Consumidor promitente-comprador (muito) menos protegido

Doutrina

Sem qualquer discussão pública e muito pouca publicidade ou preocupação (mediática), foi publicado recentemente no Diário da República o Decreto-Lei n.º 48/2024, de 25 de julho, que limita as situações em que o direito de retenção prevalece sobre a hipoteca, por via de uma alteração do art. 759.º do Código Civil.

O que é que está, no essencial, em causa?

Imaginemos um casal jovem que pretende comprar uma casa para viver e descobre um apartamento perfeito, num prédio a estrear, quase pronto, por € 250 000. Alguns dias depois, a empresa construtora e o casal celebram um contrato-promessa de compra e venda do imóvel com eficácia obrigacional, pagando este, a título de sinal, € 50 000. O casal passa a habitar o apartamento de imediato, apesar de as obras não estarem ainda totalmente concluídas. Entretanto, o casal está em contacto com várias entidades bancárias para conseguir um bom crédito à habitação para financiar a compra da casa. Fica combinado entre as partes que o contrato definitivo (de compra e venda) será celebrado mais tarde, quando o casal tiver conseguido o financiamento.

Entretanto, uns dias depois, a empresa construtora é declarada insolvente. Não tendo o contrato-promessa eficácia real, o administrador da insolvência poderá recusar o seu cumprimento (v. arts. 102.º e 106.º-1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas – CIRE), não se celebrando o contrato de compra e venda. Este regime é muito duvidoso do ponto de vista do equilíbrio e da justiça da solução, colocando o promitente-comprador a quem foi entregue o imóvel numa situação de tremenda fragilidade (jurídica e não só). Discutível, do ponto de vista da justiça material da solução, é igualmente a regra que não permite ao casal, neste caso, exigir a devolução do sinal em dobro, ou seja, € 100 000 (v. art. 442.º-2 do Código Civil), como crédito sobre a insolvência, nos termos do art. 102.º-3-c) do CIRE. Em qualquer caso, não há dúvida de que terá direito ao sinal em singelo, ou seja, aos € 50 000.

Neste momento, o casal é surpreendido com a notícia de que, sobre o imóvel, estava já constituída uma hipoteca, a favor de uma entidade financiadora da empresa construtora, no valor de € 5 000 000. Este valor é muito superior ao património da construtora, pelo que o casal apenas receberá qualquer valor se for pago antes da entidade financiadora.

Vejamos qual a solução legal consagrada até agora.

Nos termos do art. 755.º-1-f) do Código Civil, goza do direito de retenção “o beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do artigo 442.º”. Apesar de alguma doutrina se manifestar contrária à existência de direito de retenção nos casos em que o administrador de insolvência pode licitamente recusar o cumprimento do contrato-promessa, o Ac. do STJ, de 27/4/2021, concluiu que isso é conciliável com o reconhecimento de um direito de retenção ao promitente-comprador[1]. Concordo com esta decisão, por se tratar da solução mais justa, do ponto de vista material, salvaguardando de forma adequada quer o princípio fundamental do pacta sunt servanda quer o equilíbrio social subjacente ao problema. O crédito do casal goza, portanto, de direito de retenção.

O art. 759.º-1 do Código Civil, na versão anterior, atribuindo relevância prática a este direito de retenção, previa que o titular do direito de retenção tinha o direito “de ser pago com preferência aos demais credores do devedor”, prevalecendo o direito de retenção “sobre a hipoteca, ainda que esta [tivesse] sido registada anteriormente” (n.º 2).

É importante realçar que o Ac. do STJ, de 20/3/2014, já limitara o âmbito deste regime, uniformizando jurisprudência no sentido de que, em contrato-promessa com eficácia obrigacional e tradição da coisa, apenas beneficia do direito de retenção, no âmbito da graduação de créditos em insolvência, o promitente-comprador que possa ser qualificado como consumidor[2]. No Ac. do STJ, de 12/2/2019, foi uniformizada jurisprudência no sentido de que tem a qualidade de consumidor, para este efeito, “o promitente-comprador que destina o imóvel, objeto de traditio, a uso particular, ou seja, não o compra para revenda nem o afeta a uma atividade profissional ou lucrativa”.

Portanto, este regime aplicava-se (apenas) a consumidores, como o jovem casal da nossa história. O seu crédito seria graduado antes do crédito da entidade financiadora da construtora, o que aumentaria a probabilidade de receber o valor devido (ou, pelo menos, uma parte deste valor, se o património do insolvente não fosse suficiente para satisfazer a totalidade).

Vejamos agora qual a solução para o caso à luz do novo regime.

A alteração parece cirúrgica, tendo em conta as poucas palavras utilizadas, mas é muito significativa, retirando, sem lhe mexer, quase toda a relevância prática ao art. 755.º-1-f) do Código Civil.

A parte final do n.º 1 do art. 759.º do Código Civil é alterada, passando a circunscrever-se o direito ao pagamento preferencial, leia-se, antes do credor hipotecário (v. art. 759.º-2) aos “casos em que o crédito assegura o reembolso de despesas para a conservar ou aumentar o seu valor”. Estão em causa, por exemplo, as obras feitas pelo titular do direito de retenção para garantir que a coisa não se deteriora ou que aumenta o seu valor.

Deixa de estar abrangido o crédito do promitente-comprador a quem o imóvel tenha sido entregue e decorrente do incumprimento do contrato-promessa pelo promitente-vendedor (quer este tenha ou não eficácia real). Trata-se de um regime que visa, no essencial, apenas reduzir os direitos dos consumidores, uma vez que esta regra protegia apenas o promitente-comprador que fosse consumidor.

O casal da nossa história terá de abandonar o apartamento e, provavelmente, não irá receber nada, perdendo os € 50 000 do sinal, uma vez que o crédito da entidade financiadora passa a ser graduado antes do seu e dificilmente haverá no património da empresa construtora, que se encontra insolvente, bens suficientes para a satisfação de qualquer outro crédito.

Esta alteração legislativa encontrava-se prevista, segundo o preâmbulo do Decreto-Lei n.º 48/2024, no projeto 18.3 do Plano de Recuperação e Resiliência. Terá sido, assim, imposta pelas instituições europeias. No confronto entre o direito do consumidor que adquiriu uma casa a uma empresa a não perder, além do direito a adquirir e a residir no imóvel, o valor do sinal e o da entidade financiadora, em princípio o banco ou outra instituição de crédito que financiou a construtora, a receber o seu crédito, prefere-se atualmente este último.

A justificação está na circunstância de este ser anterior àquele, ou seja, de a hipoteca ser anterior ao direito de retenção. A solução anterior frustrava as expectativas do credor hipotecário, que era confrontado com uma alteração (relativamente) imprevisível da sua posição, na medida em que o direito de retenção não é passível de registo.

No entanto, do ponto de vista social parecia ser essa a única via aceitável – e legítima, do ponto de vista da justiça. Parece iníquo que o consumidor, provavelmente desconhecendo a existência da hipoteca, ou sequer da existência da possibilidade de não-celebração do contrato de compra e venda, não veja, no mínimo, satisfeito, o direito à devolução do valor pago.

Das duas, uma: (i) ou a alteração deste regime tem uma importância efetiva (e significativa) para a atividade financeira em geral, caso em que é muito preocupante a solução adotada, uma vez que estaremos a falar de muitas situações reais de consumidores que ficam simultaneamente sem o imóvel e sem o dinheiro; (ii) ou a alteração tem escassa relevância efetiva para a atividade financeira em geral e alguns consumidores ficarão prejudicados sem que haja uma vantagem significativa para os credores hipotecários, não sendo aquela justificada. Uma alteração tão significativa deveria ter sido acompanhada, desde o início, ou seja, desde o momento da sua inclusão no Plano de Recuperação e Resiliência, de alguma discussão, justificando-se ainda a adoção simultânea de outras medidas com vista a mitigar os efeitos desta.


[1] O tribunal justifica assim a manutenção do direito de retenção: “(…) tendo em vista a tutela da intensa expetativa do promitente-adquirente, no caso de promessa sinalizada em que tenha havido tradição da coisa, de a vir a adquirir e que se justifica, tanto em caso de incumprimento imputável ao promitente-alienante, como no caso de recusa lícita de cumprimento pelo administrador de insolvência, até porque esta é reflexamente imputável ao incumprimento daquele”.

[2] Note-se que, neste acórdão, o STJ entendeu que a recusa de cumprimento é um ato ilícito e culposo e, como tal, o promitente-comprador consumidor tinha direito à devolução do sinal em dobro (e direito de retenção). Em 2021, o STJ alterou a perspetiva, apontando no sentido de se tratar de um ato lícito, que não confere o direito ao sinal em dobro, mantendo-se, no entanto, o direito de retenção. Esta é, sem dúvida, a solução mais equilibrada, que permite ao consumidor promitente-comprador a quem foi entregue o imóvel receber preferencialmente o valor do sinal que pagou. Esse equilíbrio, como se verá, é totalmente colocado em causa pela alteração legislativa de 2024.

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