Contratação de serviços adicionais associados ao fornecimento de energia elétrica ou de gás

Doutrina

Atualmente, os comercializadores de energia elétrica e de gás natural, no desenvolvimento da sua estratégia mercantil, além de promoverem ofertas de prestação dos serviços públicos essenciais (art. 1.º-2-b) e c) da LSPE), também procedem, de forma associada, à comercialização de “serviços adicionais” (art. 2.º-bbbb) do RRCSEG), designadamente serviços de assistência técnica a equipamentos e a instalações domésticas (e.g. “Funciona”, da EDP Comercial; “Assistência Casa”, da Galp Power; “OK Serviços de Assistência”, da Endesa) e serviços de análise e gestão de consumos, através de equipamento com acesso por internet integrado ou aplicação em dispositivo móvel autónomo (e.g. “EDP Re:dy”, da EDP Comercial; “app Casa Galp”, da Galp Power; “app Iberdrola Clientes Portugal”, da Iberdrola).

Como vem sendo experienciado por muitos consumidores, quer na fase pré-contratual (i.e., no momento da sua formação), quer na fase contratual (i.e., aquando da sua execução) nota-se uma incontornável conexão entre os contratos que têm por objeto aqueles “serviços adicionais” e o(s) contrato(s) de fornecimento de eletricidade e/ou gás natural. Desde logo, e em todos os casos, porque a celebração dos primeiros pressupõe logicamente a existência do(s) segundo(s). Depois, porque, nalguns casos, a oferta da possibilidade de celebração simultânea dos contratos com a mesma contraparte, não constituindo fundamento suficiente para determinar a diferenciação de propostas de fornecimento (art. 16.º-2 a 4 do RRCSEG), possibilita o acesso a condições mais favoráveis, em termos de preço e, até, de prazo (mais curto) de disponibilização do “serviço adicional”. Ademais, quando aplicável, a interpelação para pagamento de prestação (mensal) devida pela disponibilização do “serviço adicional” é integrada na fatura emitida pelo comercializador (também, em regra, com periodicidade mensal – arts. 9.º-2 da LSPE e 45.º-1 do RRCSEG) para discriminação dos serviços de fornecimento de energia elétrica e/ou de gás prestados na instalação do utente.

Assim sendo, ainda que os contratos de prestação de “serviços adicionais” não se confundam juridicamente com o(s) contrato(s) de fornecimento de eletricidade e/ou gás natural, afigura-se necessário acautelar o risco de o consumidor, no momento da conclusão dos contratos, não percecionar, com clareza, a existência de contratos autónomos, as condições que regem cada um dos contratos e as eventuais implicações de vicissitudes sofridas por uma das relações jurídicas no outro vínculo negocial.

Para tanto, e conferindo obrigatoriedade às boas práticas a adotar no âmbito dos mercados, dirigidas aos comercializadores de energia por via da Recomendação da ERSE n.º 1/2017, o art. 17.º do RRCSEG dispõe, sob o n.º 1, que “[o] comercializador em regime de mercado deve informar, de forma completa, clara, adequada, acessível e transparente, os seus clientes quanto à subscrição de serviços adicionais”. Trata-se da consagração de um particularmente exigente dever de informação (constitucionalmente consagrado no art.º 60.º-1 da CRP e previsto, em termos gerais, no plano do direito ordinário, no art. 8.º-1 da LDC e nos arts. 5.º e 6.º do RJCCG, estes últimos aplicáveis pelo facto de a subscrição dos “serviços adicionais” se operar através da aposição da assinatura em contrato de adesão formado com recurso à predisposição de cláusulas contratuais gerais), que reclama uma identificação inequívoca dos “serviços adicionais” e respetivos preços.

Tanto assim que, logo no n.º 2 do mesmo art. 17.º do RRCSEG, se prescreve que “[o] comercializador deve igualmente explicitar que os serviços adicionais são independentes e não interferem com a prestação do serviço público essencial[1], salvo na situação em que haja eventual concessão de descontos pela subscrição desses serviços” – os quais devem ser claramente identificados e quantificados na ficha contratual padronizada, prevista no n.º 6 do art. 16.º do RRCSEG, a entregar ao utente consumidor – e, no mesmo sentido, o n.º 3 do art. 47.º do RRCSEG postula que “(…) os preços praticados relativos a produtos e serviços (…) adicionais [devem] ser autonomamente apresentados aos clientes, tendo por base o contrato celebrado que não seja o contrato de fornecimento”.

Sem prejuízo, cumpre notar que o referido dever de informação não impende sobre o comercializador somente na fase pré-contratual. Na verdade, atendendo ao facto, já acima exaltado, de a ligação entre os contratos que têm por objeto os “serviços adicionais” e o(s) contrato(s) de fornecimento de energia elétrica e/ou gás natural se fazer sentir, de igual modo, na fase do cumprimento destes vínculos negociais, a observância daquele dever de informação também se exige e impõe, nomeadamente, no momento da renovação contratual da prestação de “serviços adicionais”, geralmente sujeita a período mínimo de vigência do contrato (período de fidelização).

Neste caso, de acordo com a Recomendação n.º 1/2017 e à semelhança do que se dispõe no n.º 5 do art. 19.º do RRCSEG para o contrato de fornecimento de energia elétrica ou de gás, a renovação do período de fidelização deve ser objeto de aviso prévio, separado da fatura de energia, remetido com uma antecedência mínima razoável (diria, 30 dias, por analogia com a solução prevista no n.º 3 do art. 69.º do RRCSEG para a alteração unilateral do contrato pelo comercializador) ao consumidor, a fim de este, querendo, exercer o direito de oposição à renovação.

Também no âmbito da execução dos contratos conexos a que vimos fazendo referência, ao abrigo da previsão do art. 6.º da LSPE (que remete para o n.º 4 do art. 5.º do mesmo diploma legal), se o consumidor, por algum motivo, não proceder ao pagamento de valor correspondente a “serviço adicional”, sem, todavia, deixar de efetuar a contraprestação devida pelo fornecimento de eletricidade e/ou gás, tem o mesmo direito à quitação da divida relativa ao(s) serviço(s) público(s) essencial(ais)[2]. Ainda que incluído na mesma fatura (por intermédio da qual é reclamado o pagamento de um preço unitário) e associado ao fornecimento de energia elétrica e/ou de gás, o “serviço adicional” é funcionalmente dissociável do(s) serviço(s) de interesse económico geral, porque a cessação da prestação de um dos serviços não implica necessariamente a cessação da prestação do(s) restante(s)[3].

Por outro lado, se se verificar a migração do(s) contrato(s) de fornecimento de energia de um comercializador cessante para um novo comercializador com o qual o consumidor celebrou ou pretende celebrar um novo contrato de fornecimento de energia elétrica e/ou de gás (processo de mudança de comercializador, regulado, entre outros, nos arts. 235.º a 238.º do RRCSEG e no Anexo I à Diretiva n.º 15/2018 da ERSE), conforme assinala a Recomendação n.º 1/2017, importa, igualmente, assegurar a tutela do cliente (por forma a que este não sofra quaisquer entraves, ainda que indiretos, à mudança de comercializador), em face de um de dois cenários possíveis: a) caso o programa contratual do “serviço adicional” a que o utente consumidor aderiu preveja que a mudança de comercializador determina a cessação daquele serviço associado (ao fornecimento de energia pelo comercializador cessante), tal mudança não deve implicar qualquer penalização ou pagamento posterior correspondente a serviços que não tenham sido efetivamente prestados; b) na hipótese de o mesmo clausulado contratual não estipular, para a situação de ocorrência de migração de contrato(s), a cessação automática do “serviço adicional” (v.g., deixando tal extinção do contrato sob dependência de uma opção do cliente), a mudança não pode implicar um agravamento do preço, das condições ou dos prazos de pagamento do serviço que se mantenha vigente.

Uma derradeira consideração para manifestar discordância com a 7.ª e última recomendação constante da Recomendação n.º 1/2017. Sustenta o Conselho de Administração da ERSE que «[q]uando, nos termos da lei, seja invocada a prescrição ou caducidade do direito ao recebimento do preço dos serviços públicos essenciais, deve entender-se que tal invocação abrange os serviços (…) “adicionais” ligados e faturados conjuntamente». Ora, a prescrição extintiva de curta duração prevista no art.10.º-1 e 2 da LSPE aplica-se ao direito ao recebimento do preço relativo ao(s) serviço(s) público(s) essencial(ais), entendido em sentido estrito, e, no limite, aos demais créditos relativos ao(s) contrato(s) de fornecimento daqueles serviços que mantenham uma relação de acessoriedade com o crédito (principal) do preço (v.g. crédito de juros e, eventualmente, indemnização por incumprimento de obrigação de permanência/cláusula de fidelização[4]). O facto de os créditos respeitantes a “serviços adicionais” serem faturados conjuntamente com os relativos aos serviços essenciais a que estão associados, não constitui fundamento ponderoso para apoiar uma extensão do âmbito da aplicação das soluções normativas consagradas no art.10.º-1 e 2 da LSPE nos termos sugeridos pela recomendação.


[1] Uma previsão que também foi refletida, sob ponto 1.5., na Recomendação da ERSE n.º 1/2019, entre um elenco de recomendações dirigidas aos comercializadores de eletricidade para reformulação de cláusulas dos contratos de adesão propostos aos utentes consumidores.

[2] Neste sentido, Jorge Morais Carvalho, Manual de Direito de Consumo, Coimbra, Almedina, 7.ª edição, 2020, p. 392, e Pedro Falcão, O Contrato de Fornecimento de Energia Elétrica, Petrony Editora, 2019, pp. 84-85.

[3] Flávia da Costa de Sá, Contratos de Prestação de Serviços de Comunicações Eletrónicas: A Suspensão do Serviço em Especial, Dissertação com vista à obtenção do grau de Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade NOVA de Lisboa, 2014, p. 62.

[4] Como defendido, recentemente, no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 29.04.2021.

Do #NOFILTER ao #FILTERDROP: o esforço legislativo no combate à distorção digital da beleza

Doutrina

Tem circulado pela internet nos últimos dias a notícia de que fora sancionada no último dia 11, através do Decreto Legislativo 146 (2020-2021), a emenda à Lei de Marketing norueguesa, que “visa ajudar a reduzir a pressão corporal na sociedade devido às pessoas idealizadas na publicidade[1]. Após uma esmagadora votação de 72 votos a favor e 15 contra, a alteração legislativa passa a obrigar os influenciadores digitais a identificar as fotografias que tenham sido retocadas. As redes sociais visadas pela medida vão desde o Instagram, passando pelo Facebook, TikTok, Twitter e Snapchat.

Não é de hoje que o NOVA Consumer Lab tem trabalhado sobre a influência das redes sociais e das tecnologias sobre o comportamento social. Mais do que nunca, as redes sociais deixaram de ser meros instrumentos de compartilhamento de rotina e vida pessoal, com fotos de família, crianças e animais para ceder espaço ao lucro e à comercialização de produtos e serviços. Hoje, a regra é clara: curvas incríveis, padrões inigualáveis e um quase “conto de fadas da beleza”.

Por trás da perfeição dos corpos e lifestyle presentes nas mídias sociais, sob a égide da despretensiosa naturalidade, estão, entretanto, os patrocínios, parcerias, publicidades e, sobretudo, os inúmeros retoques às fotos e vídeos publicados por aqueles que ditam, para além de tendências, o novo ideal de vida e beleza.  Naomi Wolf, autora feminista e ativista dos direitos civis nos EUA, já em 1992 apontava o fato de o mito da beleza estar sempre prescrevendo comportamentos, não aparência[2]. Cada vez mais incomodados com os resultados sociais advindos dessa dita pressão estética, reguladores e legisladores pelo mundo estão a reagir à propaganda da perfeição aparente. Em fevereiro deste ano, logo após uma campanha que circulava dentro das próprias redes sociais (#filterdrop), a Advertising Standards Authority (ASA) – agência reguladora de propagandas do Reino Unido, aprovou uma legislação muito semelhante à norueguesa, e passou a determinar que os influenciadores digitais do país não fizessem mais uso de filtros “enganosos” em campanhas com produtos de beleza nas mídias.

Na França, desde 2017, vigora a determinação de obrigatoriedade da mensagem “photografie retouchée” para fotos que tenham sofrido qualquer tipo de alteração por programas digitais, demonstrando o esforço por tornar a mídia mais responsável em termos de publicidade.

Já na Noruega, a regra visa proibir que os influenciadores compartilhem imagens sem a devida sinalização de retoque e uso de filtros de beleza, os quais foram projetados para melhorar a aparência, incluídos como recursos comuns aos aplicativos de redes sociais atuais. Proposta pelo Ministério da Infância e da Família, a lei integra os esforços públicos de contenção da distorção de imagem no país, devendo ser seguida por todos influenciadores e celebridades que recebam pagamento para criação de anúncios nas redes com uso de técnicas de pré e pós-produção de imagem. O não cumprimento da lei pode implicar não somente em sanções pecuniárias, como também pena de prisão.

Acerca da construção de um ideal de beleza física e da influência das redes sociais sobre o bem-estar, uma pesquisa recente realizada pela Dove, e conduzida pela Edelman Data & Intelligence, com mulheres dos EUA, Reino Unido e Brasil, aponta que 84% das jovens com 13 anos já aplicaram filtro ou realizaram algum tipo de edição em suas fotos. Os dados divulgados pela pesquisa ainda tratam do fato de que mais da metade das mulheres se compara com as fotos publicadas na internet, além de temer publicar fotos de seu corpo em virtude dos padrões atualmente estabelecidos.

Em Portugal, a pesquisa aponta que 2 em cada 3 raparigas tentem mudar ou esconder pelo menos uma parte do corpo antes de publicarem uma fotografia sua, tal como a cara, o cabelo, a pele, a barriga ou o nariz, para removerem “imperfeições” e corresponderem a padrões de beleza irrealistas”.

As técnicas de produção que aprimoram ou alteram uma imagem com fins comerciais não são novidade no mundo da publicidade e exige atenção dos consumidores que, em razão dos retoques realizados, possam vir a ser enganados pelas alegações visuais exageradas ou, até mesmo, impossíveis de atingir. Em Portugal, o tema ainda não tem nenhum tipo de tratamento especial, embora vigore o Código da Publicidade e a Constituição da República Portuguesa estabeleça, no art. 60º, a proibição à publicidade considerada oculta, o que, em nossa visão, pode estar pressuposta em posts relacionados a produtos e serviços de estética, alimentação ou emagrecimento, por exemplo.

No mesmo sentido, a Entidade Reguladora da Saúde, em 2015, após a aprovação do Decreto-Lei n.º 238/20, tornou-se a entidade competente para a fiscalização em matéria de publicidade em saúde. A normativa é mais uma a prescrever a obrigatoriedade de clareza na publicidade, em seu art. 7.º, ainda que não trate especificamente da abordagem relacionada às redes sociais. 

Fato é que padrões de beleza sempre existiram e as características ideais variam ao longo da história. A despeito do esforço legislativo em favor do combate à distorção digital de corpos e da construção de padrões inatingíveis de beleza física, normalmente ocultos sob retoques e adaptações de imagem, é preciso notar que nem sempre o Direito terá as soluções para problemas cujas raízes são de cunho muito mais social, e psíquico, do que legal. Atualmente, até mesmo a mercantilização do movimento “body positive” pode impedir uma autêntica solução da questão que, historicamente, remonta ao uso de espartilhos, pílulas de arsênicos, maquiagens com chumbo e dietas absurdamente restritivas.

Ainda que os instrumentos regulamentares sejam necessários e possamos enxergá-los como meios hábeis a reduzir a pressão sobre a imagem física, é preciso compreender o espectro limitado dessas atuações e recordar que a idealização da beleza é muito mais profunda e complexa do que a utilização de filtros. Não podemos, não queremos e nem devemos nos reduzir a somente legislar o tema, quando é preciso discutir seriamente questões como representação, sexualização e objetificação do corpo como instrumento comercial, atentos ao fato de que redes sociais são mais do que redes de socialização, mas grandes empresas voltadas, sobretudo, ao lucro.


[1] Tradução da Decisão resumida da emenda legislativa à Lei de Marketing, 2009, da Noruega.

[2] WOOLF, N. O Mito da Beleza. Como as Imagens de Beleza são usadas contra as Mulheres. Tradução de Waldéa Barcellos. Rio de Janeiro. Ed. Rocco, 1992


Contrato de Fornecimento de Energia Elétrica e Direito à Cobrança do Preço

Doutrina

O contrato de fornecimento de energia elétrica é um contrato misto, com elementos de compra e venda (art. 874.º do Código Civil) e de prestação de serviço (art. 1154.º do Código Civil) por terceiro, de execução duradoura, nos termos do qual o comercializador, nas palavras de Pedro Falcão, “única contraparte do utente no contrato”, se obriga à “venda da eletricidade e a promessa da prestação do serviço pelo terceiro operador da rede, consubstanciada na instalação e manutenção do contador, na entrega da eletricidade e na medição do consumo” (prestação de execução continuada), encontrando-se o utente adstrito à contraprestação, de execução periódica, consistente no pagamento do preço proporcional à energia elétrica pelo mesmo efetivamente consumida, fixado por unidade de medida (kWh), e reconduzível à figura da venda ad mensuram (art. 887.º do Código Civil).

No âmbito da execução do contrato, impende sobre o comercializador de energia elétrica o cumprimento do dever de informação ao utente (arts. 4.º da LSPE  e 3.º da Lei n.º 5/2019, de 11 de janeiro), sendo um dos seus corolários mais imediatos e mais relevantes, a obrigação de emissão de faturação detalhada, com periodicidade mensal, dotada dos elementos necessários a uma completa, clara e acessível compreensão dos valores faturados, na qual se discrimine, nomeadamente o montante referente aos bens fornecidos ou serviços prestados (arts. 9.º-4 da LSPE e 8.º-1 da Lei 5/2019).

Por força do disposto no art. 43.º-2 a 4 do Regulamento de Relações Comerciais do Setor Energético e do Gás (RRC), a faturação apresentada pelo comercializador ao utente tem por base a informação sobre os dados de consumo disponibilizada pelo operador da rede, obtida por este mediante leitura direta do equipamento de medição (art. 37.º-2 e 7-b) do RRC e ponto 29.1.2. do Guia de Medição, Leitura e Disponibilização de Dados de energia elétrica em Portugal continental – GMLDD) – ou por estimativa de valores de consumo, nos intervalos entre leituras de ciclo, com recurso a método, previsto no GMLDD e escolhido pelo utente no momento da celebração do contrato, que aproxime o melhor possível os consumos faturados dos valores reais de consumo (arts. 39.º e 43.º-5 do RRC), na certeza, porém, que deve prevalecer, sempre que existente, a mais recente informação de consumos obtida por leitura direta do equipamento de medição, nesta se incluindo a que tenha sido comunicada pelo utente (arts. 37.º-1, 3 e 4 e 43.º-3 do RRC).

O primeiro dos pressupostos constitutivos do direito de crédito do comercializador ao pagamento do preço pelo utente consiste no facto de a quantidade de energia elétrica refletida na fatura ter sido registada pelo equipamento de medição instalado, em cada momento, no local de consumo do utente. É, portanto, com base nos dados de consumo obtidos mediante leitura do equipamento de medição afeto à instalação de consumo do utente que se deve aquilatar da correção da quantia peticionada a título de energia ativa consumida, desde que, por sua vez, esses dados tenham sido extraídos de equipamento de medição metrologicamente conforme – o segundo pressuposto constitutivo da posição jurídica ativa do comercializador.

Nos termos do art. 5.º-1 do Decreto-Lei n.º 45/2017, de 27 de abril, só podem ser disponibilizados no mercado e colocados em serviço os instrumentos de medição que satisfaçam os requisitos previstos no diploma e sejam objeto de uma avaliação de conformidade. Os instrumentos de medição que cumpram as exigências previstas no diploma gozam de uma presunção de conformidade.

O ponto 10.5 do Anexo I deste diploma estabelece que, “independentemente de poderem ou não ser lidos à distância, os instrumentos de medição destinados à medição de fornecimentos de serviços públicos devem estar equipados com um mostrador metrologicamente controlado que seja acessível ao consumidor sem a utilização de ferramentas. O valor indicado neste mostrador é o resultado que serve de base para determinar o preço da transação”.

Adicionalmente, importa atender ao disposto no art. 7.º-1 do Anexo à Portaria n.º 321/2019, de 19 de setembro, de acordo com o qual a “verificação periódica dos instrumentos de medição é anual, salvo no caso dos contadores de água, dos contadores de gás e instrumentos de conversão de volume e dos contadores de energia elétrica ativa, cuja periodicidade é a indicada no quadro n.º 1 constante do anexo ao presente Regulamento”, ou seja, 12 anos. Estão previstas normas para os contadores de energia elétrica ativa em utilização e instalados ao abrigo de regulamentos anteriores à portaria. Face a tudo quanto precede e nessa conformidade, forçoso é concluir que, como declarado, entre outras, na Sentença do TRIAVE, de 22 de outubro de 2018, Processo n.º 1601/2018/FL (relator: Dr. Paulo Duarte), “a prova da realização do fornecimento (ou, simetricamente, do consumo) de energia elétrica, e da correspondente quantidade real (a prova, pois, da realização e da real medida da prestação do fornecedor deste “serviço público essencial”), apenas pode fazer-se através de indicação constante de contador metrologicamente conforme, considerando quer os requisitos essenciais de colocação em serviço, quer as exigências de verificação periódica”.

A admissibilidade da venda de smartphones sem adaptador à luz do direito à informação

Doutrina

Antes da chegada dos smartphones, e numa altura em que o e-waste era um termo desconhecido para a maioria das pessoas, era comum que cada fabricante fosse responsável por, pelo menos, um carregador proprietário. De acordo com a avaliação de impacto inicial, elaborada pelo grupo de peritos da Comissão Europeia sobre equipamentos de rádio (E03587), também conhecido por RED expert group, em 2009, […] mais de 30 soluções proprietárias existiam no mercado”.

Numa perspetiva de sustentabilidade, e para mitigar o impacto ambiental causado pela falta de estandardização, a União Europeia decidiu agir.
O memorando de entendimento relativo à harmonização da capacidade de carregamento para telemóveis, de 5 de junho de 2009, foi um dos primeiros passos neste sentido, e permitiu iniciar o diálogo com as empresas de telemóveis no que concerne à adoção voluntária do micro-USB para efeitos de interoperabilidade e diminuição de lixo eletrónico. É por volta desta altura que começam a proliferar pelo mercado carregadores compostos por duas peças: um cabo micro-USB e um adaptador de corrente. Estes têm um impacto ambiental menor e conferem vantagens económicas para o consumidor pois, ao permitir trocar o cabo, a parte mais frágil e mais propícia a deixar de funcionar, o consumidor prolonga a vida do adaptador de corrente.
A União Europeia continuou os seus esforços no sentido de reduzir o e-waste e, para tal, apostou na padronização dos carregadores com a Diretiva 2014/53/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de abril de 2014 e com um novo Memorando de Entendimento emitido a 20 de março de 2018. Neste memorando, é adotado o USB-C como a nova solução comum para o carregamento de equipamentos eletrónicos, persistindo o caráter voluntário de adoção como no já referido memorando de 2009.
É neste contexto que temos de analisar a nova prática comercial de não incluir adaptadores de corrente juntamente com os telemóveis, procurando dar uma resposta à questão da admissibilidade desta prática.

Oferecendo uma resposta breve, podemos dizer que ao abrigo das regras de mercado livre, e desde que informe devidamente o consumidor, o profissional pode deixar de incluir o adaptador de corrente nas caixas de telemóvel, existindo já uma decisão neste sentido no Brasil[1]. O desequilíbrio na relação comercial em análise surge se o profissional não informar que alterou o conteúdo incluído na caixa do telemóvel, apresentando-o como se nenhuma alteração tivesse sido feita, ferindo as expectativas do consumidor.
O direito à informação está constitucionalmente garantido no art. 60.º-1 da Constituição da República Portuguesa, estando também previsto, em termos gerais, na alínea d) do art. 3.º da Lei de Defesa do Consumidor (LDC). A LDC concretiza este direito nos arts. 7.º e 8.º, relevando o último para efeitos de resolução do caso em questão, por tratar do direito à informação em particular. O art. 8.º-1-a) esclarece que “o fornecedor de bens ou prestador de serviços deve, tanto na fase de negociações como na fase de celebração de um contrato, informar o consumidor de forma clara, objetiva e adequada […] nomeadamente sobre […] as características principais dos bens ou serviços”. Este artigo necessita de alguma adaptação ao caso em análise se quisermos diferenciar os acessórios e o bem principal, em vez de uma análise conjunta do conteúdo da caixa. Não obstante, mesmo que não fosse possível situar o caso em estudo no art. 8.º-1-a), o n.º 1 não apresenta um conjunto fechado de situações para as quais o profissional tem o dever de informar o consumidor. Caso contrário, o consumidor ficaria desprotegido em várias situações. A utilização do termo “nomeadamente” aponta para esse sentido, pelo que é possível enquadrar o caso em análise no espírito da norma.
Como consequência da falta de informação sobre o conteúdo da caixa, o art. 8.º-5 estabelece que “o fornecedor de bens ou o prestador de serviços que viole o dever de informar responde pelos danos que causar ao consumidor”. Este número deve ser articulado com o n.º 4 do mesmo artigo, que esclarece que, quando se verificar falta de informação que comprometa a utilização adequada do bem, o consumidor tem o direito de resolução do contrato no prazo de sete dias úteis a contar da data de receção do bem. A essencialidade do adaptador é evidente por não ser possível carregar, ou carregar eficazmente o telemóvel, recorrendo apenas ao cabo que vem incluído na caixa. Deste modo, a utilização adequada do telemóvel fica comprometida se o profissional não informar que o adaptador, ao contrário do que costuma ser a prática reiterada deste mercado, não está incluído com o telemóvel.
Assim, por efeito da violação do dever de informação pelo profissional, o consumidor tem o direito de resolução do contrato no prazo de sete dias úteis a contar da data de receção do bem, bem como o direito a indemnização, nos termos gerais.


[1] Para aceder ao documento é necessário introduzir o número de processo 1019678-91.2020.8.26.0451 e o código 9463E02

Nova Agenda do Consumidor e informação sobre durabilidade e sustentabilidade dos bens

Doutrina

No dia 13 de novembro de 2020, foi comunicada pela Comissão Europeia a Nova Agenda do Consumidor , orientada pelo lema de “reforçar a resiliência dos consumidores para uma recuperação sustentável”.

A riqueza e diversidade das medidas programáticas constantes na Agenda para 2020-2025 não permitem uma análise global e detalhada nesta sede, pelo que me deterei numa temática que me parece relevante e que é tratada no domínio da transição ecológica: a durabilidade e a sustentabilidade dos bens adquiridos por consumidores.

Neste âmbito, o ponto de partida é a constatação de duas ideias-chave: (i) a crescente preocupação dos consumidores de toda a Europa com os desafios ambientais e ecológicos, (ii)  a sua (atual) incapacidade para contribuir pessoal e efetivamente para a almejada neutralidade climática, especialmente no que respeita aos consumidores com níveis de rendimentos mais baixos.

Para contrariar esta incapacidade, “o novo Plano de Ação para a Economia Circular cria uma série de iniciativas específicas para combater a obsolescência precoce e promover a durabilidade, a possibilidade de reciclagem e de reparação e a acessibilidade dos produtos”.

Entre elas destaca-se a “Iniciativa sobre a Eletrónica Circular, que visa garantir que os dispositivos eletrónicos são concebidos com vista à durabilidade, manutenção, reparação, desmontagem, desmantelamento, reutilização e reciclagem, e que os consumidores têm um «direito de reparação», incluindo atualizações de software”.

Deixarei a questão da “obsolescência precoce” e do “direito à atualização de software” para post posterior neste blog. Por agora, debruçar-me-ei sobre o papel sempre essencial que assume a informação, sobretudo porque falamos de relações assimétricas como são as que se estabelecem entre consumidores e profissionais.

Ora, os estudos estatísticos invocados pela Comissão permitem perceber a relevância da disponibilização de informação ao consumidor sobre a durabilidade dos bens, concluindo que as “vendas das versões mais duradouras podem quase triplicar” (em comparação com as vendas realizadas sem ser disponibilizada essa informação) e que “os consumidores estão mesmo dispostos a pagar mais por bens com uma maior durabilidade”.

Em termos latos, a durabilidade dos bens engloba também a possibilidade de estes serem reparados ou atualizados, o que pressupõe, nomeadamente, que estes sejam desmontáveis e existam peças sobressalentes (os leitores conhecerão certamente marcas conhecidas por alegarem não ser possível abrir equipamentos eletrónicos por elas produzidos).

Note-se que não se exige apenas a disponibilização dessa informação, mas também garantias da sua fiabilidade, confiabilidade, comparabilidade e não sobrecarga dos consumidores. Neste sentido, parece ser importante a aposta na promoção do “rótulo ecológico da UE” , que procura estabelecer critérios rigorosos de certificação de “produtos cujo impacto ambiental é mais reduzido em relação aos produtos de um mesmo grupo”, tomando em conta “todo o ciclo de vida dos produtos, desde a sua elaboração até à sua eliminação”.

É interessante ainda constatar que esta grande preocupação pela vertente ecológica e sustentável do consumo é hoje um contraponto cada vez mais necessário e urgente, nomeadamente face ao tipo de consumo “ditado” pela situação pandémica que atravessamos, que resultou num “aumento súbito dos resíduos de embalagens de utilização única e de equipamentos de proteção individual de plástico”.