Conhecimento completo e efetivo por quem use de comum diligência

Legislação

A lei portuguesa é bastante protetora do aderente em contratos celebrados com recurso a cláusulas contratuais gerais, em especial no que respeita à inclusão dessas cláusulas em contratos singulares, ou seja, nos contratos efetivamente celebrados entre aderente e predisponente. Na prática, uma aplicação rigorosa e séria, quer das normas aplicáveis, quer dos princípios cujo respeito estas visam garantir leva a excluir dos contratos, por vício de comunicação e/ou de esclarecimento, a maioria das cláusulas contratuais gerais que os predisponentes neles pretendem incluir.

Ao nível da comunicação, o critério é simples e bastante claro. Perante uma cláusula contratual geral supostamente incluída num contrato, é necessário perguntar se uma pessoa que “use de comum diligência” teria tomado “conhecimento completo e efetivo” da cláusula (art. 5.º-2 do DL 446/85). Se a resposta for positiva, a cláusula poderá estar incluída no contrato (será ainda necessário que passe pelo crivo do esclarecimento). Se a resposta for negativa, ou seja, se uma pessoa com diligência comum não teria tomado conhecimento completo e efetivo da cláusula, a consequência é a sua exclusão do contrato celebrado.

Ao longo dos últimos anos, perguntei várias vezes a turmas com dezenas e até por vezes centenas de estudantes quem é que já tinha lido as cláusulas apresentadas numa atualização de software. Ou num contrato celebrado online antes de descarregar uma aplicação digital. Até hoje ninguém me disse já ter lido, pelo menos por uma vez, os longos clausulados apresentados neste contexto[1]. E em todos estes casos se afirma, para poder passar ao passo seguinte, ter lido (e por vezes até compreendido) as cláusulas em causa[2]. Certamente já por mim passaram alguns estudantes pouco diligentes. Tão certo é que também os tive muito diligentes. E muitos, como eu, medianamente diligentes.

O critério é simples e claro, sendo-o também a consequência. Nenhuma dessas cláusulas integra o contrato celebrado (art. 8.º-a) do DL 446/85). E não integra o contrato por imperativo de justiça. Nem se pode dizer que a cláusula é imposta por uma das partes à outra, pois para impor alguma coisa a alguém é necessário que exista a consciência por parte desse alguém de que alguma coisa lhe é imposta.

Num estudo recente da Comissão Europeia sobre as atitudes dos consumidores face às cláusulas apresentadas pelos profissionais [Study on consumers’ attitudes towards Terms and Conditions (T&Cs)], parte-se do princípio de que os consumidores não as leem. Apresenta-se aí uma solução para as empresas: encurtar e simplificar os clausulados.

No Ac. do STJ, de 3/10/2017, estava em causa a cláusula n.º 207 do contrato de seguro celebrado entre as partes, que limita ou afasta a responsabilidade da seguradora em determinados casos, tendo o tribunal concluído que foi feita a comunicação ao aderente do teor integral das cláusulas contratuais, defendendo que o comportamento do aderente foi negligente ou pouco diligente[3]. Só a circunstância de estarmos a falar da cláusula n.º 207 é suficiente para concluirmos que um aderente que usasse de comum diligência, tendo em conta os hábitos e o grau de cultura dos portugueses, não teria dela tomado conhecimento. Uma cláusula com esta relevância teria de ser apresentada de forma destacada e não incluída no meio de centenas de cláusulas. O Direito está longe da realidade e do seu objetivo de prossecução da justiça se permitir que centenas de cláusulas possam ser incluídas unilateralmente num contrato de consumo, ficcionando-se que alguma pessoa, com a exceção do advogado que as redigiu, as venha um dia a ler. Felizmente, a lei não o permite. Falta garantir que a lei é aplicada de forma rigorosa e séria. São incluídas no contrato apenas as cláusulas de que um aderente comummente diligente tome conhecimento completo e efetivo.


[1] Larry Magid (“It Pays To Read License Agreements”) refere um caso em que foi incluída, num clausulado extenso na Internet, uma cláusula que determinava que, quem a lesse, tinha direito a uma compensação financeira; só depois de quatro meses e três mil downloads é que alguém reclamou a compensação, tendo-lhe sido atribuídos $ 1000.

[2] Uma cláusula com este conteúdo (indicação de tomada de conhecimento) será, em regra, nula, nos termos dos arts. 19.º-d) e 21.º-e) do DL 446/85.

[3] Refere-se, a propósito, a letra da canção Uma Alma Caridosa, de Jorge Palma: “Fui à última instância, enchi-me de brio / li a Constituição toda de fio a pavio / havia um artigo que lido com atenção / era como nos seguros: a gente nunca tem razão”.

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