Segurança geral dos produtos e créditos ao consumo

Legislação

O legislador europeu tem estado bastante ativo nos últimos dois anos em matérias relacionadas com o direito do consumo.

Ontem, a Comissão Europeia apresentou mais duas iniciativas legislativas com grande relevância nesta área. Segundo se pode ler na nota de imprensa emitida, os dois novos diplomas, ainda em fase de proposta, visam reforçar os direitos dos consumidores, em especial tendo em conta os desafios da digitalização e da pandemia de COVID-19. Se reforçam ou não é outra questão, que certamente irá ser objeto de discussão, aqui e em muitas outras sedes.

Em primeiro lugar, temos uma Proposta de Regulamento relativo à segurança geral dos produtos.

Nota-se mais uma vez neste diploma a tendência recente da União Europeia em legislar por via de Regulamento, tentando uniformizar as regras a nível europeu. Esta tendência já foi identificada e discutida aqui no blog, num texto de Paula Ribeiro Alves.

Propõe-se a revogação de duas diretivas, passando as respetivas matérias a ser tratadas num único diploma. São elas a Diretiva 87/357/CEE, do Conselho, de 25 de Junho de 1987, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes aos produtos que, não possuindo a aparência do que são, comprometem a saúde ou a segurança dos consumidores (imitações perigosas), e a Diretiva 2001/95/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 3 de Dezembro, relativa à segurança geral dos produtos. A primeira foi transposta em Portugal pelo Decreto-Lei n.º 150/90, enquanto a segunda foi transposta pelo Decreto-Lei n.º 69/2005, de 17 de março (alterado pelos Decretos Regulamentares n.os 57/2007, de 27 de abril, e 38/2012, de 10 de abril, e pelo Decreto-Lei n.º 9/2021, de 29 de janeiro).

A proposta contém várias normas inovadoras, que visam regular melhor todo o processo relativo aos produtos perigosos.

Gostaria, no entanto, de realçar o art. 35.º da Proposta, que vem acrescentar direitos subjetivos aos consumidores, além dos previstos na Diretiva 2019/771 (venda de bens de consumo), em caso de recall (definido como qualquer medida destinada a obter a devolução de um produto que já tenha sido colocado à disposição do consumidor). O operador económico responsável pelo recall deve oferecer ao consumidor um serviço rápido, eficaz e sem custos, que tem de permitir, no mínimo, a reparação do produto, a substituição do produto por outro de igual valor e qualidade ou o reembolso do valor do produto recolhido. A reparação, a eliminação ou a destruição do produto pelo consumidor só é aceitável se puder ser feita de forma fácil e segura. O profissional deve fornecer as instruções necessárias e/ou, em caso de reparação, a substituição gratuita das peças ou as necessárias atualizações de software. A solução também não pode implicar inconvenientes significativos para o consumidor, não devendo este suportar os custos de transporte ou de devolução do produto. No caso de produtos difíceis de transportar, a recolha deve ser feita pelo profissional.

Em segundo lugar, temos uma Proposta de Diretiva sobre créditos ao consumo.

Se vier a ser adotado o diploma, teremos um novo regime do crédito ao consumo, agora designado no plural (“créditos ao consumo”), sendo revogada a Diretiva 2008/48/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de abril, relativa a contratos de crédito aos consumidores, transposta, em Portugal, pelo Decreto-Lei n.º 133/2009.

Trata-se de um regime bastante complexo, pelo que não irei aqui analisá-lo em profundidade neste texto.

Deixo, no entanto, uma nota para uma das principais novidades: a aplicação da generalidade do regime a serviços de crédito de crowdfunding, definidos como serviços prestados por uma plataforma de crowdfunding para facilitar a concessão de crédito ao consumo.

Também é introduzida uma regra sobre ofertas personalizadas emitidas com base em profiling ou outras formas de processamento automatizado de dados pessoais. A prática é permitida, mas o consumidor tem de ser informado (art. 13.º). Se estiver em causa a avaliação da solvabilidade do consumidor, o consumidor tem direito a uma revisão da decisão com intervenção humana (art. 18.º-6).

As sanções em caso de incumprimento das regras também são reforçadas, mantendo-se a tendência recente de definir um patamar mínimo, calculado em função do volume de negócios do profissional, como limite máximo para o valor das contraordenações. Os próximos tempos serão interessantes, prevendo-se uma discussão acesa em tornos destes temas. Cá estaremos para acompanhar o processo.

Avaliação da solvabilidade do consumidor

Jurisprudência

Conforme prometido, regressamos hoje ao crédito ao consumo, com uma breve análise da decisão proferida pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) no Processo C‑679/18 (acórdão de 5 de março de 2020), que trata do dever de avaliação da solvabilidade do consumidor por parte do credor.

O tribunal é chamado a pronunciar-se, no essencial, sobre a questão de saber se podem ser estabelecidos limites no que respeita à invocação pelo consumidor do incumprimento do dever em causa e se o tribunal deve poder conhecer oficiosamente desse incumprimento.

Do ponto de vista do direito português, talvez o aspeto mais interessante consista em saber se a previsão apenas de uma sanção contraordenacional é suficiente para cumprir as obrigações resultantes do direito europeu. Lá chegaremos.

As normas relevantes para o caso são os arts. 8.º e 23.º da Diretiva 2008/48/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de abril de 2008, relativa a contratos de crédito aos consumidores. O art. 8.º-1 prevê que “os Estados-Membros devem assegurar que, antes da celebração do contrato de crédito, o mutuante avalie a solvabilidade do consumidor com base em informações suficientes, se for caso disso obtidas do consumidor e, se necessário, com base na consulta da base de dados relevante. Os Estados-Membros cuja legislação exija que os mutuantes avaliem a solvabilidade dos consumidores com base numa consulta da base de dados relevante podem reter esta disposição”. Segundo o art. 23.º, “os Estados-Membros devem determinar o regime das sanções aplicáveis à violação das disposições nacionais aprovadas em aplicação da presente diretiva e tomar todas as medidas necessárias para assegurar a aplicação das referidas disposições. As sanções assim previstas devem ser efetivas, proporcionadas e dissuasivas.

Segundo o TJUE, estas disposições “devem ser interpretados no sentido de que impõem que um órgão jurisdicional nacional examine oficiosamente a existência de uma violação da obrigação pré‑contratual do mutuante de avaliar a solvabilidade do consumidor”, extraindo “as consequências que decorrem, no direito nacional, de uma violação dessa obrigação”.

Conclui ainda o tribunal que o direito europeu se opõe “a um regime nacional nos termos do qual a violação, pelo mutuante, da sua obrigação pré‑contratual de avaliar a solvabilidade do consumidor só é punida com a nulidade do contrato de crédito, acompanhada da obrigação de esse consumidor reembolsar ao mutuante o montante principal, num prazo adequado à sua capacidade financeira, na condição de o referido consumidor suscitar essa nulidade, e isso num prazo de prescrição de três anos”.

No que respeita à sanção propriamente dita (“nulidade do contrato de crédito, acompanhada da obrigação de esse consumidor reembolsar ao mutuante o montante principal, num prazo adequado à sua capacidade financeira”), o TJUE parece considerar que ela é adequada e dissuasiva (considerando 30).

O problema identificado pelo tribunal está na exigência de que o consumidor suscite a nulidade. Como já vimos, esta deve ser de conhecimento oficioso. E não deve estar sujeita a um prazo fixo de arguição de três anos.

Uma questão muito interessante, do ponto de vista do direito português, é a relação desta sanção civil com a sanção administrativa, também prevista no direito checo. Como sabemos, no direito português apenas se estabelece uma sanção contraordenacional para o incumprimento do dever de avaliar a solvabilidade do consumidor (arts. 10.º e 30.º-1 da Lei n.º 133/2009, na redação vigente), não estando prevista qualquer sanção civil.

No considerando 37, depois de concluir que a sanção (civil) não é efetiva, defende o tribunal que “esta conclusão não pode ser posta em causa pelo argumento invocado pelo Governo checo, nas suas observações escritas, segundo o qual as disposições nacionais em matéria de supervisão prudencial das instituições de crédito também preveem uma sanção administrativa sob a forma de uma coima até 20 milhões de CZK (cerca de 783 000 euros), em caso de concessão de um crédito em violação da obrigação de avaliar a solvabilidade do consumidor”. No início do considerando 38 realça-se, ainda, a circunstância de a sanção nunca ter sido aplicada na República Checa.

Da segunda parte do considerando 38 resulta de forma bastante clara que a sanção contraordenacional poderá não ser suficiente, à luz do direito europeu. Vejamos: “essas sanções não são, por si sós, suscetíveis de assegurar de modo suficientemente eficaz a proteção dos consumidores contra os riscos de sobreendividamento e de insolvência, pretendida pela Diretiva 2008/48, na medida em que não se repercutem na situação de um consumidor com quem tenha sido celebrado um contrato de crédito em violação do artigo 8.º desta Diretiva”.

Impõe-se, portanto, a previsão de uma sanção civil, a qual não se encontra consagrada no direito português.