A Criptomoeda de Squid Game: uma gota no oceano?

Doutrina

Há uns dias surgiu uma nova fraude envolvendo criptomoedas. Os responsáveis por este esquema fraudulento ter-se-ão aproveitado do sucesso da série da Netflix, Squid Game, para criar e comercializar a SQUID, criptomoeda inspirada na série, tendo com isso retirado 2,9 milhões de euros aos investidores, através da estratégia de rug pull[1]. Esta criptomoeda terá sido criada a fim de ser utilizada num jogo online baseado na série, mas o que prejudicou os milhares de investidores foi não conseguirem vender o ativo, uma vez adquirido.

Estes esquemas fraudulentos são bastante comuns, e diversos são os fatores que contribuem para que tal aconteça. Por um lado, temos o fear of missing out, que suscita um comportamento impulsivo por parte dos investidores. Por outro lado, existe uma grande estratégia de marketing em torno de criptoativos com nomes atrativos, ou associados a séries, filmes, marcas ou outros produtos, com white papers muito duvidosos, sendo que, na maioria das vezes, os criadores do criptoativo não são os proprietários da propriedade intelectual à qual se referem, e limitam-se a emitir tokens sem qualquer plano de longo prazo, o que não justifica a criação e publicitação do ativo junto dos investidores e consumidores.

Além do exposto, a maioria dos criptoativos já emitidos e em circulação são parte de fraudes, através das quais os investidores, muitas vezes, adquirem ativos que não possuem qualquer valor, e noutras vezes, pagam e não recebem qualquer criptoativo.

Dado o exposto, concluímos que o grande problema em torno dos criptoativos, que impulsionam as fraudes, é o deslumbramento com esta tecnologia, pois há uma errada perceção de que os criptoativos têm um valor elevado, mas isto apenas se aplica a um número reduzido de casos, que despertaram uma grande atenção e interesse nos meios de comunicação social, fomentando a ideia de sucesso deste tipo de tecnologias, o que não é, nem de perto, a Big Picture.

Importa esclarecer o que são as criptomoedas, riscos inerentes e que regulação existe em Portugal neste âmbito. Ora, as criptomoedas consistem na representação digital de ativos, baseada na tecnologia blockchain. Estes criptoativos[2] têm como principal característica a descentralização, ou seja, não são emitidos por instituições como bancos centrais, instituições de crédito ou instituições de moeda eletrónica. Apesar da elevada segurança garantida nas transações, a criptomoeda comporta diversos riscos difíceis de colmatar, nomeadamente: elevada volatilidade, que se revela nas variações de preço imprevisíveis e abruptas; risco de financiamento ao terrorismo e branqueamento de capitais, uma vez que através do anonimato garantido pelo criptoativo, haverá uma ocultação da origem dos fundos investidos.

Apesar de não haver legislação portuguesa sobre o assunto, a estes criptoativos poderá ser aplicada a legislação relativa aos valores mobiliários. Para que tal aconteça, deverá ser feita uma análise casuística com vista à aferição da verificação dos requisitos cumulativos constantes do artigo 1.º do Código dos Valores Mobiliários (CVM). De acordo com o referido artigo 1.º do CVM este criptoativo tem de ser um “documento representativo de uma ou mais situações jurídicas de natureza privada e patrimonial” e, além disso, deve possuir algumas características dos valores mobiliários típicos[3]. Caso se conclua que o criptoativo reúne todas as condições para se qualificar como valor mobiliário, e este tenha sido emitido ou esteja a ser comercializado em Portugal, estará sujeito a diversas normas, das quais se destacam: em primeiro lugar, as normas relativas à emissão, representação e transmissão de valores mobiliários; em segundo lugar, os requisitos sobre a qualidade da informação, aspeto muito importante para os possíveis investidores; em terceiro lugar, o regime relativo ao abuso de mercado.

A União Europeia, verificando a existência de diversos projetos de decreto-lei por parte de alguns estados-membros, e por considerar que deveria haver uma unificação na regulação deste tipo de ativos,  apresentou, em 24 de setembro de 2020, a proposta de Regulamento do Pparlamento Europeu e do Conselho relativo aos mercados de criptoativos e que altera a Diretiva (UE) 2019/1937, assunto já abordado aqui no nosso blog. O objetivo primário desta proposta de regulação será fomentar e apoiar o desenvolvimento digital, garantindo alguma segurança jurídica e procurando mitigar o problema das fraudes, a grave assimetria de informação e outros problemas negativos, implementando normas menos exigentes do que as adotadas nos mercados mobiliários tradicionais. Note-se que não se pretende limitar nem erradicar esta tecnologia, mas sim estabelecer um quadro jurídico sólido que permita o desenvolvimento destes mercados na União Europeia, com o intuito de se retirar o máximo proveito possível, protegendo os consumidores e garantindo a estabilidade financeira. Esta proposta encontra-se ainda em fase de discussão, pelo que teremos de aguardar o desenrolar dos acontecimentos.

Refira-se ainda, a título de curiosidade, que em El Salvador foi introduzida a bitcoin como moeda oficial, tendo o Governo nacional informado que esta passaria a ser aceite como forma de pagamento, por parte de todos os agentes económicos, excluindo-se, aqui, qualquer outro criptoativo. Esta medida terá como objetivo regularizar a bitcoin, sem quaisquer restrições legais.

Se estiver interessado em investir em criptoativos, deverá conhecer os riscos inerentes, não realizar um investimento cuja perda potencial não possa suportar e estar atento às características dos esquemas fraudulentos.


[1] Verifica-se nos casos em que os criadores do criptoativo desviam os fundos dos investidores e abandonam o projeto sem deixar rastro.

[2] Nakavachara, Voraprapa and Potipiti, Tanapong and Lertmongkolnam, Thanawan, Should All Blockchain-Based Digital Assets be Classified Under the Same Asset Class? (August 18, 2019). Available at SSRN: https://ssrn.com/abstract=3437279 or http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.3437279

[3] Estas características referem-se à “vinculação do emitente à realização de condutas das quais resulte uma expectativa de retorno para o investidor” e prática de atos por parte do emitente ou entidade relacionada que proporcionem o aumento do valor do criptoativo.

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