“Garantia” das peças inseridas num bem no âmbito da sua reparação

Doutrina

A questão a que se pretende dar resposta neste pequeno texto consiste em saber se as peças inseridas no bem no âmbito de uma reparação beneficiam de uma “garantia legal”[1] autónoma e/ou nova em relação à do próprio bem. Para esta análise é fundamental refletir sobre o problema mais geral do destino da “garantia” em caso de substituição e de reparação.

A reparação a que este texto diz respeito é a reparação feita na sequência da falta de conformidade do bem, ao abrigo do artigo 15.º-1-a) do DL 84/2021. Se se tratar de uma reparação feita fora do período de responsabilidade do vendedor, às peças inseridas no bem é aplicável o DL 84/2021, nos termos do artigo 3.º-1-b), uma vez que estaremos perante um contrato misto com elementos de prestação de serviço e de compra e venda, tendo o consumidor os direitos previstos no diploma.

A matéria foi objeto de discussão em outubro de 2004, na sequência de pedido feito à UMAC (hoje NOVA Consumer Lab) pela Direção-Geral do Consumidor. Joana Galvão Teles, Pedro Félix, Sofia Cruz e eu preparámos, então, um parecer sobre “Venda de Bens de Consumo: Garantia das Peças Inseridas Num Bem no Âmbito da Sua Reparação”, posteriormente publicado na obra Conflitos de Consumo, Almedina, Coimbra, 2006, pp. 225-244 (disponível aqui).

Apesar de o Comité Económico e Social e o Parlamento Europeu, nos seus pareceres, terem sugerido que se regulasse a matéria (defendendo-se o recomeço do prazo de “garantia” após a reparação), a Diretiva 1999/44/CE deixou a questão em aberto. O DL 67/2003, na versão originária, não resolveu a questão. Face a essa omissão, defendemos no referido parecer que “as peças novas colocadas no bem no âmbito da sua reparação, dentro do período da garantia legal, não eram abrangidas por um novo período de garantia legal”. Na nossa perspetiva, a lei deveria tratar da mesma forma os casos em que o consumidor exerce o direito à reposição da conformidade, quer este seja exercido através de reparação ou de substituição.

Em 2008, o DL 67/2003 foi alterado pelo DL 84/2008, passando a prever-se, no artigo 5.º-6, que, “havendo substituição do bem, o bem sucedâneo goza de um prazo de garantia de dois ou de cinco anos a contar da data da sua entrega, conforme se trate, respetivamente, de bem móvel ou imóvel”.

Ao contrário do que tínhamos defendido no Parecer, distinguiu-se expressamente entre a reparação e a substituição, tornando a substituição muito mais apetecível para o consumidor. Assim, face ao regime anterior, em caso de reparação, o período de “garantia” inicial continuava a correr, sem qualquer alargamento. Em caso de substituição, reiniciava-se esse período de “garantia”.

A lei não definiu, contudo, se às peças inseridas no âmbito de uma reparação era ou não aplicável o artigo 5.º-6. Na nossa perspetiva, embora com dúvidas, a resposta deveria ser negativa. Tratando-se de reparação (e não de substituição), não se estabelecia um novo período de “garantia”.

A Diretiva 2019/771 também não regula a matéria, sendo este um tema em relação ao qual os Estados-Membros mantêm alguma liberdade (v. considerando 44).

Ao transpor a Diretiva 2019/771, Portugal veio finalmente esclarecer a dúvida de forma expressa, utilizando a possibilidade conferida pelo referido considerando 44 na sua plenitude. Com efeito, no artigo 18.º do DL 84/2021 prevê-se o que acontece ao período de “garantia”, quer no caso de reparação, quer no caso de substituição.

Se se tratar de substituição, aplica-se o artigo 18.º-6, reiniciando-se o prazo, tal como estava previsto no regime anterior. Não há, aqui, novidades.

A novidade é a norma relativa à reparação (artigo 18.º-4), a qual abrange, naturalmente, os casos em que uma peça é inserida no bem no âmbito dessa reparação. Nesse caso, o bem reparado beneficia de um prazo de “garantia” adicional de seis meses. Assim, em caso de reparação, não se reinicia a contagem do período de “garantia”, mas este é alargado em seis meses.

Pela primeira vez no ordenamento jurídico português, resulta claro que a peça inserida no âmbito dessa reparação não tem uma “garantia” autónoma, uma vez que a conformidade não foi reposta por via de substituição, a qual implica a devolução do bem desconforme e a entrega de um novo bem conforme.

Por exemplo, imaginemos um contrato de compra e venda de um automóvel. Em caso de desconformidade, o consumidor pode exercer o direito à reposição da conformidade através de reparação. Se, no âmbito dessa reparação, for necessário substituir o motor, o novo motor não beneficia de uma “garantia” autónoma e nova, mas todo o automóvel beneficiará de um alargamento do período de garantia em seis meses. A resposta será a mesma se, por exemplo, a reparação tiver como objeto a pintura para remoção de um risco ou a substituição dos estofos.

Embora continue a discordar de uma solução que passe pela existência de regras distintas em caso de reparação ou substituição quanto ao reinício do período de “garantia”, o DL 84/2021 tem o mérito de resolver em definitivo a questão das peças inseridas no bem no âmbito de uma reparação. A solução em que a substituição é mais favorável para o consumidor do que a reparação é particularmente criticável em termos de sustentabilidade do planeta.

A solução constante do artigo 18.º-4 tem algumas parecenças com a que se encontra prevista no direito francês. Com efeito, o primeiro parágrafo do artigo L. 217-13 do Code de la consommation, na redação dada pela Ordonnance n.° 2021-1247, estabelece que “o bem reparado no quadro da garantia legal de conformidade beneficia de uma extensão dessa garantia em seis meses” (tradução minha). Note-se que, neste caso, ao contrário da lei portuguesa, não se prevê qualquer limite ao número de extensões do período da “garantia” (em Portugal, o limite corresponde a quatro extensões). Contrastando com o que sucede em Portugal, em França, o período de “garantia” não se reinicia em caso de substituição do bem. Tal apenas sucede, nos termos do segundo parágrafo do artigo L. 217-13 do Code de la consommation, na redação de 2021, nos casos em que o consumidor tenha escolhido a reparação, mas o profissional não tenha reparado o bem, tendo sido posteriormente reposta a conformidade por via de substituição. É a única situação em que a substituição do bem implica o reinício do período de “garantia”. Trata-se de um incentivo à reparação, mensagem oposta àquela que é dada pela lei portuguesa.


[1] O conceito de “garantia” não deveria ser utilizado neste contexto, uma vez que pode ser enganoso na perspetiva do consumidor. A sua constante utilização na linguagem comum justifica a referência neste texto. Como defendo na obra Compra e Venda e Fornecimento de Conteúdos e Serviços Digitais – Anotação ao Decreto-Lei n.º 84/2021, de 18 de Outubro, Almedina, 2022, p. 16, «se já era discutível a utilização da palavra “garantia” face ao DL 67/2003, essa expressão é ainda mais enganosa com o novo regime. Na nossa perspetiva, não sendo os dois prazos idênticos, não se pode falar em garantia. Reforçando a ideia, parece-nos estar mais próximo de um eventual prazo de “garantia” o período de dispensa ou liberação do ónus da prova de anterioridade da desconformidade do que o período de responsabilidade do vendedor». Neste texto, por “garantia” deve entender-se o período de responsabilidade do vendedor acrescido do período dentro do qual se prevê a dispensa ou liberação do ónus da prova da anterioridade da desconformidade.

Orçamento do Estado e linhas telefónicas de apoio ao consumidor – O princípio do fim dos “707”?

Legislação

O Orçamento do Estado para 2021, aprovado pela Lei n.º 75-B/2020, de 31 de dezembro, tem várias normas que visam regular as relações de consumo.

Analisa-se hoje o artigo 189.º, que impõe ao Governo a aprovação, até ao final de janeiro, de legislação no sentido de “estabelecer que as chamadas efetuadas pelo consumidor para uma linha de apoio ao cliente de fornecedores de bens e prestadores de serviços não podem exceder o custo de uma chamada normal para uma linha telefónica geográfica ou móvel, exceto nos casos em que a própria chamada represente o serviço prestado ao consumidor, designadamente nos concursos que utilizam chamadas de valor acrescentado”, “impor aos operadores económicos o dever de divulgar o número ou números disponibilizados para contacto com os clientes e de obedecer a determinados critérios na sua divulgação” e “criar um regime contraordenacional para a violação das obrigações referidas nas alíneas anteriores”.

Ora, já existe legislação que proíbe que os números das linhas de apoio ao cliente excedam o custo de uma chamada normal para uma linha telefónica geográfica ou móvel.

Com efeito, o art. 9.º-D da Lei de Defesa do Consumidor (LDC) estabelece que “a disponibilização de linha telefónica para contacto no âmbito de uma relação jurídica de consumo não implica o pagamento pelo consumidor de quaisquer custos adicionais pela utilização desse meio, além da tarifa base, sem prejuízo do direito de os operadores de telecomunicações faturarem aquelas chamadas”. Este preceito transpõe o art. 22.º da Diretiva 2011/83/EU, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de outubro de 2011, relativa aos direitos dos consumidores.

Chamado a pronunciar-se sobre o conceito de “tarifa base”, o Tribunal de Justiça da União Europeia – TJUE (Acórdão de 2 de março de 2017, Processo C-568/15, Acórdão Zentrale zur Bekämpfung unlauteren Wettbewerbs Frankfurt am Main) veio declarar que este “deve ser interpretado no sentido de que o custo de uma chamada relativa a um contrato celebrado e para uma linha telefónica de apoio ao cliente explorada por um profissional não pode exceder o custo de uma chamada normal para uma linha telefónica fixa geográfica ou móvel”.

É, assim, inadmissível que o número de telefone disponibilizado pelo profissional implique custos acrescidos em relação a uma chamada normal para um telefone fixo ou móvel. Não pode, por exemplo, ser disponibilizado um número iniciado por 707, devendo apenas ser admitidos os números começados por 2 ou 9 ou, naturalmente, os números gratuitos.

Esta norma aplica-se a todos os contratos de consumo, mas tem particular relevância nos contratos duradouros, nomeadamente os relativos a serviços públicos essenciais, em que a relação existente entre as partes pressupõe o estabelecimento de contactos por iniciativa do consumidor. Exemplificando, num contrato relativo a comunicações eletrónicas, a utilização da linha telefónica de apoio ao cliente do prestador de serviços não pode implicar custos para o consumidor que excedam os de uma chamada normal para um número de telefone fixo ou móvel.

Mesmo que não existisse esta regra na LDC, a disponibilização de um “707” como único meio de contacto sempre constituiria uma forma de desincentivar o consumidor a contactar o serviço de assistência, que não poderia ser tolerada pelo direito, por violação do princípio da boa-fé.

O art. 9.º-D vem, no entanto, esclarecer que, mesmo que existam outros meios de contacto, a disponibilização de uma linha telefónica não pode implicar custos acrescidos para o consumidor.

No Acórdão de 13 de setembro de 2018, Processo C-332/17, Acórdão Starman, o TJUE vem reforçar esta ideia, ao concluir que é ilícita a prática em que o profissional utiliza dois números, um sem custos acrescidos e outro com custos acrescidos, mesmo que informe os consumidores de forma adequada da existência dos dois números. O profissional apenas pode, portanto, disponibilizar números sem custos acrescidos para o consumidor.

A regra já se encontra, portanto, prevista no ordenamento jurídico português. Esperemos que seja agora garantido o seu cumprimento efetivo, até porque se prevê passar a impor aos profissionais “o dever de divulgar o número ou números disponibilizados para contacto com os clientes e de obedecer a determinados critérios na sua divulgação”.

Saúda-se, ainda, a intenção de criar um regime contraordenacional para a sua violação. Este regime deveria, aliás, ser alargado a todas as normas que, na LDC, transpõem preceitos da referida Diretiva 2011/83/EU: arts. 8.º, 9.º-A, 9.º-B e 9.º-C, além do já indicado art. 9.º-D.