Jogar Sai Caro: A Manipulação Silenciosa dos Preços nos Videojogos

Doutrina

Por Leonor Gomes Martins e Tiago Ribeiro Longa

Numa era fortemente marcada pela digitalização, é compreensível que o elevado consumo de videojogos seja uma tendência crescente. A nível europeu, mais de metade dos consumidores jogam videojogos regularmente, sendo que as crianças jogam ainda mais, com 84% dos jovens entre os 11 e 14 a fazê-lo.

No passado dia 12 de setembro de 2024, o BEUC e outras 22 organizações membros de 17 países apresentaram uma queixa às autoridades europeias (Comissão Europeia e a CPC-Network – Consumer Protection Cooperation Network) sobre as práticas comerciais desleais das principais empresas de jogos online, como a Electronic Arts, a Epic Games e a Mojang Studios, responsáveis por jogos como EA Sports FC, Minecraft e Fortnite. A base da queixa assenta no facto de os consumidores não terem uma perceção clara do custo real dos itens digitais, o que acaba por levar a gastos excessivos. Desta forma, a ausência de transparência nos preços das moedas premium nos jogos (itens digitais, como jóias, pontos ou moedas, que podem ser comprados com dinheiro real, geralmente nos próprios jogos) e as “promoções” de moedas adicionais em pacotes incentivam os consumidores a gastar mais do que pretendem.

Ao visitar uma loja dentro do jogo para verificar as compras disponíveis, os consumidores costumam encontrar os preços apenas nas moedas utilizadas no próprio jogo, sem qualquer indicação do custo em dinheiro real, isto é, a informação sobre os preços efetivos não está acessível, exceto quando se adquirem moedas virtuais premium, o que constitui violação das leis de proteção do consumidor da União Europeia.

Esta prática cria um distanciamento entre o verdadeiro gasto de dinheiro real da ação de obter o item do jogo, o que torna desnecessariamente difícil para o jogador consumidor saber o custo monetário exato do que está a comprar (a título exemplificativo, podemos afirmar que um preço de 1.000 X – moeda fictícia – é significativamente menos concreto do que 10€).

Consequentemente, com este afastamento, as empresas de jogos conseguem reduzir a chamada “dor de pagar” (refere-se aos sentimentos negativos que as pessoas sentem ao gastar dinheiro) para os consumidores, diminuindo o seu limite, e aumentando a sua disposição para gastar. Este fenómeno é documentado por estudos recentes, que revelaram que o uso de moedas premium aumentou os gastos dos consumidores nos jogos, e que 92,3% dos jogadores que fizeram compras num jogo por meio de moedas virtuais e moedas reais declararam que era mais doloroso pagar em moeda real do que em moeda virtual.

Embora muitos consumidores escolham não usar dinheiro real nestes jogos, a introdução de moedas premium pode ser usada para explorar pessoas em situações vulneráveis, como aquelas com dependência de jogo, dificuldades em controlar impulsos, ou crianças. Os jogos “free to play” atraem especialmente estas últimas, já que não exigem uma compra inicial por parte dos pais. Esta barreira de entrada baixa deixa as crianças mais expostas a práticas manipuladoras incorporadas em diversos jogos.

Apesar da ausência de uma legislação específica na União Europeia para jogos e aplicações, o quadro legal atual garante uma proteção abrangente aos consumidores, incluindo a indústria dos videojogos.

Assim, no âmbito do direito substantivo, a Diretiva sobre os Direitos dos Consumidores, no artigo 6.º-1-a), transposto para o nosso ordenamento jurídico pelo Decreto-Lei n.º 24/2014) e a Diretiva relativa às Práticas Comerciais Desleais, no artigo 7.º-4 (transposto pelo Decreto-Lei n.º 57/2008), que são totalmente aplicáveis aos setores em causa, estabelecem que os consumidores devem ser devidamente informados acerca de elementos essenciais e pertinentes antes de celebrarem um contrato. Entre os dados que devem ser comunicados, destaca-se o preço efetivo do produto ou serviço que se pretende adquirir, informação que não está presente em muitas destas lojas virtuais. Por outras palavras, as compras dentro dos jogos deveriam ser sempre apresentadas em dinheiro real (por exemplo: euros), ou, pelo menos, indicar claramente a equivalência em moeda real. Se por alguma razão o preço não puder ser calculado razoavelmente com antecedência, deve estar indicado como é que este o será, caso contrário configura uma omissão enganosa à luz do regime das práticas comerciais desleais. O quadro jurídico europeu já prevê a proteção dos direitos dos consumidores, mas é essencial que as autoridades e reguladores adaptem essas normas às novas realidades digitais, promovendo um ambiente de jogo mais justo e transparente, uma vez que esta é uma prática recorrente e antiga. Só assim será possível proteger os jogadores, especialmente as crianças, e garantir que a indústria dos videojogos evolui de forma responsável e ética, sem colocar em risco o bem-estar financeiro dos seus consumidores.

O vinho mais barato da carta

Doutrina

Em muitos restaurantes, ocorre um fenómeno estranho que consiste na rutura de stock da garrafa de vinho mais barata da carta. O cliente, ao pedir essa garrafa de vinho, é informado de que esta não se encontra disponível, tendo de escolher outra. Por vezes, essa informação é acompanhada de uma sugestão de outra garrafa de vinho, normalmente sem indicação do respetivo preço[1]. Veremos neste texto se estas práticas são lícitas, à luz dos princípios da transparência e da lealdade.

A apresentação de uma lista ou carta com a indicação da comida e das bebidas constitui uma proposta contratual apresentada pela entidade gestora do restaurante (que designaremos simplesmente por restaurante) ao cliente. O restaurante fica numa situação de sujeição e o cliente tem o direito potestativo de fazer um pedido consistente com a informação constante da carta, pedindo o que aí estiver indicado. Se o cliente pedir uma garrafa de vinho constante da carta, celebra-se então um contrato relativo a essa garrafa. Este contrato é um contrato misto, pois inclui, além da própria garrafa (objeto principal do contrato, que aponta no sentido de se tratar de um contrato essencialmente de compra e venda), o serviço associado à sua abertura e, por vezes, à colocação nos copos, o aluguer dos copos e tudo o que está subjacente à utilização do espaço (utilização das cadeiras e da mesa, música, etc.). Celebrado o contrato, o restaurante tem de fornecer a garrafa de vinho. Se se recusar a fazê-lo, haverá incumprimento da obrigação por parte do restaurante.

O restaurante pode incluir na carta a indicação de que o vinho não se encontra disponível. Pode haver um risco ou uma cruz ao lado ou por cima da garrafa de vinho em causa. Neste caso, a proposta não inclui essa garrafa de vinho, não se desencadeando os efeitos referidos no parágrafo anterior. Se não for incluída essa informação, poderá ainda considerar-se a possibilidade de uma rutura de stock. No entanto, para que o argumento da rutura de stock seja eficaz, legitimando a conduta do restaurante, é necessário que tal tenha sucedido imediatamente antes do pedido, não tendo dado tempo para, antes da disponibilização da lista, ser incluída a informação referida no início deste parágrafo.

Antes da celebração do contrato, o restaurante deve informar o consumidor sobre os bens e serviços fornecidos e o respetivo preço, nos termos do art. 8.º da Lei de Defesa do Consumidor. Essa informação pode constar da carta, mas a norma não será cumprida se, apresentada a carta, não houver indicação clara relativamente a objetos indisponíveis. Acresce que, qualquer sugestão feita oralmente pelo representante do restaurante, deve igualmente, nos termos da mesma norma, ser acompanhada da informação relativa ao preço. A omissão do preço, ainda que este conste da lista, constitui uma violação do art. 8.º da Lei de Defesa do Consumidor.

Esta prática coloca ainda em causa o princípio da lealdade. Isto porque pode ser suscetível de levar o cliente a adquirir uma garrafa de vinho mais cara do que aquela que pretendia inicialmente.

Aplica-se, então, o regime das práticas comerciais desleais (DL 57/2008).

Podemos estar perante uma omissão enganosa (arts. 9.º e 10.º), por faltar, pelo menos, uma informação essencial para a decisão de contratar do consumidor: a indicação da inexistência do bem. Como indicado anteriormente, poderá faltar igualmente outro elemento essencial: o preço da garrafa de vinho sugerida pelo restaurante.

A prática pode igualmente consubstanciar uma ação enganosa. Com efeito, nos termos do art. 8.º-e), é proibida a prática que consiste em “propor a aquisição de bens ou serviços a um determinado preço sem revelar a existência de quaisquer motivos razoáveis que o profissional possa ter para acreditar que não pode, ele próprio, fornecer ou indicar outro profissional que forneça os bens ou serviços em questão ou equivalentes, àquele preço (…)”. A alínea f) proíbe ao profissional “propor a aquisição de bens ou serviços a um determinado preço e, com a intenção de promover um bem ou serviço diferente, recusar posteriormente apresentar aos consumidores o bem ou o serviço publicitado”.

Para a aplicação destas alíneas, é necessário que a prática seja intencional, ou seja, que haja uma estratégia no sentido de levar o consumidor a, no caso, adquirir uma garrafa de vinho mais cara. A circunstância de a garrafa mais barata não estar muitas vezes disponível aponta nesse sentido, mesmo quando o menu indica que a garrafa está temporariamente indisponível, se de facto estiver excecionalmente disponível[2].

Havendo uma prática comercial desleal, o restaurante está sujeito à aplicação de sanções contraordenacionais (art. 21.º). O consumidor pode pedir o livro de reclamações para dar a conhecer a prática à ASAE.

O consumidor tem ainda direito à redução adequada do preço ou à resolução do contrato ou a exigir uma indemnização do restaurante. A resolução do contrato, após ter consumido a garrafa de vinho, parece constituir uma situação de abuso do direito. É mais equilibrada, tendo em conta a situação, a redução adequada do preço, para o preço da garrafa mais barata pedida num primeiro momento, em especial nos casos em que o consumidor não tenha sido informado adequadamente do preço da nova garrafa. O risco de ter sido feita uma sugestão de uma garrafa muito mais cara correrá, assim, por conta do restaurante, o que parece ser uma solução ajustada aos valores subjacentes ao caso.


[1] Este tema já foi discutido aqui no blog no texto “A Garrafa de Vinho mais Cara do que o Jantar”. Nesse caso, o cliente não tinha chegado a ver a lista, tenho sido sugerido pelo representante do restaurante que a refeição fosse acompanhada por um Barca Velha. Também aí se concluiu, como neste texto, que a redução adequada do preço é a solução mais equilibrada.

[2] Num contexto diferente, descreve-se a prática identificada, em Espanha, no sentido de indicar que o terminal de pagamentos se encontra avariado para forçar os consumidores a pagar com dinheiro. A circunstância de o aviso de avaria do terminal estar plastificado e apresentar sinais da passagem do tempo aponta claramente no sentido de que se trata, não de um problema temporário, em vias de resolução, mas de uma prática intencional de forçar o pagamento em notas e moedas.

Tsunami informativo, falta de leitura pelo consumidor e encargo pesado para as empresas

Doutrina

Em 2022, publiquei com A.R. Lodder, Professor da Vrije Universiteit Amsterdam (Países Baixos), o texto Online Platforms: Towards an Information Tsunami with New Requirements on Moderation, Ranking, and Traceability. Este artigo foi escrito no âmbito das atividades do Jean Monnet Centre of Excellence ‘Consumers and SMEs in the Digital Single Market (Digi-ConSME)’, dirigido pelo Professor Federico Ferretti, da Unidade de Bolonha.

Nos dias 2 a 4 de fevereiro de 2023, realizou-se o evento de encerramento do projeto, no qual participaram, além dos investigadores que contribuíram para as atividades do Centro, representantes das instituições europeias e de associações de consumidores e de pequenas e médias empresas.

O Professor Hans-Wolfgang Micklitz fez uma intervenção inicial desafiante, na qual identificou a crescente fragmentação do Direito do Consumo, por via de uma distinção cada vez maior entre consumidores, nomeadamente por meio da identificação de diferentes vulnerabilidades. Colocou, nomeadamente, a questão de saber se o conceito de pessoa jurídica, inexistente no Direito da União Europeia, está a ser preenchido por esta via.

No evento final, A.R. Lodder e eu apresentámos algumas conclusões do nosso trabalho.

Partimos de três pressupostos de base:

  1. Ninguém[1] lê os chamados “terms and conditions”, ou seja, a lista de cláusulas contratuais gerais constante de todos os sites e plataformas;
  2. O número de elementos de informações que deve ser incluído no processo de contratação pelo profissional e pela plataforma é cada vez mais abundante;
  3. É difícil para o profissional e para plataforma cumprir os deveres de informação, pois é difícil que, com tantos elementos de informação para transmitir, a informação possa ser clara e compreensível, como a lei exige.

A conclusão é a de que o sistema vigente não é bom nem para os consumidores, que não têm acesso efetivo à informação, nem para as empresas, que têm um encargo pesado e, na prática, impossível de cumprir, pois (quase) nenhum consumidor que use de comum diligência, adaptando a expressão constante do regime português das cláusulas contratuais gerais, toma conhecimento da informação em causa.

Coloca-se então a questão de saber se se pretende que a informação seja realmente dirigida ao consumidor concreto que está diante do profissional ou da plataforma, com vista a dela tomar conhecimento efetivo.

Temos de concluir que não, tendo em conta os três pressupostos enunciados. Os interesses dos consumidores podem ser indiretamente protegidos se considerarmos que em muitos casos o objetivo é, por um lado, obrigar o profissional a pensar sobre os assuntos em causa e ter de assumir por escrito a perspetiva adotada e, por outro lado, permitir o controlo por parte das entidades fiscalizadoras e reguladoras e o private enforcement, através de ações coletivas.

Torna-se então necessário distinguir entre elementos de informação que

  • têm de ser apresentados ao consumidor em destaque e no momento específico em que a questão se coloca; e
  • outros que podem sê-lo apenas nos chamados “terms and conditions”.

Garante-se, relativamente a estes últimos, (i) que a empresa tem uma política sobre o tema em causa, (ii) que ficam disponíveis para qualquer consumidor interessado, sendo que a maioria dos consumidores não está interessada, e (iii) que podem ser fiscalizados pelas entidades de supervisão e por associações de consumidores.

Por exemplo, no Digital Services Act (Regulamento dos Serviços Digitais), os novos elementos de informação relacionados com moderação de conteúdos (art. 14.º) e rastreabilidade dos profissionais (art. 30.º) estão no segundo grupo, enquanto parte dos relativos a publicidade (art. 26.º) e sistemas de recomendação (art. 27.º) estão no primeiro. Ficam aqui algumas ideias para reflexão e discussão. Embora o tema esteja longe de ser novo, parece não haver, em especial da parte das instituições europeias, vontade de fazer as mudanças necessárias para ajustar o direito à realidade.


[1] Digamos “quase ninguém”, por precaução (científica). Desde logo, leem os juristas que elaboram as cláusulas e os que pretendem, em caso de litígio, colocá-las em causa.

O consumidor como produtor de informação

Doutrina

A proteção do consumidor nasce da constatação de que na sociedade de consumo em massa o cliente individualmente considerado se encontra numa posição de fragilidade em relação ao produtor e ao vendedor. Estes, além de provavelmente mais ricos e poderosos, estariam na posse de informação fundamental para que o comprador tivesse a oportunidade de formar adequadamente a sua vontade de adquirir certos bens ou serviços. Estará aqui a principal justificação para muito da legislação de defesa do consumidor assentar uma parte relevante do seu regime de proteção, na obrigação de ser transmitida informação ao tal ser estereotipado: o consumidor.

Há muito que se encontra cientificamente demonstrado que grande parte das decisões humanas não são ponderadas. Não se trata de falta de informação, trata-se do modo como o cérebro humano usualmente funciona. A economia comportamental, que combina a vertente económica com as ciências cognitivas, estudou detalhadamente o fenómeno.  Por todos, podemos ler “Pensar, depressa e devagar”, de Daniel Kahneman que questionou o modelo racional de tomada de decisões e de formulação de juízos. Licenciado em matemática e psicologia pela Universidade de Telaviv, posteriormente doutorado em psicologia pela Universidade de Berkeley, ganhou em 2002 o (mal) denominado Prémio Nobel da Economia “Por integrar aspetos da pesquisa psicológica sobre o comportamento económico do homem em situações de incerteza e a tomada de decisões nessas circunstâncias”.

Este livro, acessível a leigos, é mais que suficiente para se ficar sem grandes dúvidas sobre o processo mental usualmente subjacente à quantidade descomunal de decisões que o ser humano tem de estar sempre a tomar. A decisão rápida, digamos que instintiva, instantânea, impensada, inconsciente, é a regra e não a exceção.

Mesmo que não existissem estudos a evidenciar esta realidade, uma simples observação atenta dum consumidor médio por um jurista médio, há muito que permite concluir que dar-lhe informação pode ser infinitamente pouco se, efetivamente, se pretende protegê-lo. Bastaria, até, que cada um de nós observasse a sua própria atitude face ao modo como emite os “Aceito” todos os dias, para suspeitar da pouca eficácia da informação acessível.

Paradoxalmente, o aumento da quantidade de informação, quanto mais não seja por manifesta falta de tempo, parece contribuir mais para a desresponsabilização de quem a entrega do que para a formação da vontade de quem a recebe. O Manifesto contra a subversão do contrato, de Margarida Lima Rego, apresenta com veemência esta realidade, em contexto financeiro e meio digital. O assunto foi também abordado neste blog por Jorge Morais Carvalho, a propósito da adesão a contratos celebrados com recurso a cláusulas contratuais gerais. No limite, sabendo-se que os clausulados não são, nem podem razoavelmente ser, lidos por pessoas diligentes, a incerteza associada ao seu efetivo conteúdo é grande.

Embora as evidências científicas e de senso comum mostrem à saciedade, e também à sociedade, que esta coagida dádiva, menos em linha com a convicção, que em automática inserção de novos formulários aptos a serem em bloco e acriticamente “aceites”, não funciona, o “legislador” insiste em fazer assim, principalmente por não saber fazer doutra maneira. No limite, não prescindindo da soterração e saturação do consumidor e da desresponsabilização do produtor/prestador de serviços que, através da entrega de informação sobre os defeitos e insuficiências do que vende, pode responder menos pela falta de qualidades, diversa legislação distingue o mais importante do menos, estabelece hierarquias, impõe formulários de informação uniforme, sinalética visual mais ou menos colorida, tudo com vista a proporcionar a esse idílico ser racional, o consumidor, os instrumentos intelectuais de que necessita para fazer, contra toda a probabilidade e informação científica, uma escolha ponderada, tanto na necessidade como na qualidade, pensando se realmente precisa do que vai adquirir e comparando caraterísticas, preços, condições dos contratos, garantias, tudo, tudo, de vários produtos ou serviços semelhantes, para escolher mesmo bem. Exercício, atualmente, repetido muitas vezes ao longo do dia, intercalado por tomadas de conhecimento e aceitação de políticas de privacidade, mais especificamente “cookies”, e de proteção de dados, os mais recentes fornecedores de listas de declarações paralelas, mas integrantes da relação comercial.

O “direito à informação” é, assim, um dos grandes pilares da defesa do consumidor e, no essencial, usa-se quando meios realmente eficazes não estão disponíveis para o proteger.

Até há relativamente pouco tempo, ao falar-se de informação e de consumidor, o verbo mais usado era o “dar”. O profissional obrigado a dar e o consumidor obrigado a receber, sob pena de poder vir a ser considerado desleixado, pouco diligente, abaixo de “médio”, o que lhe retiraria alguma proteção.

Há, no entanto, que assinalar que os tempos mudaram e atualmente o consumidor, além de recetor, passou a produtor intensivo de informação. Tanto online, como no mundo físico, embora em ambiente digital a recolha, registo e tratamento de dados assuma maiores proporções.

As pessoas, pelo simples facto de se movimentarem em sociedades industrializadas e conectadas, usando sistematicamente dispositivos digitais, principalmente o telemóvel, criam informação, sobre si próprias e sobre o mundo, que é usada pelas empresas e pelo Estado.

Essa informação tem valor e vem suscitando já vasta discussão sobre se deverá ou não ser paga, bem como sobre a ideia de gratuitidade de produtos ou serviços que acabam por ter como “contrapartida”, dados sobre quem os adquire. Martim Farinha analisou o conceito de pagamento neste blog, no contexto da Diretiva das Praticas Comerciais Desleais.

Parece, pois, que no que diz respeito à informação, o consumidor tem o direito e o dever de a receber, ainda que daí não resulte benefício efetivo para nenhuma das partes. Uma espécie de óleo de fígado de bacalhau que tem de ser dado por uns e engolido por outros, perpetuando-se a tradição. É o consumidor como recetor de informação.

O consumidor como produtor de informação é algo novo, diferente, desafiante. Apetece perguntar várias coisas a esse respeito. Neste contexto, pergunta-se simplesmente: será que o consumidor ao receber pela informação que produz, em dinheiro ou géneros (produtos e/ou serviços), se torna “profissional”?

A produção de informação é uma atividade, de algum modo, comercial a que o consumidor moderno se vai dedicando bastante.

Caso Victorinox – Informação sobre garantia comercial do produtor nem sempre é obrigatória

Jurisprudência

No dia 5 de maio, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) proferiu a decisão no âmbito do caso Victorinox (C-179/21). A questão central discutida no acórdão consiste em saber se o vendedor está vinculado a informar sobre as cláusulas relativas à garantia comercial oferecida pelo produtor no caso de não ter referido (ou, numa segunda questão, não ter realçado) a existência dessa garantia na informação pré-contratual. Coloca-se ainda a questão de saber como se relacionam as normas que impõem deveres de informação sobre garantias comerciais na Diretiva 2011/83/UE (direitos dos consumidores) e na Diretiva 1999/44/CE (venda de bens de consumo).

Analisando brevemente os factos, a Aboluts vende, através do marketplace da Amazon, canivetes da Victorinox (produtor suíço). No site da Amazon, não é feita qualquer referência à garantia comercial oferecida pela Victorinox, mas existe uma ligação, designada “Manual de instruções”, no separador ”Outras informações técnicas”, que remete para um documento elaborado pelo produtor. Na segunda página desse documento há uma declaração relativa à «garantia Victorinox».

A the‑trading‑company propôs uma ação contra a Absoluts, seu concorrente, exigindo que esta passasse a incluir uma referência à extensão territorial da garantia comercial, por um lado, e aos direitos legais do consumidor e ao facto de a garantia do produtor não restringir esses direitos, por outro lado. O caso chegou, em segunda instância, ao Bundesgerichtshof, que submeteu ao TJUE as questões já sumariadas.

O art. 6.º-1-m) da Diretiva 2011/83/UE estabelece que, “antes de o consumidor ficar vinculado por um contrato à distância ou celebrado fora do estabelecimento comercial ou por uma proposta correspondente, o profissional faculta ao consumidor, de forma clara e compreensível, as seguintes informações: (…) Se aplicável, a existência e condições (…) de garantias comerciais”.

O TJUE considera que este preceito inclui a informação relativa quer às garantias comerciais oferecidas pelo próprio vendedor quer às garantias comerciais oferecidas pelo produtor. No entanto, o tribunal introduz alguns limites, tendo em conta “a ponderação de um elevado nível de defesa dos consumidores com a competitividade das empresas” (considerando 41). Com efeito, considera-se que “a obrigação incondicional de fornecer tais informações, em quaisquer circunstâncias, afigura‑se desproporcionada, em especial no contexto económico do funcionamento de determinadas empresas, nomeadamente as mais pequenas”, sendo que “essa obrigação incondicional forçaria os profissionais a efetuar um trabalho significativo de recolha e de atualização das informações relativas a tal garantia, apesar de estes não terem necessariamente uma relação contratual direta com os produtores e de a questão da garantia comercial dos produtores não estar abrangida, em princípio, pelo contrato que pretendem celebrar com o consumidor” (considerado 40). Logo, “o profissional apenas é obrigado a fornecer informações pré‑contratuais ao consumidor sobre a garantia comercial do produtor quando o interesse legítimo do consumidor médio, normalmente informado e razoavelmente atento e avisado, num elevado nível de defesa deve prevalecer sobre a sua decisão de se vincular contratualmente, ou não, a esse profissional” (considerando 41). O tribunal esclarece esta afirmação, indicando que “a obrigação do profissional de fornecer ao consumidor informações pré‑contratuais sobre a garantia comercial do produtor não resulta da simples existência dessa garantia, mas da presença de tal interesse legítimo” (considerando 42).

O consumidor tem interesse legítimo, segundo o tribunal, (apenas) “quando o profissional torna a garantia comercial proposta pelo produtor num elemento central ou decisivo da sua oferta” (considerando 44), quando “chama expressamente a atenção do consumidor para a existência de uma garantia comercial do produtor de maneira a utilizá‑la como argumento de venda ou argumento publicitário e, assim, melhorar a competitividade e a atratividade da sua oferta relativamente às ofertas dos seus concorrentes” (considerando 45).

No considerando 48, o tribunal inclui alguns critérios para avaliar se a garantia constitui um elemento central ou decisivo na proposta do vendedor:

  • Conteúdo e configuração geral da oferta relativamente ao bem em causa;
  • Importância, em termos de argumento de venda ou de argumento publicitário, da referência à garantia comercial do produtor;
  • Lugar ocupado por essa referência na oferta;
  • Risco de erro ou de confusão que a referência pode criar no espírito do consumidor médio, normalmente informado e razoavelmente atento e avisado em relação aos diferentes direitos à garantia que pode exercer ou à identidade real do garante;
  • Presença, ou não, na oferta, de explicações relativas às outras garantias associadas ao bem;
  • Qualquer outro elemento suscetível de estabelecer uma necessidade objetiva de proteção do consumidor.

No caso em análise, o tribunal aponta claramente no sentido de a garantia não ser um elemento central ou decisivo na proposta do vendedor (considerando 52).

A decisão parece-me totalmente correta. Num caso como este, não se justifica que o profissional tenha de realçar a existência da garantia comercial. Trata-se de um aspeto do negócio que é favorável ao consumidor, por se tratar de direitos que acrescem aos previstos na lei, pelo que a ausência de destaque não merece censura. Mesmo que a garantia comercial fosse proposta pelo vendedor, a omissão de um destaque, por si só, também não aparentaria ser censurável. A censura resultará, como refere o tribunal, de o consumidor ver traído um interesse legítimo.

Critico, no entanto, a utilização, também neste contexto, do conceito de consumidor médio. Tal como noutros domínios, a bitola do consumidor médio pode deixar desprotegidos muitos consumidores, precisamente aqueles que, em muitos casos, mais necessitam de proteção.

Chamo ainda a atenção para a circunstância de, apesar de a ação ter sido proposta contra a Absoluts, toda esta discussão também interessar à Amazon, enquanto intermediário. Com efeito, no acórdão proferido recentemente no caso Tiketa, aqui comentado, o TJUE conclui que o intermediário é considerado profissional para efeitos da Diretiva 2011/83/UE, respondendo, tal como o vendedor, pelo incumprimento dos deveres de informação pré-contratual.

Quanto à relação entre as normas que impõem deveres de informação sobre garantias comerciais na Diretiva 2011/83/UE e na Diretiva 1999/44/CE, o tribunal considera que prosseguem interesses distintos, pelo que não tem de se verificar uma coincidência total. O profissional não tem, portanto, de indicar na fase pré-contratual todo o conteúdo da garantia (considerando 58). Esta afirmação não estaria correta se estivesse em causa uma garantia com natureza contratual, pois, nesse caso, o conteúdo da garantia é conteúdo do contrato e tem de ser incluído na proposta contratual, sob pena de não vincular as partes.

Para saber que “condições” relativas à garantia comercial devem constar da informação pré-contratual, nos termos do art. 6.º-1-m) da Diretiva 2011/83/UE, o critério utilizado pelo tribunal é também o do interesse legítimo do consumidor a tomar uma decisão esclarecida, não sendo induzido em erro. As condições incluem “qualquer elemento de informação relativo às condições de aplicação e de execução da garantia comercial em causa”, o que abrange, não só “o local de reparação em caso de dano ou as eventuais restrições de garantia, mas igualmente (…) o nome e o endereço do garante”.

Em suma, o vendedor nem sempre tem o dever de incluir na informação pré-contratual referência à existência e às condições de garantia comercial oferecida pelo produtor. Apenas terá de o fazer se a garantia em causa for apresentada como uma parte relevante da proposta apresentada. Nesse caso, a referência às condições da garantia deve incluir tudo o que for necessário para que o consumidor possa tomar uma decisão esclarecida, não sendo induzido em erro.

Alegações Ambientais e o Ecobranqueamento: a defesa dos direitos dos consumidores no âmbito da transição verde

Legislação

Existe atualmente um crescente impacto da comunicação comercial com recurso a alegações ambientais que visam influenciar as decisões de compra do consumidor. Tornou-se banal depararmo-nos com referências à sustentabilidade ou reciclabilidade de um produto. Proliferaram os selos, logos e certificações. A utilização de expressões como “Green” ou “Eco” foram banalizadas e alegações ambientais genéricas e vagas são muitas vezes uma prática no mercado.

A 30 de março de 2022 foi publicada pela Comissão Europeia, a Proposta de Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho que altera as Diretivas 2005/29/CE e 2011/83/UE, no que diz respeito à capacitação dos consumidores para a transição ecológica através de uma melhor proteção contra práticas desleais e de melhor informação.

Na preparação da Proposta, foram consultados mais de 12.000 consumidores, empresas, autoridades nacionais dos Estados-Membros e especialistas na área do consumo e Direito do Consumo, tendo a mesma revelado que o receio do ecobranqueamento tem impedido os consumidores de participar mais ativamente na transição verde. A questão da fiabilidade da informação surgiu como a principal questão para o consumidor.

A viabilidade da reparação dos produtos foi identificada como passível de permitir aos consumidores uma escolha de produtos mais sustentáveis e, por sua vez, uma melhor informação sobre a durabilidade dos mesmos foi identificada como a melhor opção para capacitar os consumidores na transição ecológica, permitindo assim uma economia circular.

É de grande importância e de se sublinhar a crescente atenção dada pela Comissão Europeia à temática das alegações ambientais. A Proposta visa, entre outros objetivos, a proteção dos consumidores no âmbito de práticas comercias desleais que induzam o consumidor em erro quanto às suas escolhas de consumo sustentável, reforçando o princípio do direito à informação.

É uma das iniciativas previstas na Nova Agenda do Consumidor e no Plano de Ação para a Economia Circular e dá seguimento ao Pacto Ecológico Europeu, mais conhecido como o Green Deal.

Mais precisamente, a Proposta visa, entre outros, impedir as práticas de ecobranqueamento, de obsolescência precoce e de utilização de rótulos, selos e certificações não fiáveis.

São adicionadas dez práticas comerciais ao elenco constante no anexo I da Diretiva 2005/29/CE que devem ser consideradas desleais em quaisquer circunstâncias, sendo três delas sobre o tema das alegações ambientais.

O foco recai igualmente sobre as informações pré-contratuais, sendo alterada a Diretiva 2011/83/EU. A Proposta introduz os conceitos de durabilidade e reparabilidade dos produtos, temas relacionados com a obsolescência programada/precoce, sendo curiosamente introduzida uma pontuação de reparabilidade. O consumidor é assim capacitado para uma participação mais ativa na economia circular.

No que dirá respeito à durabilidade, passa a ser necessária a prestação de informação sobre a existência e a duração da garantia comercial de durabilidade dos produtos, sempre que o produtor disponibilize essa informação. Notamos que estas alterações são estendidas à celebração de contratos à distância e de contratos celebrados fora do estabelecimento comercial.

Trata-se portanto de uma Proposta com o objetivo claro de contribuição para o bem-estar dos consumidores europeus e para a economia da UE.

No âmbito nacional assinala-se igualmente um crescente foco nas temáticas trazidas pela transição verde.

A Direção-Geral do Consumidor (DGC) é a entidade pública em Portugal que tem por missão a definição e execução da política de defesa do consumidor, sendo responsável pelo acompanhamento e fiscalização da publicidade em Portugal e se tem movimentado numa ótica de sensibilização e informação tanto junto dos profissionais como dos consumidores.

Em Outubro de 2021, foi lançado pela DGC e pela Auto Regulação Publicitária, um guia explicativo, que visa orientar os profissionais para práticas transparentes e capacitar o consumidor para escolhas mais conscientes tendo em conta as implicações ecológicas dos seus hábitos de consumo.

São exemplificadas boas e más práticas, sendo claro que qualquer alegação ambiental deverá ser “verdadeira, precisa e capaz de ser comprovada através de provas científicas”, que por sua vez deverão estar disponibilizadas ao consumidor de forma imediata e junto da alegação em causa, devendo a linguagem ser acessível e clara.

É assim que aguardamos com expectativa as negociações e emendas do Parlamento Europeu e do Conselho, a publicação da Diretiva e a sua posterior transposição, sendo certo que todo o trabalho efetuado a nível Europeu e em Portugal permitirá uma maior capacitação do consumidor para um consumo sustentável, circular e consciente das suas implicações ecológicas.

“Sustainable development is development that meets the needs of the present without compromising the ability of future generations to meet their own needs.” Gro Harlem Brundtland, Líder internacional em desenvolvimento sustentável.

O Caso Tiketa e o alargamento do conceito de profissional ao intermediário

Jurisprudência

No dia 24 de fevereiro de 2022, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) proferiu um acórdão, no âmbito do Caso Tiketa (Processo C-536/20), que se debruça sobre duas questões muito relevantes em matéria de direito europeu do consumo. Em primeiro lugar, pergunta-se se o conceito de profissional da Diretiva 2011/83/UE abrange a pessoa que atua como intermediária de um profissional. Em segundo lugar, está em causa o valor jurídico de uma remissão para as condições gerais do serviço constantes de um site no caso de o consumidor ter declarado a sua aprovação. Por um lado, importa saber se essa aprovação implica o cumprimento do dever de informação pré-contratual. Por outro lado, é necessário verificar se está cumprida a obrigação de confirmação através de um suporte duradouro.

A Tiketa é uma empresa que exerce, na Lituânia, uma atividade de distribuição de bilhetes para eventos (14)[1]. No dia 7 de dezembro de 2017, o consumidor adquiriu um bilhete para um evento cultural, organizado pela Baltic Music, a realizar no dia 20 de janeiro de 2018. Antes da conclusão do contrato, constava no site da Tiketa que esse evento era organizado pela Baltic Music. Também se podia ler, em letras vermelhas, a seguinte informação: o “organizador do evento assume total responsabilidade pelo evento, pela sua qualidade e conteúdo, bem como por quaisquer informações relacionadas. A Tiketa é o distribuidor dos bilhetes e atua na qualidade de agente comercial”. Das “condições gerais da prestação de serviços”, disponíveis no site da Tiketa, constavam “informações mais precisas sobre o prestador de serviços em causa e o reembolso dos bilhetes” (15). O bilhete reproduzia apenas uma parte dessas condições gerais, contendo, “em especial, a menção de que os “bilhetes não são trocados nem reembolsados. Em caso de cancelamento ou de adiamento do evento, o organizador [deste] responde integralmente pelo reembolso do preço dos bilhetes”. Do bilhete constava igualmente “o nome, o endereço e o número de telefone do organizador do evento em causa e era indicado que este último era totalmente responsável «pelo evento, pela sua qualidade e conteúdo, bem como pelas informações relacionadas», na medida em que a Tiketa atuava apenas como distribuidor de bilhetes e «agente comercial»” (16).

No dia marcado para o evento, o consumidor ficou a saber, através de cartaz afixado no local, que o mesmo não se realizaria (17). Dois dias depois, a Tiketa informou o consumidor de que poderia obter, em linha, o reembolso do valor pago (18). No dia seguinte, o consumidor veio exigir à Tiketa o reembolso do valor pago e uma indemnização pelas “despesas de viagem” e pelos “danos morais sofridos devido ao cancelamento do evento em causa”, tendo esta remetido a questão para a Baltic Music, que nunca respondeu (19).

Em julho do mesmo ano, o consumidor propôs uma ação contra as duas empresas, pedindo a sua condenação solidária (20). O tribunal de primeira instância decidiu, menos de três meses depois (!), julgando “o pedido parcialmente procedente, condenando a Tiketa a pagar ao interessado as quantias pedidas a título de reparação dos seus danos materiais e uma parte das pedidas a título de reparação do seu dano moral, acrescendo juros à taxa anual de 5% a contar da propositura da ação até à execução integral da sua sentença” (21). O tribunal de segunda instância manteve a decisão, o que motivou o recurso para o Supremo Tribunal, que suspendeu a instância, submetendo várias questões prejudiciais ao TJUE, já resumidas no primeiro parágrafo do presente texto.

A primeira questão consiste em saber se o conceito de profissional abrange a pessoa que atua como intermediária.

O art. 2.º-2 define profissional como “qualquer pessoa singular ou coletiva, pública ou privada, que, nos contratos abrangidos pela presente diretiva, atue, incluindo através de outra pessoa que atue em seu nome ou por sua conta, no âmbito da sua atividade comercial, industrial, artesanal ou profissional”.

A versão em lituano é diferente da versão em português (25 e 26): “qualquer pessoa singular ou coletiva, pública ou privada, que atue no âmbito de um contrato abrangido pela presente diretiva para fins ligados à sua atividade comercial, industrial, artesanal ou profissional, incluindo qualquer outra pessoa que atue em nome ou por conta do comerciante”.

Segundo o TJUE (27), impõe-se uma interpretação das diretivas em caso de disparidades linguísticas que tenha em conta a sua economia geral, o que remete para o elemento sistemático de interpretação, e a sua finalidade (elemento teleológico). Conclui o TJUE, à luz destas orientações, que o intermediário é profissional, sendo irrelevante se o intermediário informou que era intermediário para ser qualificado como profissional nos termos do diploma (34). Constituem argumentos do TJUE que (i) o art. 6.º-1-c) pressupõe que é profissional o intermediário, uma vez que, além dos seus dados, devem ser prestados os dados “do profissional por conta de quem atua” (28), que (ii) se impõe uma interpretação homogénea, resultando do acórdão proferido no Caso Kamenova (32, 33, 36) que profissional é qualquer pessoa que atue com fins profissionais ou em nome ou por conta de um profissional (29), e que (iii) o art. 1.º convida a uma interpretação ampla do diploma (30).

Segundo o TJUE, o Caso Wathelet, que qualifica um intermediário como vendedor, não releva neste contexto, uma vez que a Diretiva 2011/83/UE não determina a identidade das partes nem a repartição das responsabilidades (33).

O TJUE conclui, portanto, que quer o intermediário quer o profissional em nome de quem este atua podem ser qualificados como profissionais para efeitos do cumprimento das normas do diploma europeu.

A segunda questão, apesar de não ser colocada nestes precisos termos pelo TJUE, consiste em concluir sobre o valor jurídico de uma remissão para as condições gerais do serviço constantes de um site no caso de o consumidor ter declarado a sua aprovação.

O TJUE começa (41) por distinguir as obrigações materiais de informação (art. 6.º) das obrigações formais (art. 8.º).

Antes da celebração do contrato, o profissional apenas deve fornecer as informações exigidas pelo art. 6.º-1 “de uma forma clara e compreensível” (45), só após a celebração do contrato se impondo ao profissional confirmar através de um suporte duradouro.

Logo, em abstrato, é suficiente que o consumidor selecione, no site, a casa prevista para o efeito para se considerar que as informações são levadas ao conhecimento (46). No entanto, salienta-se que cabe ao tribunal nacional avaliar se as informações foram fornecidas de forma clara e compreensível (47).

Na prática, tenho algumas dúvidas de que uma remissão para um site seja mais do que uma ficção de conhecimento (e de aprovação), claramente insuficiente para que se possa considerar cumprido o dever de informação de forma clara e compreensível.

Esse procedimento de informação (pré-contratual) não substitui a (obrigação contratual de) confirmação em suporte duradouro (48), uma vez que a informação constante de um site não é fornecida através de um suporte duradouro (51).

Independentemente do incumprimento da obrigação de confirmação em suporte duradouro, as informações prestadas são parte do contrato, nos termos do art. 6.º-5 (52). Em suma, o TJUE conclui que a Tiketa deve ser qualificada como profissional para efeitos de aplicação da Diretiva 2011/3/UE. Quanto ao cumprimento, pela Tiketa, do dever de informação pré-contratual de informação, a resposta cabe ao tribunal nacional, que deve avaliar se o mesmo foi cumprido através de uma forma clara e compreensível. Já quanto ao cumprimento da obrigação de confirmação através de um suporte duradouro, o TJUE conclui que não basta que a informação tenha estado disponível no site, com aprovação pelo consumidor, em momento anterior à celebração do contrato.


[1] Os contratos celebrados através da Tiketa não são, naturalmente, contratos de compra e venda de bilhete, uma vez que o bilhete não é o objeto principal do contrato. Se se tratar de espetáculo artístico, teremos um contrato para a assistência a espetáculo desportivo, contrato misto em que predomina o elemento prestação de serviço. Note-se que os números indicados entre parêntesis correspondem aos considerandos do Acórdão em que a questão em causa é abordada.

A omissão da informação sobre as características éticas do bem: um exercício de prognose

Doutrina

Desafiada pela Alyne Calistro a produzir uma sequela do seu tão interessante texto As Práticas ESG e o Greenwashing – Pela Busca da Informação Verdadeira, a quem muito agradeço o repto, parece ser de especial urgência responder à questão que nos endereça:

Sob o manto da preocupação com a ESG – Environment, Social and Governance, como saberá o consumidor se tais práticas ocorrem verdadeiramente?

Pois bem, o consumidor, à partida, não poderá ter a certeza. Todavia, poderá desconfiar que tais práticas benignas não ocorrem, o que pode revelar-se o pior cenário que pode acontecer ao vendedor e ao produtor.

Se, por um lado, o consumidor médio não se demora na inspeção minuciosa da ética subjacente à produção de um produto, por outro está cada vez mais capacitado – ou, pelo menos, sensibilizado – para identificar um determinado método de produção tendencialmente associado à exploração laboral e infantil.

Até aqui, parece-nos, temos observado um panorama em que os produtores que são omissos quanto à informação das suas práticas laborais, sejam elas tidas como benignas ou negativas, têm beneficiado com o seu comportamento límbico. O consumidor tende, provavelmente, a entender o seu estado de desconhecimento face ao método de produção do bem como uma verosimilhança ao real método de produção. Não será também difícil imaginar que suceda um raciocínio de desresponsabilização perante o problema social em causa, assumindo que outras instâncias poderão (e deverão) ocupar-se da questão.

Não nos esqueçamos que qualquer um destes raciocínios ou qualquer outro diferente destes são processados num ínfimo período de tempo, isto é, a decisão de contratar do consumidor, pelo menos perante um bem de consumo de valor não muito avultado, não se compadece com longas análises de custo-benefício, muito menos com considerações de caráter ético.

É precisamente neste ponto que, em jeito de juízo de prognose, entendemos que, muito em breve, não informar o consumidor acerca dos padrões éticos do bem poderá vir a ser o pior que pode acontecer ao vendedor e, sobretudo, ao produtor (quando este não coincide com aquele).

A imagem do consumidor que dedica extensas horas à análise da política ESG do vendedor ou produtor é uma caricatura que apenas se observará em camadas muito específicas de cidadãos. A larga maioria dos consumidores não o faz nem o pretende fazer.

Portanto, se até aqui assistimos a um padrão de tendencial apatia perante a ausência de indicações acerca da ética do produto, por outro lado assiste-se ao surgimento de um movimento cada vez mais palpável, por parte dos consumidores, no sentido da implementação de práticas ambiental e socialmente mais sustentáveis

Parece-nos que as duas situações apresentadas neste texto se irão cruzar em breve: o consumidor quererá comprar bens sustentáveis e penalizará os produtores e os vendedores que não o informarem sobre essas características, não tanto por um imperativo ético, mas porque necessitam de tais informações para a tomada de decisão de contratar que não estão disponíveis.

Naturalmente, a confirmar-se a nossa previsão, chegarão novos e mais pesados desafios para o combate ao greenwashing.

As Práticas ESG e o Greenwashing — Pela Busca da Informação Verdadeira

Doutrina

Nos últimos tempos nota-se a crescente difusão de notícias acerca de empresas que vêm tomando medidas, ou já tomaram, a fim de se adequarem às práticas ESG. Mas, afinal, o que é isso?

ESG – environment, social and governance, sigla em inglês que em tradução livre para o português significa ambiente, social e governança. São fatores utilizados pelas empresas para demonstrarem confiabilidade no mercado financeiro.

O termo foi cunhado em 2004 em uma publicação do Pacto Global da ONU em parceria com o Banco Mundial, onde o então secretário geral da ONU, Kofi Annan, lançou o desafio às instituições financeiras de integrarem fatores sociais, ambientais e de governança no mercado de capitais.

Nesse sentido, as empresas em conformidade com as práticas ESG têm consciência dos impactos positivos e negativos que suas atividades causam, e agem de forma a minimizar as ações negativas, bem como responder aos prejuízos já provocados no passado.

As práticas ESG têm como base os 10 princípios do Pacto Global da ONU, que congregam ações para o enfrentamento dos desafios da sociedade, e em especial respeitem os Direitos Humanos, do Trabalho, Meio Ambiente e Anticorrupção, em conjunto com a Agenda 2030, lançada também pela ONU, onde os 193 Estados-Membros comprometeram-se ao desenvolvimento sustentável.

Com base nesses princípios, as empresas devem adotar estratégias, políticas e práticas éticas, sob enfoque na responsabilidade ambiental, para o ambiente de trabalho digno, saudável, combatente ao trabalho forçado e infantil e que busca pela não discriminação de gênero. De igual modo, devem empenhar-se pela gestão não criminosa e anticorrupta.

O objetivo é que temas vinculados em torno da ESG tornem-se verdadeiros nortes das empresas aos buscar novos negócios, a fim de gerar verdadeiro impacto positivo na sociedade. Contudo, como saberá o consumidor se tais práticas ocorrem verdadeiramente?

Dentro dessas três vertentes, observa-se o aumento significativo de publicidade de produtos e serviços que se autointitulam sustentáveis, biológicos, orgânicos ou qualquer outra nomenclatura da “moda” para chamar atenção do consumidor através do apelo ecológico.

Consumidor, este, hoje mais engajado e informado acerca das demandas ambientais e da problemática que circunda o cultivo e produção de determinados produtos. O pretenso comprador não busca apenas um produto na prateleira, mas identificação com a marca.

Dessa feita, há crescente demanda por um consumo mais consciente e menos agressivo ao meio ambiente, tornando-se o consumidor fiel à marca quando tais requisitos são encontrados, fato este aproveitado pelas empresas.

Entretanto, em que pese o aumento de informações, que muitas vezes tornam-se excessivas e acabam por desinformar e criarem dúvidas, não há como manter-se atualizado de tudo e de todos os setores da sociedade de consumo, o que possibilita práticas que não são verdadeiramente sustentáveis.

Por isso, em paralelo ao aumento da oferta de bens biológicos e sob o cultivo responsável, verifica-se também a presença do greenwashing.

O greenwashing (lavagem-verde ou maquiagem verde) trata-se da propagação de anúncios, marketing e publicidade de todas as espécies para difundir práticas e produtos ecologicamente corretos e responsáveis (eco-friendly) sem na realidade o serem.

Tal prática pode levar o consumidor a engano, pois acredita consumir um produto ou serviço que respeita padrões éticos ambientais e a legislação local, mas que de fato podem inclusive causar o impacto inverso.

Cabe esclarecer que a publicidade que induza o consumidor a erro é aquela que apresenta informação parcial ou inteiramente falsa, bem como omite dados quanto à natureza e características relevantes do produto ou serviço. Elementos que influenciam a tomada de decisão do consumidor, que a teria realizado de outra forma, se munido de informações verdadeiras ou ao menos completa.

 Publicidade esta proibida tanto na legislação brasileira, pelo Código de Defesa do Consumidor (art.37, parágrafo 1º) como em Portugal, através do Código da Publicidade (art.11, nº 1) e das Práticas Comerciais Desleais ( Decreto-Lei n.º 57/2008, arts. 3º e 7º)

Ainda como forma de combater as práticas de greenwashing, o recente Regulamento (UE) 2020/852 da Comissão Europeia (Regulamento Taxonomia) criou um sistema de classificação de atividades econômicas sustentáveis, o que irá permitir uma melhor compreensão sobre o tema para empresas e investidores.

E a proposta da Comissão Europeia de julho 2021 de Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho em obrigações verdes europeias (european green bonds), o qual tem por meta também o combate ao greenwashing através da proteção do investidor relativamente a instrumentos financeiros qualificados como “verdes” que, sob o atributo da sustentabilidade, efetivamente não o são.

O Regulamento será de adesão voluntária e apresentará um processo de controle por parte de terceiras entidades (independentes e certificadas), de forma a minimizar o risco de greenwashing, protegendo também o investidor-consumidor.

Porém, mesmo diante das proibições legais e das novas regulamentações, como o consumidor, no dia a dia, pode se proteger dessas ofertas e não ser levado a erro?

O uso de termos vagos pela publicidade, a ausência de detalhes ou ações concretas, assim como informações irrelevantes para aquele produto, como o não uso de aditivos já proibido por lei, é sinal de alerta para aquele anúncio e falta de veracidade em seus dizeres.

A leitura de rótulos é também peça essencial para a busca de informações acerca do produto a ser comprado. Os dados ali contidos podem demonstrar se o anúncio de fato contém elementos verdadeiros, falsos ou contraditórios.

Além disso, importa sempre buscar, quando possível, certificados que reconheçam as práticas ambientais da empresa como o FCS (Forest Stewardship Counsil) e o Ecocert, verdadeiros selos de controle e fiscalização de práticas responsáveis.

Frise-se verdadeiros selos, pois muitas vezes o rótulo apresenta figuras e desenhos que podem confundir o consumidor ao imitarem selos reais de sustentabilidade. Atenção às certificações quando apresentadas se oficiais ou não.

E se dúvidas persistirem, provas concretas das afirmações enunciadas devem ser buscadas, por meio de canais de comunicação da própria empresa, como telefones, e-mails ou redes sociais, onde o consumidor pode tirar suas dúvidas e confirmar as informações propagadas[1].

Inegável que todas essas ações pela busca da informação correta e relevante exige tempo e energia do consumidor, porém melhores escolhas e a real mudança na cultura e prática das empresas dependem de toda a sociedade que tem poder de mudança e de gerar efetivo impacto social.


[1]Disponível em: https://idec.org.br/greenwashing/fugindo-do-greenwashing

As chamadas telefónicas com os prefixos 760 e 761 nos concursos publicitários de programas televisivos

Doutrina

Em post anterior, dedicado a uma primeira análise crítica do recém-adotado Decreto-Lei n.º 59/2021, relevou-se positivamente o estabelecimento de um “regime autónomo e mais robusto, que visa garantir, finalmente, uma aplicação prática efetiva” da obrigação de que as linhas telefónicas disponibilizadas pelos profissionais sejam gratuitas ou correspondam a uma gama de numeração geográfica ou móvel (com os prefixos “2” ou “9”), para contacto do consumidor, no âmbito de uma relação jurídica de consumo.

Sem prejuízo, a questão da necessidade de regulação do preço das chamadas telefónicas, encarada como medida de tutela da posição dos consumidores, também se coloca com particular acuidade no que tange às chamadas por aqueles realizadas para inscrição (e eventual seleção e participação) em concursos publicitários de programas televisivos que recorrem à utilização de números de telefone com custos acrescidos, como sejam as linhas telefónicas das gamas 760 e 761 do Plano Nacional de Numeração da ANACOM, as quais identificam serviços de tarifa única em que o preço máximo por chamada é de, respetivamente, € 0,60 (mais IVA) e € 1,00 (mais IVA).

Neste domínio, como explanaremos de seguida, por força de práticas comerciais desleais (enganosas e agressivas), consumidores particularmente vulneráveis em razão da idade (igual ou superior a 65 anos) ou de situação de carência económica vêm a adotar reiteradas decisões de transação (no caso, decisões de participação em concursos publicitários mediante realização de várias chamadas telefónicas) que os levam ao depauperamento das finanças pessoais e, até, à colocação em situação (de risco) de sobre-endividamento.

A comunicação comercial a concurso publicitário difundida por um operador de televisão enquadra-se no âmbito da figura da autopromoção, prevista no art. 2.º-1-c) da Lei n.º 27/2007, de 30 de julho, na medida em que constitui a promoção de um serviço oferecido pelo próprio operador, integrado em programa de entretenimento pelo mesmo emitido, com vista à atribuição de prémios aos telespectadores, mediante a realização, por este, de chamadas telefónicas pagas, sendo que a receita das chamadas reverte, em parte, para o titular do serviço de programas televisivo.

Neste encalço, por estar em causa a divulgação de serviços próprios do operador televisivo, que atua no âmbito da sua atividade comercial (portanto, um profissional), dirigida a pessoas singulares que, embora com um interesse económico subjacente, intervêm na prática comercial do profissional, mediante o pagamento de um preço (custo fixo da chamada telefónica), com fins que não se incluem no âmbito da sua atividade comercial, industrial, artesanal ou profissional (isto é, consumidores), deve concluir-se que a promoção dos referidos concursos publicitários, inseridos em programas de TV, está subordinada à disciplina normativa do Decreto-Lei n.º 57/2008[1].

Isto posto, conquanto se reconheça que os concursos em causa geram uma receita significativa para a salvaguarda do equilíbrio financeiro das estações televisivas que as promovem, não pode deixar-se de acompanhar o entendimento do Serviço de Regulação e Inspeção de Jogos, organicamente integrado no Instituto do Turismo de Portugal, I.P., quando preconiza que, atendendo à regularidade dos concursos, aos montantes neles envolvidos e à “forte promoção e [a]o insistente e persistente apelo à participação dos telespectadores”, poder-se-á “justificar um eventual recurso à possibilidade conferida pelo n.º 3 do artigo 159.º do Decreto-Lei n.º 422/89, de 2 de dezembro, com a adoção de medidas convenientes à proteção dos consumidores e de medidas restritivas da exploração de concursos com as características mencionadas por parte dos canais de televisão”[2].

Na verdade, como resulta patente a partir do simples visionamento de qualquer dos programas de entretenimento de day-time dos operadores televisivos generalistas (em dias úteis e, em particular, ao fim-de-semana) e foi declarado, de forma assertiva e categórica, nas Deliberações 32/2016 (OUT-TV), 33/2016 (OUT-TV) e 34/2016 (OUT-TV) da Entidade Reguladora para a Comunicação Social, as promoções de concursos publicitários no decurso de tais programas consubstanciam práticas comerciais desleais porque: a) por um lado, são suscetíveis de induzirem em erro o telespectador sobre as características do concurso, levando-o a adotar uma decisão de transação (no caso, decisão de participar no concurso e os termos da sua participação) que, de outro modo, não tomaria, caso conhecesse, cabalmente, as reais características daquele; b) e, por outro lado, exercem uma influência indevida sobre o telespectador – acentuada pelo facto de o público-alvo destes programas ser composto, maioritariamente, por pessoas com idade ou superior a 65 anos ou que enfrentam algum infortúnio na sua vida pessoal e/ou profissional ou dos membros do seu agregado familiar –, sendo aptas a limitar de forma significativa a capacidade de decisão do mesmo, conduzindo-o a tomar decisão de transação que, não fosse a pressão psicológica exercida pelos apelos verbais dos apresentadores e pelas mensagens gráficas persistentes, não adotariam.

Quanto à asserção produzida em a), que reúne os pressupostos de que depende a prática de uma ação enganosa, nos termos do disposto nos arts. 6.º-b) e 7.º-1-b) do Decreto-Lei n.º 57/2008, ainda que, após a celebração do “Acordo de Autorregulação em Matéria de Concursos com Participação Telefónica” entre os operadores RTP, SIC e TVI se tenha começado a verificar que os apelos verbais dos apresentadores e as mensagens gráficas apresentadas no decurso dos programas contemplam referência à real natureza do prémio (cartão de débito VISA Electron pré-carregado e não dinheiro), constata-se que, não raras vezes, a promoção não é clara relativamente às pessoas que se podem habilitar ao prémio (apenas os maiores de 18 anos) nem às concretas utilizações que lhe podem ser conferidas (o cartão apenas pode ser utilizado para efetuar pagamentos de compras através de terminais da rede VISA, não sendo possível a sua transferência para outras contas, nem o seu levantamento em numerário).

Ademais, é criada a convicção no telespectador de que pode efetuar um número ilimitado de chamadas para se habilitar a ganhar o prémio em jogo (recorrendo ao adágio orelhudo “quantas mais vezes ligar, mais hipótese tem de ganhar”), o que não corresponde à verdade, pois cada participante apenas pode efetuar até 10 ou 6 chamadas diárias por concurso e por número de telefone de origem (consoante o número de destino pertença à gama de numeração 760 ou 761, limitação automática que, contudo (ressalvam os regulamentos destes concursos[3]), por razões técnicas, o sistema informático pode não lograr operar, caso em que a chamada seguinte será considerada uma inscrição válida e será cobrada a tarifa única, sem que, pasme-se, possa ser exigida dos promotores qualquer indemnização ou compensação). E, bem assim, é prometido o imediato envio do cartão de débito para a casa do vencedor do concurso, o que também, de facto, pode não suceder, visto que, de acordo com os regulamentos destes concursos, a entrega do prémio poderá ter lugar até 90 dias a contar da data da realização do sorteio que apura o candidato contemplado.

Acresce, ainda, o facto de ser omitida qualquer referência à existência de um intervalo temporal contado desde a data de emissão do cartão para a utilização do saldo nele creditado, sob pena de caducidade do direito à utilização do saldo remanescente (se o houver).

E não se diga que o conhecimento de algumas das características dos concursos acima destacadas resulta assegurada pela mera remissão para o regulamento aplicável. Não obstante se terem operado progressos louváveis, ao nível da informação gráfica exibida em cada período de apelo (feito pelos apresentadores), após a conclusão do “Acordo de Autorregulação” acima referido[4], entendo que subsiste uma desproporção manifesta entre o destaque conferido ao número de telefone a ligar e ao valor do prémio em jogo e as demais características relevantes do concurso, a qual não é, de todo em todo, mitigada pela disponibilização do regulamento do concurso em sítio da internet ou em página do teletexto, plataformas cujo acesso e consulta requerem capacidades que os targets dominantes dos programas de entretenimento de day-time, em muitos casos, não dispõem.

Uma derradeira consideração acerca da asserção produzida em a) para notar que, ao contrário do que estabelece o “Acordo de Autorregulação”, os operadores de televisão recorrem a suportes gráficos de comunicação com função primordialmente apelativa à participação nos concursos, como é o caso da colocação de relógio em countdown no canto superior direito do ecrã, mormente na parte final dos programas.

Já no que respeita à afirmação sob alínea b) acima, que congrega os requisitos necessários à configuração de uma prática comercial agressiva, nos termos dos arts. 6.º-b) e 11.º-1 e 2-a) do Decreto-Lei n.º 57/2008, reveste meridiana clareza que, em todos os programas de entretenimento de day-time se pratica um apelo insistente, com recurso a uma linguagem persuasiva (empregue por apresentadores que gozam de elevada notoriedade e, mesmo, credibilidade junto dos telespectadores), à inscrição nos concursos publicitários, sugerindo-se facilidade na realização da chamada (“é o preço de um café”) e na obtenção do prémio, incitando-se à realização de mais do que uma chamada e alimentando-se a expectativa de o consumidor conseguir, por aquela via, fazer face a todos os seus compromissos financeiros e realizar os seus sonhos de vida. Seja em espaços exclusivamente dedicados ao efeito, seja no decurso de espaços de entrevistas a convidados ou de momentos musicais, os apelos verbais surgem acompanhados por elementos gráficos, que estimulam, igualmente, à realização de chamadas, os quais permanecem no ecrã desde alguns segundos até vários minutos.

Neste particular, creio que a norma autorreguladora gizada pelos operadores de televisão não satisfaz, minimamente, as exigências de proteção dos consumidores vulneráveis, ao prever que “apenas serão permitidos, no máximo, 5 (cinco) períodos de apelo pelos apresentadores, com a duração total máxima de 12 minutos, por hora de programa” (art. 10.º). A quantificação do tempo de duração máxima dos períodos de apelo revela-se manifestamente excessiva, tanto mais porque é utilizada, até ao limite estipulado, no final dos programas de entretenimento, coincidentes com períodos de confeção e toma de refeições (almoço ou jantar) ou de regresso a casa de trabalhadores (após jornada de trabalho) e imediatamente anteriores a espaços de informação, logo, previsivelmente, de maior audiência. No limite, como alerta a Entidade Reguladora para a Comunicação Social, com a promoção persistente dos concursos nos programas de day-time, corre-se o risco de se desvirtuar a “linha editorial subjacente a um programa de entretenimento, comprometendo-se, deste modo, a identidade e integridade do mesmo”, a ponto de se inverter “toda a lógica do programa (…) anunciado, (…) transformando-o num conteúdo essencialmente promocional, onde o entretenimento e as variedades tendencialmente se convertem em mero pretexto para captar a atenção do espectador para a verdadeira mensagem que se quer passar: a da promoção do concurso e da persuasão à realização do maior número de chamadas telefónicas”, em contravenção com o disposto no art. 9.º-1-a) da Lei n.º 27/2007.

Por todo o exposto, merece o nosso aplauso a decisão de criação de um Grupo de Trabalho para a Revisão do Regime dos Concursos e Passatempos, vertida no Despacho n.º 1620/2021 do Secretário de Estado do Comércio, Serviços e Defesa do Consumidor – cujas conclusões ainda não são conhecidas (embora já devessem ter sido apresentadas até ao dia 15 de abril de 2021) –, consequente à Recomendação n.º 7/B/2020 da Senhora Provedora de Justiça, na qual, a par da necessidade de reforço da proteção dos consumidores mais vulneráveis, também se suscitam sérias dúvidas quanto à conformidade dos regulamentos dos concursos com o Decreto-Lei n.º 422/89, mormente os seus arts. 159.º e ss., por estar em causa uma modalidade afim dos jogos de fortuna ou azar. Muito sucintamente, conclui-se naquela Recomendação que o uso de números de tarifa especial majorada, como sejam os números com prefixo 760 e 761, viola o disposto no art. 161.º-2 do Decreto-Lei n.º 422/89, que proíbe dispêndio para o jogador que não seja o do custo normal de serviço público de telecomunicações (cfr. arts. 3.º-jj) e 86.º e ss. da Lei n.º 5/2004), assim como se sustenta que a utilização de cartões de débito como prémio colide com o preceito do art. 159.º-1-in fine, isto porque, como já referido pelo Serviço de Regulação e Inspeção de Jogos, “um cartão de débito não constitui uma coisa «com valor económico», mas um verdadeiro prémio em dinheiro, uma vez que o cartão de débito constitui uma forma de pagamento eletrónico que permite a dedução do valor de uma compra diretamente no cartão do titular e por representar um título indicativo de uma quantia monetária suscetível de ser movimentada a qualquer momento”.


[1] Neste sentido, o Considerando (82) da Diretiva 2010/13/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 10 de março de 2010, relativa à coordenação de certas disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados-Membros respeitantes à oferta de serviços de comunicação social audiovisual (Diretiva «Serviços de Comunicação Social Audiovisual»), que reza nos seguintes termos: “Para além das práticas reguladas pela presente diretiva, as práticas comerciais desleais, como as práticas enganosas e agressivas, que se verifiquem nos serviços de comunicação social audiovisual são reguladas pela Diretiva 2005/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, relativa às práticas comerciais desleais das empresas face aos consumidores no mercado interno”, que foi transposta para a ordem jurídica nacional por via do Decreto-Lei n.º 57/2008.

[2] Pronúncia reproduzida na Deliberação 99/2015 (OUT-TV) do Conselho Regulador da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (Concursos publicitários de participação telefónica nos serviços de programas televisivos generalistas RTP1, SIC e TVI)

[3] Ver, a título exemplificativo, os regulamentos dos concursos “Casa Feliz 2021 – 2.ª Edição” e “Camião da Sorte 2021”, promovidos pela SIC, e “Dois às 10 2021 – 2.ª Série” e “Somos Portugal – Junho/Julho 2021”, promovidos pela TVI.

[4] Previstos no art. 11.º do “Acordo de Autorregulação”, onde se prevê: a emissão de texto em oráculo – “O concurso publicitário x/x foi autorizado pela SGMAI. Prémio em [menção do prémio em espécie], não convertível em dinheiro. Antes de participar, consulte o regulamento em [sítio da internet] e no teletexto. Cada chamada tem o custo de € x + IVA. Idade mínima de participação: 18 anos. Limite máximo diário de x chamadas neste concurso, por número de telefone de origem. Participe no concurso de forma informada e responsável” –, o qual deve obrigatoriamente obedecer a um tamanho e um tipo de letra que torne possível a sua leitura pela generalidade dos espectadores, devendo a altura dos caracteres corresponder, no mínimo, a um terço da altura dos caracteres utilizados no oráculo para a divulgação do número de telefone usado para inscrição nos concursos; caso o oráculo seja divulgado em movimento (vulgo, ticker), deve o mesmo deslocar-se a uma velocidade que permita a sua leitura pela generalidade dos espectadores; deve ser divulgado, pelo menos 4 vezes por hora de programa, o sítio da internet e/ou a página de teletexto onde se encontra disponível o regulamento relativo ao concurso (observando-se, para tanto, as exigências formais de tamanho e tipo de letra e velocidade do oráculo anteriormente referidas); sempre que seja utilizado um grafismo para comunicação dos concursos, deve ser mencionada regularmente informação sobre a existência de regulamento aplicável ao concurso e a forma de acesso ao mesmo, bem como informação sobre valor e natureza do prémio (“em cartão”), sendo aplicáveis a tais grafismos os já referidos requisitos quanto ao tamanho e tipo de letra.