Por último, é necessário também que o contrato tenha tido por base um “sistema de venda ou prestação de serviços organizado para o comércio à distância”. Ora, o facto de o primeiro contacto ter partido do profissional por aquele canal específico é indicativo de que, à partida, se trata de uma forma utilizada pela TOI para contratar com os seus clientes.

Assim, concluímos que estamos perante um contrato celebrado à distância nos termos do DL n.º 24/2014 e que este diploma é aplicável.

Finalmente, a natureza dos serviços prestados pela TOI é relevante. Com efeito, os serviços de comunicações eletrónicas são abrangidos especificamente pela Lei n.º 23/96, nos termos do seu art. 1.º, n.º 2, al. d). De facto, o conceito de “comunicações eletrónicas” referido na lei é bastante amplo, incluindo a prestação de todo um conjunto de serviços que, na prática social, costumam ser contratados em “pacote” pelos consumidores, como sejam a própria Internet, televisão, telefone e telemóvel. 

Este diploma aplica-se às relações entre utentes e prestadores de serviços, nos termos dos n.os 3 e 4 do já referido art. 1.º. Assim, enquanto pessoa a quem são prestados serviços de comunicações eletrónicas, A é considerado utente (n.º 3). Já a TOI é considerada prestadora de serviços, enquanto entidade que presta o respetivo serviço de telecomunicações.

Feito este enquadramento e uma resenha dos principais diplomas aplicáveis, é agora altura de olhar para a questão colocada: poderá o A desvincular-se do contrato celebrado com a TOI sem o pagamento de qualquer valor?

Comecemos pelo DL 24/2014.

Primeiramente, em termos formais, cumpre-nos analisar os requisitos especiais de forma previstos no art. 5.º. Tendo sido a TOI a efetuar o primeiro contacto telefónico junto de A, não se aplica a exceção do n.º 8 deste artigo, pelo que o contrato está sujeito a forma especial: o consentimento escrito do consumidor. Tendo A confirmado a celebração do contrato via SMS, temos acordo escrito por parte do consumidor: o requisito especial de forma está preenchido, pelo que questões formais não poderão ser invocadas por A no sentido de se desvincular do contrato celebrado.

Como vimos, estamos perante um contrato misto: analisando as alíneas j) e k) do art. 3.º, é de destacar, aqui, que predomina o elemento do serviço, apesar de o contrato pressupor a aquisição do iCoiso XII. Isto porque o telemóvel assume uma relevância menor no plano estrutural do contrato, quando comparado com a prestação dos serviços. Isto terá implicações ao nível dos prazos para o exercício do direito ao arrependimento.

Não temos dados suficientes que indiquem a violação de deveres de informação pré-contratual (elencados no art. 4.º) pela TOI. Pode levantar-se a questão de saber se o dever de informação relativo ao direito de resolução [art. 4.º, n.º 1, alínea m)] foi cumprido pela TOI, uma vez que A não parece ter presente a ideia de que pode exercer, em abstrato, esse direito. Atendemos à circunstância de A estar em dúvida quanto aos fundamentos a que pode lançar mão para se desvincular do contrato: questão central do caso em apreço. É, por isso, possível suscitar a hipótese de que A não fora informado, nos termos da alínea m) do n.º 1 do art. 4.º, dado que, se a comunicação tivesse sido feita de forma efetiva, este estaria ciente dos direitos que lhe assistem. Esta hipótese poderia ter consequências ao nível do prazo previsto no art. 10.º, n.º 1, que veremos adiante. O incumprimento de deveres de informação (ainda que tivesse ocorrido e fosse relevante) não gera, em geral, qualquer invalidade, mas apenas sanções contraordenacionais (art. 31, n.º 2).

A figura central deste diploma é o direito ao arrependimento (direito de livre resolução), previsto no art. 10.º, idóneo para a pretensão de A de resolver o contrato sem quaisquer encargos.

A situação não se enquadra em qualquer exceção prevista no art. 17.º.

Ora, analisando o regime, temos três modalidades em termos de prazos de arrependimento: a alínea a), relativamente a contratos de prestação de serviços, e a alínea b), afeta aos contratos de compra e venda, são as que mais nos interessam, uma vez que estamos perante um contrato misto.

É controversa a questão de saber qual o elemento predominante deste contrato para efeitos do prazo para o exercício do direito de arrependimento: a vantagem concedida ao consumidor, nomeadamente, o iCoisoXII – quer pelo seu valor, preferência pessoal ou exclusividade da oferta – pode criar um incentivo acrescido à adesão a contratos de fidelização de serviços de telecomunicações, também com o propósito de aquisição do telemóvel. No entanto, entendemos que o elemento caracterizador do contrato se prende com a prestação dos serviços de telecomunicações, uma vez que, mesmo sendo relevante, a oferta do iCoiso XII surge como vantagem associada à fidelização ao serviço. Parece evidente que A queria, antes de tudo, poder usufruir de televisão, internet e serviços de telefone e telemóvel, sendo a oferta do iCoiso XII relevante, no limite, para a escolha da operadora ou da modalidade de fidelização. Assim, concluímos que a alínea b) do art. 10.º se deve aplicar ao caso sub judice.

Desta forma, A disporia de 14 dias para exercer o seu direito de livre resolução (partindo do pressuposto de que as partes não acordaram, nos termos do n.º 4 do art. 10.º, um prazo mais alargado), a contar da data da celebração do contrato, tal como consta do art. 10.º, n.º 1, al. a).

Tendo o contrato sido celebrado no dia 1 de fevereiro, a dia 21 já transcorrera o prazo para o exercício do direito de livre resolução. Conclui-se, então, que A também não poderia desvincular-se livremente do contrato por esta via.

É, no entanto, importante mencionar que, caso tenham efetivamente sido incumpridos os deveres de informação, pela TOI, constantes da alínea m) do n.º 1 do art. 4.º, o prazo para exercício do direito de resolução estender-se-ia para 12 meses, o que tornaria possível, nestes termos, a pretensão de livre resolução de A (art. 10, n.º 2).

Ressalve-se que, se A conseguisse exercer o direito de arrependimento, no que à prestação de serviços diz respeito e ocorrendo esta, pelos dados de que dispomos, desde o dia 2 de fevereiro (pelo que se presume o cumprimento do disposto no n.º 1 do art. 15) é pacífica a conclusão de que, tendo usufruído do serviço durante cerca de 19 dias, A deva compensar a TOI pelo período em que utilizou o serviço, nos termos do n.º 3 e para os efeitos do n.º 2 do art. 15.º. Assim, se €120 corresponderem a 31 dias, A deveria compensar a TOI em cerca de € 73,55. Não se abate, no montante total da prestação mensal, o valor – ou qualquer parcela do valor – do telemóvel que também é devolvido[1].

Avançando, no que respeita à obrigação de entrega do telemóvel, temos um problema de conformidade, na aceção do DL 84/2021, o qual merece uma análise mais detalhada. 

Nos termos do art. 5.º, incumbe ao profissional entregar ao consumidor bens que estejam em conformidade, de acordo com requisitos subjetivos e objetivos de conformidade.

In casu, as partes acordam expressamente na entrega de um telemóvel iCoiso XII, mas que na verdade é entregue um telemóvel de dois modelos abaixo: um iCoiso X. Trata-se assim de uma situação em que, claramente, o bem entregue pelo profissional não corresponde ao “tipo” previsto no contrato celebrado entre as partes [art. 6.º, al. a), do DL 84/2021], pelo que os requisitos subjetivos de conformidade não são respeitados. Apelamos a estes porque pode até acontecer que o telemóvel entregue não tenha qualquer problema, funcionando totalmente de acordo com o que é expectável daquele equipamento, do ponto de vista objetivo. Porém, haverá sempre um problema de conformidade, já que o consumidor não celebrou um contrato para a entrega de um iCoiso X, mas sim de um iCoiso XII. Concluímos, assim, pela existência de uma falta de conformidade entre a prestação realizada pelo profissional e o contrato celebrado com o consumidor. 

O profissional é responsável por qualquer falta de conformidade que se manifeste no período de três anos (art. 12.º, n.º 1), sendo que nos dois primeiros anos a contar da data da entrega do bem o consumidor beneficia de uma presunção bastante favorável: se a desconformidade se revelar nesse prazo, então esta presume-se existente à data da entrega do bem (art. 13, n.º 1). Num contexto em que o que está em causa é a entrega de um telemóvel de modelo diferente e em que, por isso, a falta de conformidade se manifesta imediatamente à data da entrega, não existem dúvidas de que a TOI é responsável. Pela sua própria natureza, a desconformidade só pode ser originária, pelo que a presunção do n.º 1 do art. 13 não pode ser ilidida pelo profissional.

Posto isto, a questão que agora se coloca é a seguinte: poderá esta falta de conformidade servir de fundamento à desvinculação unilateral do contrato por A, mediante o exercício de um direito de resolução [art. 15, n.º 1, al. c)]? 

Em primeiro lugar, existe uma hierarquização específica feita pelo art. 15.º em relação aos direitos que o consumidor pode exercer perante uma situação de desconformidade, nos termos da qual o recurso à resolução contratual é residual e só pode ocorrer com fundamento num dos pressupostos do n.º 4 do mesmo artigo, nomeadamente se não for possível proceder à reposição da conformidade do bem. Ainda assim, o art. 16.º prevê a possibilidade de o consumidor ultrapassar esta hierarquia, já que, se a desconformidade se manifestar no prazo de 30 dias após a entrega do bem, este pode solicitar, de imediato, a sua substituição ou a resolução do contrato (última parte). Ademais, no nosso caso, o bem foi entregue a 8 de fevereiro e a falta de conformidade manifestou-se precisamente nesse mesmo dia, já que A reparou desde logo que o bem não estava de acordo com o modelo que lhe havia sido prometido. Consequentemente, o prazo previsto no art. 16 foi plenamente respeitado, podendo A, à partida, solicitar a imediata resolução do contrato.

O problema está em que devemos olhar para os direitos que o DL 84/2021 atribui ao consumidor, perante uma situação de desconformidade, à luz da relevância que aquela assume no plano estrutural do contrato, entendido na sua globalidade. Neste sentido, estamos perante uma desconformidade que se refere apenas a uma parte dos bens prestados, já que só identificamos esse problema em relação à entrega do telemóvel. 

Como estabelece o n.º 3 do artigo 20.º, a regra geral em situações em que a desconformidade afeta apenas uma parte dos bens é a de que o consumidor tem direito a resolver o contrato apenas na parte relativa ao bem desconforme (resolução parcial do contrato). Contudo, excecionalmente, poder-se-á admitir a resolução do contrato como um todo, com base em desconformidade parcial, se provarmos que “não é razoavelmente expectável que o consumidor aceite a manutenção do contrato apenas com os bens conformes”. O critério é, portanto, de expetativa razoável do consumidor[2], com base em considerações como “a natureza e a finalidade do contrato, as circunstâncias do caso e os usos e práticas das partes envolvidas” (considerando 24 da Diretiva 2019/771/EU).

Outro aspeto importante é que o n.º 3 do art. 20.º só se refere expressamente às situações em que o consumidor tem um fundamento de resolução nos termos do art. 15.º (n.º 4), pelo que se poderia colocar a questão de saber se essa norma se aplica também às situações de resolução que resultem do exercício de um direito de rejeição (art. 16.º). Com efeito, entendemos que não faria sentido que o direito atribuído ao consumidor (poder optar imediatamente pela resolução do contrato caso a desconformidade se manifeste pouco tempo após a entrega) não estivesse sujeito às limitações previstas no n.º 3 do art. 20.º, nos casos de desconformidade de parte dos bens prestados, sob pena de comprometer a lógica já referida.

Dito isto, atendendo à “natureza e finalidade” do contrato misto sub judice, a desconformidade relativa ao telemóvel em nada contamina o funcionamento dos restantes serviços prestados pelo profissional e dos quais o consumidor já usufruiu.

Na verdade, trata-se de uma desconformidade que não faz com que seja irrazoável, à luz da ratio do DL 84/2021, que o consumidor mantenha o contrato só com os bens conformes, tendo em conta que, no âmbito de um contrato como este, o consumidor não deixa de preservar o interesse nos serviços de telecomunicações que lhe são prestados e que constituem a parte mais significativa do contrato (conforme supramencionado), bem como nos respetivos bens que os incorporam (a box, o router, o telefone, etc.).

Diferente seria se a falta de conformidade se reportasse ao router, por exemplo, deixando este de funcionar: neste cenário, não deixamos de estar perante uma desconformidade em apenas parte dos bens entregues, mas a sua relevância já seria significativa, ao ponto de afetar o funcionamento de outros serviços prestados pela TOI (como o serviçoda televisão, que regra geral só funciona havendo Internet), o que poderia motivar a irrazoabilidade da subsistência da relação contratual como um todo.

Por isso, concluímos que não deve ser admitido que A se possa desvincular unilateralmente do contrato com fundamento na entrega do telemóvel de modelo errado, tendo em conta uma análise holística desta relação contratual.

Em suma, o consumidor tem apenas direito à resolução parcial do contrato, restituindo o telemóvel à TOI [art. 20.º, n.º 4, al. a)]. O problema está em saber como é que se deve concretizar a obrigação de restituição do preço pela TOI [art. 20.º, n.º 4, al. b)], já que o consumidor não pagou um preço específico pelo bem (paga, apenas, pela prestação dos serviços de telecomunicações, no qual o valor do bem está incluído).

No nosso entender, na ausência de qualquer previsão legal relativa à restituição do preço, há duas soluções que se afiguram possíveis: a primeira seria descontar a totalidade do valor do telemóvel na totalidade do preço a pagar durante o período de fidelização (€ 2.880, correspondentes à soma de cada prestação durante os 24 meses), devolvendo a diferença ao consumidor. Outra solução, que nos parece mais acertada, seria a de dividir o valor total do telemóvel pelos 24 meses de fidelização e descontar parte correspondente desse valor a cada prestação mensal, de forma a reduzir o preço pago pelo consumidor em cada mês.

Esta solução afigura-se-nos enquanto a mais correta uma vez que permite acautelar a circunstância de o contrato poder cessar antes dos 24 meses de fidelização, pelo que talvez não faça sentido ter como valor de referência o preço total da fidelização (que só se alcança se o contrato for executado na totalidade), sendo preferível ter por referência o valor a pagar a cada mês. Assim, assegura-se que, devolvendo o telemóvel, o consumidor paga apenas pelos serviços de telecomunicações de que usufrui efetivamente a cada mês.

Tratando-se de um contrato de adesão com período de fidelização como supramencionado cabe abordar a matéria das cláusulas contratuais gerais (“CCG”), previstas no DL 446/85. Como sabemos, estas são cláusulas pré-elaboradas por uma das partes sem negociação prévia e cujo conteúdo o destinatário não pode influenciar[3]. Por esta natureza de imposição unilateral, é importante que tais cláusulas passem por um controlo triplo, nomeadamente: 1. Conexão com o contrato; 2. Comunicação ao aderente e 3. Prestação de esclarecimentos e informações. A inserção dessas CCG num contrato singular implica a verificação destes três requisitos cumulativos.

Ora, no caso sub judice não parece haver qualquer problema de conexão, já que a TOI fez referência às cláusulas integrantes do contrato quer oralmente, quando explicou o contrato ao telefone, quer por escrito (SMS com referência ao acordo). Num segundo momento, cabe avaliarmos a comunicação destas CCG. O art. 5.º, n.º 1, do DL 446/85 prevê este requisito, explicitando, no seu n.º 2, os elementos que a comunicação deve respeitar, nomeadamente a realização de modo adequado e com a antecedência necessária. Acresce ainda que deve ser tomada em conta a importância do contrato, a sua extensão e a complexidade das cláusulas. Assim sendo, tratando-se de um contrato cujo objeto são comunicações eletrónicas (isto é, serviços essenciais no quotidiano digital), com uma fidelização de 24 meses, parece-nos tratar-se de um contrato de elevada importância e complexidade. Posto isto, podemos aqui questionarmo-nos se, porventura, foram devidamente comunicadas todas as cláusulas relevantes à celebração deste contrato. Aí, seria importante perceber se o critério da antecedência adequada foi respeitado ou se, por outro lado, o meio utilizado era idóneo a que um consumidor de comum diligência conhecesse das cláusulas.

Se concluíssemos pelo não preenchimento do requisito da comunicação, e ao abrigo do art. 8.º, al. a), isto resultaria na exclusão das cláusulas não comunicadas. Não obstante, e ainda que esta hipótese seja interessante, não nos parece de grande pertinência para o resultado desejado por A.

Para além disso, cabe agora olharmos para as práticas comerciais utilizadas pela TOI para celebrar o contrato com A, à luz do Decreto-Lei n.º 57/2008.

O art. 4.º proíbe as práticas comerciais desleais. Temos categorias específicas de práticas comerciais desleais, entre as quais as ações enganosas. O art. 7.º, n.º 1, estabelece como enganosa qualquer prática comercial “que contenha informações falsas ou que, mesmo sendo factualmente corretas, por qualquer razão, nomeadamente a sua apresentação geral, induza ou seja suscetível de induzir em erro o consumidor (…)”, conduzindo-o, ou sendo passível de o conduzir, a tomar uma decisão que não tomaria. Cabe acrescentar que, ao prever a possibilidade de a informação ser “factualmente correta”, o regime assegura que não basta a informação ser verdadeira, mas que o seu fornecimento também tem de ser realizado de forma correta pelo profissional, de modo a não induzir o consumidor em erro. 

Assim sendo, a TOI, ao prometer um iCoiso XII, entregando, depois, um iCoiso X, estará sempre a incorrer numa prática comercial desleal: quer tenha fornecido informações falsas a título de publicidade enganosa para incentivar o consumidor a contratar; ou ainda, quer tenha prestado informações factualmente corretas, mas fornecendo bem diferente do prometido. Trata-se assim de uma ação enganosa prevista no art. 7.º, n.º 1, al. a), do DL 57/2008.

Além disso, o art. 8.º apresenta, taxativamente, um conjunto de ações que são sempre tidas como enganosas, independentemente das circunstâncias. Na alínea i), proíbe-se a declaração falsa de que o bem ou as condições especiais só estarão disponíveis durante um período muito limitado: isto porque se procura evitar que o profissional obtenha uma decisão imediata do consumidor, pouco ponderada e informada. Ora, neste caso, a TOI liga a A, apresentando uma proposta contratual à qual acrescenta um conjunto de condições especiais, caso o último aderisse de imediato (a aquisição do iCoiso XII e a instalação do serviço de modo gratuito). Atendendo à natureza genérica do bem oferecido (o iCoiso XII), não parece haver elementos que justifiquem que a sua disponibilidade seja de tal forma limitada que o consumidor tenha de aderir de imediato, sob pena de não aceder ao mesmo. Diferente seria se o bem se revestisse de características muito específicas ou que fosse mais raro: caso em que a declaração de que só estaria disponível se o consumidor aderisse de imediato poderia ser razoavelmente presumida como verdadeira.

Independentemente disso, tal prática comercial não é apenas enganosa (criando no consumidor a ideia incorreta de que a disponibilidade das condições fornecidas é limitada), como permite ao profissional explorar a posição vulnerável do consumidor, limitando a sua liberdade de decisão e fazendo-o crer que encontra uma oportunidade única, não havendo espaço para esclarecimento, ponderação e comparação. Isto resulta numa sujeição de A a um contrato que limita a sua liberdade contratual e capacidade negocial durante 24 meses, influenciado sob pressão de aproveitar estas vantagens e ofertas “especiais”.

Ademais, a classificação do telemóvel e da instalação como “totalmente gratuito(s)” é, ainda, uma prática enganosa à luz da al. x) do art. 8.º. Aqui, está em causa a indução do consumidor em erro relativamente à gratuitidade do bem e serviço: como sabemos, não basta estar a palavra “gratuito” para o ser, já que A não deixa de pagar um preço (€ 120/mês). A ratio por detrás desta prática é semelhante à anterior: proteger o consumidor de contratar acreditando estar a ter uma vantagem quando, na realidade, fora apenas uma técnica de incentivo e manipulação comportamental do mesmo.

Os direitos do consumidor lesado vêm previstos no art. 14.º, n.º 1, do DL 57/2008. Esta norma atribui ao consumidor o direito à redução adequada do preço (o que aqui parece não fazer sentido, dado que A se quer desvincular do contrato sem o pagamento de qualquer valor) ou à resolução do contrato, relativamente aos produtos adquiridos por efeito de uma prática comercial desleal. Por sua vez, o n.º 2 prescreve que tal direito não poderá ser exercido se constituir um abuso de direito; ora, teremos aqui algum abuso de direito por A? 

Antes do mais, cabe destacar que o DL 57/2008 estabelece uma proteção objetiva do consumidor, prevendo um conjunto de práticas comerciais desleais que devem ser sancionadas. Assim sendo, estando desempregado ou não, A não deixou de ser enganado por tais práticas, tendo, por isso, fundamento para, ao abrigo do art. 14.º, n.º 1, solicitar a resolução do contrato. O facto de A querer desvincular-se do contrato, fruto da situação de desemprego em que se encontra, não torna o exercício deste direito abusivo, na medida em que, objetivamente, tivemos a utilização de práticas comerciais desleais pela TOI.

Não obstante, em última instância, a própria Lei 16/2022 reconhece a suspensão do contrato em situações de desemprego do consumidor [art. 137.º, n.º 1, al. e)], transformando-se posteriormente em caducidade, caso a situação se prolongue por mais de 180 dias (art. 137.º, n.º 4). Logo, de todo o modo, a circunstância de A estar desempregado é atendível à luz deste diploma.

Por fim, tendo em vista o exercício dos direitos que aqui explorámos, o consumidor poderia provocar a intervenção de um Tribunal Arbitral, sem que o profissional a isso se pudesse opor, uma vez que o valor da causa é inferior a € 5.000 (art. 14.º da Lei de Defesa do Consumidor).


[1] Seguimos, aqui, apesar da existência do telemóvel enquanto objeto do contrato, o raciocínio do Tribunal de Justiça da União Europeia, no Acórdão de 8 de outubro de 2020, EU contra PE Digital GmbH, C‑641/19, EU:C:2020:808, n.º 27-29, 31 e 32, concluindo-se, neste último, que “(…) para determinar o montante proporcional a pagar pelo consumidor ao profissional (…), deve, em princípio, ter‑se em conta o preço acordado nesse contrato para o conjunto das prestações objeto do mesmo contrato e calcular o montante devido pro rata temporis. Só quando o contrato celebrado prevê expressamente que uma ou várias das prestações são fornecidas integralmente desde o início da execução do contrato, de maneira distinta, a um preço a pagar separadamente, é que o preço integral previsto para tal prestação deve ser tido em conta no cálculo do montante devido ao profissional (…)”. Ver, também, no mesmo sentido (por analogia): Acórdãos de 23 de janeiro de 2019, Walbusch Walter Busch, C‑430/17, EU:C:2019:47, n.o 41; de 27 de março de 2019, Slewo, C‑681/17, EU:C:2019:255, n.o 39; e de 10 de julho de 2019, Amazon EU, C‑649/17, EU:C:2019:576, n.o 44.

[2] Jorge Morais Carvalho, Compra e Venda e Fornecimento de Conteúdos e Serviços Digitais – Anotação ao Decreto-Lei n.º 84/2021, de 18 de outubro, Almedina, 2022, pp. 75 e 76.

[3] Jorge Morais Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 6.ª ed., Almedina, 2019, p. 117.

Prazo para a reparação ou substituição ao abrigo da garantia legal

Doutrina

Sobre este tema, veja, com mais aprofundamento, a obra do autor do texto “Compra e Venda e Fornecimento de Conteúdos e Serviços Digitais – Anotação ao Decreto-Lei Nº 84/2021, de 18 de Outubro”, disponível aqui.

Em caso de uma falta de conformidade do bem com o contrato que se manifeste dentro do período de responsabilidade do profissional, o consumidor tem direito à reposição da conformidade, através de reparação ou de substituição (art. 15.º-1 do DL 84/2021).

Segundo o art. 18.º-1-a), a reparação ou a substituição deve ser efetuada a título gratuito, ou seja, nos termos do art. 2.º-a), “livre dos custos necessários incorridos para repor os bens em conformidade, nomeadamente o custo de porte postal, transporte, mão-de-obra ou materiais”. A lista não é exaustiva, pelo que outras despesas relativas à reposição da conformidade do bem, como custos com peritagens ou avaliações, devem considerar-se incluídas. Portanto, o consumidor não tem de pagar qualquer valor pela reparação, incluindo os custos do transporte do bem para o vendedor.

Nos termos do art. 18.º-2-b), a reparação ou a substituição deve ser efetuada num prazo razoável, ou seja, o “mais curto prazo necessário para a sua conclusão” (considerando 55 da Diretiva 2019/771).

Nesse mesmo considerando, pode ler-se que “os Estados-Membros deverão poder interpretar o conceito de prazo razoável para a conclusão da reparação ou da substituição, prevendo prazos fixos que podem ser geralmente considerados razoáveis para a reparação ou substituição, em especial no que respeita a categorias específicas de produtos”.

Utilizando esta possibilidade, prevê-se no art. 18.º-3 que “o prazo para a reparação ou substituição não deve exceder os 30 dias, salvo nas situações em que a natureza e complexidade dos bens, a gravidade da falta de conformidade e o esforço necessário para a conclusão da reparação ou substituição justifiquem um prazo superior”.

Esta norma é particularmente infeliz. Sob a aparência de melhorar a posição do consumidor, por se prever um prazo fixo, vem, na verdade, apresentar-se esse prazo como mínimo, permitindo a sua extensão nas situações aí indicadas. Na verdade, pouco se acrescenta em relação à cláusula geral do prazo razoável, que perde efeito. Temos dúvidas, até, que, na Diretiva, se esteja a pensar em prever simultaneamente a cláusula do prazo razoável e a previsão de um prazo fixo.

Os profissionais que não pretendam cumprir o prazo de 30 dias irão sempre invocar uma das exceções constantes do preceito, o que irá também aumentar consideravelmente a litigiosidade.

É, no entanto, necessário ter em conta um requisito adicional relativo à reposição da conformidade que pode limitar os efeitos negativos para o consumidor de uma reparação ou de uma substituição mais prolongada no tempo.

Assim, a reparação ou a substituição deve ser efetuada também, como prevê o art. 18.º-2-c), “sem grave inconveniente para o consumidor, tendo em conta a natureza dos bens e a finalidade a que o consumidor os destina”.

A concretização do conceito indeterminado de “grave inconveniente” deve ter em conta o caso concreto, relevando, nomeadamente, circunstâncias relativas à relação entre o consumidor e o bem.

A reposição da conformidade terá de ser feita em menos de 30 dias se o consumidor tiver um grave inconveniente com a reparação ou a substituição nesse prazo. É o que sucederá na generalidade dos casos.

Causa grave inconveniente ao consumidor não ter telemóvel durante 30 dias? À partida, se não tiver outro, a resposta será positiva. Isto significa que a reposição da conformidade em 30 dias não cumpre os requisitos previstos na lei. Na verdade, ficar sem telemóvel por mais de um ou dois dias já causará grave inconveniente a um consumidor normal. Isto significa que, em regra, um ou dois dias é o prazo máximo para a reparação ou a substituição do telemóvel sem ser causado um grave inconveniente ao consumidor. Estas observações valem para a generalidade dos bens, relembrando-se que a análise deve ser feita em concreto.

O profissional poderá utilizar, ainda assim, o tempo razoável para as operações de reparação ou de substituição, mas tem de fazer alguma coisa para que o consumidor não tenha um grave inconveniente. A solução mais adequada, nestes casos, passa pela disponibilização de um bem de substituição que satisfaça as necessidades do consumidor enquanto o bem reparado ou o novo bem não é entregue.

A ausência de reposição da conformidade a título gratuito, num prazo razoável (em princípio, 30 dias) e sem grave inconveniente para o consumidor, além de constituir ilícito contraordenacional, nos termos do art. 48.º-1-d), permite ao consumidor exercer de imediato o direito à redução do preço ou de resolução do contrato, como prevê o art. 15.º-4-a)-ii). Refira-se ainda que, segundo o art. 16.º, “nos casos em que a falta de conformidade se manifeste no prazo de 30 dias após a entrega do bem, o consumidor pode solicitar a imediata substituição do bem”. Neste caso, a substituição deve ser imediata, não se permitindo sequer ao profissional avaliar previamente a existência de falta de conformidade. Essa avaliação terá de ser feita apenas posteriormente.

The Implementation of the Directives 2019/771 and 2019/770 in the Italian Consumer Code

Doutrina

By Giovanna Capilli, Associate Professor of Private Law – San Raffaele University Rome

The Italian legislator has implemented the Directives (EU) 2019/771 of the European Parliament and of the Council of 20 May 2019 (relating to certain aspects of contracts for the sale of goods, which amends Regulation (EU) 2017/2394 and Directive 2009/22/EC, and repealing Directive 1999/44/EC – hereinafter ‘Dir. 2019/771’) and (EU) 2019/770 of the European Parliament and of the Council of 20 May 2019 (relating to certain aspects of supply contracts of digital content and digital services – hereinafter ‘Dir. 2019/770’) respectively with Legislative Decree n. 170/2021 and Legislative Decree n. 173/2021 and it modified the consumer code.

After the unsuccessful proposed Regulation for a Common European Sales Law (CESL), the European Parliament decided to use the instrument of the directive in order to enhance the growth of electronic commerce in the internal market and to establish a genuine digital single market.

The general objective of the two “twin” directives is to get a uniform regulation in the Member States on the sale of goods (including digital ones) and the supply of digital content and services, although the directive contains the possibility to derogate in some cases, so probably there will be other differences between member states (see: S. Pagliantini, Contratti di vendita di beni: armonizzazione massima, parziale e temperata della dir. UE 2019/771, in Giur. it., 2020, 1, F. Bertelli, Armonizzazione massima della Dir. 2019/771 UE e le sorti del principio di maggior tutela del consumatore, in Eur. Dir. Priv., 2019, 953).

One of the main innovations of the new Italian consumer rules is connected to the notion of good which is no longer defined as a ‘consumer good’, but only “good” which includes digital goods or goods that incorporate or are interconnected with digital content or services (Internet of Things).

The Italian implementation cannot be said to be optimal; in fact, the consumer code was modified simply by transposing the directives and keeping them separate without carrying out any coordination work.

Thus, from a textual point of view, the regulation of contracts concerning the sale of goods (including digital ones) is contained in articles 128 to 135- septies and it is separate from the regulation of contracts for the supply of digital content and digital services which is contained in articles 135 – octies to 135- vicies ter  (For further information see: G. Capilli – R. Torino, Codice del consumo: le novità per i contratti di vendita e fornitura di beni digitali, Milan, 2022).

Among the most important innovations we can point out the elimination of the concept of “presumption of conformity”. In fact, subject and objective requirements are expressly regulated and both are necessary for the good to be considered compliant.

In particular, the requirement of “durability” (or, according to some authors, “duration” would have been better: see A. De Franceschi, La vendita di beni con elementi digitali, Napoli, 2021, p. 87, p. 87), introduced by the European legislator among objective compliance requirements is due to the desire to favor a longer “useful life of the goods” in the perspective of more sustainable consumption models from an environmental point of view, and represents the ability of the product to maintain its functionality and the performance required through normal use.

With reference to goods with digital elements, IT security becomes one of the fundamental requirements of the product or service.

In case of goods with digital elements, the seller will be liable for any lack of conformity of the digital content or digital service that occurs or manifests itself within two years from the time of delivery of the goods with digital elements and if the contract provides for a continuous supply. For more than two years, the seller is liable for any lack of conformity of the digital content or digital service that occurs or manifests itself in the period of time during which the digital content or digital service must be supplied under the sales contract (see art. 133 of the Italian consumer code).

A product with digital elements by its nature requires updates which are generally agreed in the sales contract to improve and enhance the element of digital content or digital service incorporated therein, expand its functionality, adapt it to technical developments and protect it from new threats to the security or serve other purposes.

Consequently, for this type of goods, the seller, who is generally responsible for the lack of conformity existing at the time of delivery of the goods, will also be responsible for the failure to supply the updates agreed in the contract, but also for the incompleteness and the defectiveness of updates over which it may not have effective control.

From this point of view, the seller’s liability becomes much more strict and it is not compensated by a contextual strengthening of the right of redress.

It should also be noted that in the case of goods with digital elements, the provision pursuant to art. 133 consumer code, paragraph 2, must be connected with that contained in art. 135 quaterdecies consumer code, with the consequence that if there is a lack of conformity, a concurrent liability of the seller and the professional (producer) could arise.

It should be noted that in the case of the supply of goods with digital content, it is probable that the digital elements are provided by a third party and not by the final seller. The contract could involve three parties: consumer, seller who supplies the good and another person who supplies the digital content that allows the good to operate.

The issues about updates are very complicated; the consumer should have the freedom to choose to install an update or not, but his decision could influence the seller’s liability and the consumer right to take remedies for lack of conformity.

In case of goods with digital content, consumer protection becomes rather articulated and complex if it takes into account that these goods could need updates for themselves, but also because they need to be compatible with a new digital environment.

Certainly, the consumer’s decision to proceed with the updates must be aware, especially considering that the lack of safety updates could lead to damage third parties and consumer could be held responsible.

In this regard, it is debated if there is an obligation to update by the consumer.

Another aspect that has been highlighted (see A. De Franceschi, op. cit., p. 93) is in which ways the seller must keep the consumer informed of the necessary updates indicated by art. 130, paragraph 2, consumer code if more time is spent from the contract and from the delivery.

The new art. 133 consumer code fixes in two years from the delivery of goods the seller’s liability for any lack of conformity and this provision also applies to goods with digital elements.

For goods with digital elements, based on the new art. 133, paragraph 2, consumer code when the sales contract provides a continuous supply of the digital content or digital service for a period of time, the seller is also liable for any lack of conformity of the digital content or digital service that occurs or became apparent within two years of the time when the goods with digital elements were delivered.

Where the supply of the digital content or digital service provides for a continuous supply for more than two years, the seller shall be liable for any lack of conformity of the digital content or digital service that occurs or becomes apparent within the period of time during which the digital content or digital service is to be supplied under the sales contract.

The new article 133 of consumer code confirms the previous provision establishing that the action of warranty expires within twenty-six months from the delivery of the goods and this solution is necessary to overcome the paradox of the simultaneous termination of the guarantee and the right to take action to enforce it (G. Capilli, Garanzie e rimedi nelle vendite ai consumatori, in I contratti del consumatore (edited by G. Capilli), Torino, 2021).

With reference to second hand goods, as in the previous regulations, (v. paragraph 4 of art. 133 consumer code) it is possible to determine a different period for warranty but not less than one year and it is possible to determine that limitation also for the action of warranty (see for a comment: G. Capilli, Termini di garanzia e termini di prescrizione nella vendita di beni (anche usati) ai consumatori, in M. Astone (edited by), Il diritto dei consumatori nella giurisprudenza della Corte di Giustizia Europea, Pisa, 2020, p. 61).

With the new provision contained in article 133 consumer code, the warranty and prescription period for second hand goods may be limited to a period of not less than one year, and this because a different treatment of second-hand goods was deemed justifiable; contractual freedom is encouraged, at the same time the consumer is assured of being informed both of the nature of the good as second-hand and of the liability period or the shortened limitation period (see recital 43 of directive 2019/771).

The new article 135 consumer code change the rules on the burden of proof; the preview legislation indicated six months as a time in which the lack of conformity could appear, while now the time is one year.This means that during this period the burden of proof is on the seller that needs to demonstrate that the product is in conformity. Although the EU legislator had left the states free to (maintain or) introduce a two-year term, the Italian legislator did not take this option also because it is applied in few Member States. So that, without prejudice to evidence to the contrary, it is assumed that any lack of conformity that occurs within one year from the time the good was delivered already existed on that date, unless this hypothesis is incompatible with the nature of the good (i.e. in case of perishable goods such as flowers or goods that can only be used once) or with the nature of the lack of conformity (i.e. a lack of conformity that can only result from an action by the consumer or from an evident external cause which occurred following the delivery of the goods to the consumer).

In the event of a lack of conformity, a fundamental principle is codified: the consumer must be able to choose the most appropriate remedy, but his freedom of choice is not absolute, but rather limited by a series of circumstances which must be considered, in a collaborative perspective between the parties and in good faith in the execution of the contract, precisely in order to avoid making excessive and unjustified burdens fall on the seller. Therefore, the following must be considered: a) the value the goods would have if there were no lack of conformity; b) the significance of the lack of conformity; c) whether the alternative remedy could be provided without significant inconvenience to the consumer.

The seller at the time of the communication of the defect can offer the consumer any remedy but this is not binding for the consumer who will be free to refuse it and choose another one.

It should be noted, among the regulatory changes, that in compliance with the invitation contained in recital 46 and in order to ensure that consumers have a higher level of protection, it is eliminated the obligation to notify the defect (in the preview regulation the consumer ought to notify the defect in the term of two-month from the discover).

Another question that is resolved by the new legislation is that relating to possible and repeated defects that may affect the same good. In this case, consumers could obtain a price reduction or resolution despite the seller’s attempt to restore the conformity of the good.

These are situations in which it is justifiable that the consumer needs to have a price reduction or to terminate the contract immediately. If it can be considered normal to allow the seller (with reference to specific goods, for example because they are very expensive) to bring the goods into conformity, it is also true that when a lack of conformity becomes apparent subsequently the trust of the consumer on the seller’s ability to bring the goods into conformity cannot be maintained.

The consumer may request the proportional reduction of the price or to terminate the contract if the lack of conformity is so serious as to justify the request for such remedies.

The question, therefore, is to verify when a lack of conformity can be considered “so serious” as to allow the immediate termination of the contract or the reduction of the price.

The EU legislator, through this provision, wanted to allow the consumer a faster way to terminate the contract if, due to the seriousness of the defect, he is not interested in retaining the good. “Exit” from the contract, however, facilitated by the fact that the consumer, based on the provisions of paragraph 2 of art. 135 quater, could terminate the contract with a direct declaration to the seller containing the manifestation of the will to terminate the sales contract, this is a hypothesis of out-of-court resolution (eg in the case of delivery of aliud pro alio) which should be coordinated with the provisions of art. 61 of the Italian consumer code.

The consumer shall have the right to withhold payment of any outstanding part of the price or a part thereof until the seller has fulfilled the seller’s obligations, so the Italian legislator has expressly recalled the article 1460 of the civil code, but has also made use of the option referred to in paragraph 7 of art. 13 of the directive, which provides that the Member States can establish whether and to what extent, upon the occurrence of the lack of conformity, the consumer’s cooperation may affect his right to avail himself of the remedies.

Finally, it should be noted that the provision contained in article 135 septies incorporates the provisions of art. 3, paragraph 6, as well as art. 4 in relation to the level of harmonization, and clarifies the relationship between the rules contained in the civil code and in the consumer code. So the consumer code will be applied in the case of B2C sales of goods, while the civil code will be applied for the question concerning the formation, validity and effectiveness of contracts, including the consequences of termination of the contract and compensation for damage

“Garantia” das peças inseridas num bem no âmbito da sua reparação

Doutrina

A questão a que se pretende dar resposta neste pequeno texto consiste em saber se as peças inseridas no bem no âmbito de uma reparação beneficiam de uma “garantia legal”[1] autónoma e/ou nova em relação à do próprio bem. Para esta análise é fundamental refletir sobre o problema mais geral do destino da “garantia” em caso de substituição e de reparação.

A reparação a que este texto diz respeito é a reparação feita na sequência da falta de conformidade do bem, ao abrigo do artigo 15.º-1-a) do DL 84/2021. Se se tratar de uma reparação feita fora do período de responsabilidade do vendedor, às peças inseridas no bem é aplicável o DL 84/2021, nos termos do artigo 3.º-1-b), uma vez que estaremos perante um contrato misto com elementos de prestação de serviço e de compra e venda, tendo o consumidor os direitos previstos no diploma.

A matéria foi objeto de discussão em outubro de 2004, na sequência de pedido feito à UMAC (hoje NOVA Consumer Lab) pela Direção-Geral do Consumidor. Joana Galvão Teles, Pedro Félix, Sofia Cruz e eu preparámos, então, um parecer sobre “Venda de Bens de Consumo: Garantia das Peças Inseridas Num Bem no Âmbito da Sua Reparação”, posteriormente publicado na obra Conflitos de Consumo, Almedina, Coimbra, 2006, pp. 225-244 (disponível aqui).

Apesar de o Comité Económico e Social e o Parlamento Europeu, nos seus pareceres, terem sugerido que se regulasse a matéria (defendendo-se o recomeço do prazo de “garantia” após a reparação), a Diretiva 1999/44/CE deixou a questão em aberto. O DL 67/2003, na versão originária, não resolveu a questão. Face a essa omissão, defendemos no referido parecer que “as peças novas colocadas no bem no âmbito da sua reparação, dentro do período da garantia legal, não eram abrangidas por um novo período de garantia legal”. Na nossa perspetiva, a lei deveria tratar da mesma forma os casos em que o consumidor exerce o direito à reposição da conformidade, quer este seja exercido através de reparação ou de substituição.

Em 2008, o DL 67/2003 foi alterado pelo DL 84/2008, passando a prever-se, no artigo 5.º-6, que, “havendo substituição do bem, o bem sucedâneo goza de um prazo de garantia de dois ou de cinco anos a contar da data da sua entrega, conforme se trate, respetivamente, de bem móvel ou imóvel”.

Ao contrário do que tínhamos defendido no Parecer, distinguiu-se expressamente entre a reparação e a substituição, tornando a substituição muito mais apetecível para o consumidor. Assim, face ao regime anterior, em caso de reparação, o período de “garantia” inicial continuava a correr, sem qualquer alargamento. Em caso de substituição, reiniciava-se esse período de “garantia”.

A lei não definiu, contudo, se às peças inseridas no âmbito de uma reparação era ou não aplicável o artigo 5.º-6. Na nossa perspetiva, embora com dúvidas, a resposta deveria ser negativa. Tratando-se de reparação (e não de substituição), não se estabelecia um novo período de “garantia”.

A Diretiva 2019/771 também não regula a matéria, sendo este um tema em relação ao qual os Estados-Membros mantêm alguma liberdade (v. considerando 44).

Ao transpor a Diretiva 2019/771, Portugal veio finalmente esclarecer a dúvida de forma expressa, utilizando a possibilidade conferida pelo referido considerando 44 na sua plenitude. Com efeito, no artigo 18.º do DL 84/2021 prevê-se o que acontece ao período de “garantia”, quer no caso de reparação, quer no caso de substituição.

Se se tratar de substituição, aplica-se o artigo 18.º-6, reiniciando-se o prazo, tal como estava previsto no regime anterior. Não há, aqui, novidades.

A novidade é a norma relativa à reparação (artigo 18.º-4), a qual abrange, naturalmente, os casos em que uma peça é inserida no bem no âmbito dessa reparação. Nesse caso, o bem reparado beneficia de um prazo de “garantia” adicional de seis meses. Assim, em caso de reparação, não se reinicia a contagem do período de “garantia”, mas este é alargado em seis meses.

Pela primeira vez no ordenamento jurídico português, resulta claro que a peça inserida no âmbito dessa reparação não tem uma “garantia” autónoma, uma vez que a conformidade não foi reposta por via de substituição, a qual implica a devolução do bem desconforme e a entrega de um novo bem conforme.

Por exemplo, imaginemos um contrato de compra e venda de um automóvel. Em caso de desconformidade, o consumidor pode exercer o direito à reposição da conformidade através de reparação. Se, no âmbito dessa reparação, for necessário substituir o motor, o novo motor não beneficia de uma “garantia” autónoma e nova, mas todo o automóvel beneficiará de um alargamento do período de garantia em seis meses. A resposta será a mesma se, por exemplo, a reparação tiver como objeto a pintura para remoção de um risco ou a substituição dos estofos.

Embora continue a discordar de uma solução que passe pela existência de regras distintas em caso de reparação ou substituição quanto ao reinício do período de “garantia”, o DL 84/2021 tem o mérito de resolver em definitivo a questão das peças inseridas no bem no âmbito de uma reparação. A solução em que a substituição é mais favorável para o consumidor do que a reparação é particularmente criticável em termos de sustentabilidade do planeta.

A solução constante do artigo 18.º-4 tem algumas parecenças com a que se encontra prevista no direito francês. Com efeito, o primeiro parágrafo do artigo L. 217-13 do Code de la consommation, na redação dada pela Ordonnance n.° 2021-1247, estabelece que “o bem reparado no quadro da garantia legal de conformidade beneficia de uma extensão dessa garantia em seis meses” (tradução minha). Note-se que, neste caso, ao contrário da lei portuguesa, não se prevê qualquer limite ao número de extensões do período da “garantia” (em Portugal, o limite corresponde a quatro extensões). Contrastando com o que sucede em Portugal, em França, o período de “garantia” não se reinicia em caso de substituição do bem. Tal apenas sucede, nos termos do segundo parágrafo do artigo L. 217-13 do Code de la consommation, na redação de 2021, nos casos em que o consumidor tenha escolhido a reparação, mas o profissional não tenha reparado o bem, tendo sido posteriormente reposta a conformidade por via de substituição. É a única situação em que a substituição do bem implica o reinício do período de “garantia”. Trata-se de um incentivo à reparação, mensagem oposta àquela que é dada pela lei portuguesa.


[1] O conceito de “garantia” não deveria ser utilizado neste contexto, uma vez que pode ser enganoso na perspetiva do consumidor. A sua constante utilização na linguagem comum justifica a referência neste texto. Como defendo na obra Compra e Venda e Fornecimento de Conteúdos e Serviços Digitais – Anotação ao Decreto-Lei n.º 84/2021, de 18 de Outubro, Almedina, 2022, p. 16, «se já era discutível a utilização da palavra “garantia” face ao DL 67/2003, essa expressão é ainda mais enganosa com o novo regime. Na nossa perspetiva, não sendo os dois prazos idênticos, não se pode falar em garantia. Reforçando a ideia, parece-nos estar mais próximo de um eventual prazo de “garantia” o período de dispensa ou liberação do ónus da prova de anterioridade da desconformidade do que o período de responsabilidade do vendedor». Neste texto, por “garantia” deve entender-se o período de responsabilidade do vendedor acrescido do período dentro do qual se prevê a dispensa ou liberação do ónus da prova da anterioridade da desconformidade.

Campanhas publicitárias de Natal e o abuso da vulnerabilidade infantil

Doutrina

Com a aproximação das festas de fim de ano é também chegado o período das luzes alucinantes, das músicas cativantes, das cores chamativas e da exploração do lúdico infantil. Por consequência, é também chegado o momento das campanhas de Natal voltadas especificamente a estimular o consumo massivo de produtos e serviços, justamente no período em que muitas das famílias assistem em seus lares ao recebimento das tão esperadas bonificações financeiras de fim de ano.

Voltadas a atrair a atenção de todo e qualquer consumidor durante os meses de novembro e dezembro, as campanhas de promoção de vendas de Natal são difundidas de forma ainda mais assertiva e por vias cada vez mais expansivas para atingir um número maior de consumidores. Merece, entretanto, especial atenção a publicidade que, neste período, faz uso de um grande apelo psicológico voltando-se às crianças.

De repente, temos bonecas, carrinhos, computadores portáteis, roupas, sapatos, jogos e um infindável número de produtos a despontarem exponencialmente nas listas infantis para o “Papai Noel”, se revelando, curiosamente, logo a seguir a anúncios publicitários que apontam para a necessidade de compra.

Explorando o uso de ferramentas de captação da atenção por meio de estímulos auditivos e visuais, esta modalidade de publicidade explora o desenvolvimento psicológico e cognitivo das crianças, exigindo-lhes o processamento, para além de experiências sensoriais, das perceções relacionadas ao consumo. Não são apenas luzes a piscar e músicas a tocar para atrair crianças, mas também o acompanhamento do processo de formação da figura “criança-consumidora” que está envolvida neste trabalho publicitário.

De acordo com o trabalho desenvolvido por Mônica Almeida Alves, nomeadamente, Marketing infantil – um estudo sobre a influência da publicidade televisiva nas crianças, ainda em 2011, as crianças ultrapassam quatro fases no crescimento enquanto consumidoras, sendo a primeira relacionada à observação do espaço e conduta de compra normalmente realizada pelos pais. Já a fase a seguir, próxima aos 2 anos, envolve a capacidade de conexão entre publicidade por imagem e produtos expostos fisicamente no mercado. Na terceira fase, já próxima dos 4 anos, por sua vez, as crianças detêm, de forma mais clara, o conhecimento sobre a relação entre publicidade, produto e loja, passando a possuir uma lista de anseios que parte no desejo, mas só é levada a cabo com a aquisição do produto.

Por fim, já inseridas em uma quarta fase, as crianças passam a ser consumidoras, adquirindo diretamente elas próprias, ou já identificando claramente, por meio de pedidos direcionados aos pais, os produtos que poderiam vir a lhes satisfazer os anseios.

Acompanhando este processo de desenvolvimento, as agências publicitárias e empresas percebem o enorme potencial relacionado às crianças, sobretudo se visto sob uma perspetiva futura de que os “pequenos” de hoje, tornar-se-ão “grandes consumidores” dentro de alguns anos. Trata-se de uma fidelização a longo prazo voltada não somente a produtos infantis, mas à captação psicológica de potenciais consumidores.

Mais ainda, como fator agravante para este cenário, ressalta-se o fato de que para além dos meios televisivos, atualmente as crianças possuem como vício os programas emitidos também via streaming, na Internet e nas telas de seus computadores ou ainda de seus smartphones. Vale dizer, cada dia mais, as publicidades voltadas a jovens e crianças assentam-se na exploração do reconhecimento público e na definição da identidade almejada nesta fase da vida.

Ainda que a publicidade voltada aos jovens e crianças tenha elementos identificadores próprios, como o aludido uso de cores, sons e animações, não precisamos mais do que cinco minutos diante de um anúncio para perceber que algumas características comuns a toda a espécie de propaganda se repetem. Este é o caso especialmente notável do denominado “efeito priming”, que se trata de uma ação cerebral de reprocessamento de informações já contidas na memória sobre determinados produtos, marcas ou serviços e decorrente da constante repetição do estímulo publicitário em diferentes formatos e vias, provocando-nos emoções e sentimentos até mesmo nostálgicos.

Ferramentas psicológicas nesse sentido, obviamente, não reguladas em lei, são utilizadas de forma muito mais evidente nas propagandas de final de ano, justamente para estimular a fixação a longo prazo da marca ou produto. É como lembrar das músicas que nossas avós nos cantavam nas noites de Natal, mas desta vez com slogans de uma marca que nos pareçam engraçados ou ainda com o jingle de fim de ano em algum supermercado ou loja de mobiliários que, passados anos, nunca nos sairão da cabeça. E é este mesmo o propósito.

Ocorre, entretanto, que a nível legal, desde 2007, o Parlamento Europeu vem tratando de coordenar os Serviços de Comunicação Social e Audiovisual oferecidos pelos Estados-Membros, como se denota através da Directiva 2007/65/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de dezembro de 2007. Mais ainda o Código da Publicidade de Portugal, que vem a estabelecer diferentes tipos de regras relacionadas à publicidade, tem especial secção voltada às restrições ao conteúdo da publicidade com detido cuidado sobre o tema “menores”.

Através de seu Art.14º, o Código determina que a publicidade especialmente dirigida a menores deve ter sempre em conta a sua vulnerabilidade psicológica, abstendo-se de explorar suas fragilidades. Deverá ainda a propaganda abster-se de explorar a inexperiência e falta de maturidade típica do grupo destinatário. E, por fim, não poderá ainda explorar a confiança que as crianças e jovens venham a depositar em seus pais ou tutores, denotando, nomeadamente, que fica impedido o uso de ferramentas publicitárias que distorçam a confiança existente entre pais e filhos, na tentativa de persuasão em favor da aquisição de um produto ou serviço.

Indo ainda um pouco mais longe, vemos que o Art. 12°, e) do Regime das Práticas Comerciais Desleais, por sua vez, consagra como prática agressiva em qualquer circunstância “incluir em anúncio publicitário uma exortação directa às crianças no sentido de comprarem ou convencerem os pais ou outros adultos a comprar-lhes os bens ou serviços anunciados”.

Não sugerimos desligar a TV, retirar das crianças os aparelhos telefônicos, nem mesmo impedi-las de viver e associar tudo o que lhes será demonstrado e oferecido durante o processo de desenvolvimento, crescimento e sociabilização. Não! Mas para já, fica reforçada a necessidade de detida atenção na influência que a psicologia publicitária possa ter sobre os menores.

As principais questões das empresas acerca do novo Decreto-Lei n.º 84/2021, de 18 de outubro

Legislação

Há já algum tempo que aguardávamos a transposição das Diretivas (UE) 2019/770 e 2019/771, pelo que no passado dia 18 de outubro pudemos, finalmente, analisar o novo regime, constante do DL n.º 84/2021, que irá alterar profundamente alguns dos pontos principais do Direito do Consumo em Portugal, a partir de 1 de janeiro de 2022.

Não menos ansiosas do que nós, estavam as empresas que mais recentemente têm sentido a necessidade de adaptar os seus (designados) Termos e Condições de venda de forma a incluir todas as novidades que este diploma nos traz. Nesse sentido, muitas têm sido as dúvidas suscitadas e que pretendemos expor no presente artigo de forma a perceber quais têm sido, até agora, as maiores preocupações das empresas.

Uma das principais questões levantadas é fruto de alguma liberdade legislativa de cada Estado-Membro e que ficou espelhada no novo “prazo de responsabilidade do profissional”, que passou a ser de três anos, e o “prazo de presunção de existência de desconformidade do bem à data de entrega do mesmo” de dois anos, tal como disposto nos artigos 12.º e 13.º do DL n.º 84/2021.

A grande dúvida prende-se com este terceiro ano em que o profissional continua a ser responsável, no entanto, o ónus da prova de que a falta de conformidade do bem existia no momento da entrega do mesmo passa a ser do consumidor, tendo este último de fazer prova desse facto. Perante isto, as empresas questionam não só que tipo de provas poderão aceitar, como também que mensagem, documento ou notificação poderá existir que comprove que certa desconformidade existia originalmente, passados já mais de dois anos.

Outro ponto está precisamente ligado à introdução do conceito de “bem ou serviço digital”, que tem gerado dúvidas em termos de prazos de responsabilidade, nomeadamente em termos de separação de “componentes físicas” e “componentes digitais” dos bens. Uma grande preocupação prende-se com a complexificação dos textos das garantias dos produtos, tanto para a redação dos mesmos por parte dos profissionais, como para a compreensão destes pelos consumidores. Ademais, existe a preocupação de serem garantias completas e ao mesmo tempo tentar adequá-las aos vários produtos de cada empresa, que terão certamente características diferentes, devendo, idealmente, conter redações igualmente distintas e próprias adequadas a cada bem.

Ainda no mesmo sentido, surgiu a preocupação de perceber o enquadramento legal do sistema operativo e dos softwares dos bens. Sabemos que a Diretiva (UE) 2019/771 prevê que os conteúdos digitais incorporados ou interligados com os bens podem ser quaisquer dados produzidos ou fornecidos em formato digital, tais como sistemas operativos, aplicações e qualquer outro software.

Outras duas grandes questões prendem-se com o artigo 18.º, n.º 4, do DL n.º 84/2021, e a “garantia adicional de seis meses por cada reparação até ao limite de quatro reparações”. Primeiramente, as empresas têm sentido dificuldade na interpretação deste preceito, nomeadamente no que toca às regras de repartição do ónus da prova, previstas no artigo 13.º, que se aplicam a este período de seis meses, uma vez que não é claro que regra se adequa ao termo “garantia”.

Em segundo lugar, tem sido questionado o que se entende por “cada reparação”, uma vez que sendo um conceito muito casuístico, é difícil delinear o que separa, por exemplo, uma reparação de outra, para efeitos de acrescentar o prazo dos seis meses de garantia. Alguns pontos, como o período temporal relevante entre as reparações e se o facto de incidir sobre uma mesma peça ou peças diferentes de um bem tem alguma influência, têm sido suscitados, pelo que, em abstrato, pouco ou nada se consegue adiantar neste ponto.

Não menos questionado tem sido o artigo 15.º, n.º 6, referente aos direitos do consumidor. Dispõe-se que este último não poderá recorrer à resolução do contrato se o profissional provar que a falta de conformidade é “mínima”. Consequentemente, as empresas têm sentido a necessidade de estabelecer algum critério para aferir a gradação desta falta de conformidade. No entanto, fora os critérios de razoabilidade e comum diligência, pouco mais é possível concretizar, novamente, dado o caráter distinto de cada bem.

Finalmente, surge a novidade do serviço de pós-venda e disponibilização de peças na esfera do produtor, tendo este de disponibilizar as peças necessárias à reparação dos bens adquiridos pelo consumidor, durante o prazo de dez anos após a colocação em mercado da última unidade do respetivo bem, com a ressalva da incompatibilidade do bem com esse prazo. Esta obrigação tem gerado alguma preocupação, nomeadamente no mundo das empresas tecnológicas, uma vez que a maioria dos seus produtos não durará dez anos, sendo ainda vago em que termos poderão adequar este prazo ou se, ao invés, terão de investir em bens mais duradouros.

Em última análise, já dizia Charlie Chaplin que “mais do que máquinas precisamos de humanidade”, pelo que agora cabe-nos a adaptação destas novas normas à realidade, nas suas formas de bens mais diversas, de tal modo que possamos adequar e concretizar um equilíbrio entre a proteção dos consumidores e as exigências aos profissionais e produtores.

O Fenómeno da Wish e as Expectativas dos Consumidores

Doutrina

A Wish é uma plataforma digital gerida pela empresa ContextLogic Inc., sediada em São Francisco, nos Estados Unidos da América. Esta plataforma, responsável por reunir milhões de vendedores e conectá-los a milhões de consumidores é atualmente uma das maiores em termos de volume de negócios, posicionando-se ao lado da Aliexpress, Amazon, entre outras.

Apesar de na Wish se verificarem vários tipos de trocas comerciais, nesta publicação abordarei apenas a perspetiva das trocas entre profissionais e consumidores.

Ora, o que cativa sobretudo os consumidores são os preços especialmente reduzidos e um stock ilimitado de bens[1]. Estes preços só são possíveis pois a plataforma, à semelhança do que acontece com outras como o Aliexpress, permite aos vendedores registarem os seus produtos e vendê-los diretamente aos consumidores, eliminando-se custos desnecessários gastos com intermediários. Note-se que grande parte dos bens colocados à disposição dos consumidores são importados da China e de outros países fora da Europa.

O modelo negocial praticado na plataforma Wish dá prioridade aos bens de reduzido valor, fomentando um elevado volume de negócios, descuidando a qualidade e conformidade dos bens comercializados.

O consumidor não se pode deixar enganar pelos preços aparentemente baixos, uma vez que grande parte dos produtos apresentados são contrafeitos, alguns não correspondem às fotografias apresentadas no site, e outros não apresentam muita qualidade, sendo vários os comentários negativos que podemos encontrar na internet sobre esta realidade.

Não obstante, a Wish afirma ter uma política bastante exigente e criteriosa no que se refere à comercialização, por intermédio do seu serviço, de bens contrafeitos, produtos inapropriados, perigosos ou de baixa qualidade. Resta saber como é feito este controlo, qual deve ser o seu grau de responsabilidade se, por exemplo, um consumidor adquirir um item perigoso e isso causar danos à sua integridade física. A única solução apresentada pela Wish passa pela denúncia, por parte dos utilizadores do seu serviço, de quaisquer anúncios que promovam a venda deste tipo de produtos, para um email que indicam no website.

Face ao exposto, duas propostas legislativas apresentadas pela Comissão Europeia: o Digital Services Act e o Digital Markets Act. Estas propostas vêm tentar resolver questões como as da transparência, da cooperação das plataformas com as autoridades nacionais, do  dever de as plataformas transmitirem informações aos utilizadores, de limitar certos anúncios, ou da proibição de práticas que prejudiquem a concorrência. O não cumprimento destas obrigações pode levar à aplicação de sanções pecuniárias. Cumpre também referir que, na plataforma Wish, é impossível verificar se as reduções de preço apresentadas em vários anúncios são genuínas, na medida em que não conseguimos apurar por quanto tempo é que os produtos estiveram à venda por um preço mais elevado, ou se, de facto, estiveram a um preço mais elevado antes da alegada redução.

Por fim, em todos os anúncios dos produtos colocados à venda através do serviço da Wish é permitido aos consumidores deixar o seu feedback e avaliação sobre o produto comprado. A Wish assegura que as opiniões alojadas na sua plataforma são fidedignas, mas não esclarece como é feito este controlo, sendo certo que existe um mercado de feedbacks positivos falsos, que influencia, em larga escala, o comportamento dos consumidores, a ponto de adotarem uma decisão de transação nesse mesmo pressuposto.

Por todo o exposto, é importante que o consumidor, ao utilizar esta plataforma e outras semelhantes, não se deixe deslumbrar por propostas demasiado boas para corresponderem à realidade. É necessário selecionar, de forma consciente, os bens que se pretendem adquirir, sabendo que haverá sempre um risco elevado de o item não corresponder ao que é publicitado na fotografia que acompanha o anúncio, ou até que o item poderá nunca chegar ao seu destino.

Retomaremos este assunto com o propósito de verificar que direitos assistem aos consumidores nestes casos, quais os deveres e obrigações das plataformas como a Wish e dos profissionais que comercializam produtos através destas plataformas.


[1] Nesta plataforma são comercializados smartphones, roupas, gadgets, brinquedos, calçado, entre muitos outros.

O Robô de Cozinha da Lena

Consumo em Ação

Por André Neves, Beatriz Pereira e Luís Cruz

Hipótese: Lena foi a uma demonstração de Bimbitas a casa de uma amiga e acabou por comprar um robô de cozinha. Apenas o fez porque a representante da marca também lhe ofereceu a possibilidade celebrar um contrato de crédito com outra empresa. Lena nem precisava de se preocupar, pois a empresa de crédito pagaria diretamente à Bimbitas, Lda. o valor do robô de cozinha, ficando Lena apenas com a obrigação de pagar as prestações mensais relativas ao crédito. Quando a Bimbita chegou, Lena percebeu que esta não funcionava. Já passou algum tempo e a questão não está resolvida. Lena tem de continuar a pagar as prestações?

Resolução: Lena celebrou dois contratos: um contrato de compra e venda de uma Bimbita com a Bimbitas, Lda., e um contrato de crédito ao consumo com outra empresa. Primeiramente, há que analisar que direitos pode a Lena exercer em relação à Bimbita que comprou à Bimbitas, Lda.. De seguida, importa averiguar se estamos perante um contrato de crédito coligado. Dados estes passos, conseguiremos dar resposta à questão.

Quanto aos direitos que Lena poderá eventualmente exercer em relação à Bimbita, importa analisar o DL 67/2003. Parecem estar preenchidos os quatro elementos do conceito de consumidor (art. 1.º-B-a)): elemento subjetivo, elemento objetivo, elemento teleológico e elemento relacional. Assim sendo, estando perante um contrato de compra e venda (art. 1.º-A-1), podemos concluir que o diploma é aplicável à relação contratual em análise.

Refere o art. 2º-1 que “[o] vendedor tem o dever de entregar ao consumidor bens que sejam conformes com o contrato de compra e venda”, e as alíneas do art. 2.º-2 são no fundo “critérios [formulados pela negativa] que têm como objetivo definir os elementos que integram o contrato, […] para depois, no momento do cumprimento, [se] aferir se o objeto prestado corresponde ao objeto contratado”[1] [2]. Assim sendo, não obstante a sua letra, o art. 2.º-2 não deve ser interpretado no sentido de consagrar uma presunção[3]; em termos figurados, diríamos que a norma se dirige ao consumidor, “dizendo-lhe” que se ele conseguir provar um dos factos previstos nas alíneas, em princípio haverá falta de conformidade[4]. Sendo que a Bimbita pura e simplesmente não funciona, parece-nos que Lena conseguiria desde logo provar, quer o facto descrito na alínea d), quer o facto descrito na alínea c)[5], pelo que, não estando obviamente em causa o art. 2.º-3, há falta de conformidade.

Dispõe o art. 3.º-1 que o vendedor responde perante o consumidor por qualquer falta de conformidade que exista no momento em que o bem lhe é entregue, e o n.º 2 do mesmo artigo explicita, para o que nos importa, que as faltas de conformidade que se manifestem num prazo de dois anos a contar da data de entrega de coisa móvel corpórea presumem-se existentes já nessa data. Ora, estando perante uma dispensa ou liberação do ónus da prova[6], cabe ao profissional fazer prova de que a falta de desconformidade não existia no momento da entrega do bem. Assim sendo, a Bimbitas, Lda. teria de provar um facto posterior concreto, que não lhe seja imputável, gerador da falta de conformidade[7], e tanto quanto sabemos esse facto não existiu.

Tendo a Bimbitas, Lda. de responder pela falta de conformidade, Lena tem os quatro direitos previstos no art. 4.º-1, sendo livre de exercer o que entender, uma vez que não é estabelecida qualquer hierarquia entre eles[8], tendo apenas como limite a impossibilidade e o abuso de direito (art. 4.º-5). Uma vez que a Bimbita não funciona, parece-nos que faria sentido que Lena pedisse a reparação, a restituição ou a resolução do contrato, embora pudesse também pedir uma redução adequada do preço, caso fosse essa a sua vontade. Entendemos que nenhuma das opções constituiria abuso de direito (e com toda a probabilidade não se levantariam problemas de impossibilidade) e, portanto, Lena tem dois anos a contar da data da entrega do bem para exercer um dos direitos referidos (art. 5.º-1).

É referido no enunciado que já passou algum tempo desde que a Bimbita chegou e a questão não está resolvida. Ora, se a questão não estiver resolvida porque Lena não chegou a interpelar a Bimbitas, Lda., caso já tenha passado mais de dois meses da data em que detetou a desconformidade, ela não poderá exercer os direitos que lhe são atribuídos nos termos do art.4.º (art. 5.º-A-2). Não temos informações relativas ao facto de Lena ter ou não interpelado a Bimbitas, Lda. dentro do prazo referido; contudo, para efeitos de prossecução na resolução da hipótese, vamos assumir que interpelou e, não obstante, não teve o seu problema resolvido.

Posto isto, importa agora partir para a análise da questão principal à luz do DL 133/2009, que, à partida, é aplicável ao contrato de crédito ao consumo celebrado entre Lena e a empresa de crédito (art. 1.º-2 e art. 4.º-1 a), b) e c) do referido diploma)[9].

Para concluirmos se Lena tem ou não de continuar a pagar as prestações mensais relativas ao crédito, temos de perceber se existe uma conexão bastante entre o contrato de compra e venda e o contrato de crédito ao consumo. O DL em análise tem uma figura interessantíssima, que é a figura do contrato de crédito coligado, cuja definição se pode encontrar no seu art. 4.º-1-o). Ora, o pressuposto da i) está verificado, na medida em que o crédito concedido serve exclusivamente para financiar o pagamento do preço do fornecimento da Bimbita. Quanto ao da ii), está igualmente verificado: ambos os contratos constituem objetivamente uma unidade económica, desde logo porque a empresa de crédito recorreu à Bimbitas, Lda. para a celebração do contrato de crédito[10]. Estando os dois pressupostos preenchidos, podemos concluir no sentido de que temos um contrato de crédito coligado.

Havendo um contrato de crédito coligado, podemos partir para a análise do art. 18.º, que refere, no seu n.º 2, que “a invalidade ou revogação do contrato de compra e venda repercute-se, na mesma medida, no contrato de crédito coligado”. Ora, não obstante a norma não aludir à ineficácia, seguimos Fernando de Gravato Morais[11] e Jorge Morais Carvalho, ensinando-nos o último que “tendo em conta a razão de ser do preceito, e não existindo diferenças substanciais entre as duas situações, […] [deve entender-se que] noutros casos de ineficácia, diversos da revogação (leia-se exercício do direito de arrependimento), a norma também tem aplicação”[12]. Assim sendo, importa agora analisar o DL 24/2014, que ao que tudo indica é aplicável à relação contratual entre Lena e a Bimbitas, Lda., na medida em que tudo nos leva a crer que estamos perante um contrato entre um consumidor e um profissional celebrado fora do estabelecimento comercial (art. 2.º-1, art. 3.º-g)-iv), art. 3.º-c) e art. 3.º-i)). Nos termos do art. 10.º-1-b) deste diploma, regra geral, o consumidor tem direito de arrependimento no prazo de 14 dias a contar do dia em que adquire a posse física do bem. Ora, o enunciado parece dar-nos a entender que este prazo já passou (“Já passou algum tempo”); contudo, caso não tenha passado, Lena pode exercer este direito nos termos do art. 11.º e, portanto, ver automaticamente repercutir-se a ineficácia do contrato de compra e venda no contrato de crédito ao consumo (art. 18.º-2 do DL 133/2009), tendo “o dever de informar o financiador da ineficácia do contrato de crédito para que este possa tomar as medidas que entenda adequadas no âmbito da sua relação com o vendedor ou prestador do serviço”[13]. Nesta situação, Lena não teria de continuar a pagar as prestações mensais relativas ao crédito[14], tal como não teria de continuar a pagá-las se, partindo do pressuposto de que estaríamos dentro do prazo previsto pelo art. 17.º do DL 133/2009, exercesse o direito de arrependimento relativamente ao contrato de crédito[15].

Resta-nos analisar o art. 18.º-3, o qual refere que, no caso de desconformidade no cumprimento de contrato de compra e venda coligado com contrato de crédito, o consumidor que, após interpelação do vendedor[16], não tenha obtido deste a satisfação do seu direito ao exato cumprimento do contrato, pode interpelar o financiador para exercer uma de três pretensões previstas nas alíneas do art. 18.º-3. Assumindo que Lena já interpelou a Bimbitas, Lda. para que esta procedesse ao cumprimento pontual do contrato, e esta não prestou o bem “em conformidade com o contrato dentro de um prazo razoável, […] pode aquela recorrer ao financiador com o objetivo de salvaguardar a sua contraprestação”[17]. Se a Lena tivesse exercido o direito de reparação ou de substituição perante a Bimbitas, Lda., poderia exercer a exceção de não cumprimento do contrato perante o financiador (art. 18º-3-a)). Por outro lado, se eventualmente tivesse exigido a redução do preço perante a Bimbitas, Lda., o que no caso não faria muito sentido, poderia interpelar o financiador no sentido de exigir a redução do montante do crédito em montante igual ao da redução do preço (art. 18º-3-b)). E, por fim, caso tivesse exercido o direito de resolução perante a Bimbitas, Lda., poderia exigir a resolução do contrato de crédito perante o financiador (art. 18º-3-c)). Existe um paralelismo entre as soluções relativamente ao contrato de crédito e as soluções relativamente ao contrato de compra e venda, isto é, Lena pode fazer repercutir no contrato de crédito a solução que resulta do direito que tiver exercido relativamente ao contrato de compra e venda (qualquer um dos previstos no art. 4.º-1 do DL 67/2003). Sem prejuízo do que aqui foi exposto, partindo do pressuposto de que Lena quer, de facto, a Bimbita e, por isso, exerceu o seu direito de reparação ou de substituição perante a Bimbitas, Lda. (art. 4.º-1 DL 67/2003), o qual não foi satisfeito, pode interpelar o financiador e exercer a exceção do não cumprimento do contrato (art. 18.º-3-a) do DL 133/2009), não pagando, assim, as prestações mensais relativas ao crédito enquanto o bem não for reparado ou substituído pela Bimbitas, Lda..


[1] JORGE MORAIS CARVALHO, Manual do Direito do Consumo, Almedina, 2020, p.285.

[2] Ac. do STJ de 19 de novembro de 2015, Processo n.º 139/12.0TVLSB.L1.S1 (Oliveira Vasconcelos).

[3] JORGE MORAIS CARVALHO e MICAEL MARTINS TEIXEIRA, Duas Presunções Que Não São Presunções: A Desconformidade na Venda de Bens de Consumo em Portugal, in “Revista de Direito do Consumidor”, Vol. 27, n.º 115, 2018, pp. 311-330.

[4] JOÃO CALVÃO DA SILVA, Venda de Bens de Consumo, Almedina, 2003, p. 61.

[5] Bastaria provar um deles, mas de facto o não funcionamento geral da Bimbita cabe perfeitamente tanto na alínea c) quanto na alínea d).

[6] JORGE MORAIS CARVALHO, Manual do Direito do Consumo, cit., p. 319.

[7] Ibidem, p. 320.

[8] Ibidem, p. 323.

[9] Não temos elementos que nos levem a concluir em sentido contrário.

[10] JORGE MORAIS CARVALHO, Manual do Direito do Consumo, cit., p. 463.

[11] FERNANDO GRAVATO DE MORAIS, Crédito aos consumidores, Almedina, 2009, p. 88.

[12] JORGE MORAIS CARVALHO, Manual do Direito do Consumo, cit., p. 464.

[13] Ibidem, p. 465

[14] E teria obviamente direito a que lhe fosse devolvido o montante que já tivesse pago, tanto no caso em que exerce o direito de arrependimento relativamente ao contrato de compra e venda perante a Bimbitas, Lda.., quanto no caso em que exerce o direito de arrependimento relativamente ao contrato de crédito perante a empresa de crédito.

[15] Nos termos do art. 18º-1, a ineficácia do contrato de crédito resultante do exercício do direito de arrependimento repercutir-se-ia também no contrato de compra e venda. Vd. FERNANDO GRAVATO DE MORAIS, Crédito aos consumidores, cit., p. 87

[16] Para que o consumidor possa interpelar o financiador, antes tem de se ter dirigido ao vendedor. Vd. FERNANDO DE GRAVATO MORAIS, Crédito aos consumidores, cit., pp. 89-89.

[17] JORGE MORAIS CARVALHO, Manual do Direito do Consumo, cit., p. 467.