Interação entre a arbitragem necessária e o procedimento de injunção

Doutrina

Não raras vezes os centros que integram a rede de arbitragem prevista no art. 4.º da Lei n.º 144/2015 recebem reclamações de consumo em que o requerente formula, a final, pedido de declaração de inexistência de obrigação pecuniária alegadamente emergente de contrato concluído com o requerido. Pode suceder que, em momento anterior ou posterior ao início da fase de mediação em sede de RALC[1], a cobrança do correspetivo crédito pecuniário seja peticionada por meio de procedimento de injunção[2] apresentado pelo alegado credor (demandado nos procedimentos de RALC) contra o alegado devedor (demandante nos procedimentos de RALC).

A partir do acima exposto, propomo-nos desenvolver uma breve reflexão sobre se e em que medida a providência de injunção proposta pelo profissional influi no prosseguimento do processo de arbitragem e, por esta via, no conhecimento do mérito da causa pelo tribunal arbitral, não sem antes produzirmos duas breves considerações preliminares.

Assim, cumpre referir, em primeiro lugar, que a injunção se trata de um procedimento especial, que visa conferir força executiva a requerimento destinado a exigir o cumprimento das obrigações pecuniárias emergentes de contratos até € 15.000,00[3]. O procedimento injuntivo inicia-se com um requerimento apresentado pelo credor junto do Balcão Nacional de Injunções (BNI), secretaria-geral com competência exclusiva para a tramitação eletrónica do procedimento. Uma vez notificado para pagar, duas possibilidades se colocam em função do comportamento do requerido: ou o requerido não deduz oposição e o secretário judicial apõe fórmula executória no requerimento injuntivo (art. 14.º- 1 do Anexo ao DL 269/98) ou opta por deduzir oposição e o procedimento converte-se numa Ação Especial para o Cumprimento de Obrigações Pecuniárias Emergentes de Contratos (arts. 16.º-1 e 17.º-1 do Anexo ao DL 269/98).

Em segundo lugar, para os efeitos do presente texto, vamos considerar que o litígio de consumo submetido a resolução por entidade de RALC integra a “arbitragem necessária” que resulta da aplicação conjugada dos arts. 1.º-2 e 15.º-1 da Lei n.º 23/96 ou do disposto pelo art. 14.º-2 e 3 da Lei n.º 24/96 (ou, em alternativa, que o profissional se encontra vinculado à jurisdição do centro de arbitragem por força de declaração de adesão plena), pelo que assiste ao consumidor o direito potestativo de remeter a contenda à apreciação de tribunal adstrito a centro de arbitragem institucionalizada.

Isto posto, assentes as considerações que antecedem, estamos em condições de abordar o objeto deste texto – a interação entre a arbitragem necessária e o procedimento de injunção –, o que nos propomos realizar em face de quatro diferentes cenários, a tratar autonomamente.

1) Reclamação de consumo apresentada pelo consumidor junto do centro de arbitragem antes de aquele ser notificado de injunção apresentada junto do BNI, por iniciativa do profissional

Para a melhor compreensão dos contornos que encerra esta primeira hipótese (assim como as que se tratarão de seguida), afigura-se pertinente, antes de mais, discernir se e em que medida pode verificar-se um dos pressupostos processuais negativos previstos no art. 577.º, al. i) do CPC – litispendência ou caso julgado –, o que se afere, em relação a ambas as circunstâncias impeditivas do conhecimento do mérito da causa pelo julgador, pela tríplice identidade quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir entre ações (arts. 580.º-1 e 581.º do CPC).

Acresce que a litispendência pressupõe a existência de uma ação anterior ainda em curso e deve ser deduzida na ação proposta em segundo lugar, isto é, a ação para a qual o réu/demandado foi citado posteriormente (art. 582.º-1 e 2 do CPC)[4]. Já a situação de caso julgado – aqui entendida como exceção de caso julgado (e não como autoridade de caso julgado)[5] – depende do trânsito em julgado de sentença (ou despacho saneador) que decida do mérito da primeira causa (arts. 580.º-1 e 619.º-1 do CPC), assim definindo a relação material controvertida com força obrigatória dentro e fora do processo[6].

Ora, a injunção «não se trata (…) de qualquer forma processual diversa das já existentes na nossa lei adjetiva, mas sim do estabelecimento de uma “fase desjurisdicionalizada”, visando facultar relativamente a dívidas de montante reduzido a possibilidade (…) de acesso à acção executiva sem passagem pelo processo declarativo, garantida que se mostra a defesa do devedor através dos mecanismos normais de oposição à execução, decorrentes do artigo 815.º do Código de Processo Civil [de 1961][7]», sendo que “[a] atividade do secretário judicial não implica resolução, com recurso a critérios jurídicos, de quaisquer conflitos de interesses, não divergindo substancialmente daquela que às secretarias judiciais é atribuída por diversas disposições do processo”[8], pelo que os seus atos não revestem natureza materialmente jurisdicional[9].

Assim, retomando a hipótese em apreço, considerando que a injunção não reveste a natureza de uma verdadeira ação em que se lance mão de uma atividade jurisdicional de natureza cognitiva, carece de sentido a convocação do pressuposto processual da litispendência, isto mesmo que o demandado-injungente só venha a ser notificado da reclamação de consumo em data posterior ao momento da notificação do requerimento injuntivo ao demandante-injungido.

2) Reclamação de consumo apresentada pelo consumidor junto do centro de arbitragem e notificada ao profissional depois de o demandante-injungido ser notificado nos termos do art. 12.º-1 do DL n.º 269/98, mas antes da dedução de oposição por aquele último (ou de decorrido o prazo para o efeito)

Em relação ao quadro fático ora apresentado, para além do que já se deixou consignado acerca da (im)pertinência da convocação do pressuposto processual da litispendência, acompanhamos o entendimento segundo o qual “deve permitir-se que o consumidor inicie a arbitragem quando é notificado na injunção, desde que o faça antes da sua primeira intervenção no [procedimento de injunção]. Deve, depois, apresentar (…) oposição no procedimento de injunção, alegando a exceção de preterição do tribunal arbitral, uma vez que, nesse momento, já existe convenção de arbitragem [potestativa] (…) A empresa pode desistir da ação ou, se não o fizer, o juiz deve absolver o réu da instância, tendo em conta a exceção dilatória de preterição de tribunal arbitral – arts. 96.º-b) e 577-a) do CPC”[10].

Note-se que, caso o demandante-injungido não invoque a exceção de preterição de tribunal arbitral (necessário) aquando da apresentação de oposição à injunção, tal implica a revogação tácita do ato, antes praticado, de sujeição do litígio à arbitragem de conflitos de consumo. Por outras palavras, com a apresentação de oposição à injunção nesses termos, o consumidor adota comportamento concludente no sentido da submissão do seu litígio a tribunal estadual, o que importa a perda de competência do tribunal arbitral para o julgamento da demanda[11].

3) Reclamação de consumo apresentada pelo consumidor junto do centro de arbitragem e notificada ao profissional depois de oposição à injunção apresentada pelo demandante-injungido

Por sua vez, no cenário ora em equação, considerando que a dedução de oposição à injunção importa a apresentação dos autos à distribuição que imediatamente se seguir em tribunal estadual (arts. 16.º-1 e 17.º-1 do Anexo ao DL n.º 269/98) – e a consequente transmutação do procedimento de injunção em ação declarativa –, o que é objeto de notificação ao réu pelo BNI[12], cremos que, aqui, de modo diverso, o centro de arbitragem deverá equacionar a verificação da exceção de litispendência com a ação judicial e, por via disso, concluir pela extinção do processo de RALC sem apreciação do mérito da causa (cf. art. 11.º-1-c) da Lei n.º 144/2015).

4) Reclamação de consumo apresentada pelo consumidor junto do centro de arbitragem depois de aposta fórmula executória ao requerimento injuntivo, por não apresentação de oposição à injunção, no prazo concedido para o efeito (art. 14.º-1 do Anexo ao DL n.º 269/98)

Finalmente, na hipótese que se descreve imediatamente acima, em linha com o que já preconizámos acerca da natureza jurídica do procedimento de injunção, forçoso é concluir que não se revela possível a formação de caso julgado material naquele procedimento, na medida em que nenhuma decisão jurisdicional de mérito é nele adotada, nem nenhum acolhimento legal se encontra para a tentativa de equiparação do ato de aposição de fórmula executória pelo secretário judicial a uma proclamação do Direito para o caso concreto, visto que tal ato se traduz num mero controlo “tabeliónico”[13] dos requisitos formais e objetivos previstos no DL n.º 269/98.

Assim, secundamos o entendimento de acordo com o qual a existência de um título executivo consistente em requerimento de injunção (e ao qual tenha sido aposta fórmula executória) e relativo a uma qualquer obrigação pecuniária emergente de contrato não impede o devedor de instaurar uma ação na jurisdição arbitral – ainda que os meios de defesa invocáveis possam resultar limitados pelo efeito preclusivo previsto no art. 14.º-A do Anexo ao DL n.º 269/98[14][15] –, sem que tal implique ou envolva qualquer julgamento a respeito da validade do referido título executivo[16]. E não se diga, em sentido contrário, que a ação arbitral não é o meio adequado para o devedor apresentar os seus meios de defesa, devendo antes fazê-lo em sede de oposição à execução, pois, se fosse de acolher idêntica compreensão, na eventualidade de nunca haver lugar à propositura de tal processo executivo, então o devedor, na prática, acabaria por se ver impedido de reagir perante um tribunal e colocar termo à situação de dúvida sobre a existência ou inexistência do direito do credor.

Em abono da posição que perfilhamos, para a qual a questão da validade do título executivo não judicial apenas releva no plano do processo executivo que, com base nele, seja instaurado, convocamos o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 264/2015, que declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do art. 857.º-1 do CPC, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho[17], “quando interpretada no sentido de limitar os fundamentos de oposição a execução[18] instaurada com base em requerimentos de injunção a qual foi aposta a fórmula executória”, pelo que a referida norma da lei processual civil postula atualmente, com a alteração operada pela Lei n.º 117/2019, de 13 de setembro, que “[s]e a execução se fundar em requerimento de injunção ao qual tenha sido aposta fórmula executória, para além dos fundamentos previstos no artigo 729.º[19], aplicados com as devidas adaptações, podem invocar-se nos embargos os meios de defesa que não devam considerar-se precludidos, nos termos do artigo 14.º-A do regime dos procedimentos para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior à alçada do tribunal de 1.ª Instância, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de setembro, na sua redação atual”.


[1] Como se referiu aqui, nos centros de arbitragem de conflitos de consumo vigora uma lógica de “multi-step dispute resolution”, surgindo a mediação como fase prévia, seguida da conciliação e da arbitragem.

[2] O regime dos procedimentos destinados a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior a € 15.000 – procedimento de injunção e Ação Especial para o Cumprimento de Obrigações Pecuniárias Emergentes de Contratos (AECOP) – encontra-se previsto no Anexo ao DL n.º 269/98, de 1 de setembro.

[3] Embora não relevando para o objeto do presente texto, cumpre referir que, nos termos do art. 10.º-1 do DL n.º 62/2013, de 10 de maio, “[o] atraso de pagamento em transações comerciais, nos termos previstos no presente diploma, [também] confere ao credor o direito a recorrer à injunção, independentemente do valor da dívida”.

[4] Exceto se, em ambas as ações, a citação tiver sido feita no mesmo dia, caso em que a ordem das ações é determinada pela ordem de entrada das respetivas petições iniciais (art. 582.º-3 do CPC).

[5] Sobre o caso julgado material, instituto que pode ser analisado numa dupla perspetiva – como exceção de caso julgado e como autoridade de caso julgado –, vide Miguel Teixeira de Sousa, “O objecto da sentença e o caso julgado material (O estudo sobre a funcionalidade processual)”, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 325, pp. 176 e 179.

[6] No que tange aos limites objetivos do caso julgado, embora alguma doutrina qualificada, sustentando uma compreensão restritiva, circunscreva a eficácia do caso julgado à parte injuntiva da decisão, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça vem adotando, de forma pacífica e constante, um entendimento mais amplo do alcance do caso julgado, considerando que os “precisos limites e termos em que [a sentença] julga” (art. 621.º do CPC) abrangem não só a conclusão do silogismo judiciário, mas também todas as questões e exceções suscitadas e solucionadas, ainda que implicitamente, na sentença, que funcionam como premissas necessárias e fundamentadoras da decisão final – cf. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 06.06.2016, proferido no Processo n.º 1226/15.8T8PNF.P1, com vastas referências doutrinais e jurisprudenciais. Note-se que o efeito preclusivo do caso julgado conhece limites temporais, visto que a sentença só é válida rebus sic stantibus, pelo que a sua força se impõe enquanto se mantiverem os pressupostos que a determinaram (João de Castro Mendes, Limites Objetivos do Caso Julgado em Processo Civil, Edições Ática, pp. 178 e ss.).

[7] Correspondente ao atual art. 731.º do CPC.

[8] Sumário do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 95-399-2 de 27.06.1995, proferido no Processo n.º 94-0440.

[9] Sumário do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 95-654-1 de 21.11.1995, proferido no Processo n.º 95-0213.

[10] Neste sentido, Jorge Morais Carvalho, João Pedro Pinto-Ferreira e Joana Campos Carvalho, Manual de Resolução Alternativa de Litígios de Consumo, Almedina, 2019, pp. 190-191.

[11] Assim, a Sentença do Centro de Informação de Consumo e Arbitragem do Porto – Tribunal Arbitral de Consumo de 28.08.2015, proferida no Processo n.º 1219/2015, Relator: Paulo Duarte.

[12] Sendo devido, nesse caso, o pagamento de taxa de justiça pelo autor e pelo réu, no prazo de 10 dias a contar da data da distribuição – descontando-se, no caso do autor, o valor pago pela apresentação do requerimento de injunção (art. 7.º-6 do Regulamento das Custas Processuais).

[13] Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 11.12.2018, proferido no Processo n.º 96/18.9T8CBR-A.C1.

[14] “Artigo 14.º-A (Efeito cominatório da falta de dedução da oposição)

1. Se o requerido, pessoalmente notificado por alguma das formas previstas nos n.ºs 2 a 5 do artigo 225.º do Código de Processo Civil e devidamente advertido do efeito cominatório estabelecido no presente artigo, não deduzir oposição, ficam precludidos os meios de defesa que nela poderiam ter sido invocados, sem prejuízo do disposto no número seguinte.

2. A preclusão prevista no número anterior não abrange:

a) A alegação do uso indevido do procedimento de injunção ou da ocorrência de outras exceções dilatórias de conhecimento oficioso;

b) A alegação dos fundamentos de embargos de executado enumerados no artigo 729.º do Código de Processo Civil, que sejam compatíveis com o procedimento de injunção;

c) A invocação da existência de cláusulas contratuais gerais ilegais ou abusivas;

d) Qualquer exceção perentória que teria sido possível invocar na oposição e de que o tribunal possa conhecer oficiosamente.”

[15] Sem prejuízo da remissão expressa operada pela norma do art. 857.º-1 do CPC para o art. 14.º-A do Anexo ao DL n.º 269/98, cremos que este último artigo tem um âmbito de aplicação mais alargado, não se circunscrevendo à oposição à execução, antes se estendendo a todos os meios de reação/tutela jurisdicional possíveis à disposição do devedor.

[16] Neste sentido, a Sentença do CIAB – Tribunal Arbitral de Consumo de 13.09.2018, proferida no Processo n.º 1592/2018, Relator: Paulo Duarte.

[17] Na sua redação primitiva, a norma do art. 857.º-1 do CPC rezava nos seguintes termos: “Se a execução se fundar em requerimento de injunção ao qual tenha sido aposta fórmula executória, apenas podem ser alegados os fundamentos de embargos previstos no artigo 729.º, com as devidas adaptações, sem prejuízo do disposto nos números seguintes.”

[18] Como se esclarece no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.03.2019, proferido no Processo n.º 751/16.8T8LSB.L2.S1, a oposição à execução mediante embargos reveste a estrutura de ação declarativa autónoma de simples apreciação, cujo objeto é definido, na respetiva petição inicial, pelo executado, valendo cada um dos fundamentos materiais invocados como verdadeiras causas de pedir.

[19] Norma em que se elencam os fundamentos taxativos de oposição à execução baseada em sentença.

Atrasos na entrega de encomendas online

Doutrina

Com o final do mês de novembro a aproximar-se, começamos a entrar no período do ano em que os consumidores mais recorrem às compras online[1]. Este período, que se inicia com a Black Friday, celebrada tradicionalmente nos Estados Unidos da América no dia seguinte ao dia de Ação de Graças, ou seja, na quarta sexta-feira do mês de novembro, e que termina com o dia de Natal, gera um volume de negócio tão intenso que, em Portugal, no ano de 2020, foram entregues mais de 5,8 milhões de encomendas durante este período.

Apesar de muitos portugueses continuarem a comprar produtos nas lojas físicas, o comércio online tem vindo a crescer nos últimos anos, tendo atingido um crescimento de cerca de 80% em pouco mais de um ano, acelerado pela pandemia da doença Covid-19, pela proliferação de plataformas digitais de compra e venda de produtos (marketplaces), e pela aposta dos vendedores no e-commerce.

A compra de bens à distância tem associadas várias vantagens e desvantagens, mas um dos aspetos que pode causar maior transtorno aos consumidores é a demora na entrega das encomendas.

Quando um consumidor decide comprar um produto fora da loja física, poderá estar a concluir um contrato celebrado à distância ou fora do estabelecimento comercial. O regime legal destas modalidades de contratos está previsto no Decreto-Lei n.º 24/2014, de 14 de Fevereiro, que apresenta no art. 3.º, al. f) a definição de contratos celebrados à distância – “um contrato celebrado entre o consumidor e o fornecedor de bens ou o prestador de serviços sem presença física simultânea de ambos, e integrado num sistema de venda ou prestação de serviços organizado para o comércio à distância mediante a utilização exclusiva de uma ou mais técnicas de comunicação à distância até à celebração do contrato, incluindo a própria celebração” – ; e, no art. 3.º, al. g), a definição de contrato celebrado fora do estabelecimento comercial  – “o contrato que é celebrado na presença física simultânea do fornecedor de bens ou do prestador de serviços e do consumidor em local que não seja o estabelecimento comercial daquele, incluindo os casos em que é o consumidor a fazer uma proposta contratual”. Importa ainda referir que os contratos “celebrados no estabelecimento comercial do profissional ou através de quaisquer meios de comunicação à distância imediatamente após o consumidor ter sido, pessoal e individualmente, contactado num local que não seja o estabelecimento comercial do fornecedor de bens ou prestador de serviços” também se integram na categoria dos “contratos celebrados fora do estabelecimento comercial (subalínea i) da alínea g) do artigo 3.º do DL n.º 24/2014, de 14 de fevereiro)

Contudo, nem todos os contratos que possam ser enquadrados nestas definições estão abrangidos pela totalidade das disposições legais deste diploma. O art. 2.º, n.º 2 refere que os artigos 4.º a 21.º não são aplicáveis, entre outros, aos contratos relativos a serviços financeiros, aos contratos celebrados através de máquinas distribuidoras automáticas ou de estabelecimentos comerciais automatizados e aos contratos de jogo de fortuna ou azar.

Quando estiver em causa uma relação de consumo que se situe dentro do âmbito de aplicação deste diploma, aplicar-se-ão as disposições relacionadas com o prazo de entrega do bem, previstas no art. 19.º.

Este artigo, sob a epígrafe “Execução do contrato celebrado à distância”, estabelece que:

“1 – Salvo acordo em contrário entre as partes, o fornecedor de bens ou prestador de serviços deve dar cumprimento à encomenda no prazo máximo de 30 dias, a contar do dia seguinte à celebração do contrato.

2 – Em caso de incumprimento do contrato devido a indisponibilidade do bem ou serviço encomendado, o fornecedor de bens ou prestador de serviços deve informar o consumidor desse facto e reembolsá-lo dos montantes pagos, no prazo máximo de 30 dias a contar da data do conhecimento daquela indisponibilidade.

3 – Decorrido o prazo previsto no número anterior sem que o consumidor tenha sido reembolsado dos montantes pagos, o fornecedor fica obrigado a devolver em dobro, no prazo de 15 dias úteis, os montantes pagos pelo consumidor, sem prejuízo do seu direito à indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais que possa ter lugar.

4 – O fornecedor pode, contudo, fornecer um bem ou prestar um serviço ao consumidor de qualidade e preço equivalentes, desde que essa possibilidade tenha sido prevista antes da celebração do contrato ou no próprio contrato e o consumidor o tenha consentido expressamente, e aquele informe por escrito o consumidor da responsabilidade pelas despesas de devolução previstas no número seguinte.

5 – Na situação prevista no número anterior, caso o consumidor venha a optar pelo exercício do direito de livre resolução, as despesas de devolução ficam a cargo do fornecedor.”

Começando pelo n.º 1 deste artigo[2], a lei postula um regime supletivo, nos termos do qual o prazo máximo para “dar cumprimento à encomenda” (entenda-se entregar a encomenda) é de 30 dias. Este prazo terá de ser sempre objeto de uma interpretação e aplicação casuísticas tendo em conta o contrato celebrado, uma vez que o período de entrega do bem pode pôr em causa a sua utilidade. Vejamos: um contrato relativo a um espetáculo que se vai realizar no dia seguinte requerer que o bilhete seja disponibilizado antes do início do espetáculo. Se o bilhete apenas for entregue 29 dias depois, o consumidor sai prejudicado e estaremos perante um caso de incumprimento definitivo, visto que o bilhete que permite acesso ao espetáculo não foi entregue atempadamente, em violação do princípio da boa-fé[3]. Importa referir que é sempre importante que o consumidor atente na informação disponibilizada no portal onde efetua a encomenda, bem como os incorretamente designados “termos e condições”, que podem conter uma cláusula referente a prazos de entrega diferente do que está previsto na lei.

Quando o vendedor não conseguir entregar a encomenda dentro do prazo acordado, “devido a indisponibilidade do bem ou serviço encomendado”, deverá informar o consumidor e reembolsá-lo dos montantes pagos, no prazo máximo de 30 dias a contar da data do conhecimento daquela indisponibilidade (n.º 2). As chamadas “roturas de stock” são algo frequente nesta época do ano, pelo que a lei prevê soluções que visem diminuir o prejuízo no consumidor se este tiver perdido o interesse no bem, tendo em conta o tempo decorrido. Contudo, importa referir que “este regime visa conferir um acréscimo de proteção ao consumidor e não melhorar a posição do profissional face ao regime geral. Assim, o consumidor pode resolver de imediato o contrato, mas não tem de o fazer, podendo continuar a exigir, se assim o entender, o cumprimento da obrigação por parte do profissional. A indisponibilidade do bem ou serviço encomendado não exime o profissional do cumprimento pontual do contrato”[4].

Caso o fornecedor dos bens não restitua ao consumidor o preço do bem num prazo de 30 dias contados da comunicação de indisponibilidade, o fornecedor fica obrigado a devolver em dobro os montantes pagos num prazo adicional de 15 dias úteis, sem prejuízo dos danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes do incumprimento do contrato (n.º 3)[5].

Por fim, o vendedor pode não devolver o preço pago se as partes tiverem acordado que a devolução do preço em caso de incumprimento de entrega da encomenda pode ser substituída pelo fornecimento de outro bem ou serviço de qualidade e preço equivalentes.

Em suma, a legislação de consumo prevê que o prazo máximo para o fornecedor entregar uma encomenda seja de 30 dias, se não tiver havido acordo entre o fornecedor e o consumidor a estabelecer prazo diferente. Se o prazo de 30 dias for ultrapassado ou se for previsível que seja ultrapassado devido a impossibilidade de entregar da encomenda, o vendedor deverá informar o consumidor do incumprimento do contrato e devolver o preço que o consumidor pagou, num prazo de 30 dias após ter lhe ter dado conhecimento deste facto. Se o vendedor não reembolsar o valor pago naquele prazo, fica obrigado a devolver em dobro essa quantia.

Com a chegada da Black Friday e a aproximação do Natal, é provável que muitas lojas comecem a ter produtos em falta e que tenham dificuldades em entregar as encomendas dentro do prazo. Como tal, é importante que os consumidores se mantenham atentos, lendo os “termos e condições” das lojas online e os prazos de entrega previstos, e que estejam cientes de que, não existindo acordo noutro sentido, os vendedores estão obrigados a entregar os produtos num prazo máximo de 30 dias.


[1] Swilley, Esther and Goldsmith, Ronald E. Black Friday and Cyber Monday: Understanding consumer intentions on two major shopping days. Disponível em: https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0969698912001233?casa_token=BJmmwMoJSBcAAAAA:EtxDSQmrPCzoKkdq0T0tdwtnGJETpqW4CAgVA_94g3LKdioV6b9w69bTQx8Ywf_doqv8TPQoARY.

[2] Jorge Morais Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 7.ª edição, Almedina, 2020, pág. 206, defende que deve ser feita uma interpretação ab-rogante deste art. 19.º n.º 1, por não serem aqui respeitados vários aspetos indicados no art. 18.º n.º 1 da Diretiva 2011/83/UE. Aplica-se neste caso o art. 9.º-B da Lei de Defesa do Consumidor, que é mais protetora do consumidor. Na prática, para o objetivo do texto, poderá ter-se em conta qualquer um dos preceitos.

[3] Art. 762.º, n.º 2 do Código Civil: “No cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa fé”.

[4] Morais Carvalho, Jorge, e Pinto-Ferreira, João Pedro. Contratos celebrados à distância e fora do estabelecimento comercial, Anotação ao Decreto-Lei n.º 24/2014, de 14 de fevereiro. Almedina, 2014, pág. 144.

[5] Numa breve nota, é interessante verificar que a lei portuguesa, que transpõe a Diretiva n.º 2011/83/EU, garante um maior nível de proteção do consumidor quando comparado com a diretiva, que não prevê a devolução em dobro do preço do bem com a ultrapassagem destes prazos.

A Criptomoeda de Squid Game: uma gota no oceano?

Doutrina

Há uns dias surgiu uma nova fraude envolvendo criptomoedas. Os responsáveis por este esquema fraudulento ter-se-ão aproveitado do sucesso da série da Netflix, Squid Game, para criar e comercializar a SQUID, criptomoeda inspirada na série, tendo com isso retirado 2,9 milhões de euros aos investidores, através da estratégia de rug pull[1]. Esta criptomoeda terá sido criada a fim de ser utilizada num jogo online baseado na série, mas o que prejudicou os milhares de investidores foi não conseguirem vender o ativo, uma vez adquirido.

Estes esquemas fraudulentos são bastante comuns, e diversos são os fatores que contribuem para que tal aconteça. Por um lado, temos o fear of missing out, que suscita um comportamento impulsivo por parte dos investidores. Por outro lado, existe uma grande estratégia de marketing em torno de criptoativos com nomes atrativos, ou associados a séries, filmes, marcas ou outros produtos, com white papers muito duvidosos, sendo que, na maioria das vezes, os criadores do criptoativo não são os proprietários da propriedade intelectual à qual se referem, e limitam-se a emitir tokens sem qualquer plano de longo prazo, o que não justifica a criação e publicitação do ativo junto dos investidores e consumidores.

Além do exposto, a maioria dos criptoativos já emitidos e em circulação são parte de fraudes, através das quais os investidores, muitas vezes, adquirem ativos que não possuem qualquer valor, e noutras vezes, pagam e não recebem qualquer criptoativo.

Dado o exposto, concluímos que o grande problema em torno dos criptoativos, que impulsionam as fraudes, é o deslumbramento com esta tecnologia, pois há uma errada perceção de que os criptoativos têm um valor elevado, mas isto apenas se aplica a um número reduzido de casos, que despertaram uma grande atenção e interesse nos meios de comunicação social, fomentando a ideia de sucesso deste tipo de tecnologias, o que não é, nem de perto, a Big Picture.

Importa esclarecer o que são as criptomoedas, riscos inerentes e que regulação existe em Portugal neste âmbito. Ora, as criptomoedas consistem na representação digital de ativos, baseada na tecnologia blockchain. Estes criptoativos[2] têm como principal característica a descentralização, ou seja, não são emitidos por instituições como bancos centrais, instituições de crédito ou instituições de moeda eletrónica. Apesar da elevada segurança garantida nas transações, a criptomoeda comporta diversos riscos difíceis de colmatar, nomeadamente: elevada volatilidade, que se revela nas variações de preço imprevisíveis e abruptas; risco de financiamento ao terrorismo e branqueamento de capitais, uma vez que através do anonimato garantido pelo criptoativo, haverá uma ocultação da origem dos fundos investidos.

Apesar de não haver legislação portuguesa sobre o assunto, a estes criptoativos poderá ser aplicada a legislação relativa aos valores mobiliários. Para que tal aconteça, deverá ser feita uma análise casuística com vista à aferição da verificação dos requisitos cumulativos constantes do artigo 1.º do Código dos Valores Mobiliários (CVM). De acordo com o referido artigo 1.º do CVM este criptoativo tem de ser um “documento representativo de uma ou mais situações jurídicas de natureza privada e patrimonial” e, além disso, deve possuir algumas características dos valores mobiliários típicos[3]. Caso se conclua que o criptoativo reúne todas as condições para se qualificar como valor mobiliário, e este tenha sido emitido ou esteja a ser comercializado em Portugal, estará sujeito a diversas normas, das quais se destacam: em primeiro lugar, as normas relativas à emissão, representação e transmissão de valores mobiliários; em segundo lugar, os requisitos sobre a qualidade da informação, aspeto muito importante para os possíveis investidores; em terceiro lugar, o regime relativo ao abuso de mercado.

A União Europeia, verificando a existência de diversos projetos de decreto-lei por parte de alguns estados-membros, e por considerar que deveria haver uma unificação na regulação deste tipo de ativos,  apresentou, em 24 de setembro de 2020, a proposta de Regulamento do Pparlamento Europeu e do Conselho relativo aos mercados de criptoativos e que altera a Diretiva (UE) 2019/1937, assunto já abordado aqui no nosso blog. O objetivo primário desta proposta de regulação será fomentar e apoiar o desenvolvimento digital, garantindo alguma segurança jurídica e procurando mitigar o problema das fraudes, a grave assimetria de informação e outros problemas negativos, implementando normas menos exigentes do que as adotadas nos mercados mobiliários tradicionais. Note-se que não se pretende limitar nem erradicar esta tecnologia, mas sim estabelecer um quadro jurídico sólido que permita o desenvolvimento destes mercados na União Europeia, com o intuito de se retirar o máximo proveito possível, protegendo os consumidores e garantindo a estabilidade financeira. Esta proposta encontra-se ainda em fase de discussão, pelo que teremos de aguardar o desenrolar dos acontecimentos.

Refira-se ainda, a título de curiosidade, que em El Salvador foi introduzida a bitcoin como moeda oficial, tendo o Governo nacional informado que esta passaria a ser aceite como forma de pagamento, por parte de todos os agentes económicos, excluindo-se, aqui, qualquer outro criptoativo. Esta medida terá como objetivo regularizar a bitcoin, sem quaisquer restrições legais.

Se estiver interessado em investir em criptoativos, deverá conhecer os riscos inerentes, não realizar um investimento cuja perda potencial não possa suportar e estar atento às características dos esquemas fraudulentos.


[1] Verifica-se nos casos em que os criadores do criptoativo desviam os fundos dos investidores e abandonam o projeto sem deixar rastro.

[2] Nakavachara, Voraprapa and Potipiti, Tanapong and Lertmongkolnam, Thanawan, Should All Blockchain-Based Digital Assets be Classified Under the Same Asset Class? (August 18, 2019). Available at SSRN: https://ssrn.com/abstract=3437279 or http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.3437279

[3] Estas características referem-se à “vinculação do emitente à realização de condutas das quais resulte uma expectativa de retorno para o investidor” e prática de atos por parte do emitente ou entidade relacionada que proporcionem o aumento do valor do criptoativo.

Termos de uso e Política de Privacidade: A necessidade de os ler e compreender

Doutrina

A procura por produtos e serviços online cresce exponencialmente. E para concretizar o contrato estabelecido entre o consumidor e a empresa, seja para compra de bens materiais ou para contratação de serviços, se faz necessário o aceite dos termos de uso e da política de privacidade.

Assim, o contrato de consumo estabelecido entre o consumidor e o fornecedor, além de respeitar as regras de direito vigente, em especial as de consumo, seja de Portugal, do Brasil ou de qualquer outro país que apresente regulação pertinente, também será regido pelos termos de uso e pela política de tratamento de dados desenvolvidos pela empresa em questão, disposições essas que o consumidor deve saber diferenciar.

Os termos de uso, de forma simplificada e bastante comum, tendem a enunciar os direitos, deveres, obrigações e responsabilidades das partes do contrato. E, bem assim, definem políticas de troca, desistência, suspensão e bloqueio do usuário da plataforma, a depender da atividade da empresa e o que ela oferece no mercado consumidor.

Por outro lado, a política de tratamento de dados ou política de privacidade, a qual pode ser publicitada em conjunto com os termos de uso ou não, traz informações acerca da utilização e coleta de informações do usuário-consumidor. Explica qual a finalidade do tratamento dos dados pessoais, quais dados pessoais serão coletados e utilizados. Ainda, se há partilha de tais informações com outros entes e até que momento os dados serão utilizados e armazenados.

No mesmo sentido, quando do tratamento, armazenamento e processamento de dados pessoais sensíveis e dados pessoais de crianças e adolescentes[1], estes devem ser realizados dentro das exceções legais. Em âmbito brasileiro, as regras pertinentes ao tratamento de dados pessoais e os princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet estão dispostas, respectivamente, na Lei nº 13.709/2018 (LGPD) e na Lei nº 12.965/20214 (Marco Civil da Internet) e em âmbito europeu temos o RGPD, aplicável desde 2018, que disciplina o tratamento de dados pessoais e a livre circulação desses dados.

De toda forma, as disposições devem ser de fácil compreensão e acessibilidade, respeitando o princípio da transparência, norteador das regras de tratamento de dados, conforme disposto no arts.5º, VI e 9º da LGPD[2] e arts.7, nº2 e 12º, nº 1 e 7 da RGPD[3]. Assim como o princípio da informação, um dos princípios base do direito do consumo.

Ainda, algumas empresas devem respeitar regras específicas de regulação de seu setor, como as atividades econômicas ligadas à saúde e o setor bancário.

Por isso, é de extrema relevância o consumidor estar ciente dos termos de uso e da política de tratamento de dados que adere quando da contratação online. Contudo, como bem tratado no texto do Professor Jorge Morais Carvalho – publicado também aqui no blog do NOVA Consumer Lab – Conhecimento completo e efetivo por quem use de comum diligência, até que ponto o consumidor ao contratar, lê e compreende as peculiaridades e letras pequenas do contrato?

Em realidade, o consumidor acaba por consentir, muitas vezes, com o tratamento de seus dados e aceita cláusulas contratuais sem as ler por inúmeras razões, nomeadamente pela influência do contexto do momento, em conjunto com o desejo de usar e comprar imediatamente, e a pura falta de cautela.

Mas, diria, também, que a falta de tempo para ler longas disposições, somada ao vocabulário técnico-jurídico não proporcionam o aumento da porcentagem daqueles que leem, sejam os termos de uso, seja a política de privacidade e tratamento de dados.

Para que essa realidade mude ou, pelo menos, melhore consideravelmente, os documentos devem ser trazidos ao consumidor de forma simplificada, clara, concisa e com linguagem acessível, de preferência com o mínimo necessário de termos técnicos.

Dessa forma, o consumidor de fato poderá compreender o que ali está disposto e, por consequência, escolher de forma consciente se adere ou não a determinado contrato e consentir com a utilização e tratamento de suas informações.

Uma possível alternativa a minimizar a essa questão é o uso da tecnologia, através do legal design, mais precisamente através do visual law, ferramenta que tem como objetivo transformar o modo como a informação jurídica é veiculada.

O visual law torna a comunicação a ser propagada mais acessível e simplificada. Para tanto, a técnica combina elementos visuais e textuais, de modo a permitir uma melhor compreensão do conteúdo transmitido para o indivíduo que precisa da solução jurídica.

O foco é a compressão facilitada da informação ao destinatário, no caso, aqui, o consumidor. Assim, tais documentos devem ser desenhados para que este compreenda facilmente a informação ali contida.

De maneira não exaustiva, é possível citar algumas ferramentas utilizadas para compor o visual law ,como vídeos, imagens, mapas, fluxogramas e gamificação. Tal técnica além de reduzir as longas laudas repletas de termos técnicos, também possibilita a inclusão de pessoas que têm dificuldade em compreender tais dizeres por não fazerem parte de seu cotidiano.

Frise-se, contudo, que o visual law não é a solução para o problema, mas ao menos permite, de forma mais democrática, a acessibilidade e compreensão dos termos e políticas de privacidade veiculados nas inúmeras plataformas e sítios online, visto que atualmente quase que inevitável a contratação de serviços e compras por essa via.


[1]Explique-se que, no Brasil, o ordenamento jurídico diferencia a pessoa menor de 18 anos em duas categorias, sendo criança a pessoa até 12 anos de idade incompletos e adolescente aquela entre 12 e 18 anos de idade. Vide art. 2º do Estatuto da Criança e Adolescente – ECA.

[2]Art. 5º Para os fins desta Lei, considera-se (…) VI – transparência: garantia, aos titulares, de informações claras, precisas e facilmente acessíveis sobre a realização do tratamento e os respectivos agentes de tratamento, observados os segredos comercial e industrial;

Art. 9º O titular tem direito ao acesso facilitado às informações sobre o tratamento de seus dados, que deverão ser disponibilizadas de forma clara, adequada e ostensiva acerca de, entre outras características previstas em regulamentação para o atendimento do princípio do livre acesso

[3] Art. 7º (…) 2. Se o consentimento do titular dos dados for dado no contexto de uma declaração escrita que diga também respeito a outros assuntos, o pedido de consentimento deve ser apresentado de uma forma que o distinga claramente desses outros assuntos de modo inteligível e de fácil acesso e numa linguagem clara e simples. Não é vinculativa qualquer parte dessa declaração que constitua violação do presente regulamento.

Art. 12. 1. O responsável pelo tratamento toma as medidas adequadas para fornecer ao titular as informações a que se referem os artigos 13. e 14.  e qualquer comunicação prevista nos artigos 15. a 22. e 34. a respeito do tratamento, de forma concisa, transparente, inteligível e de fácil acesso, utilizando uma linguagem clara e simples, em especial quando as informações são dirigidas especificamente a crianças. As informações são prestadas por escrito ou por outros meios, incluindo, se for caso disso, por meios eletrónicos. Se o titular dos dados o solicitar, a informação pode ser prestada oralmente, desde que a identidade do titular seja comprovada por outros meios. (…) 7. As informações a fornecer pelos titulares dos dados nos termos dos artigos 13.o e 14.o podem ser dadas em combinação com ícones normalizados a fim de dar, de uma forma facilmente visível, inteligível e claramente legível, uma perspetiva geral significativa do tratamento previsto. Se forem apresentados por via eletrónica, os ícones devem ser de leitura automática.

A GOVERNANÇA NA AGENDA “ESG” E O MUNDO CORPORATIVO PÓS COP-26

Doutrina

Na semana em que se encerra a 26ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP-26), principal cúpula da ONU para debate sobre questões climáticas, realizada entre os dias 1 e 12 de novembro deste ano, em Glasgow, na Escócia e atendendo ao desafio de pesquisa que tem seguido o NOVA Consumer Lab sobre os pilares do ESG, já tratado anteriormente aqui e aqui, é chegada a hora da análise do impacto da responsabilidade da governança nas tomadas de decisão corporativa.

Na análise do tema ESG nos dias atuais, aparentemente o “G”, representante do pilar “Governance”, tem sido frequentemente esquecido em detrimento da prioridade que vem sendo dada aos elementos relacionados a questões climáticas e implicações sociais na análise de riscos e oportunidades empresariais.

A governança, entretanto, refere-se a fatores essenciais da tomada de decisão corporativa quando relacionada diretamente ao “modus operandi” de como as companhias devem se coordenar internamente, partindo desde o estabelecimento da ética e valores corporativos, passando por toda estrutura organizacional, até o delineamento das estratégias empresariais, política de transparência, sistemas de compliance e direitos dos acionistas. Importa ressaltar aos consumidores, muitas vezes desavisados, que é justamente este elemento que esteve no centro de alguns dos recentes e maiores escândalos empresariais, como foi no caso da “Dieselgate” pela Volkswagen, ou no caso da fuga de dados, pelo Facebook.

Ambos os casos, como se sabe, estão relacionados a possível ausência de uma governança diligente.

Práticas antiéticas como clientelismo, conflitos de interesse ou práticas comerciais impróprias podem ter um impacto devastador sobre uma empresa e seus acionistas, mas ainda pior sobre os consumidores. São os fatores inseridos na letra “G” que indicam as regras e procedimentos para países e corporações que permitem que os investidores e consumidores selecionem as práticas de governança que consideram adequadas, assim como fariam para questões ambientais e sociais.

São ainda consideradas questões de governança de alto perfil o modelo de gestão, como é o caso da política de responsabilidade social corporativa, ou ainda a promoção do respeito pelos Direitos Humanos, nos domínios da não discriminação e igualdade de oportunidades, liberdade de associação e negociação coletiva. Todos elementos que apontam para o fato de que a boa governança mitiga e controla os riscos para evitar má gestão, escândalo potencial e sanções regulatórias.

Em uma pesquisa realizada, recentemente, pela empresa financeira americana MSCI Inc., ainda que a longo prazo as questões ambientais e sociais agregadas ao setor empresarial tenham maior impacto financeiro e influenciem mais a exposição de uma companhia, resta demonstrado que, a curto prazo, os indicadores de governança apresentam os melhores resultados a nível financeiro.

A União Europeia reforça a importância dos aspetos de Environmental, Social and Governance (ESG) para os investidores, ao promover a Diretiva de Informação Não Financeira (2014/95/UE), já transposta para a legislação portuguesa através do Decreto-Lei n.º 89/2017, de modo que grandes empresas que sejam entidades de interesse público estejam obrigadas a divulgar informações não financeiras relativas às áreas sociais, ambientais e de governo societário. 

Sendo ainda mais ousada, a CMVM disponibilizou, em fevereiro deste ano, um modelo de relatório, não vinculativo, “para a divulgação de informação não financeira pelos emitentes de valores mobiliários admitidos à negociação, em particular a informação relativa a fatores ambientais, sociais e de governação (“environmental, social and governance“, ESG)”.

A divulgação do ESG tem sido uma prioridade na agenda dos reguladores globais. A UE foi pioneira, lançando módulo por módulo, com base no plano de ação geral lançado em 2018, e segue com bons exemplos que se estendem até agora, incluindo benchmarks climáticos e o Regulamento de Divulgação de Finanças Sustentáveis ​​(SFDR).

Outras jurisdições estão seguindo o exemplo. A questão está recebendo cada vez mais atenção dos reguladores dos EUA, com a política climática sendo uma das principais prioridades do governo Biden. Ainda assim, é fundamental passar da agenda à ação.

Esse foco tem se demonstrado como o principal ponto de alinhamento global quando, para além de dados financeiros, a responsabilidade corporativa hoje fundamenta-se, sobretudo, no cumprimento de novas regras que vão, para além de números monetários, aos números associados à transição climática, atitudes sociais, políticas culturais e de gênero, transparência, valores éticos e boa governança.

Ainda há mais trabalho a fazer e esperamos que a COP26 leve a ações mais concretas. Sabemos que a implementação de uma agenda em favor do ESG demanda tempo e exige um cronograma gradual para uma implementação viável, mas é importante estar atento ao devido valor de cada um dos elementos inerentes a esta nova realidade para não a perder de vista.

AR Smartglasses – a próxima dimensão do consumo

Doutrina

A realidade aumentada (Augmented Reality – AR) e a realidade virtual (Virtual Reality – VR) não são novas.

A primeira manifestação mais ampla da AR aparece sob a forma do protótipo de óculos que a Google lança em 2013 e que, em 2014, são disponibilizados ao grande público. Na altura causaram sensação, pensou-se que vinham para ficar, mas não foi o caso. Em 2015, a empresa anunciava que iria parar a venda e que logo se veria. Esse era o tempo dos wearables, tecnologia usável, que os mais abastados, curiosos e/ou adeptos do show-off consumiam e diligentemente transportavam e mostravam nas redes sociais que, embora ainda fraquinhas se as compararmos com a atualidade, já davam para fazer grande furor. Quem, nessa altura, queria usar e ostentar tecnologia tinha de carregar com ela, já que quase tudo vinha à parte. Aos óculos juntavam-se os relógios de fitness, as t-shirts medidoras, os GPS para o carro, os comandos para diversas coisas. Não era prático, mas antigamente, aí pelo início da segunda década do novo milénio, era assim.

A segunda manifestação de AR, mais ampla e socialmente incrível, poderá ter sido a caça ao Pokemon. O jogo foi lançado em julho de 2016 e tornou-se rapidamente um fenómeno viral, num instante enlouquecendo crianças e adultos por todo o mundo. Os jogadores convergiam como zombies para sítios reais, onde estavam bonequinhos virtuais, que pretendiam apanhar. As pessoas corriam em várias direções, saltavam vedações, eram atropelados por carros à frente dos quais se especavam, empurravam-se e lutavam para chegar a locais e saíam de casa à noite, porque parece que havia mais. Tudo isto para apanharem figurinhas virtuais, que não existiam fisicamente, mas eram vistos através de AR no espaço físico. Depois acabou, quase tão depressa como tinha começado. Um ano depois, a caça tinha perdido o interesse.   

Uma das grandes diferenças do primeiro para o segundo caso, estava no facto de o jogo dos Pokemons se fazer através do telemóvel, já bastante smartphone. Isto permitia que, sem a menor dificuldade, se usasse um dispositivo que, por essa altura, já ia sendo um prolongamento da pessoa. Alheio ao sucesso não terá sido também o facto de se tratar de um jogo. O ser humano, racional, ponderado, inteligente, dificilmente resiste a um bom jogo. Daí advém o sucesso da denominada gamification, de que falaremos noutra ocasião. 

Quanto à realidade virtual, nos seus primórdios, implicava o uso de uma espécie de óculos de mergulho e começou por ser usada em parques temáticos, dando-nos a ilusão de que estávamos efetivamente numa pista de corridas, numa montanha russa ou no espaço. Em usos mais profissionais ou culturais permitia, por exemplo, visitar uma casa ainda em projeto do arquiteto, a um monumento ou museu. Era uma espécie de 3D, revista e melhorada.

A distinção entre AR e VR, que podia não ser fácil em algumas situações, torna-se atualmente muito mais difícil, com o caminho para aquilo a que se poderá chamar realidade mista, em que ambas são usadas em simultâneo. Simplificando, podemos dizer que a AR tem a ver com o mundo real e acrescenta-lhe coisas do mundo virtual. Por exemplo, no âmbito do consumo, acontece quando “pegamos” num móvel que vimos online e o “experimentamos” na casa real em que estamos, ou fazemos qualquer outra experiência de “ver como fica” aquilo que queremos comprar. Continuando a simplificar, podemos dizer que a VR tem a ver com o mundo virtual e transporta-nos para cenários que nos parecem reais e com os quais interagimos. Por exemplo, no âmbito do consumo, podemos ser “transportados” para uma loja para ver os objetos que ali se vendem como se fossem reais, ou conduzir um automóvel num simulador que replica a condução como seria na estrada.

Não será difícil aceitar que experiências como estas, só possíveis devido aos avanços da tecnologia, alteram estruturalmente o modo de comprar e põem em causa conceitos basilares do Direito do Consumo.

Um novo passo nesta senda, e noutras, está a ser dado com a massificação, que se prevê próxima, do acesso a AR, VR e ao resultado da mistura de ambas.  

Por um lado, a Google, que como vimos largou os óculos, não largou as lentes e aposta nos smartphones, tanto para a AR, como para a VR. Veja, com os seus próprios olhos, garanto que vale a pena.

Por outro lado, o Facebook, em parceria com a Ray-Ban, criou uns óculos que em pouco se distinguem de normais óculos escuros, mas que têm duas camaras incorporadas, recebem comandos de voz e estão conectados com o smartphone.

São, pois, AR Smartglasses e se usarmos a imaginação para a qual, temos de reconhecer, há cada vez menos espaço de manobra, podemos começar a perspetivar a celebração de um contrato de compra e venda de um bem neste contexto.

Poderá ser algo como: vamos na rua, vemos uma bicicleta presa a um poste (eu sei que já não se usa, toda a gente anda de Gira, mas para este exemplo não serve), dizemos “Hey Facebook, take a picture” (em inglês ou, se como é provável, houver tradução simultânea incorporada, podemos dizer em português e em várias outras centenas de línguas). A foto vai direta para o telefone esperto que procura e encontra à venda bicicletas semelhantes. É-nos facultada informação sobre a loja mais próxima e indicado o caminho no mapa digital. Não nos apetece lá ir, pelo que seguimos a sugestão que, amável e desinteressadamente, nos é apresentada, entretanto, sobre a possibilidade de comprar online e receber em casa. Carregamos, aborrecidos, em vários “Aceito” relativos a diversas coisas que não sabemos quais são, nem nos interessam, nem interessam a ninguém, porque só queremos andar para a frente, o que conseguimos, não sem pelo caminho autorizar e prescindir de muito. Pagamos, eventualmente proferindo “Hey Facebook, paga”, coisa que o smarthphone fará sem dificuldade. Depois a bicicleta é entregue em casa, onde é arrumada, porque não precisávamos dela e porque não sabíamos que a podíamos devolver, o que estava num dos intermináveis clausulados subjacentes a um “Tomei conhecimento” em que também clicámos.

A AR Smartglasses parece poder trazer uma nova dimensão ao consumo. O consumidor vê, à venda ou simplesmente no espaço físico em que se está a movimentar, algo que lhe interessa. Pode com a combinação óculos/smartphone pesquisar imediatamente onde se vende, experimentar como fica, comprar, pagar e receber ou mandar entregar. A compra não se iniciou com o consumidor a dirigir-se a uma loja física ou online, ainda que precedida de publicidade “clássica”, em que já se está a considerar incluída a realizada através de meios digitais. A compra iniciou-se porque o consumidor, que ia simplesmente a existir, viu um bem de que gostou, que poderia nem estar à venda. Como tem consigo a tecnologia que lhe permite adicionar realidade virtual e informação à realidade física (AR) e, eventualmente, até entrar num ambiente digital (VR) em que consegue experimentar o que seria para si ter aquele bem, faz isso. Depois, compra-o, quer dirigindo-se à loja física que lhe é indicada online, quer acedendo instantaneamente à loja online.

Poderíamos ficar por aqui, com esta nova dimensão do consumo, se a tudo isto não estivesse agregado o objetivo de desenvolver um sistema de Inteligência Artificial com atributos muito especiais. Deste tema contamos tratar em próxima publicação. Para já, damos nota de que o Facebook passou ter um novo “Horizon” e a integrar, literalmente, o Meta(universo), como o seu criador, Mark Zukerberg explica neste video “Watch Mark Zuckerberg’s vision for socializing in the Metaverse”, mostrando magistralmente como a vida irreal pode, e vai, ser irresistível. Entretanto, milhares ou milhões de pessoas vão aderir às novas realidades aumentadas, virtuais e mistas, tão divertidas e úteis, vão mostrar como veem o mundo do sítio onde estão os seus olhos biológicos e, se tudo correr de feição, vão comprar ainda mais, quem sabe dizendo aos óculos que façam o favor de clicar “Sim” em todas as quadrículas de aceitação que forem aparecendo. Ou, porque não?, seria tão mais prático, pré-programando essa funcionalidade.  

Os dados pessoais dos consumidores

Doutrina

Logo ao acordar, muitos têm por hábito recorrer ao telemóvel para verificar a caixa de entrada de emails, obter informações sobre como estará o clima ou, ainda, aceder às notícias mais recentes. Mais tarde, a caminho do trabalho ou mesmo ao executar as tarefas domésticas, há aqueles que utilizam aquele aparelho para ouvir músicas ou podcasts; já na hora do almoço, usam-no novamente para aceder a um serviço de entrega de refeições. Para o regresso a casa, alguns optam por solicitar um veículo através de uma plataforma destinada a este fim. Ao acabar do dia, para relaxar, uns recorrem a serviços de streaming de conteúdos como filmes e séries utilizando smart TVs; outros preferem ir ao ginásio para exercitar-se enquanto usam gadgets de monitorização das funções biológicas, como smartwatches ou fit bits. Há ainda aqueles que, após a vivência isolada do período mais crítico da pandemia do COVID-19, já preferem fazer a maior parte das compras online – desde itens como livros e acessórios ou peças de vestuário até as compras habituais do mercado. Tudo isto sem contar o trabalho remoto e a socialização que ocorre no contexto das redes sociais.

Todos os elementos mencionados até aqui, em conjunto com muitos outros, tornaram-se parte da vivência de um grande número de pessoas e, mais particularmente, dos consumidores localizados dentro da União Europeia, designadamente em Portugal. Um dos fatores comuns de todos esses hábitos e práticas corriqueiras é a presença da tecnologia, tanto ao serviço do seu utilizador como também podendo servir aos propósitos econômicos de terceiros. A indagação que se coloca a seguir é: de que maneira?

A resposta é extremamente ampla, mas quase sempre passa pelos dados. Ao conviver com todas essas ferramentas tecnológicas e utilizá-las no seu dia-a-dia, o indivíduo revela inconscientemente (na maioria das vezes) informações sobre suas preferências e gostos, hábitos de rotina e até mesmo seu estado de saúde – o exemplo mais óbvio são os smartwatches ou fit bits -, ou através do histórico de compras do mercado, que potencialmente indicará uma alimentação mais ou menos saudável. O conjunto destes dados acerca de um indivíduo e o agregado dos dados relativos a grupos de pessoas enquadram-se no conceito de Big Data, que, por sua vez, poderá ser processado para identificar tendências e correlações, ou mesmo de maneira a afetar diretamente os indivíduos[1].

A construção jurídica da União Europeia preocupa-se com a regulação dos dados e do seu processamento em diferentes contextos. O Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD), aplicável desde 2018, confere a estrutura da proteção e prerrogativas relativas ao processamento de dados pessoais, resumidamente conceituados como informações relativas a uma pessoa singular identificada ou identificável[2].

No contexto específico do Direito do Consumo, é possível citar ao menos dois textos normativos: a Diretiva (UE) 2019/770 de maio de 2019 e a Diretiva (UE) 2019/2161 de novembro de 2019, que contêm dispositivos destinados a reger, dentre outros temas, a utilização dos dados pessoais dos consumidores no âmbito das relações de consumo.

A primeira das Diretivas apresenta uma das situações às quais a mesma deverá ser aplicável: “deverá igualmente aplicar-se sempre que o consumidor dê o seu consentimento relativamente a todo o tipo de material que constitua dados pessoais, como fotografias ou mensagens que irá carregar, posteriormente processado pelo profissional para fins de comercialização”[3].

Por sua vez, a Diretiva (UE) 2019/2161 inclui um novo requisito de informação aos contratos de consumo celebrados à distância[4], a saber: o profissional deverá informar ao consumidor “que o preço foi personalizado com base numa decisão automatizada”[5], quando aplicável, podendo esta decisão basear-se no processamento de dados pessoais. O Considerando 45 menciona uma forma ainda mais intensa de processamento de dados pessoais: a “definição de perfis de comportamento dos consumidores, de molde a permitir-lhes avaliar o poder de compra do consumidor”. Esta prática – a definição e a construção de perfis dos indivíduos com base no processamento dos seus dados pessoais – poderá revelar-se um tanto mais complexa sob o ponto de vista da salvaguarda dos direitos dos consumidores, uma vez que se destina não apenas a estabelecer correlações entre determinadas variáveis, mas também a estabelecer previsões acerca de comportamentos futuros[6].  

É importante ressaltar um ponto em comum crucial entre as duas Diretivas aqui mencionadas: a referência ao RGPD, na medida em que “no que se refere aos dados pessoais do consumidor, o profissional deve cumprir as obrigações decorrentes” do Regulamento[7]. Assim, para que o profissional possa valer-se do processamento dos dados pessoais dos consumidores para fins comerciais de forma lícita, deverá obrigatoriamente enquadrar tal operação dentro de uma das hipóteses da lista apresentada pelo Artigo 6.º do RGPD, bem como cumprir todos os demais requisitos legais.

Dentro da lista de hipóteses de licitude para o tratamento dos dados pessoais determinada pelo RGPD, a concessão do consentimento por parte do consumidor sobressai como a via mais adequada para a legitimação do processamento dos seus dados destinado a práticas comerciais[8]. É empiricamente observável que a maioria das pessoas apenas passa rapidamente pelos “Termos e Condições” dos vários serviços, conteúdos e produtos digitais que utiliza quotidianamente (como aqueles mencionados no início deste texto), sem realmente ater-se ao que é que está a prestar o seu consentimento[9]. Desta forma, a proteção dos dados pessoais nas relações de consumo existe na legislação europeia, ainda que de forma discutivelmente reduzida, e poderá ter a sua eficácia limitada pela própria conduta do consumidor.

A título de exemplo próximo da realidade dos consumidores situados em Portugal, uma prática comercial relativamente recente e provavelmente derivada da definição de perfis, é a apresentação ao consumidor de um folheto de promoções personalizadas, ou, nas palavras do próprio profissional, uma funcionalidade que permite ao consumidor visualizar “uma seleção dos seus produtos favoritos em promoção”[10]. Tal prática insere-se no contexto mais amplo dos esquemas de cartões de fidelização das grandes superfícies retalhistas, bastante comuns em Portugal, que permitem ao fornecedor acesso à uma verdadeira “mina de ouro”, no que diz respeito aos hábitos de consumo das famílias residentes em Portugal. Em contrapartida, caberá a cada consumidor refletir sobre um consciente exercício das prerrogativas legais à sua disposição, ou se continuará a carregar automaticamente nos botões de “aceito” de todos os serviços, conteúdos e produtos digitais que utiliza, a despeito das consequências em potencial.


[1] Opinião n.09/2013 do Grupo de Trabalho do Artigo 29.º acerca da limitação do propósito. Versão em língua inglesa.

[2] RGPD, Artigo 4.º (1)

[3] Considerando 24 da Diretiva (UE) 2019/770

[4] Artigo 6.º da Diretiva 2011/83/UE de outubro de 2011

[5] Diretiva (UE) 2019/2161, Artigo 4.º (4)(a)(ii)

[6] HILDEBRANDT, Mireille – Defining Profiling: A New Type of Knowledge? In HILDEBRANDT, Mireille; GUTWIRTH, Serge (eds) – Profiling the European Citizen. Dordrecht: Springer, 2008. pp. 17-45

[7] Diretiva (UE) 2019/770, Artigo 16.º (2) e Diretiva (UE) 2019/2161, Artigo 4.º (1)(b) e Artigo 6.º-A (10), que por sua vez modificam o conteúdo de outros instrumentos legais do Direito do Consumo Europeu

[8] POORT, Joost; ZUIDERVEEN BORGESIUS, Frederik J. – Online Price Discrimination and EU Data Privacy Law. Journal of consumer policy. 40:3 (2017), pp. 347-366.

[9] Como observado na página 92 do estudo de mercado intitulado “Consumer market study on online market segmentation through personalised pricing/offers in the European Union”, cujo resultado foi publicado em 2018.

[10] Um exemplo de tal prática pode ser visualizado aqui

Modalidades afins de jogos de fortuna ou azar – um regime de incerteza

Legislação

Sorteios ou giveaways, concursos publicitários e de conhecimento são algumas das mais conhecidas modalidades afins de jogos de fortuna ou azar, com as quais o consumidor se cruza no seu dia-a-dia, através dos mais variados suportes publicitários.

No fundo, trata-se de “operações oferecidas ao público em que a esperança de ganho reside conjuntamente na sorte e perícia do jogador, ou somente na sorte, e que atribuem como prémios coisas com valor económico predeterminado à partida”, conforme dispõe o art. 159.º, n.º 1 do Decreto-Lei 422/89, de 2 de dezembro (“Lei do Jogo”).

Assim, de acordo com esta definição, estão sujeitos ao regime das operações sob análise, não apenas os sorteios onde o elemento de sorte é predominante, como aqueles frequentemente organizados por marcas de produtos de cosmética, e publicitados por influenciadoras digitais, mas também todas as demais iniciativas, que atribuem prémios aleatórios de diferentes montantes e características, já que, também nesses casos, estará presente um elemento de sorte no que ao prémio a atribuir diz respeito.

Neste contexto, importa notar que o regime em questão é particularmente restritivo da liberdade dos operadores económicos, já que prevê uma proibição geral da exploração destas modalidades, por parte de entidades com fins lucrativos. Sem prejuízo, estão excecionados desta proibição os concursos de conhecimentos, passatempos ou outros, organizados por jornais, revistas, emissoras de rádio ou de televisão, bem como os concursos publicitários de promoção de bens ou serviços.

Acontece que a lei não define expressamente concursos publicitários de promoção de bens ou serviços, o que, na prática, esvazia de sentido útil a proibição referida, uma vez que qualquer ação deste género, levada a cabo por uma empresa com fins lucrativos, terá necessariamente a finalidade de promover bens ou serviços. Assim, bastará ao operador promover a ação num formato de concurso publicitário, para que a proibição mencionada não se lhe aplique.

Não obstante, está legalmente prevista uma barreira adicional, desta vez com um sentido prático inerente. Nomeadamente, por forma a levar a cabo uma modalidade afim de jogo de fortuna ou azar, os operadores económicos terão que obter uma autorização por parte da entidade competente, a qual avaliará a conformidade do regulamento da operação com as leis e diretrizes formais e estruturais aplicáveis.

É precisamente neste ponto que o regime aplicável às operações sob análise acaba por levantar mais questões.

Em primeiro lugar, como consequência de uma alteração ao regime em discussão, levada a cabo por meio do Decreto-Lei n.º 98/2018, de 27 de novembro, a entidade competente para autorizar deixou de ser a Secretaria Geral do Ministério da Administração Interna (SGMAI), para passar a ser o presidente da respetiva câmara municipal (quando os jogos estejam circunscritos à área territorial do município), ou o presidente da câmara municipal da situação da residência ou da sede da entidade que procede à exploração da operação (quando não circunscritos à área territorial do município).

Sucede que, apesar de a transferência de competências se ter tornado efetiva a 1 de janeiro de 2021, facto é que muitos dos municípios ainda não regulamentaram as condições em que irão autorizar os regulamentos que lhes sejam apresentados, tarefa que lhes cabe, nos termos da Lei do Jogo.

Assim, o clima de incerteza neste contexto é acentuado, o que poderá levar a situações de incumprimento por parte das empresas (as quais poderão estar sujeitas à coima legalmente aplicável), e consequente desproteção do consumidor, que será alvo de práticas comerciais especialmente atrativas, sem que as mesmas sejam controladas por quem de direito.

Especialmente no contexto televisivo, não são raras as vezes em que o consumidor é alvo de práticas comerciais particularmente intrusivas da sua decisão de contratar, sendo estas, também não raramente, enquadráveis no contexto das práticas comerciais desleais. Um tema já analisado de forma mais aprofundada no blog, e consultável aqui.

Tal como referido no texto para o qual se remeteu, mantemos o entusiasmo enquanto aguardamos a intervenção do Grupo de Trabalho para a Revisão do Regime dos Concursos e Passatempos, conforme disposto no Despacho n.º 1620/2021, de 11 de fevereiro.

De notar que a intervenção deste grupo ambiciona implementar medidas de três ordens: proibir os concursos que recorram a números de telefone com custos acrescidos (os típicos 760 e 761), rever o regime de fiscalização das modalidades afins de jogos de fortuna ou azar e proibir a utilização de cartões de débito como prémios neste contexto.

Importa notar que apesar de desejada, a atualização deste regime está já atrasada, uma vez que resulta do Despacho sob análise que o Grupo de Trabalho constituído deveria apresentar conclusões capazes de implementar os objetivos propostos até ao dia 15 de abril de 2021.

Squid Game – Uma narrativa sobre escolhas

Doutrina

Esta é a história sobre como, no último mês, uma plataforma de streaming conseguiu a proeza de colocar o mundo de olhos postos numa distopia sul-coreana, rejeitada por várias produtoras, ao longo de uma década[1].

Num total de nove episódios, “Squid Game apresenta concorrentes desesperados, com graves problemas financeiros, numa luta pela sobrevivência, ao longo de várias rondas compostas por jogos infantis mortais. O prémio final deste macabro concurso é de 45,6 mil milhões de wons (cerca de 32 milhões de euros) e só há lugar para um vencedor.

Esta alegoria, que pode ser encarada como uma abordagem crítica ao sistema capitalista, junta violência, sangue e gritaria, temperados com uma pitada de revivalismo, e assenta numa fórmula que, não sendo particularmente inovadora, obteve resultados surpreendentes.

A série, lançada pela Netflix a 17 de setembro de 2021, é já a mais vista na plataforma e mantém-se em primeiro lugar em mais de 80 países, incluindo Portugal.

Os efeitos da nova sensação do momento ultrapassam largamente a ficção. Desde a estreia da série, o modelo branco das sapatilhas clássicas da Vans, semelhante aos usados pelos protagonistas, teve um aumento de vendas na ordem dos 7800% e até a procura pelos famosos doces Dalgona sofreu um crescimento de 250%. Também o Duolingo registou um aumento de 76% nos novos utilizadores que procuram aprender coreano no Reino Unido, através da plataforma[2]. De resto, já aqui nos debruçámos sobre o impacto das produções da Netflix no consumo global, a propósito da série “Queen’s Gambit” (“Gambito de Dama”).

A 12 de outubro, a Netflix anunciava no Twitter que “Squid Game” tinha atingido oficialmente 111 milhões de espectadores em todo o mundo, tornando-se, assim, no seu maior lançamento de sempre. Mas o que explica que este k-drama, a par de tantos outros produtos disponíveis no catálogo, tenha sido visto por esta quantidade de utilizadores, convertendo-se num fenómeno de popularidade global sem precedentes?

Note-se que, neste caso particular, a Netflix não revelou as métricas usadas para chegar aos valores apresentados. Tradicionalmente, a plataforma mede a popularidade das suas séries e filmes contabilizando a quantidade de pessoas que interagiram com o conteúdo durante mais de 2 minutos nos 28 dias após a estreia, o que pode indiciar uma tendência para o inflacionamento destes números.

Ainda que o seu maior trunfo pareça assentar na disponibilização de uma grande quantidade e variedade de conteúdos, ao estilo “All you can eat”, em bom rigor, a Netflix destaca-se dos concorrentes no mercado do streaming por outra caraterística diferenciadora − a capacidade de fornecer sugestões personalizadas, em função dos perfis criados, com base nos dados recolhidos sobre as preferências dos utilizadores, com particular eficácia e precisão[3]. E nunca escondeu ao que veio. Nas palavras do seu CEO, Ted Sarandos”, There’s no such thing as a ‘Netflix show’. Our brand is personalization”.

Para tanto, a plataforma criou um sistema de recomendações, alicerçado num mecanismo de machine learning, que combina algoritmos de filtragem baseada no conteúdo e de filtragem colaborativa (é possível encontrar aqui uma explicação mais completa e detalhada sobre o funcionamento desta ferramenta).

A filtragem baseada em conteúdo recorre à experiência passada do utilizador. Os dados são recolhidos de acordo com as suas interações com a plataforma, revelando o histórico de visualização, as classificações que atribui aos títulos, em que dispositivos visualizou, a que horas e durante quanto tempo, por exemplo.

Para produzir recomendações e personalizar a experiência de um utilizador, estes dados são combinados com outros conjuntos de dados que contêm informações derivadas dos títulos de filmes e televisão oferecidos pela Netflix em todo o mundo, incluindo itens como o seu género, categoria, atores, realizador e ano de lançamento.

Já a filtragem colaborativa envolve o mesmo processo de extração de dados, mas efetua recomendações de acordo com uma combinação ponderada das preferências dos outros utilizadores, imitando, assim, as recomendações.

Numa fase inicial, as recomendações de filtragem colaborativa do sistema limitavam-se aos dados extraídos de utilizadores numa região ou país específico. Agora, as recomendações são retiradas das preferências de visualização dos utilizadores em todo o mundo e os utilizadores são agrupados algoritmicamente em “comunidades”, de acordo com os gostos revelados. Existem, atualmente, mais de 2000 clusters estabelecidos.

Ora, esta poderosa ferramenta de segmentação permite à Netflix conhecer os elementos dominantes nos perfis de consumo e apostar na compra e produção de conteúdos que correspondam exatamente a essas preferências, chegando a fórmulas de entretenimento que, no fundo, consistem em juntar os ingredientes certos.

Como qualquer mecanismo de machine learning, à medida que vamos fornecendo mais dados, através da utilização contínua do serviço, o sistema vai conhecendo mais sobre nós, aprimora-se e afina a personalização de conteúdos, a um nível cada vez mais detalhado e preciso. Nesse sentido, é possível que, através das técnicas de apresentação dos títulos, com base numa complexa combinação de preferências manifestadas, a “máquina” nos empurre para o que vamos consumir a seguir, condicionando previamente as nossas opções, com o benigno propósito de nos facilitar a vida e permitir poupar tempo de pesquisa.

De resto, a própria Netflix explica que para além de escolher os títulos que são incluídos nas faixas na página inicial, o sistema também ordena os títulos dentro da faixa, organizando depois as próprias faixas, recorrendo a algoritmos para proporcionar uma experiência personalizada. Assim, esclarece, “quando vê a sua página inicial da Netflix, os nossos sistemas ordenaram os títulos de um modo concebido para que lhe seja apresentada a sequência que lhe poderá dar mais prazer”, sendo que as faixas com a recomendação mais forte são apresentadas na parte superior e os títulos da esquerda para a direita em cada faixa, a menos que tenham sido selecionados os idiomas árabe ou hebraico no sistema.

Nada é deixado ao acaso. Recentemente, a Netflix passou a personalizar os “thumbnails associados aos filmes e séries. Assim, as imagens em miniatura que identificam e promovem o título mudam frequentemente, considerando uma combinação entre aquilo que o utilizador já viu com os demais títulos apresentados. No fundo, o produto é o mesmo, mas surge aos olhos de cada utilizador de forma distinta, com o propósito de o tornar visualmente mais apelativo, segundo a experiência de consumo de cada um, de forma a captar a sua atenção.

Em fevereiro de 2020, a Netflix introduziu mais um elemento no sistema de recomendações personalizadas à página inicial dos seus utilizadores: o Top 10. A lista, atualizada diariamente, ordena os 10 títulos mais vistos no país. Para além de colocar em evidência os produtos mais populares, esta ferramenta pode servir para os promover durante algum tempo e, assim, manter o ciclo de visualizações. Com efeito, se o utilizador, por mera curiosidade, visualizar o conteúdo destacado no Top 10, por mais de 2 minutos, na contabilidade da Netflix, já é um dos seus espectadores, o que pode contribuir para perpetuar a sua popularidade.

Graças ao manancial de dados que armazena sobre as nossas preferências de consumo, é possível que a Netflix saiba mais sobre os nossos gostos do que nós mesmos. O sistema de recomendação deu a esta plataforma um poder nunca antes experimentado pela indústria do audiovisual: o de prever e influenciar o que vamos ver a seguir, mantendo-nos alegremente numa bolha de consumo de entretenimento, especialmente desenhada para cada um de nós, tornando possível determinar com alguma segurança qual será o próximo hit[4].


[1] Numa entrevista ao The Korea Times, o autor, Hwang Dong-hyuk, revelou que a série, criada em 2008, foi rejeitada por vários estúdios e investidores, ao longo de 10 anos.

[2] A 13 de outubro, o Korean Cultural Center (KCC) nos Emirados Árabes Unidos organizou uma encenação dos jogos da série para duas equipas de 15 participantes, sem violência, em Abu Dhabi. O evento foi visto como uma forma de promoção da cultura sul-coreana. 

[3] Ainda que algumas das suas concorrentes tenham desenvolvido ferramentas semelhantes, a Netflix é a plataforma com maior número de utilizadores e consegue trabalhar com uma maior quantidade de dados sobre a utilização do seu serviço, potenciando, assim, os efeitos da personalização.

[4] Não deixa de ser paradigmático que, numa fase inicial, este serviço se tenha demarcado dos meios tradicionais pela ampla liberdade dada ao utilizador, oferecendo-lhe a possibilidade de ver quando e onde quisesse qualquer um dos muitos títulos disponíveis no catálogo.

Conhecimento completo e efetivo por quem use de comum diligência

Legislação

A lei portuguesa é bastante protetora do aderente em contratos celebrados com recurso a cláusulas contratuais gerais, em especial no que respeita à inclusão dessas cláusulas em contratos singulares, ou seja, nos contratos efetivamente celebrados entre aderente e predisponente. Na prática, uma aplicação rigorosa e séria, quer das normas aplicáveis, quer dos princípios cujo respeito estas visam garantir leva a excluir dos contratos, por vício de comunicação e/ou de esclarecimento, a maioria das cláusulas contratuais gerais que os predisponentes neles pretendem incluir.

Ao nível da comunicação, o critério é simples e bastante claro. Perante uma cláusula contratual geral supostamente incluída num contrato, é necessário perguntar se uma pessoa que “use de comum diligência” teria tomado “conhecimento completo e efetivo” da cláusula (art. 5.º-2 do DL 446/85). Se a resposta for positiva, a cláusula poderá estar incluída no contrato (será ainda necessário que passe pelo crivo do esclarecimento). Se a resposta for negativa, ou seja, se uma pessoa com diligência comum não teria tomado conhecimento completo e efetivo da cláusula, a consequência é a sua exclusão do contrato celebrado.

Ao longo dos últimos anos, perguntei várias vezes a turmas com dezenas e até por vezes centenas de estudantes quem é que já tinha lido as cláusulas apresentadas numa atualização de software. Ou num contrato celebrado online antes de descarregar uma aplicação digital. Até hoje ninguém me disse já ter lido, pelo menos por uma vez, os longos clausulados apresentados neste contexto[1]. E em todos estes casos se afirma, para poder passar ao passo seguinte, ter lido (e por vezes até compreendido) as cláusulas em causa[2]. Certamente já por mim passaram alguns estudantes pouco diligentes. Tão certo é que também os tive muito diligentes. E muitos, como eu, medianamente diligentes.

O critério é simples e claro, sendo-o também a consequência. Nenhuma dessas cláusulas integra o contrato celebrado (art. 8.º-a) do DL 446/85). E não integra o contrato por imperativo de justiça. Nem se pode dizer que a cláusula é imposta por uma das partes à outra, pois para impor alguma coisa a alguém é necessário que exista a consciência por parte desse alguém de que alguma coisa lhe é imposta.

Num estudo recente da Comissão Europeia sobre as atitudes dos consumidores face às cláusulas apresentadas pelos profissionais [Study on consumers’ attitudes towards Terms and Conditions (T&Cs)], parte-se do princípio de que os consumidores não as leem. Apresenta-se aí uma solução para as empresas: encurtar e simplificar os clausulados.

No Ac. do STJ, de 3/10/2017, estava em causa a cláusula n.º 207 do contrato de seguro celebrado entre as partes, que limita ou afasta a responsabilidade da seguradora em determinados casos, tendo o tribunal concluído que foi feita a comunicação ao aderente do teor integral das cláusulas contratuais, defendendo que o comportamento do aderente foi negligente ou pouco diligente[3]. Só a circunstância de estarmos a falar da cláusula n.º 207 é suficiente para concluirmos que um aderente que usasse de comum diligência, tendo em conta os hábitos e o grau de cultura dos portugueses, não teria dela tomado conhecimento. Uma cláusula com esta relevância teria de ser apresentada de forma destacada e não incluída no meio de centenas de cláusulas. O Direito está longe da realidade e do seu objetivo de prossecução da justiça se permitir que centenas de cláusulas possam ser incluídas unilateralmente num contrato de consumo, ficcionando-se que alguma pessoa, com a exceção do advogado que as redigiu, as venha um dia a ler. Felizmente, a lei não o permite. Falta garantir que a lei é aplicada de forma rigorosa e séria. São incluídas no contrato apenas as cláusulas de que um aderente comummente diligente tome conhecimento completo e efetivo.


[1] Larry Magid (“It Pays To Read License Agreements”) refere um caso em que foi incluída, num clausulado extenso na Internet, uma cláusula que determinava que, quem a lesse, tinha direito a uma compensação financeira; só depois de quatro meses e três mil downloads é que alguém reclamou a compensação, tendo-lhe sido atribuídos $ 1000.

[2] Uma cláusula com este conteúdo (indicação de tomada de conhecimento) será, em regra, nula, nos termos dos arts. 19.º-d) e 21.º-e) do DL 446/85.

[3] Refere-se, a propósito, a letra da canção Uma Alma Caridosa, de Jorge Palma: “Fui à última instância, enchi-me de brio / li a Constituição toda de fio a pavio / havia um artigo que lido com atenção / era como nos seguros: a gente nunca tem razão”.