Em busca de um conceito jurisprudencial de consumidor

Jurisprudência

Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 4/2019

Uma das questões mais caras e importantes no âmbito do direito do consumo é, sem dúvida, a do conceito de consumidor. Sem sabermos o que se deve entender por consumidor, nunca saberemos que relações jurídicas estão abrangidas pelas normas deste “sub-ramo jurídico”. 

No ordenamento português, inexistindo um código e estando a  legislação de direito do consumo dispersa por vários diplomas legais, cada diploma, ao delimitar o seu âmbito de aplicação (subjetivo), contém uma definição de consumidor. Não existe, portanto, um conceito único de consumidor, quer a nível nacional quer a nível internacional.

Se o legislador não conseguiu ou não quis uniformizar a noção de consumidor, também a jurisprudência tem revelado flutuações acentuadas quanto à interpretação das várias normas legais que a definem. 

E não se pense que a discussão se restringe às definições constantes de diplomas de direito do consumo. Inusitadamente, uma das mais profícuas querelas quanto ao que se deve entender por consumidor surgiu e desenvolveu-se no âmbito da graduação de créditos em insolvência.

Tudo “começou” quando o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/2014 uniformizou jurisprudência no sentido de que, “no âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no art. 755º nº 1 alínea f) do Código Civil”.

Em suma, estava em causa saber se num contrato promessa incumprido pela promitente vendedora insolvente, o promitente-comprador que seja consumidor e a quem foram transmitidos os imóveis objeto do contrato meramente obrigacional, goza do “direito de retenção” sobre os mesmos para pagamento dos seus créditos, prevalecendo assim sobre outro crédito hipotecário que sobre eles incidia. 

A decisão do STJ foi claramente favorável à posição do consumidor ante a dos credores hipotecários (em regra, entidades bancárias), imbuído do espírito legislativo que deu origem à inclusão da referida al. f) ao n.º 1 do artigo 755.º do Código Civil. Como se pode ler no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 379/86, de 11 de Novembro, “neste conflito de interesses, afigura-se razoável atribuir prioridade à tutela dos particulares. Vem na lógica da defesa do consumidor. Não que se desconheçam ou esqueçam a proteção devida aos legítimos direitos das instituições de crédito e o estímulo que merecem como elementos de enorme importância na dinamização da atividade económico-financeira. Porém, no caso, estas instituições, como profissionais, podem precaver-se, por exemplo, através de critérios ponderados de seletividade do crédito, mais facilmente do que o comum dos particulares a respeito das deficiências e da solvência das empresas construtoras”.

No entanto, o AUJ n.º 4/2014 não incluiu no segmento uniformizador a noção de consumidor, o que despoletou nova querela. Nessa decisão, apenas se refere, numa nota de rodapé (!), que o consumidor é o “utilizador final com o significado comum do termo, que utiliza os andares para seu uso próprio e não com escopo de revenda”. 

A jurisprudência posterior divergiu, essencialmente, entre duas posições: uma vertente que, numa tentativa de restringir os efeitos da interpretação restritiva do artigo 755.º-1-f) do Código Civil, entendia o conceito de consumidor como todo o utilizador final de um bem (mais abrangente); e outra vertente, que recorria à noção de consumidor consagrada na LDC, restringindo a noção de consumidor aos que destinam o bem objeto do contrato-promessa a um uso não profissional.

Para perceber o alcance da querela, nada melhor do que convocar o caso que motivou nova uniformização de jurisprudência. Tratou-se de um contrato-promessa de duas frações de um edifício constituído em propriedade horizontal, onde os promitentes-compradores, obtida a traditio, “efetuam, diariamente, tratamentos de fisioterapia, se realizam consultas de cirurgia, consultas de otorrinologia, consultas e tratamentos de saúde dentária, consultas de fisiatria, diversos exames de Tac, Ressonâncias, Raio X, Cardio e outros serviços de saúde a diversos doentes”.

Ora, com este exemplo, fica claro o sentido e alcance da querela, na medida em que apenas adotando o conceito mais amplo de consumidor poderão os promitentes-compradores daquelas frações beneficiar do direito de retenção das mesmas para obter o pagamento dos seus créditos no processo de insolvência, visto que, apesar de serem utilizadores finais do bem, o destinam a um uso profissional.

A divergência foi sanada então com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/2019, que uniformiza jurisprudência no sentido de que, “Na graduação de créditos em insolvência, apenas tem a qualidade de consumidor, para os efeitos do disposto no Acórdão n.º 4 de 2014 do Supremo Tribunal de Justiça, o promitente-comprador que destina o imóvel, objeto de traditio, a uso particular, ou seja, não o compra para revenda nem o afeta a uma atividade profissional ou lucrativa”.

De facto, esta é a solução que mais se adequa à fundamentação do primitivo acórdão uniformizador, onde se sustentou que “a opção legislativa no conflito entre credores hipotecários e os particulares consumidores, concedendo -lhes o direito de retenção teve e continua a ter uma razão fundamental: a proteção destes últimos no mercado da habitação; na verdade, constituem a parte mais débil que por via de regra investem no imóvel as suas poupanças e contraem uma dívida por largos anos, estando muito menos protegidos do que o credor hipotecário (normalmente a banca) que dispõe regra geral de aconselhamento económico, jurídico e logístico que lhe permite prever com maior segurança os riscos que corre …”.