Conforme prometido, regressamos hoje ao crédito ao consumo, com uma breve análise da decisão proferida pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) no Processo C‑679/18 (acórdão de 5 de março de 2020), que trata do dever de avaliação da solvabilidade do consumidor por parte do credor.
O tribunal é chamado a pronunciar-se, no essencial, sobre a questão de saber se podem ser estabelecidos limites no que respeita à invocação pelo consumidor do incumprimento do dever em causa e se o tribunal deve poder conhecer oficiosamente desse incumprimento.
Do ponto de vista do direito português, talvez o aspeto mais interessante consista em saber se a previsão apenas de uma sanção contraordenacional é suficiente para cumprir as obrigações resultantes do direito europeu. Lá chegaremos.
As normas relevantes para o caso são os arts. 8.º e 23.º da Diretiva 2008/48/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de abril de 2008, relativa a contratos de crédito aos consumidores. O art. 8.º-1 prevê que “os Estados-Membros devem assegurar que, antes da celebração do contrato de crédito, o mutuante avalie a solvabilidade do consumidor com base em informações suficientes, se for caso disso obtidas do consumidor e, se necessário, com base na consulta da base de dados relevante. Os Estados-Membros cuja legislação exija que os mutuantes avaliem a solvabilidade dos consumidores com base numa consulta da base de dados relevante podem reter esta disposição”. Segundo o art. 23.º, “os Estados-Membros devem determinar o regime das sanções aplicáveis à violação das disposições nacionais aprovadas em aplicação da presente diretiva e tomar todas as medidas necessárias para assegurar a aplicação das referidas disposições. As sanções assim previstas devem ser efetivas, proporcionadas e dissuasivas.
Segundo o TJUE, estas disposições “devem ser interpretados no sentido de que impõem que um órgão jurisdicional nacional examine oficiosamente a existência de uma violação da obrigação pré‑contratual do mutuante de avaliar a solvabilidade do consumidor”, extraindo “as consequências que decorrem, no direito nacional, de uma violação dessa obrigação”.
Conclui ainda o tribunal que o direito europeu se opõe “a um regime nacional nos termos do qual a violação, pelo mutuante, da sua obrigação pré‑contratual de avaliar a solvabilidade do consumidor só é punida com a nulidade do contrato de crédito, acompanhada da obrigação de esse consumidor reembolsar ao mutuante o montante principal, num prazo adequado à sua capacidade financeira, na condição de o referido consumidor suscitar essa nulidade, e isso num prazo de prescrição de três anos”.
No que respeita à sanção propriamente dita (“nulidade do contrato de crédito, acompanhada da obrigação de esse consumidor reembolsar ao mutuante o montante principal, num prazo adequado à sua capacidade financeira”), o TJUE parece considerar que ela é adequada e dissuasiva (considerando 30).
O problema identificado pelo tribunal está na exigência de que o consumidor suscite a nulidade. Como já vimos, esta deve ser de conhecimento oficioso. E não deve estar sujeita a um prazo fixo de arguição de três anos.
Uma questão muito interessante, do ponto de vista do direito português, é a relação desta sanção civil com a sanção administrativa, também prevista no direito checo. Como sabemos, no direito português apenas se estabelece uma sanção contraordenacional para o incumprimento do dever de avaliar a solvabilidade do consumidor (arts. 10.º e 30.º-1 da Lei n.º 133/2009, na redação vigente), não estando prevista qualquer sanção civil.
No considerando 37, depois de concluir que a sanção (civil) não é efetiva, defende o tribunal que “esta conclusão não pode ser posta em causa pelo argumento invocado pelo Governo checo, nas suas observações escritas, segundo o qual as disposições nacionais em matéria de supervisão prudencial das instituições de crédito também preveem uma sanção administrativa sob a forma de uma coima até 20 milhões de CZK (cerca de 783 000 euros), em caso de concessão de um crédito em violação da obrigação de avaliar a solvabilidade do consumidor”. No início do considerando 38 realça-se, ainda, a circunstância de a sanção nunca ter sido aplicada na República Checa.
Da segunda parte do considerando 38 resulta de forma bastante clara que a sanção contraordenacional poderá não ser suficiente, à luz do direito europeu. Vejamos: “essas sanções não são, por si sós, suscetíveis de assegurar de modo suficientemente eficaz a proteção dos consumidores contra os riscos de sobreendividamento e de insolvência, pretendida pela Diretiva 2008/48, na medida em que não se repercutem na situação de um consumidor com quem tenha sido celebrado um contrato de crédito em violação do artigo 8.º desta Diretiva”.
Impõe-se, portanto, a previsão de uma sanção civil, a qual não se encontra consagrada no direito português.