NAVEGAR (ONLINE) É PRECISO, VIVER (OFFLINE) NÃO É PRECISO: o preenchimento dinâmico e descritivo do conteúdo da vulnerabilidade digital

Doutrina

A velocidade das transformações do mercado de consumo é, sem dúvidas, um dos maiores desafios do Direito do Consumidor. Especialmente pelos influxos da internet, desde a sua concepção até o descobrimento de seu potencial comercial, surgiram novas tecnologias, novos modelos de negócio, novos meios de oferta e de contratação, assim como novas práticas relativas à publicidade, à perfilização e à organização de estruturas sociais e econômicas que daí emergem, as quais passam a operar por uma lógica data-driven mercantilizada de rede em um espaço (não físico) de fluxos informacionais[1].

Neste espaço de fluxos informacionais, navegar é preciso: qualquer interação ou relação estabelecida na ambiência digital é controlada, armazenada e gerenciada com táticas e técnicas para tornar a navegação e os layouts, bem como os outputs, ajustáveis e programáveis conforme os interesses de quem emprega a tecnologia. Nesse sentido, atributos, características, ânimos, personalidades e demais subjetividades são utilizadas na base da probabilidade e da estatística como parâmetros objetivos na condução de negócios.

Essa nova realidade permite a identificação de novos e renovados fatores que determinam assimetrias nas relações entre consumidores e fornecedores, cujo efeito é a impotência daqueles na dimensão digital do mercado. Relaciona-se com a falta do poder de barganha, com desigualdades estruturais ou outras condições sociais ou econômicas que facilitam uma sujeição estrutural do consumidor diante dos fornecedores.

A isso é dado o nome de vulnerabilidade. É descrita por Marques e Miragem, de modo geral, como um estado da pessoa de inerente risco, um sinal de confrontação excessiva de interesses, uma situação permanente ou provisória, individual ou coletiva, cujo efeito é o desequilíbrio de determinada relação ou interação e, consequentemente, o enfraquecimento do sujeito de direitos[2]. Se explorada, haverá o potencial de influenciar diretamente e negativamente a capacidade de o consumidor lidar satisfatoriamente com as práticas mercadológicas e com os contratos que estabelece, bem como de impactar a sua autonomia no que tange a tomar decisões de acordo com seus próprios interesses.

Conceituar a vulnerabilidade não é tarefa fácil, talvez nem mesmo seja necessária ou aconselhável. A dificuldade (e o perigo) em sua definição em matéria de consumo reside justamente na criatividade negocial e nas – sempre em evolução – necessidades do mercado, as quais são impostas contemporaneamente por intermédio das estruturas e das arquiteturas codificadas cada vez mais complexas, opacas e rapidamente modificáveis do ambiente online, bem como porque os consumidores se localizam em uma teia de relações e de instituições sociais diferentes, de modo que as vulnerabilidades também serão sentidas mais ou menos de modo particularizado – viver (offline) não é preciso –, o que contrasta como uma proposta de definição rígida ou mesmo atinente somente a determinados grupos de pessoas, como bem pontuou aqui no blog Sara Fernandes Garcia.

O caso brasileiro pode ser um bom exemplo para ilustrar essa questão. Lá, todos os consumidores pessoas naturais destinatárias finais fáticas e econômicas são vulneráveis por expressa determinação legal do Código de Defesa do Consumidor (art. 4º, I, CDC), cabendo ainda gradações ou sobreposições de camadas de vulnerabilidade em determinados casos, o que é conhecido como hipervulnerabilidade ou vulnerabilidade agravada. O CDC, sabiamente, não trouxe definições jurídicas acerca do conceito de vulnerabilidade, cabendo originalmente à doutrina e à jurisprudência a conformação do sentido e do alcance dinâmico do texto da lei, emprestando ao princípio certa plasticidade para a atualidade do diploma e para a tutela mais efetiva dos consumidores. 

Há, todavia, o Projeto de Lei (PL) n. 895/2021, em tramitação na Câmara dos Deputados, que se prestaria a estabelecer medidas de proteção do consumidor em situação de vulnerabilidade, pretendendo-se a alteração do CDC em diversos pontos.

O PL traria, desta maneira, uma definição: “entende-se por vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo a situação em que pessoas físicas, de forma individual ou coletiva, por suas características, necessidades ou circunstâncias pessoais, econômicas, educativas ou sociais, se encontrem, ainda que territorial, setorial ou temporalmente, em uma situação especial de subordinação, impotência ou desproteção que impeça o exercício de seus direitos como pessoas consumidoras em condições de igualdade”; na sequência, afirma que será prestada atenção especial a setores que “(…) contem com maior proporção de consumidores vulneráveis entre seus clientes ou usuários (…)” e que o direito básico à informação do consumidor (art. 6º, III, CDC), bem como no que concerne à oferta (art. 31, CDC), se dará “principalmente quando se tratar de consumidor vulnerável”. Há outras menções no PL de cunho (restritivo) semelhante.

Parafraseando Drummond de Andrade, “no meio do caminho tinha uma pedra”. E essa “pedra” nos excertos trazidos do texto proposto é justamente uma situação especial, maior proporção de consumidores vulneráveis e principalmente, que vai de encontro à principiologia do CDC ao cercar a vulnerabilidade a algumas hipóteses. A justificativa da proposta encontra respaldo na Nova Agenda do Consumidor da União Europeia que, segundo o PL, concebe “a vulnerabilidade como um conceito dinâmico, em que uma pessoa pode ser considerada vulnerável em determinado âmbito de consumo, mas não em outros, e em algum momento de sua vida, mas não em outros”.

A União Europeia tem, contemporaneamente, um quadro definido de consumidores que considera vulneráveis, como os doentes, idosos e crianças, e, nesse sentido, a Agenda se presta à expansão, não à contração (como seria se o PL fosse aprovado no Brasil). Ora, se todos os consumidores são vulneráveis, não há razão de elaborar uma proposta normativa no sentido de considerar apenas alguns em especial vulneráveis, contrariando todo um arcabouço técnico, dogmático e jurisprudencial. Paradoxalmente, o que pretende se efetivar, em verdade, está se limitando, embaraçando o movimento expansionista do reconhecimento de novos fatores que dão causa à vulnerabilidade, tema tão importante em tempos de transformação digital.

Isto não significa que o CDC ou quaisquer normas que se destinem à proteção dos consumidores não necessitem de atualização ou de revigoramento em atenção a determinadas temáticas e situações, como o mercado de consumo digital. Muito antes o contrário. A noção aberta da vulnerabilidade tem pelo menos dois propósitos fundamentais: um, de ordem conceitual (o quê), busca investigar os diversos fatores que levam à vulnerabilidade e; dois, de ordem prática[3] (para quê), busca identificar e criar instrumentais jurídicos e de políticas públicas para promover a resiliência dos sujeitos vulneráveis no mercado.

É claro, como operadores do Direito, lidamos com termos técnicos e precisos, mas também a interpretação aqui desempenha papel fundamental na concreção da vulnerabilidade porque ela é, de fato, dinâmica e polissêmica: devido às circunstâncias que se modificam rapidamente no mercado de consumo, quem hoje não é considerado vulnerável poderá amanhã o ser – o que está se tornando regra no mercado digital.

De acordo com uma equipa liderada por Micklitz[4], a noção de vulnerabilidade digital descreve o poder e a capacidade de atores comerciais de afetarem decisões, desejos, necessidades e comportamentos de uma maneira que o consumidor tende a não tolerar, mas também não está em posição de impedir. Serve, assim, para delinear um estado universal de indefesa e de suscetibilidade à exploração de desequilíbrios por parte do parceiro que em algum sentido é mais forte, o que é favorecido pela automação do mercado de consumo, pela sua arquitetura, pela utilização de dados pessoais e pela concentração das funções de gerenciamento e de condução da dimensão digital em plataformas[5].

Trata-se de uma vulnerabilidade facilmente percebida, passível de reconhecimento a partir de abordagens distintas[6]: a falta ou o excesso de informação; a falta de compreensão dos termos unilateralmente elaborados em termos e condições de uso e congêneres (se e quando lidos); a ausência ou insuficiência de mecanismos jurídicos aptos a tutelar o sujeito em meio digital; autoexecutabilidade de smartcontracts; a opacidade de sistemas, produtos e serviços inteligentes; a questão da privacidade; a falta de conhecimentos especializados nem só sobre o bem de consumo, mas sobre toda a jornada do consumidor; a prática de gamificação em plataformas para atrair a atenção e possibilitar condutas pré-programadas; a falta de familiaridade com aparatos digitais; iliteracia digital e analfabetismo funcional; dependência; a natureza cativa das relações com as plataformas, que possibilita o aperfeiçoamento de perfis dos consumidores e que poderão ser utilizados para a tomada de decisões automatizadas; discriminações por intermédio de Inteligência Artificial ou outras tecnologias, e influência injustificada nas decisões dos consumidores são alguns dos fatores que refletem o conteúdo a ser preenchido da vulnerabilidade digital. Daí que, possivelmente, a melhor abordagem para a vulnerabilidade não seja sua conceituação rígida. Mas, sim, sua descrição e o seu reconhecimento a partir do refinamento de fatores que dão causa a desequilíbrios e assimetrias nas relações entre fornecedores e consumidores, em geral, e no ambiente digital, em especial.


[1] CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999. p. 502.

[2] MARQUES, Claudia Lima; MIRAGEM, Bruno. O novo direito privado e a proteção dos vulneráveis. São Paulo: RT, 2014. p. 52

[3] Assim, por exemplo, a atualização do CDC pela Lei do Superendividamento no Brasil: Art. 54-C. É vedado, expressa ou implicitamente, na oferta de crédito ao consumidor, publicitária ou não: (…) IV – assediar ou pressionar o consumidor para contratar o fornecimento de produto, serviço ou crédito, principalmente se se tratar de consumidor idoso, analfabeto, doente ou em estado de vulnerabilidade agravada ou se a contratação envolver prêmio.

[4] MICKLITZ, Hans Wolfgang et al. Choice Architectures in the Digital Economy: Towards a New Understanding of Digital Vulnerability. Journal of Consumer Policy, 2021, 1-26.

[5] MARTINS, Guilherme; MUCELIN, Guilherme. Inteligência Artificial, perfis e controle de fluxos informacionais: a falta de participação dos titulares, a opacidade dos sistemas decisórios automatizados e o regime de responsabilização. In DE LUCCA, Newton et al. (orgs.). Direito e Internet: Internet das Coisas e Inteligência Artificial em Ambiente de Liberdade Econômica. 2022. No prelo.

[6] MIRAGEM, Bruno. Princípio da vulnerabilidade: perspectiva atual e funções no direito do consumidor contemporâneo. In: _____; MARQUES, Claudia; MAGALHÃES, Lúcia Ancona. Direito do Consumidor: 30 anos do CDC – da consolidação como direito fundamental aos atuais desafios da sociedade. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p. 249.

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