O Ronaldo, o Messi, o Louis e a Annie – futebol, xadrez, arte ou publicidade

Doutrina

A 20 de novembro de 2022, teve início oficial um dos eventos mais importantes do planeta, denominado “Campeonato Mundial de Futebol FIFA de 2022”. Este Mundial, a que de tão conhecido e relevante basta chamar assim, tem vindo a ser alvo de polémicas de várias espécies, quase todas más. As suspeitas de corrupção e os atentados aos direitos humanos são as que mais se destacam.

No entanto, para além disso e da competição propriamente dita, surgem também outras coisas extraordinárias e no dia da inauguração acontece uma muito interessante. Fala-se muito de xadrez e contempla-se arte. Ou publicidade. Arte publicitária, que evidencia como são ténues as fronteiras em muitos campos. Sob um fundo absolutamente clássico, com uma perfeita quase ausência de cor, estão um baú sobre o qual assenta uma mala de mão, com padrão de quadrículas castanhas, nas quais estão dispostas peças de xadrez. Sentados, dois homens, um de cada lado, pousam na mala uma mão e, na outra mão, a cabeça, numa atitude absolutamente compenetrada e absorvida. Parece que abraçam suavemente o tabuleiro improvisado. Tudo é equilibrado, harmonioso. A luz, a sombra, a cor, as posições, as peças caídas e as peças em jogo, tudo concorre para a incrível obra de arte fotográfica de Annie Leibovitz, extraordinária artista que, entre muitos outros, fotografou a rainha Isabel II. Os homens são Lionel Messi e Cristiano Ronaldo, as malas são Louis Vuitton, marca criada em 1854, a jogada de xadrez é do terceiro jogo entre Magnus Carlsen e Hikaru Nakamura, no torneio da Noruega de 2017, que terminou num empate.

No Twitter, recentemente adquirido por Elon Musk, que rapidamente se pôs a despedir muitas pessoas, a marca de luxo publica que “Victory is a state of mind”, relembra que tem acompanhado os mais importantes eventos desportivos e explica que a fotografia celebra os dois mais talentosos jogadores de futebol da atualidade. Tudo verdade. Ganhar é um estado de espírito que, aliado a muito suor e trabalho pode levar à vitória, a Louis Vuitton é tão antiga e emblemática que acompanhou muitos desportistas e outros viajantes ilustres e ricos nas suas deslocações. A primeira classe do Titanic, por exemplo, estava carregada de bagagem assim acomodada. É usualmente aceite que Messi e Ronaldo são os melhores jogadores de futebol do mundo. Além de que Annie Leibovitz conseguiu mais uma assinalável proeza fotográfica. Nada foi deixado ao acaso, o mais ínfimo detalhe daquele improviso foi meticulosamente planeado. Até o xadrez. Podiam ter colocado aleatoriamente umas peças que ficassem bem em cima das quadriculas do padrão, para as quais jogadores de futebol estariam, em pose, a olhar, mas não. Deram-se ao trabalho de escolher um lance duma partida entre os melhores jogadores de xadrez do mundo e, ainda mais precisamente, uma que acaba num empate. Este detalhe, também ele, além da subtileza, evidencia um enorme respeito, tanto para com os jogadores de xadrez, como para com os jogadores de futebol retratados.

A publicação, a foto, a situação tornou-se viral nas redes sociais e, no Mundial de futebol, o xadrez ganhou lugar através de algo que  tudo indica ser uma excelente campanha publicitária.

Daqui dois pontos principais há a assinalar. O primeiro, é o fascínio que o xadrez ainda origina nas pessoas e, também, a capacidade que tem de fazer vender. Relembre-se como o mundo, em plena guerra fria, esteve suspenso de alguns jogos e desatou a comprar tabuleiros e peças e a jogar. Por exemplo, o filme “O Prodígio” mostra-o no Campeonato Mundial de Xadrez de 1972, em que o americano Bobby Fisher venceu o soviético Boris Spassky. Em final de 2020, a série “The Queen’s Gambit”, inflamou as audiências e fez disparar o consumo em várias áreas, naquilo que se poderá denominar “efeito Netflix”. Relembre-se, também, como foi impressionante quando o Deep Blue, uma máquina, venceu em 1997 Garry Kasparov, o campeão de xadrez da época. O xadrez tem associada a ideia de inteligência, de ponderação, de visão, de segurança, de precisão e muitas outras que o tornam adequado a simbolizar a superioridade humana, a qualidade individual de uma pessoa, a representar a ideal qualidade de um povo, de um país, da humanidade.

O segundo ponto a assinalar é a natureza esquiva e fluida da publicidade. Num duplo sentido. Por um lado, a sua clássica proximidade à arte. As sopas Campbell de Andy Warhol, não deixaram de ser sopas quando o artista resolveu fazer delas uma obra de arte, curiosamente, com a inicial oposição dos detentores da marca. A fotografia de Annie Leibovitz não deixa de ser uma manifestação artística por fazer publicidade.

No entanto, urge questionar, publicidade a quê? Sem dúvida, à marca das malas. Temos, no entanto, de admitir que cada um dos jogadores retratados são também publicitados. Embora já de si, pareçam possuir o toque de Midas, transformando em ouro tudo em que tocam, qualquer deles tem associado um fortíssimo merchandising e o reforço da divulgação da sua imagem vai certamente refletir-se em aumento de vendas. Ganham os próprios, ganham as empresas que produzem e vendem bens e serviços com o seu selo, ganham os clubes, os países e, certamente, muito mais gente que não nos ocorre. O próprio Mundial, certamente também ganha, sendo ainda mais divulgado. O Twitter e as redes sociais em que foto e publicação circulam, certamente ganham em visitas, que terão originado mais receitas em publicidade e outras. Este é o outro lado, do segundo ponto a assinalar. A publicidade tornou-se difusa, esquiva, fluída, indireta, de fronteiras muito pouco claras. A publicidade tradicional, ainda predominante na primeira década deste século, não só está a cair em desuso, como é acompanhada por novas formas que seriam muito difíceis de prever há algum tempo e que apresentam contornos pouco nítidos, que tornam difícil a sua qualificação e enquadramento jurídico. Salienta-se, pela relevância e amplitude que pode alcançar a “publicidade” nas redes sociais, quer através de algo que se torna viral, trazendo de repente para a ribalta marcas de bens ou serviços, quer através do trabalho dos influencers, mais sistemático, que vão apresentando, ou usando, ou comentando coisas, sítios que, por isso, vendem mais. Com o advento dos chatbots e o desenvolvimento do processamento de linguagem natural, também a publicidade pode passar a ser personalizada, sendo apresentada a cada pessoa que conversa com a máquina os produtos que procura, ou os que mais lhe podem interessar. Se juntarmos a realidade virtual, aumentada e mista, que temos vindo a abordar em posts recentes, acabamos por poder estar a ser avassalados, permanentemente, por comunicação que promove, com vista à sua comercialização, quaisquer bens ou serviços. Transformamo-nos em destinatários permanentes de publicidade, mais ou menos do mesmo modo como nos tornamos produtores e consumidores de dados pelo simples facto de existirmos e, principalmente, de usarmos um smartphone.

O Ronaldo, o Messi, o Louis e a Annie, fazem desporto, indústria, arte, história, promovem o futebol, o xadrez, as viagens, a moda, a fotografia, fazem publicidade, originam o aumento de vendas de coisas várias, geram tráfego nas redes sociais e na internet, alimentam a big data e a inteligência artificial, forçam os cânones do Direito, de todos os Direitos. Integram uma realidade cuja complexidade se adensa progressivamente, tornando difícil a sua análise e compreensão.

Vale-nos o Mundial que, nos relvados atafulhados de publicidade, nos vai manter fixos no jogo, algo à escala humana.

A Web Summit no presente do futuro do consumo

Doutrina

Estamos no day after da Web Summit que, como a maioria das pessoas em Portugal sabe, aconteceu em Lisboa, de terça a sexta. Neste fim de semana, na próxima semana e, se tudo correr bem, nos próximos meses, os contactos entre quem se encontrou por ali vão dar frutos contribuindo, entre outras coisas, para alterar as relações entre profissionais e consumidores, o modo como se consome e para trazer novos desafios ao Direito que tem de conseguir enquadrar e dar solução aos desenvolvimentos que os mercados vão impondo.

A Web Summit, já em pré-registo para 2023, fechou a 4 de novembro, com o Presidente da nossa República a cumprimentar Paddy Cosgrave, o CEO da organização, com um carinho que lhe pode ter deslocado um ombro e a anunciar-lhe que a feira vai ficar em Portugal até 2028, como está combinado, mas também depois, como espera que se irá combinar, com a promessa de aumento de construção do espaço, feita pelo mayor anterior, agora Ministro das Finanças, a dever ser cumprida pelo mayor atual, de nome Moedas, sob a atenta vigilância do PR, que do palco o avisou. Paddy, a tentar recuperar o equilíbrio do aperto de mão de entrada, do rombo que a pandemia fez nas suas finanças e do facto de ter de encaixar o evento numa área que afinal ainda não cresceu, não disse que sim, nem que não.

Para quem por lá andou é muito evidente que o espaço se torna exíguo para este retorno pleno ao presencial. Estiveram mais de 70.000 participantes de cerca de 160 países e o maior número de sempre de startups e investidores. Incluindo o Altice Arena, quatro pavilhões de consideráveis dimensões a que foi possível acrescentar um quinto improvisado, uns food trucks e mais umas barracas e estruturas amovíveis, ou não fosse uma feira, ainda assim a simples circulação é difícil, implicando uma permanente gincana, no perpetuo movimento que é necessário entre a visita às empresas, às mais de dez salas e palcos de Conferências e de apresentações que estiveram sempre a abarrotar e as reuniões entre os participantes. Ser o ponto de encontro é o mantra da Web Summit: “Where the tech world meets”.

A efervescência impera e, saudavelmente, são mais as perguntas que as respostas. Impera, também, a investigação. Toda a gente está a fazer investigação. Ligada a Universidades, a empresas, a ambas, a consórcios, a grupos de várias naturezas, investigar, desenvolver, experimentar, falhar, voltar a tentar é o dia a dia de quase todos. Qual vai ser o resultado é o que menos importa, porque é pelo caminho que vai acontecendo o que é relevante. Vive-se um ambiente de dúvida, mas metódica e criadora.

Se há uma certeza, é a de que é tudo muito rápido, sempre mais rápido, por várias razões. A principal, provavelmente, é o facto de que a par do desenvolvimento autónomo de tecnologias diferenciadas, se vai dando a interligação entre elas, o que provoca saltos, muitas vezes inesperados e intensos. É o que está a acontecer, por exemplo, com o denominado metaverso. A big data e a inteligência artificial aliadas à realidade virtual e aumentada, que foi caminhando para a denominada realidade mista, estão a levar a indústria e o comércio a novos modelos de negócio, alterando-se a relação entre profissionais e consumidores e a maneira como estes atuam no(s) mercado(s). Este assunto foi já abordado neste blog, a propósito dos smartglasses. A conjugação daquelas tecnologias, com as potencialidades da blockchain, o aumento da capacidade de computação e a imaginação, estão na base do enorme desenvolvimento daquilo a que se vem apresentando como o metaverso. Do que vimos, os mundos “alternativos”, virtuais, mistos, em que a realidade física se mistura com a realidade virtual, têm tudo para se tornarem incontornáveis. Saíram, definitivamente, do campo restrito dos jogos, para entrarem no do trabalho, da produção, da venda de bens e produtos, físicos e virtuais.

Naomi Gleit, responsável de produto da Meta (que veio a incluir o Facebook, o Instagram, o Whatsapp e mais uma série de outras empresas e/ou marcas), será provavelmente uma das pessoas mais habilitadas a explicar e no palco principal da Web Summit, fê-lo da melhor forma possível: com toda a simplicidade. Disse que o metaverso é o futuro da internet, que vamos experienciar a três dimensões. É isto. O metaverso é, pois, a internet a três dimensões. A gestora afirmou ainda, entre várias outras coisas muito interessantes, que “A Meta não vai ser dona do metaverso”, como nenhuma empresa é dona da internet e que o metaverso vai acontecer, com ou sem a Meta. Vão existir vários players no mercado a fornecer as plataformas e os serviços para que todos possam vir a usar.  

O tema das realidades virtual e aumentada, na internet, não é nada novo. Por certo que muitos se lembram do Second Life que, lançado em 2003, já tinha avatares e permitia uma vida paralela num mundo virtual. E, desde há vários anos que jogadores passam grande parte do seu tempo dentro de mundos virtuais em jogos crescentemente complexos e com ambientes próximos da “realidade real”. Também a experiência de óculos como os da Google, do Facebook ou outros é relativamente comum. Já para não falar do fenómeno incrível que dominou o verão de 2016 quando o mundo se lançou numa insana caça aos Pokemons, descarregando a aplicação para smartphone do jogo que ganhou 25 milhões de utilizadores no mês de lançamento. Nas suas casas e nas ruas, parques, campos e cidades pelo mundo fora, as pessoas corriam, de telefone em punho, em direção de desenhos animados virtuais, que através do telemóvel apareciam no mundo físico. Depois passou. No entanto, de um modo bastante corrente, estas tecnologias foram ficando, tornando-se quase banais. Muitos de nós usam, sem grandes reflexões prévias, aplicações de telemóvel para experimentar, online, roupa, ou como é que um móvel ficaria na sua sala, ou algo de semelhante. Isto é, seja em jogos, seja comercialmente, estas tecnologias vão estando incluídas no cardápio do cidadão comum que as usa porque é divertido e prático, sem pensar muito, nem antes, nem depois

O tema ainda será relativamente de nicho, mas do que foi possível observar, dir-se-ia que vai haver uma explosão de metaverso, muito rapidamente. Se vai ser um hype, ou se virá para ficar e dominar, é o que se verá. Por vezes há temas em grande ascensão que, de repente, estagnam. Foi o que aconteceu, por exemplo, com os veículos autónomos e com os robots “humanoides”, quem sabe se por evidenciarem demasiado a possibilidade de a humanidade ser ultrapassada por máquinas.

A humanidade não gosta de pensar nessas coisas e, talvez por isso e por não ser o melhor para o negócio, terá havido várias pressões para que fosse desconvidado o linguista, cientista cognitivo e filósofo Noam Chomsky que, juntamente com Gary Markus, da Universidade de Nova York foram “Desmascarar a grande mentira da Inteligência Artificial” (Debunking the great AI lie), no último painel da Web Summit, numa Altice Arena a rebentar pelas costuras. O foco foi nas habilidades do GPT-3 e de outros sistemas semelhantes de processamento de linguagem natural (NLP) que, laboriosamente, colocam palavras a seguir a palavras, naturalmente não percebendo patavina do que fazem, pelo menos do ponto de vista do que é a construção e a compreensão humana da linguagem. Quando uma pessoa diz ou escreve “Este quadro de Picasso é bonito” estará a equacionar o conceito de beleza, objetivo e subjetivo, a comparar a obra com outras que conheça do autor, com a de outros autores, com a realidade que representa e a pensar em mais uma infinidade de coisas que contribuem para o juízo que profere. Quando o GPT-3 diz ou escreve a mesma frase, está a contabilizar as vezes que foi dita e escrita a propósito do quadro em causa e a calcular, com base na quantidade descomunal de informação a que acede e que consegue processar, qual a melhor sucessão de palavras que pode apresentar no contexto em que é solicitado. O que pode dar sarilho.

São, pois, de grande pertinência as advertências em relação à Inteligência Artificial, principalmente quando foram feitas atempadamente, há décadas.

Com a convergência de tecnologias, o aumento da informação, da capacidade de computação e das habilidades da inteligência artificial, a caminho do metaverso, riscos e benefícios sobem de escala.

A proteção dos consumidores, vamos ver como se fará, mas poder-se-á admitir como provável a existência de novos elencos de informação, que o avatar do consumidor, como o próprio, aceitará. 

Era uma vez a Shein na Web Summit

Doutrina

No segundo dia da Web Summit 2022, em Lisboa, Donald Tang, vice-presidente executivo da chinesa Shein, subiu ao palco. Muito disse sobre o modelo de negócio, as revoluções na indústria da moda e a devoção ao consumidor. Sobre violação de direitos humanos nas cadeias de abastecimento, exploração laboral, contrafação e outros que tais, nem uma palavra. Mas, também, sem moderador, quem é que ia lembrar-se realmente de perguntar?

Tang soube onde colocar a tónica. Entre “a escolha de colocar o cliente no centro é a nossa estrela do Norte” e “estamos sempre a ouvir o consumidor”, foi possível perceber que a Shein aposta na produção de até 200 unidades de cada peça, apenas avançando para maiores volumes se a intenção de compra for clara – isto é, se se notar uma tendência de consumo[1].

Ao nível da sustentabilidade a ideia não parece mal pensada: menos produção, menos recursos, menos desperdício em vão. Um desaproveitamento de “apenas 2%”, nas palavras do americano. Há aplausos que precisam de ser dados. O problema começa quando Tang afirma, quase orgulhoso, que entre o design do bem e a respetiva confeção passam no máximo 14 dias, podendo até passar menos[2]. Uma coisa é certa – a Shein ouve mesmo o consumidor. Pudesse o trabalhador ter a mesma sorte.

Obrigatoriedade de produção de 500 peças por dia por funcionário, 2 a 4 cêntimos de pagamento por unidade, 12 a 18 horas de trabalho diário, 1 dia de descanso por mês é quanto vale, no fim de contas, uma empresa avaliada em biliões de dólares[3].

Depois de tantas benesses, Tang afirmou ainda que a gigante se prepara para integrar o mercado em segunda mão, acompanhando as mais recentes tendências de consumo circular. Um intencional “queremos revolucionar a moda tradicional através da tecnologia, tornando-a acessível e inclusiva” conquistou, certamente, a assistência. Mas só quando Tang deixou cair um ponderado “se querem tornar o mundo mais sustentável, venham trabalhar connosco” é que a plateia de ativistas se revoltou. Ou talvez não, que não estava lá nenhum.

Para todos os que assistiam, Donald Tang esclareceu, de uma vez por todas, que o nome da marca não se pronuncia “Shine”, antes “She-in”. Em qualquer dos casos, ficou mais do que evidente que She is definitely In trouble.


[1] Observador, “Vice-presidente da Shein («diz-se She In»): ‘Se querem tornar o mundo mais sustentável, venham trabalhar connosco’”, 2.11.2022, disponível em https://observador.pt/2022/11/02/vice-presidente-da-shein-diz-se-she-in-se-querem-tornar-o-mundo-mais-sustentavel-venham-trabalhar-connosco/. Renascença, “Empresa chinesa de ‘fast fashion’ lança plataforma para venda em segunda mão”, 2.11.2022, disponível em https://rr.sapo.pt/noticia/economia/2022/11/02/empresa-chinesa-de-fast-fashion-lanca-plataforma-para-venda-em-segunda-mao/306291/.

[2] Jornal de Negócios, “Shein demora 10 a 14 dias entre design e fabrico de cada peça”, 2.11.2022, disponível em https://www.jornaldenegocios.pt/empresas/web-summit/detalhe/e-o-primeiro-dia-oficial-da-web-summit-no-palco-principal-fala-se-da-alexa-da-amazon.

[3] David Hachfeld e Timo Kollbrunner, “Toiling Away for Shein Looking Behind the Shiny Façade of the Chinese «Ultra-Fast Fashion» Giant”, 11.2021, disponível em https://stories.publiceye.ch/en/shein/. Channel 4, Untold: Inside the Shein Machine (documentário), 17.10.2022. Madeline A. James, “Child Labor in Your Closet: Efficacy of Disclosure Legislation and a New Way Forward to Fight Child Labor in Fast Fashion Supply Chains”, in The Journal of Gender, Race & Justice, vol. 25, n.º 1, 2022, disponível em https://jgrj.law.uiowa.edu/online-edition/volume-25-issue/child-labor-in-your-closet-efficacy-of-disclosure-legislation-and-a-new-way-forward-to-fight-child-labor-in-fast-fashion-supply-chains/.

O consumidor como produtor de informação

Doutrina

A proteção do consumidor nasce da constatação de que na sociedade de consumo em massa o cliente individualmente considerado se encontra numa posição de fragilidade em relação ao produtor e ao vendedor. Estes, além de provavelmente mais ricos e poderosos, estariam na posse de informação fundamental para que o comprador tivesse a oportunidade de formar adequadamente a sua vontade de adquirir certos bens ou serviços. Estará aqui a principal justificação para muito da legislação de defesa do consumidor assentar uma parte relevante do seu regime de proteção, na obrigação de ser transmitida informação ao tal ser estereotipado: o consumidor.

Há muito que se encontra cientificamente demonstrado que grande parte das decisões humanas não são ponderadas. Não se trata de falta de informação, trata-se do modo como o cérebro humano usualmente funciona. A economia comportamental, que combina a vertente económica com as ciências cognitivas, estudou detalhadamente o fenómeno.  Por todos, podemos ler “Pensar, depressa e devagar”, de Daniel Kahneman que questionou o modelo racional de tomada de decisões e de formulação de juízos. Licenciado em matemática e psicologia pela Universidade de Telaviv, posteriormente doutorado em psicologia pela Universidade de Berkeley, ganhou em 2002 o (mal) denominado Prémio Nobel da Economia “Por integrar aspetos da pesquisa psicológica sobre o comportamento económico do homem em situações de incerteza e a tomada de decisões nessas circunstâncias”.

Este livro, acessível a leigos, é mais que suficiente para se ficar sem grandes dúvidas sobre o processo mental usualmente subjacente à quantidade descomunal de decisões que o ser humano tem de estar sempre a tomar. A decisão rápida, digamos que instintiva, instantânea, impensada, inconsciente, é a regra e não a exceção.

Mesmo que não existissem estudos a evidenciar esta realidade, uma simples observação atenta dum consumidor médio por um jurista médio, há muito que permite concluir que dar-lhe informação pode ser infinitamente pouco se, efetivamente, se pretende protegê-lo. Bastaria, até, que cada um de nós observasse a sua própria atitude face ao modo como emite os “Aceito” todos os dias, para suspeitar da pouca eficácia da informação acessível.

Paradoxalmente, o aumento da quantidade de informação, quanto mais não seja por manifesta falta de tempo, parece contribuir mais para a desresponsabilização de quem a entrega do que para a formação da vontade de quem a recebe. O Manifesto contra a subversão do contrato, de Margarida Lima Rego, apresenta com veemência esta realidade, em contexto financeiro e meio digital. O assunto foi também abordado neste blog por Jorge Morais Carvalho, a propósito da adesão a contratos celebrados com recurso a cláusulas contratuais gerais. No limite, sabendo-se que os clausulados não são, nem podem razoavelmente ser, lidos por pessoas diligentes, a incerteza associada ao seu efetivo conteúdo é grande.

Embora as evidências científicas e de senso comum mostrem à saciedade, e também à sociedade, que esta coagida dádiva, menos em linha com a convicção, que em automática inserção de novos formulários aptos a serem em bloco e acriticamente “aceites”, não funciona, o “legislador” insiste em fazer assim, principalmente por não saber fazer doutra maneira. No limite, não prescindindo da soterração e saturação do consumidor e da desresponsabilização do produtor/prestador de serviços que, através da entrega de informação sobre os defeitos e insuficiências do que vende, pode responder menos pela falta de qualidades, diversa legislação distingue o mais importante do menos, estabelece hierarquias, impõe formulários de informação uniforme, sinalética visual mais ou menos colorida, tudo com vista a proporcionar a esse idílico ser racional, o consumidor, os instrumentos intelectuais de que necessita para fazer, contra toda a probabilidade e informação científica, uma escolha ponderada, tanto na necessidade como na qualidade, pensando se realmente precisa do que vai adquirir e comparando caraterísticas, preços, condições dos contratos, garantias, tudo, tudo, de vários produtos ou serviços semelhantes, para escolher mesmo bem. Exercício, atualmente, repetido muitas vezes ao longo do dia, intercalado por tomadas de conhecimento e aceitação de políticas de privacidade, mais especificamente “cookies”, e de proteção de dados, os mais recentes fornecedores de listas de declarações paralelas, mas integrantes da relação comercial.

O “direito à informação” é, assim, um dos grandes pilares da defesa do consumidor e, no essencial, usa-se quando meios realmente eficazes não estão disponíveis para o proteger.

Até há relativamente pouco tempo, ao falar-se de informação e de consumidor, o verbo mais usado era o “dar”. O profissional obrigado a dar e o consumidor obrigado a receber, sob pena de poder vir a ser considerado desleixado, pouco diligente, abaixo de “médio”, o que lhe retiraria alguma proteção.

Há, no entanto, que assinalar que os tempos mudaram e atualmente o consumidor, além de recetor, passou a produtor intensivo de informação. Tanto online, como no mundo físico, embora em ambiente digital a recolha, registo e tratamento de dados assuma maiores proporções.

As pessoas, pelo simples facto de se movimentarem em sociedades industrializadas e conectadas, usando sistematicamente dispositivos digitais, principalmente o telemóvel, criam informação, sobre si próprias e sobre o mundo, que é usada pelas empresas e pelo Estado.

Essa informação tem valor e vem suscitando já vasta discussão sobre se deverá ou não ser paga, bem como sobre a ideia de gratuitidade de produtos ou serviços que acabam por ter como “contrapartida”, dados sobre quem os adquire. Martim Farinha analisou o conceito de pagamento neste blog, no contexto da Diretiva das Praticas Comerciais Desleais.

Parece, pois, que no que diz respeito à informação, o consumidor tem o direito e o dever de a receber, ainda que daí não resulte benefício efetivo para nenhuma das partes. Uma espécie de óleo de fígado de bacalhau que tem de ser dado por uns e engolido por outros, perpetuando-se a tradição. É o consumidor como recetor de informação.

O consumidor como produtor de informação é algo novo, diferente, desafiante. Apetece perguntar várias coisas a esse respeito. Neste contexto, pergunta-se simplesmente: será que o consumidor ao receber pela informação que produz, em dinheiro ou géneros (produtos e/ou serviços), se torna “profissional”?

A produção de informação é uma atividade, de algum modo, comercial a que o consumidor moderno se vai dedicando bastante.

Pink tax: consumidoras podem pagar mais por bens e serviços?

Doutrina

Pink tax é a denominação dada ao aumento no preço de produtos e serviços destinados ao público feminino. Como apontam pesquisas, este fenômeno ocorre em diversos locais do mundo desde a década de 1990.Um exemplo é, num mesmo estabelecimento, a cobrança de valores maiores para cortes de cabelo femininos, sem levar em consideração o real tempo ou complexidade do trabalho. Outra situação é a venda de lâminas de barbear ou brinquedos infantis mais caros apenas por possuírem a cor rosa. Assim, questiona-se: há legitimidade para a cobrança de valores maiores com base apenas no gênero do/a consumidor/a?

Em pesquisa realizada nos anos 2000, constatou-se que, no Reino Unido, um corte de cabelo para mulheres em cabelereiros unissex custava em média 43% a mais do que para um homem. Noutro giro, estudos realizados nos Estados Unidos observaram que, na Califórnia, em 1994, as mulheres gastavam anualmente cerca de US$1.351,00 a mais que os homens para utilizar os mesmos serviços, desde a lavagem de uma blusa de algodão até à compra de carros usados. Já em Nova Iorque, em 2015, havia um sobrepreço de 7% em produtos semelhantes que fossem destinados às mulheres. Indícios análogos puderam ser coletados no Canadá, em 2016, com um aumento de 43% na versão feminina dos mesmos produtos de higiene pessoal. Esse fenômeno também foi constatado no Brasil, com uma elevação de 12,2% nos preços de similares produtos com enfoque no público feminino.

Em que pese não terem sido encontrados estudos que comprovassem a existência desta diferenciação geral em países da União Europeia, existem campanhas para evidenciar e combater a pink tax, como a “#axthepinktax” endossada pelo European wax center, em que consumidoras enviam fotos de artigos que possuem preço mais elevado na versão feminina.Tais diferenças de preços, se analisadas em singular, podem levar a uma falsa impressão de leviandade da questão. Contudo, em conjunto, há um substancial aumento no custo de vida da mulher, principalmente quando considerado juntamente ao gender pay gap, já que, segundo pesquisas realizadas pela ONU Mulheres em 2020, estas ainda recebem, em média, apenas 84% do salário médio masculino.

Ressalta-se que há uma liberdade regulatória do próprio mercado para estabelecer o preço dos seus produtos ou serviços, ainda que sejam valores distintos pelo mesmo bem. Este fenômeno ocorre comumente com os preços dinâmicos praticados no setor da aviação, de acordo com o momento em que se compra um voo, ou até mesmo quando há descontos para bilhetes adquiridos por estudantes e/ou idosos. Nesta última situação, a diferenciação de preços consubstancia uma discriminação positiva, ao buscar amparar e promover maior igualdade material a grupos que são, em regra, economicamente mais  frágeis.

No que tange à pink tax, apesar da denominação de “taxa”, para efeitos jurídicos, esta não pode ser considerada um tributo, principalmente por não ser determinada ou revertida para qualquer ente estatal. Entretanto, é possível visualizar tal diferenciação de preços como uma discriminação negativa face às mulheres, ao acentuar a desigualdade de gênero. Logo, a pink tax extrapola a liberdade do mercado e se torna uma cobrança efetivamente violadora da ética, como concluiu a doutrinadora Alara Efsun Yazicioglu em seu livro Pink tax and the law: discriminating against women consumers. Por isso, já existem legislações específicas contra a pink tax, como o “Gender tax repeal act of California” de 1995, e o “New York City Pink Tax Ban” de 2020.

Na União Europeia, a Directiva 2004/113/CE proíbe a discriminação de preços de serviços de acordo com o gênero do consumidor e determina que  deve ser garantido o acesso a processos judiciais e/ou administrativos para que haja reparação dos danos causados. Inclusive, este diploma foi utilizado pelo acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia no Processo C-236/09 (Test-Achats), para instituir a obrigatoriedade de prêmios e prestações unissex nos regimes de seguro privados. Contudo, o relatório sobre a aplicação desta Directiva afirma que um dos desafios registados é a falta de conhecimento em geral da população, o que resulta num menor número de queixas.

Portanto, em que pese ser uma prática disseminada, a imposição de valores distintos para bens e serviços com base no gênero do consumidor tende a acentuar a desigualdade entre os sexos. Assim, como inclusive ressaltou a Comissão Europeia, em resposta a questionamento acerca da pink tax, a discriminação direta ou indireta de gênero para o acesso a bens e serviços é efetivamente proibida pelo ordenamento europeu, de tal forma que não é possível a cobrança de preços diferenciados com base apenas no sexo do/a consumidor/a.

Competências financeiras dos adultos – soluções para consolidação da literacia financeira no quadro europeu

Doutrina

A 11 de janeiro de 2022 foi lançado o quadro de capacidade financeira para adultos na UE, projeto conjunto da UE e OCDE. O projeto visa promover uma compreensão partilhada das competências financeiras que os adultos devem ter para tomar decisões sólidas em assuntos de finanças pessoais. Foi concebido para incentivar e apoiar a implementação de políticas públicas, programas de alfabetização financeira e materiais educativos a serem desenvolvidos pelos Estados-Membros, instituições educativas, indústria e indivíduos.

Este projeto surgiu na sequência dos resultados obtidos através da avaliação da viabilidade do desenvolvimento de um quadro de competências financeiras da UE, estando inserido no Plano de Ação da União dos Mercados de Capitais para 2020, no qual a Comissão Europeia se comprometeu a aumentar a confiança nos mercados de capitais através da melhoria da literacia financeira. Além disso, no início deste ano tiveram início os trabalhos para composição de um quadro conjunto direcionado aos mais jovens. Ambos os projetos têm origem nos quadros de competências nucleares da OCDE/INFE em matéria de literacia financeira (podem ser consultados aqui e aqui, respetivamente).

Note-se que a grande inovação destes projetos está na atualização do enquadramento anterior, através da inserção de competências digitais, competências referentes à sustentabilidade e competências relevantes para a resiliência financeira.

Para que possamos compreender o alcance deste quadro, temos de esclarecer alguns aspetos importantes sobre o documento disponibilizado pela Comissão Europeia. Ora, o foco deste enquadramento é a literacia financeira, sendo esta a combinação de consciência financeira, conhecimentos, competências e comportamentos necessários para tomar decisões financeiras sólidas e assim alcançar o bem-estar financeiro individual.

O quadro divide as competências em quatro áreas: 1) dinheiro e transações; 2) planeamento e gestão financeira; 3) riscos e recompensa; 4) panorama financeiro. Dentro de cada uma destas competências são avaliadas três dimensões. A primeira refere-se ao conhecimento/compreensão, e através desta verifica-se se determinado sujeito revela discernimento em relação a um certo tópico. A segunda permite avaliar as aptidões e comportamentos do sujeito. A terceira permite avaliar as motivações, confiança e atitudes do sujeito, através das quais se capta a tomada de decisão interna que influencia o comportamento financeiro. Esta disposição admitirá a divisão das competências financeiras por níveis, à semelhança do que acontece com as competências linguísticas, que na União Europeia vão do nível A1 ao nível C2.

Atualmente, o documento encontra-se disponível para adoção voluntária por autoridades públicas, órgãos privados e pela sociedade civil, dentro da União Europeia, com vista ao desenvolvimento de políticas e instrumentos educativos. Pode dizer-se que será um alicerce fundamental para todas as entidades que pretendam colaborar para a construção de um background sólido da literacia financeira entre jovens e adultos (através da implementação de projetos para a educação financeira nas escolas, universidades, locais de trabalho, campanhas de sensibilização, entre outras).

Indubitavelmente esta iniciativa é de grande relevo para reforçar a proteção dos consumidores, que ao estarem mais informados e conscientes dos instrumentos financeiros, risco associado, custos e práticas fraudulentas, elevarão as suas competências financeiras e, por conseguinte, tomarão decisões que permitirão alcançar o bem-estar financeiro.

Como já foi abordado no nosso blog, há muitos problemas que resultam da iliteracia financeira, e um deles é a vulnerabilidade dos consumidores. A verdade é que a Europa apresenta um resultado bastante deficitário no que diz respeito ao nível de literacia financeira, existindo uma grande disparidade entre os diferentes estados-membros. Portugal é um dos países onde a iliteracia financeira é mais elevada.

Os desenvolvimentos tecnológicos verificados nos últimos anos aliados à pandemia trouxeram uma redução da intermediação e aconselhamento financeiro por parte de instituições fidedignas, o que colocou os consumidores numa posição de maior fragilidade. Como consequência, surgiram muitas práticas desleais – em alguns casos mesmo criminosas – como a comercialização de cursos, dicas sobre investimento com promessa de enriquecimento rápido, criptoativos sem qualquer valor ou que nem sequer existem, ou investimentos em instrumentos de elevado risco que poderiam comportar consequências desastrosas para as finanças pessoais do consumidor.

Ora, através deste enquadramento europeu das competências financeiras dos adultos será possível alertar e educar de uma forma mais eficaz com vista a evitar estas situações, garantindo a proteção dos consumidores mais vulneráveis a estas práticas. É necessária a colaboração dos estados-membros para que se verifique o seu sucesso, pois a adoção deste quadro é facultativa.

Contudo, apesar da importância de uma abordagem mais coordenada entre decisores políticos da UE e nacionais em relação a questões financeiras, não nos podemos esquecer que a educação financeira e a literacia financeira não devem substituir um elevado nível de proteção do consumidor, através de instrumentos que permitam fiscalizar e erradicar práticas e esquemas fraudulentos com impacto negativo nas finanças pessoais dos consumidores.

Reabrir a controvérsia das loot boxes nos videojogos

Doutrina

No passado dia 31 de maio, a Forbrukerrådet (Conselho de Consumidores Norueguês)[1] publicou o relatório “INSERT COIN: How the gaming industry exploits consumers using loot boxes”, de 59 páginas, detalhando a prática comercial das Loot boxes em videojogos, os diversos problemas que estas levantam, em termos de proteção dos consumidores, a legislação aplicável e a necessidade de mais (e melhor) regulação. Em coordenação com a publicação deste relatório, 20 associações de proteção dos consumidores de 18 estados europeus juntaram-se em apelos às autoridades para implementar reformas na legislação e na fiscalização destas práticas. Portugal foi um deles, tendo-se a DECO – Associação Portuguesa para a Defesa do Consumidor juntado a este consórcio.

As loot boxes são uma prática comercial utilizada em diversos videojogos, desde os gratuitos (free-to-play) aos pagos, que consiste, tipicamente, em cobrar aos utilizadores um valor (em moeda corrente ou em moedas virtuais), para desbloquearem “caixas” ou “carteirinhas” virtuais, de forma a obterem um prémio aleatório, que consiste numa recompensa (em conteúdo digital) do videojogo em questão. Os prémios aleatórios destas caixas podem variar muito, desde conteúdos para a simples personalização das personagens (as chamadas skins), apenas com valor cosmético e sem impacto na jogabilidade, até a personagens, equipamentos, figuras ou outros itens que concedem vantagens substanciais a quem as adquire. Estes itens virtuais podem, também, frequentemente ser transacionados, doados, trocados e vendidos entre os utilizadores, o que permite o surgimento (lícito ou ilícito) de mercados secundários, verdadeiras economias paralelas que incentivam a procura pelas loot boxes.

Estima-se que a venda de loot boxes em 2020 tenha resultado em receitas mundiais de 15 mil milhões de dólares para a indústria dos videojogos, com destaque para videojogos como o FIFA21, da EA, e o Fortnite, da Epic Games.

Controvérsias com loot boxes já não são uma novidade em 2022. É necessário destacar que, entre 2017 e 2018, depois de uma série de polémicas com o lançamento dos videojogos Star Wars Battlefront II e FIFA18, comparando a funcionalidade a casinos online predatórios para jovens, as Comissões de Jogos de Fortuna e Azar dos Países Baixos (Netherlands Gaming Authority) e da Bélgica (Belgium Gaming Commission) lançaram investigações a estas práticas para compreender se estas violavam as leis de jogo online nestes Estados, o que se veio a verificar. A generalidade das empresas passou a bloquear estas funcionalidades nestes Estados, mantendo-se a prática nos restantes. Aproveita-se as diferenças entre a definição legal de gambling nos vários ordenamentos jurídicos.

Este novo relatório e a ação concertada das associações de defesa dos consumidores visam reabrir esta temática, num ângulo pouco explorado até agora: o do Direito do Consumo. Desta forma, o relatório dá destaque:

  1. ao carácter agressivo da publicidade, pop-ups e notificações constantes dentro e fora dos jogos;
  2. à exploração de vulnerabilidades dos utilizadores com recurso a técnicas de design enganador e dissimulado – deceptive design, manipulative design e dark patterns;
  3. a critérios enganadores de transparência sobre as probabilidades de os utilizadores vencerem prémios;
  4. à utilização de algoritmos opacos que modificam e dissimulam resultados e probabilidades;
  5. à utilização de moedas virtuais (in-game currencies) próprias de cada jogo e plataforma para mascarar o custo real monetário da compra das loot boxes;
  6. às técnicas de design dos jogos destinadas a incentivar os jogadores a adquirirem loot boxes, com recurso a estímulos e castigos;
  7. ao verdadeiro custo real de modelos de negócio free-to-play ou freemium, que na verdade são bastante caros para os utilizadores;
  8. ao risco de perda dos conteúdos digitais a qualquer momento, fruto de cláusulas contratuais inseridas nos End-User License Agreements (EULA);
  9. à venda de loot boxes especialmente direcionada a menores.

O relatório utiliza dois case studies (FIFA22 e Raid: Shadow Legends) para exemplificar as principais práticas da indústria, passando de seguida para um curto enquadramento jurídico, incluindo a legislação aplicável aos contratos de jogo de fortuna e azar na modalidade de jogo online e o Direito do Consumo Europeu (e dos Estados Unidos da América).

No Direito do Consumo Europeu, a Forbrukerrådet focou a sua análise quanto à aplicabilidade, em primeiro lugar, da Diretiva das Cláusulas Contratuais Abusivas (Diretiva 93/13/CEE[JCO31] , transposta no DL n.º 446/85, de 25 de outubro) em especial às cláusulas que conferem unilateralmente um vasto leque de poderes aos prestadores de serviços para modificar funcionalidades dos conteúdos ligados às loot boxes, o funcionamento das mesmas e a possibilidade de apagarem os bens virtuais das contas dos utilizadores sem justificação e sem direito a reembolso.

Defende-se ainda a aplicação da Diretiva das Práticas Comerciais Desleais (Diretiva 2005/29/CE, transposta pelo DL n.º 57/2008, de 26 de março) quanto ao carácter enganador e agressivo comum a vários sistemas de loot boxes (artigos 8.º e 9.º), desde o timing das ofertas comerciais durante o jogo, a pressão colocada sobre os utilizadores, a opacidade da informação sobre os prémios, e o facto de frequentemente serem direcionadas a consumidores vulneráveis, nomeadamente as crianças e jovens.

Considera-se também aplicável a Diretiva dos Direitos dos Consumidores (Diretiva 2011/83/UE, transposta pelo DL n.º 24/2014, de 14 de fevereiro) quanto ao incumprimento dos requisitos de informações contratuais, nomeadamente certas informações como a probabilidade real dos prémios[2] das loot boxes essenciais para a decisão dos consumidores de comprarem ou não (artigo 6.º-1). A Comissão Europeia referiu este ponto nas suas Guidelines do final de 2021 para a interpretação e aplicação da Diretiva das Práticas Comerciais Desleais (Comunicação C/2021/9320), no artigo 7.º-4, afirmando que na venda de loot boxes devem ser cumpridos os deveres de informação de ambas as diretivas, quanto ao preço e as principais características (como as probabilidades).

A proposta de Regulamento para a Inteligência Artificial também foi abordada, mas apenas de passagem, quanto à opacidade e impacto negativo nos utilizadores dos algoritmos utilizados em videojogos.

De notar que o relatório não refere a Diretiva dos conteúdos e serviços digitais, quanto às normas relativas às modificações dos conteúdos digitais pelo profissional e o exercício dos direitos dos consumidores (como os efeitos da resolução do contrato).

Atendendo que a Comissão Europeia começou em março deste ano um “Fitness Check[JCO32] ” às três diretivas indicadas no relatório, com vista à preparação de propostas de revisão das mesmas até 2024, este relatório pretende reabrir a discussão sobre as loot boxes e promover alterações legislativas que tenham em conta os principais problemas regulatórios desta prática comercial.

Assim, o relatório termina com uma série de recomendações para a regulação das loot boxes:

  1. Proibição de práticas enganosas e dissimuladas pelas empresas de videojogos;
  2. Os preços nas lojas in-game devem estar indicados em moeda corrente (pelo menos com igual destaque em comparação com o preço em moedas virtuais);
  3. Videojogos direcionados a menores não devem ter loot boxes, nem funcionalidades “pay-to-win”, em que, sendo o jogo grátis, haja a possibilidade de serem conferidas vantagens substanciais ao utilizador pelo pagamento de quantias monetárias;
  4. Mais transparência no funcionamento dos algoritmos, devendo o consumidor ser expressamente informado quando for sujeito a decisões automatizadas que possam afetar o seu comportamento;
  5. Reforçar a atuação e cooperação das autoridades administrativas e entidades reguladoras no setor dos videojogos, para garantir a cumprimento da lei pelos profissionais e a proteção adequada dos consumidores;
  6. E finalmente, caso estes “remédios” não surtam o efeito de mitigar os problemas causados pela utilização desta prática comercial, esta deverá ser proibida.

Tal como em muitos outros ordenamentos jurídicos, em Portugal, a indústria dos videojogos e a suas práticas têm passado muito despercebidas[3] ao enforcement do Direito de Consumo. Esperemos que a participação da DECO neste consórcio e a cobertura mediática deste assunto possam resultar em ações concretas, especialmente se atendermos ao facto que o Decreto-Lei n.º 119-G/2021, de 10 de dezembro, apenas transpôs parcialmente a Diretiva 2019/2161 (Diretiva Omnibus), existindo assim uma janela de oportunidade para inserir reformas nos diplomas nacionais, acompanhando a transposição das medidas em falta.


[1] Organização de defesa dos direitos dos consumidores noruegueses, sob a alçada da Autoridade do Consumidor Norueguês, autoridade administrativa semelhante a uma entidade reguladora independente em Portugal.

[2] A Autoridade da Concorrência Italiana (AGCM), com competência para o enforcement da Diretiva da Práticas Comerciais Desleais, conseguiu impor este requisito de transparência às empresas de videojogos em Itália.

[3] Em 2018, Teresa Monteiro, vice-presidente do Turismo Portugal, assinou uma declaração conjunta de reguladores sobre loot boxes em videojogos. Também em 2018, o Serviço de Regulação e Inspeção de Jogos participou num encontro de reguladores em Birmingham sobre o mesmo tema. Além destas notícias, não se conhecem mais ações dos reguladores portugueses.


NAVEGAR (ONLINE) É PRECISO, VIVER (OFFLINE) NÃO É PRECISO: o preenchimento dinâmico e descritivo do conteúdo da vulnerabilidade digital

Doutrina

A velocidade das transformações do mercado de consumo é, sem dúvidas, um dos maiores desafios do Direito do Consumidor. Especialmente pelos influxos da internet, desde a sua concepção até o descobrimento de seu potencial comercial, surgiram novas tecnologias, novos modelos de negócio, novos meios de oferta e de contratação, assim como novas práticas relativas à publicidade, à perfilização e à organização de estruturas sociais e econômicas que daí emergem, as quais passam a operar por uma lógica data-driven mercantilizada de rede em um espaço (não físico) de fluxos informacionais[1].

Neste espaço de fluxos informacionais, navegar é preciso: qualquer interação ou relação estabelecida na ambiência digital é controlada, armazenada e gerenciada com táticas e técnicas para tornar a navegação e os layouts, bem como os outputs, ajustáveis e programáveis conforme os interesses de quem emprega a tecnologia. Nesse sentido, atributos, características, ânimos, personalidades e demais subjetividades são utilizadas na base da probabilidade e da estatística como parâmetros objetivos na condução de negócios.

Essa nova realidade permite a identificação de novos e renovados fatores que determinam assimetrias nas relações entre consumidores e fornecedores, cujo efeito é a impotência daqueles na dimensão digital do mercado. Relaciona-se com a falta do poder de barganha, com desigualdades estruturais ou outras condições sociais ou econômicas que facilitam uma sujeição estrutural do consumidor diante dos fornecedores.

A isso é dado o nome de vulnerabilidade. É descrita por Marques e Miragem, de modo geral, como um estado da pessoa de inerente risco, um sinal de confrontação excessiva de interesses, uma situação permanente ou provisória, individual ou coletiva, cujo efeito é o desequilíbrio de determinada relação ou interação e, consequentemente, o enfraquecimento do sujeito de direitos[2]. Se explorada, haverá o potencial de influenciar diretamente e negativamente a capacidade de o consumidor lidar satisfatoriamente com as práticas mercadológicas e com os contratos que estabelece, bem como de impactar a sua autonomia no que tange a tomar decisões de acordo com seus próprios interesses.

Conceituar a vulnerabilidade não é tarefa fácil, talvez nem mesmo seja necessária ou aconselhável. A dificuldade (e o perigo) em sua definição em matéria de consumo reside justamente na criatividade negocial e nas – sempre em evolução – necessidades do mercado, as quais são impostas contemporaneamente por intermédio das estruturas e das arquiteturas codificadas cada vez mais complexas, opacas e rapidamente modificáveis do ambiente online, bem como porque os consumidores se localizam em uma teia de relações e de instituições sociais diferentes, de modo que as vulnerabilidades também serão sentidas mais ou menos de modo particularizado – viver (offline) não é preciso –, o que contrasta como uma proposta de definição rígida ou mesmo atinente somente a determinados grupos de pessoas, como bem pontuou aqui no blog Sara Fernandes Garcia.

O caso brasileiro pode ser um bom exemplo para ilustrar essa questão. Lá, todos os consumidores pessoas naturais destinatárias finais fáticas e econômicas são vulneráveis por expressa determinação legal do Código de Defesa do Consumidor (art. 4º, I, CDC), cabendo ainda gradações ou sobreposições de camadas de vulnerabilidade em determinados casos, o que é conhecido como hipervulnerabilidade ou vulnerabilidade agravada. O CDC, sabiamente, não trouxe definições jurídicas acerca do conceito de vulnerabilidade, cabendo originalmente à doutrina e à jurisprudência a conformação do sentido e do alcance dinâmico do texto da lei, emprestando ao princípio certa plasticidade para a atualidade do diploma e para a tutela mais efetiva dos consumidores. 

Há, todavia, o Projeto de Lei (PL) n. 895/2021, em tramitação na Câmara dos Deputados, que se prestaria a estabelecer medidas de proteção do consumidor em situação de vulnerabilidade, pretendendo-se a alteração do CDC em diversos pontos.

O PL traria, desta maneira, uma definição: “entende-se por vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo a situação em que pessoas físicas, de forma individual ou coletiva, por suas características, necessidades ou circunstâncias pessoais, econômicas, educativas ou sociais, se encontrem, ainda que territorial, setorial ou temporalmente, em uma situação especial de subordinação, impotência ou desproteção que impeça o exercício de seus direitos como pessoas consumidoras em condições de igualdade”; na sequência, afirma que será prestada atenção especial a setores que “(…) contem com maior proporção de consumidores vulneráveis entre seus clientes ou usuários (…)” e que o direito básico à informação do consumidor (art. 6º, III, CDC), bem como no que concerne à oferta (art. 31, CDC), se dará “principalmente quando se tratar de consumidor vulnerável”. Há outras menções no PL de cunho (restritivo) semelhante.

Parafraseando Drummond de Andrade, “no meio do caminho tinha uma pedra”. E essa “pedra” nos excertos trazidos do texto proposto é justamente uma situação especial, maior proporção de consumidores vulneráveis e principalmente, que vai de encontro à principiologia do CDC ao cercar a vulnerabilidade a algumas hipóteses. A justificativa da proposta encontra respaldo na Nova Agenda do Consumidor da União Europeia que, segundo o PL, concebe “a vulnerabilidade como um conceito dinâmico, em que uma pessoa pode ser considerada vulnerável em determinado âmbito de consumo, mas não em outros, e em algum momento de sua vida, mas não em outros”.

A União Europeia tem, contemporaneamente, um quadro definido de consumidores que considera vulneráveis, como os doentes, idosos e crianças, e, nesse sentido, a Agenda se presta à expansão, não à contração (como seria se o PL fosse aprovado no Brasil). Ora, se todos os consumidores são vulneráveis, não há razão de elaborar uma proposta normativa no sentido de considerar apenas alguns em especial vulneráveis, contrariando todo um arcabouço técnico, dogmático e jurisprudencial. Paradoxalmente, o que pretende se efetivar, em verdade, está se limitando, embaraçando o movimento expansionista do reconhecimento de novos fatores que dão causa à vulnerabilidade, tema tão importante em tempos de transformação digital.

Isto não significa que o CDC ou quaisquer normas que se destinem à proteção dos consumidores não necessitem de atualização ou de revigoramento em atenção a determinadas temáticas e situações, como o mercado de consumo digital. Muito antes o contrário. A noção aberta da vulnerabilidade tem pelo menos dois propósitos fundamentais: um, de ordem conceitual (o quê), busca investigar os diversos fatores que levam à vulnerabilidade e; dois, de ordem prática[3] (para quê), busca identificar e criar instrumentais jurídicos e de políticas públicas para promover a resiliência dos sujeitos vulneráveis no mercado.

É claro, como operadores do Direito, lidamos com termos técnicos e precisos, mas também a interpretação aqui desempenha papel fundamental na concreção da vulnerabilidade porque ela é, de fato, dinâmica e polissêmica: devido às circunstâncias que se modificam rapidamente no mercado de consumo, quem hoje não é considerado vulnerável poderá amanhã o ser – o que está se tornando regra no mercado digital.

De acordo com uma equipa liderada por Micklitz[4], a noção de vulnerabilidade digital descreve o poder e a capacidade de atores comerciais de afetarem decisões, desejos, necessidades e comportamentos de uma maneira que o consumidor tende a não tolerar, mas também não está em posição de impedir. Serve, assim, para delinear um estado universal de indefesa e de suscetibilidade à exploração de desequilíbrios por parte do parceiro que em algum sentido é mais forte, o que é favorecido pela automação do mercado de consumo, pela sua arquitetura, pela utilização de dados pessoais e pela concentração das funções de gerenciamento e de condução da dimensão digital em plataformas[5].

Trata-se de uma vulnerabilidade facilmente percebida, passível de reconhecimento a partir de abordagens distintas[6]: a falta ou o excesso de informação; a falta de compreensão dos termos unilateralmente elaborados em termos e condições de uso e congêneres (se e quando lidos); a ausência ou insuficiência de mecanismos jurídicos aptos a tutelar o sujeito em meio digital; autoexecutabilidade de smartcontracts; a opacidade de sistemas, produtos e serviços inteligentes; a questão da privacidade; a falta de conhecimentos especializados nem só sobre o bem de consumo, mas sobre toda a jornada do consumidor; a prática de gamificação em plataformas para atrair a atenção e possibilitar condutas pré-programadas; a falta de familiaridade com aparatos digitais; iliteracia digital e analfabetismo funcional; dependência; a natureza cativa das relações com as plataformas, que possibilita o aperfeiçoamento de perfis dos consumidores e que poderão ser utilizados para a tomada de decisões automatizadas; discriminações por intermédio de Inteligência Artificial ou outras tecnologias, e influência injustificada nas decisões dos consumidores são alguns dos fatores que refletem o conteúdo a ser preenchido da vulnerabilidade digital. Daí que, possivelmente, a melhor abordagem para a vulnerabilidade não seja sua conceituação rígida. Mas, sim, sua descrição e o seu reconhecimento a partir do refinamento de fatores que dão causa a desequilíbrios e assimetrias nas relações entre fornecedores e consumidores, em geral, e no ambiente digital, em especial.


[1] CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999. p. 502.

[2] MARQUES, Claudia Lima; MIRAGEM, Bruno. O novo direito privado e a proteção dos vulneráveis. São Paulo: RT, 2014. p. 52

[3] Assim, por exemplo, a atualização do CDC pela Lei do Superendividamento no Brasil: Art. 54-C. É vedado, expressa ou implicitamente, na oferta de crédito ao consumidor, publicitária ou não: (…) IV – assediar ou pressionar o consumidor para contratar o fornecimento de produto, serviço ou crédito, principalmente se se tratar de consumidor idoso, analfabeto, doente ou em estado de vulnerabilidade agravada ou se a contratação envolver prêmio.

[4] MICKLITZ, Hans Wolfgang et al. Choice Architectures in the Digital Economy: Towards a New Understanding of Digital Vulnerability. Journal of Consumer Policy, 2021, 1-26.

[5] MARTINS, Guilherme; MUCELIN, Guilherme. Inteligência Artificial, perfis e controle de fluxos informacionais: a falta de participação dos titulares, a opacidade dos sistemas decisórios automatizados e o regime de responsabilização. In DE LUCCA, Newton et al. (orgs.). Direito e Internet: Internet das Coisas e Inteligência Artificial em Ambiente de Liberdade Econômica. 2022. No prelo.

[6] MIRAGEM, Bruno. Princípio da vulnerabilidade: perspectiva atual e funções no direito do consumidor contemporâneo. In: _____; MARQUES, Claudia; MAGALHÃES, Lúcia Ancona. Direito do Consumidor: 30 anos do CDC – da consolidação como direito fundamental aos atuais desafios da sociedade. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p. 249.

Breve análise à proteção do consumidor em Timor-Leste

Doutrina

Após séculos de domínio colonial português e 24 anos de ocupação por parte da Indonésia, a primeira Constituição da República Democrática de Timor-Leste (CRDTL) entrou em vigor em Timor-Leste a 20 de maio de 2002. Aproximando-se a celebração dos 20 anos da entrada em vigor da Constituição timorense, analisamos de forma concisa as principais características do regime de proteção dos consumidores em Timor-Leste e na sua Constituição.

Numa primeira linha, a CRDTL consagra determinados direitos dos consumidores no seu artigo 53.º:

1. Os consumidores têm direito à qualidade dos bens e serviços consumidos, a uma informação verdadeira e à protecção da saúde, da segurança e dos seus interesses económicos, bem como à reparação de danos.

2. A publicidade é disciplinada por lei, sendo proibidas todas as formas de publicidade oculta, indirecta ou enganosa.

A norma constitucional de proteção dos consumidores presente na CRDTL, à semelhança do art. 78.º da Constituição da República de Angola, art. 80.º da Constituição da República de Cabo Verde e  art.º 92.º da Constituição da República de Moçambique, foi claramente inspirada no artigo 60.º da Constituição da República Portuguesa, sendo visível que o legislador timorense transcreveu quase ipsis verbis a redação que consta desse mesmo artigo 60.º.

A proteção do consumidor em Timor-Leste é conseguida sobretudo através do dever de fornecimento de bens e serviços com qualidade, isto é, conformes ao contrato e com as características e propriedades necessárias para satisfazer os fins a que se destinam e produzir os efeitos que lhes atribuem. Quando os bens ou serviços adquiridos por um consumidor não estiverem conformes ao contrato, a CRDTL estabelece que o consumidor terá  direito a uma indemnização para reparar os danos decorrentes de bens ou serviços desconformes ao contrato (para além de outros direitos que poderão surgir para além deste preceito constitucional).  Não obstante, o legislador cria também um direito mais geral à informação verdadeira e à proteção da saúde, segurança e interesses económicos dos consumidores.

O n.º 2 desenvolve o direito dos consumidores a uma informação verdadeira. Esta “informação verdadeira” reporta-se às características dos bens ou serviços adquiridos, através da proibição de publicidade oculta, indireta ou enganosa que possa induzir o consumidor em erro.

A Lei n.º 8/2016, de 8 de Julho (Lei de Proteção do Consumidor) incorpora e desenvolve os princípios previstos no art. 53.º da CRDTL, tornando-se assim no principal diploma referente à proteção e defesa dos direitos dos consumidores em Timor-Leste.

O art. 1.º da Lei n.º 8/2016, de 8 de julho, refere que esta lei tem como objeto a aprovação do regime jurídico de proteção e defesa dos consumidores, definindo as funções do Estado, os direitos dos consumidores e a intervenção das associações de proteção de consumidores.

O art. 3.º estabelece como sendo consumidor a “pessoa singular ou coletiva à qual são fornecidos bens ou prestados serviços destinados ao uso não profissional, por pessoa que exerça uma atividade económica, com caráter profissional, com vista à obtenção de benefícios”. De notar que o elemento subjetivo desta noção de consumidor, para além das pessoas singulares, inclui também as pessoas coletivas, alargando de forma significante a aplicação da legislação de consumo. Esta extensão dos direitos de consumidor às pessoas coletivas pode levantar questões quanto à sua ratio legis – uma pessoa singular requer um maior nível de proteção nas suas relações de consumo do que uma pessoa coletiva, sobretudo se tivermos em conta as assimetrias de informação e de poder negocial entre o consumidor pessoa singular e o vendedor do bem ou prestador do serviço. Contudo, o alargamento do elemento subjetivo do conceito de consumidor não deixa de ser uma opção político-legislativa que não é suficiente por si só para determinar a aplicação da legislação de consumo – tem ainda de se verificar a presença dos elementos objetivo, teleológico e relacional.

O art. 7.º, com a epígrafe “qualidade dos bens e serviços”, visa garantir que os bens e serviços destinados ao consumo devem ser aptos a satisfazer os fins a que se destinam e produzir os efeitos que lhes atribuem. O período mínimo de garantia dos bens móveis é de um ano, exceto quando ao bem não seja dado um uso normal ou razoavelmente previsível e salvo prazo mais favorável acordado pelas partes. Este período é alargado para um mínimo de cinco anos no caso dos bens imóveis.

A Lei de Proteção do Consumidor consagra ainda um direito de arrependimento com fonte legal nos contratos “que resultem da iniciativa do fornecedor de bens ou do prestador de serviços fora do estabelecimento comercial, por meio de correspondência ou outros equivalentes”, pelo que apenas se aplica a estes. É estabelecido um prazo de dez dias úteis a contar da data da receção do bem ou da conclusão do contrato de prestação de serviços para o consumidor invocar este direito.

Não deixa de ser interessante referir que a Lei de Proteção do Consumidor, para além de atribuir direitos, atribui também deveres aos consumidores. Apesar de ser uma norma essencialmente programática, o art. 13.º estabelece que o consumidor tem o dever de:

“a) Respeitar os compromissos assumidos perante os fornecedores de bens e prestadores de serviços, agindo de boa-fé, com correção e seriedade;

b) Defender junto das autoridades competentes os seus interesses;

c) Atender às consequências do seu consumo face aos outros cidadãos, nomeadamente os mais vulneráveis;

d) Atender ao impacto ambiental do seu consumo;

e) Denunciar perante as autoridades competentes qualquer violação dos seus direitos.”

Quanto às associações de defesa de consumidores, estas têm um papel de destaque no que concerne a proteção dos consumidores, sendo-lhes atribuídos diversos objetivos e tarefas para alcançar este propósito.

Como indica o art. 8.º, para além do Estado ter o dever de incentivar e promover a realização de ações de sensibilização para o consumo, cabe também às associações de proteção de consumidores a promoção deste tipo de atividades. Para isso, “as associações de consumidores são dotadas de personalidade jurídica, sem fins lucrativos e com o objetivo principal de proteger os direitos e os interesses dos consumidores em geral ou dos consumidores seus associados” (art. 30.º n.º1). No catálogo de direitos atribuídos às associações de consumidores previstos no art. 31.º, destacam-se os seguintes:

“a) Estatuto preferencial para a discussão de matérias que digam respeito à política de consumidores;

c) Direito a representar os consumidores no processo de consulta e audição públicas a realizar no decurso da tomada de decisões suscetíveis de afetar os direitos e interesses daqueles;

d) Direito a solicitar, junto das autoridades administrativas ou judiciais competentes, a apreensão e retirada de bens do mercado ou a interdição de serviços lesivos dos direitos e interesses dos consumidores;

h) Direito a serem ouvidas nos processos de regulação de preços de fornecimento de bens e de prestações de serviços essenciais, nomeadamente nos domínios da água, energia, gás, transportes e comunicações, e a receber os esclarecimentos sobre as tarifas praticadas e a qualidade dos serviços, por forma a poderem pronunciar-se sobre elas;

j) Direito à presunção de boa-fé das informações por elas prestadas.”

Por fim resta referir que, apesar do enquadramento legal exposto, de várias semelhanças com a legislação em vigor em Portugal e países dos PALOP, e do catálogo de direitos atribuído aos consumidor, a legislação de defesa do consumidor em Timor-Leste “ainda não é implementada e reconhecida pelos próprios consumidores, agentes do mercado e administração pública”, como reconhece o Embaixador da União Europeia em Timor-Leste, Andrew Jacobs. Há ainda um longo caminho a percorrer para que a legislação de consumo possa efetivamente vir a ser aplicada no dia-a-dia nas relações de consumo, aplicação esta que é absolutamente fundamental para garantir a proteção dos direitos dos consumidores, conforme previsto no artigo 53.º da Constituição da República Democrática de Timor-Leste.

The Implementation of the Directives 2019/771 and 2019/770 in the Italian Consumer Code

Doutrina

By Giovanna Capilli, Associate Professor of Private Law – San Raffaele University Rome

The Italian legislator has implemented the Directives (EU) 2019/771 of the European Parliament and of the Council of 20 May 2019 (relating to certain aspects of contracts for the sale of goods, which amends Regulation (EU) 2017/2394 and Directive 2009/22/EC, and repealing Directive 1999/44/EC – hereinafter ‘Dir. 2019/771’) and (EU) 2019/770 of the European Parliament and of the Council of 20 May 2019 (relating to certain aspects of supply contracts of digital content and digital services – hereinafter ‘Dir. 2019/770’) respectively with Legislative Decree n. 170/2021 and Legislative Decree n. 173/2021 and it modified the consumer code.

After the unsuccessful proposed Regulation for a Common European Sales Law (CESL), the European Parliament decided to use the instrument of the directive in order to enhance the growth of electronic commerce in the internal market and to establish a genuine digital single market.

The general objective of the two “twin” directives is to get a uniform regulation in the Member States on the sale of goods (including digital ones) and the supply of digital content and services, although the directive contains the possibility to derogate in some cases, so probably there will be other differences between member states (see: S. Pagliantini, Contratti di vendita di beni: armonizzazione massima, parziale e temperata della dir. UE 2019/771, in Giur. it., 2020, 1, F. Bertelli, Armonizzazione massima della Dir. 2019/771 UE e le sorti del principio di maggior tutela del consumatore, in Eur. Dir. Priv., 2019, 953).

One of the main innovations of the new Italian consumer rules is connected to the notion of good which is no longer defined as a ‘consumer good’, but only “good” which includes digital goods or goods that incorporate or are interconnected with digital content or services (Internet of Things).

The Italian implementation cannot be said to be optimal; in fact, the consumer code was modified simply by transposing the directives and keeping them separate without carrying out any coordination work.

Thus, from a textual point of view, the regulation of contracts concerning the sale of goods (including digital ones) is contained in articles 128 to 135- septies and it is separate from the regulation of contracts for the supply of digital content and digital services which is contained in articles 135 – octies to 135- vicies ter  (For further information see: G. Capilli – R. Torino, Codice del consumo: le novità per i contratti di vendita e fornitura di beni digitali, Milan, 2022).

Among the most important innovations we can point out the elimination of the concept of “presumption of conformity”. In fact, subject and objective requirements are expressly regulated and both are necessary for the good to be considered compliant.

In particular, the requirement of “durability” (or, according to some authors, “duration” would have been better: see A. De Franceschi, La vendita di beni con elementi digitali, Napoli, 2021, p. 87, p. 87), introduced by the European legislator among objective compliance requirements is due to the desire to favor a longer “useful life of the goods” in the perspective of more sustainable consumption models from an environmental point of view, and represents the ability of the product to maintain its functionality and the performance required through normal use.

With reference to goods with digital elements, IT security becomes one of the fundamental requirements of the product or service.

In case of goods with digital elements, the seller will be liable for any lack of conformity of the digital content or digital service that occurs or manifests itself within two years from the time of delivery of the goods with digital elements and if the contract provides for a continuous supply. For more than two years, the seller is liable for any lack of conformity of the digital content or digital service that occurs or manifests itself in the period of time during which the digital content or digital service must be supplied under the sales contract (see art. 133 of the Italian consumer code).

A product with digital elements by its nature requires updates which are generally agreed in the sales contract to improve and enhance the element of digital content or digital service incorporated therein, expand its functionality, adapt it to technical developments and protect it from new threats to the security or serve other purposes.

Consequently, for this type of goods, the seller, who is generally responsible for the lack of conformity existing at the time of delivery of the goods, will also be responsible for the failure to supply the updates agreed in the contract, but also for the incompleteness and the defectiveness of updates over which it may not have effective control.

From this point of view, the seller’s liability becomes much more strict and it is not compensated by a contextual strengthening of the right of redress.

It should also be noted that in the case of goods with digital elements, the provision pursuant to art. 133 consumer code, paragraph 2, must be connected with that contained in art. 135 quaterdecies consumer code, with the consequence that if there is a lack of conformity, a concurrent liability of the seller and the professional (producer) could arise.

It should be noted that in the case of the supply of goods with digital content, it is probable that the digital elements are provided by a third party and not by the final seller. The contract could involve three parties: consumer, seller who supplies the good and another person who supplies the digital content that allows the good to operate.

The issues about updates are very complicated; the consumer should have the freedom to choose to install an update or not, but his decision could influence the seller’s liability and the consumer right to take remedies for lack of conformity.

In case of goods with digital content, consumer protection becomes rather articulated and complex if it takes into account that these goods could need updates for themselves, but also because they need to be compatible with a new digital environment.

Certainly, the consumer’s decision to proceed with the updates must be aware, especially considering that the lack of safety updates could lead to damage third parties and consumer could be held responsible.

In this regard, it is debated if there is an obligation to update by the consumer.

Another aspect that has been highlighted (see A. De Franceschi, op. cit., p. 93) is in which ways the seller must keep the consumer informed of the necessary updates indicated by art. 130, paragraph 2, consumer code if more time is spent from the contract and from the delivery.

The new art. 133 consumer code fixes in two years from the delivery of goods the seller’s liability for any lack of conformity and this provision also applies to goods with digital elements.

For goods with digital elements, based on the new art. 133, paragraph 2, consumer code when the sales contract provides a continuous supply of the digital content or digital service for a period of time, the seller is also liable for any lack of conformity of the digital content or digital service that occurs or became apparent within two years of the time when the goods with digital elements were delivered.

Where the supply of the digital content or digital service provides for a continuous supply for more than two years, the seller shall be liable for any lack of conformity of the digital content or digital service that occurs or becomes apparent within the period of time during which the digital content or digital service is to be supplied under the sales contract.

The new article 133 of consumer code confirms the previous provision establishing that the action of warranty expires within twenty-six months from the delivery of the goods and this solution is necessary to overcome the paradox of the simultaneous termination of the guarantee and the right to take action to enforce it (G. Capilli, Garanzie e rimedi nelle vendite ai consumatori, in I contratti del consumatore (edited by G. Capilli), Torino, 2021).

With reference to second hand goods, as in the previous regulations, (v. paragraph 4 of art. 133 consumer code) it is possible to determine a different period for warranty but not less than one year and it is possible to determine that limitation also for the action of warranty (see for a comment: G. Capilli, Termini di garanzia e termini di prescrizione nella vendita di beni (anche usati) ai consumatori, in M. Astone (edited by), Il diritto dei consumatori nella giurisprudenza della Corte di Giustizia Europea, Pisa, 2020, p. 61).

With the new provision contained in article 133 consumer code, the warranty and prescription period for second hand goods may be limited to a period of not less than one year, and this because a different treatment of second-hand goods was deemed justifiable; contractual freedom is encouraged, at the same time the consumer is assured of being informed both of the nature of the good as second-hand and of the liability period or the shortened limitation period (see recital 43 of directive 2019/771).

The new article 135 consumer code change the rules on the burden of proof; the preview legislation indicated six months as a time in which the lack of conformity could appear, while now the time is one year.This means that during this period the burden of proof is on the seller that needs to demonstrate that the product is in conformity. Although the EU legislator had left the states free to (maintain or) introduce a two-year term, the Italian legislator did not take this option also because it is applied in few Member States. So that, without prejudice to evidence to the contrary, it is assumed that any lack of conformity that occurs within one year from the time the good was delivered already existed on that date, unless this hypothesis is incompatible with the nature of the good (i.e. in case of perishable goods such as flowers or goods that can only be used once) or with the nature of the lack of conformity (i.e. a lack of conformity that can only result from an action by the consumer or from an evident external cause which occurred following the delivery of the goods to the consumer).

In the event of a lack of conformity, a fundamental principle is codified: the consumer must be able to choose the most appropriate remedy, but his freedom of choice is not absolute, but rather limited by a series of circumstances which must be considered, in a collaborative perspective between the parties and in good faith in the execution of the contract, precisely in order to avoid making excessive and unjustified burdens fall on the seller. Therefore, the following must be considered: a) the value the goods would have if there were no lack of conformity; b) the significance of the lack of conformity; c) whether the alternative remedy could be provided without significant inconvenience to the consumer.

The seller at the time of the communication of the defect can offer the consumer any remedy but this is not binding for the consumer who will be free to refuse it and choose another one.

It should be noted, among the regulatory changes, that in compliance with the invitation contained in recital 46 and in order to ensure that consumers have a higher level of protection, it is eliminated the obligation to notify the defect (in the preview regulation the consumer ought to notify the defect in the term of two-month from the discover).

Another question that is resolved by the new legislation is that relating to possible and repeated defects that may affect the same good. In this case, consumers could obtain a price reduction or resolution despite the seller’s attempt to restore the conformity of the good.

These are situations in which it is justifiable that the consumer needs to have a price reduction or to terminate the contract immediately. If it can be considered normal to allow the seller (with reference to specific goods, for example because they are very expensive) to bring the goods into conformity, it is also true that when a lack of conformity becomes apparent subsequently the trust of the consumer on the seller’s ability to bring the goods into conformity cannot be maintained.

The consumer may request the proportional reduction of the price or to terminate the contract if the lack of conformity is so serious as to justify the request for such remedies.

The question, therefore, is to verify when a lack of conformity can be considered “so serious” as to allow the immediate termination of the contract or the reduction of the price.

The EU legislator, through this provision, wanted to allow the consumer a faster way to terminate the contract if, due to the seriousness of the defect, he is not interested in retaining the good. “Exit” from the contract, however, facilitated by the fact that the consumer, based on the provisions of paragraph 2 of art. 135 quater, could terminate the contract with a direct declaration to the seller containing the manifestation of the will to terminate the sales contract, this is a hypothesis of out-of-court resolution (eg in the case of delivery of aliud pro alio) which should be coordinated with the provisions of art. 61 of the Italian consumer code.

The consumer shall have the right to withhold payment of any outstanding part of the price or a part thereof until the seller has fulfilled the seller’s obligations, so the Italian legislator has expressly recalled the article 1460 of the civil code, but has also made use of the option referred to in paragraph 7 of art. 13 of the directive, which provides that the Member States can establish whether and to what extent, upon the occurrence of the lack of conformity, the consumer’s cooperation may affect his right to avail himself of the remedies.

Finally, it should be noted that the provision contained in article 135 septies incorporates the provisions of art. 3, paragraph 6, as well as art. 4 in relation to the level of harmonization, and clarifies the relationship between the rules contained in the civil code and in the consumer code. So the consumer code will be applied in the case of B2C sales of goods, while the civil code will be applied for the question concerning the formation, validity and effectiveness of contracts, including the consequences of termination of the contract and compensation for damage