Pela não aplicação subsidiária do CPC na arbitragem de consumo

Doutrina

Carlos Filipe Costa defendeu recentemente no blog a tese da necessidade de aplicação subsidiária do Código de Processo Civil (CPC) na arbitragem de consumo. Apresento neste texto uma perspetiva diferente, defendendo que essa solução contraria o espírito da arbitragem em geral e da arbitragem de consumo em particular.

A Lei 144/2015, que regula a resolução alternativa de litígios de consumo, estabelece poucas regras aplicáveis à arbitragem (v. art. 10.º), não tendo igualmente qualquer norma de aplicação subsidiária. Devem aplicar-se, portanto, as normas da Lei de Arbitragem Voluntária (LAV).

O art. 30.º da LAV regula precisamente os princípios e as regras do processo arbitral. Depois de realçar a vinculação do tribunal arbitral aos princípios do processo justo (n.º 1), estabelece-se a regra geral relativa às regras processuais da arbitragem: livre escolha pelas partes (até à designação do árbitro), com o limite das normas imperativas (n.º 2).

Na arbitragem de consumo, a livre escolha das regras processuais pelas partes consubstancia-se normalmente na seleção do centro de arbitragem de consumo que vai resolver o litígio. Ao recorrerem a um centro, as partes tornam suas as cláusulas do regulamento desse centro (cfr. art. 6.º da LAV).

O art. 30.º-3 da LAV trata do caso em que as partes não acordaram sobre a regra processual necessária para resolver alguma questão (o que implica que o regulamento do centro também não a resolveu) e a LAV ou outro diploma, como a Lei 144/2015, não regulam imperativamente a matéria. Se assim for, “o tribunal arbitral pode conduzir a arbitragem do modo que considerar apropriado, definindo as regras processuais que entender adequadas, devendo, se for esse o caso, explicitar que considera subsidiariamente aplicável o disposto na lei que rege o processo perante o tribunal estadual competente”.

Da parte final da norma decorre que a “lei que rege o processo perante o tribunal estadual competente”, ou seja, no caso português, em litígios civis ou comerciais, o CPC, só será aplicável se o tribunal arbitral o explicitar, o que implica referir expressamente que é essa a sua opção. Isto significa que, nos termos da LAV, o CPC não é aplicável subsidiariamente à arbitragem.

A forma de suprir lacunas nas regras de processo é a indicada neste art. 30.º-3: o tribunal arbitral define, em cada caso, as regras processuais que entender adequadas. A flexibilidade é um instrumento fundamental da arbitragem e esta solução é essencial para garantir essa flexibilidade.

A previsão no regulamento de um centro de arbitragem da aplicação subsidiária do CPC é contrária ao espírito da arbitragem em geral e da arbitragem de consumo em particular.

Alguns centros que seguiram o modelo de regulamento harmonizado têm a seguinte regra nos seus regulamentos: “Para além dos diplomas legais referidos nos números anteriores [Lei 144/2015 e Regulamento RLL], em tudo o que não estiver previsto no presente Regulamento aplica-se, com as devidas adaptações, a Lei da Arbitragem Voluntária, a Lei da Mediação e o Código do Processo Civil”.

O Regulamento do CNIACC, que contém uma regra semelhante (art. 19.º-3), omite a referência ao CPC.

O Regulamento do CNIACC constitui, aliás, um bom exemplo de flexibilidade processual. O art. 14.º, que trata do processo arbitral, estabelece que, “apresentados o requerimento inicial e a contestação, o tribunal adota a tramitação processual adequada às especificidades da causa, definindo designadamente: a) Se o processo comporta fases orais para a produção de prova ou para a exposição oral dos argumentos das partes ou se é decidido apenas com base nos documentos e outros elementos de prova, dispensando a realização de qualquer audiência; b) Se há necessidade de delimitar a matéria de prova, separando-a da matéria que considera já provada; c) Quais os meios de prova a produzir, aqui se incluindo o depoimento de parte, a prova testemunhal, documental, pericial e por exame a coisas; d) Qual o número de testemunhas a apresentar, com o limite de três testemunhas por cada uma das partes, limite esse elevado para o dobro nos processos de valor superior a € 5 000” (n.º 3). O n.º 5 determina que, nesta decisão de gestão processual, “o tribunal fixa ainda as datas para a entrega de quaisquer elementos, a realização de audiências ou outras diligências de prova”. O n.º 6 permite a alteração da decisão de gestão processual “no decurso do processo, caso se mostre necessário”.

O Regulamento da Arbitragem e das Custas do CIMPAS indicava, numa versão que já não está em vigor, que, “em caso de omissão, aplicar-se-ão, subsidiariamente, as regras e princípios do Código de Processo Civil, adaptados à natureza marcadamente abreviada e informal do procedimento arbitral”. A versão atual, embora mantenha uma referência, dispensável, ao CPC, é mais clara no sentido de este não se se aplicar de forma subsidiária, acrítica e desligada das circunstâncias do caso contrato: “em caso de omissão caberá ao tribunal arbitral conduzir a arbitragem, suprindo do modo que considerar apropriado, as regras em falta, designadamente aplicando subsidiariamente, as regras e princípios do Código de Processo Civil, adaptados à natureza marcadamente abreviada e informal do procedimento arbitral”.

A prescrição da aplicação subsidiária do CPC por via do regulamento de arbitragem é, na minha perspetiva, criticável (e deve ser afastada por via interpretativa). Esta regra não permite, ao contrário do que resulta do espírito da arbitragem, claramente presente na LAV, a aplicação da regra mais adequada ao caso, impondo a aplicação de uma norma do CPC que pode ser menos adequada (ou não ser de todo adequada). Uma das vantagens da arbitragem, não sendo a arbitragem de consumo exceção, é precisamente a não sujeição ao formalismo excessivo do CPC. Ora, se, por regra, se aplicar subsidiariamente o CPC, desvirtua-se a essência da arbitragem. Será, naturalmente, mais fácil para advogados e árbitros de consumo aplicarem as normas a que estão habituados (ou mais habituados), mas o objetivo das regras processuais não consiste, na minha perspetiva, em facilitar o trabalho dos juristas, evitando que tenham de estudar e pensar soluções em alternativa. O objetivo é garantir a justiça e o cumprimento dos princípios fundamentais do processo justo, tendo em conta o meio de resolução de litígios em causa. E, na arbitragem, estes desígnios passam por existir uma maior flexibilidade processual (v. Ac. do TRP, de 7/2/2017) e pela aplicação, em cada caso, da regra mais adequada, o que é totalmente incompatível com a prescrição da aplicação subsidiária do CPC.

Do #NOFILTER ao #FILTERDROP: o esforço legislativo no combate à distorção digital da beleza

Doutrina

Tem circulado pela internet nos últimos dias a notícia de que fora sancionada no último dia 11, através do Decreto Legislativo 146 (2020-2021), a emenda à Lei de Marketing norueguesa, que “visa ajudar a reduzir a pressão corporal na sociedade devido às pessoas idealizadas na publicidade[1]. Após uma esmagadora votação de 72 votos a favor e 15 contra, a alteração legislativa passa a obrigar os influenciadores digitais a identificar as fotografias que tenham sido retocadas. As redes sociais visadas pela medida vão desde o Instagram, passando pelo Facebook, TikTok, Twitter e Snapchat.

Não é de hoje que o NOVA Consumer Lab tem trabalhado sobre a influência das redes sociais e das tecnologias sobre o comportamento social. Mais do que nunca, as redes sociais deixaram de ser meros instrumentos de compartilhamento de rotina e vida pessoal, com fotos de família, crianças e animais para ceder espaço ao lucro e à comercialização de produtos e serviços. Hoje, a regra é clara: curvas incríveis, padrões inigualáveis e um quase “conto de fadas da beleza”.

Por trás da perfeição dos corpos e lifestyle presentes nas mídias sociais, sob a égide da despretensiosa naturalidade, estão, entretanto, os patrocínios, parcerias, publicidades e, sobretudo, os inúmeros retoques às fotos e vídeos publicados por aqueles que ditam, para além de tendências, o novo ideal de vida e beleza.  Naomi Wolf, autora feminista e ativista dos direitos civis nos EUA, já em 1992 apontava o fato de o mito da beleza estar sempre prescrevendo comportamentos, não aparência[2]. Cada vez mais incomodados com os resultados sociais advindos dessa dita pressão estética, reguladores e legisladores pelo mundo estão a reagir à propaganda da perfeição aparente. Em fevereiro deste ano, logo após uma campanha que circulava dentro das próprias redes sociais (#filterdrop), a Advertising Standards Authority (ASA) – agência reguladora de propagandas do Reino Unido, aprovou uma legislação muito semelhante à norueguesa, e passou a determinar que os influenciadores digitais do país não fizessem mais uso de filtros “enganosos” em campanhas com produtos de beleza nas mídias.

Na França, desde 2017, vigora a determinação de obrigatoriedade da mensagem “photografie retouchée” para fotos que tenham sofrido qualquer tipo de alteração por programas digitais, demonstrando o esforço por tornar a mídia mais responsável em termos de publicidade.

Já na Noruega, a regra visa proibir que os influenciadores compartilhem imagens sem a devida sinalização de retoque e uso de filtros de beleza, os quais foram projetados para melhorar a aparência, incluídos como recursos comuns aos aplicativos de redes sociais atuais. Proposta pelo Ministério da Infância e da Família, a lei integra os esforços públicos de contenção da distorção de imagem no país, devendo ser seguida por todos influenciadores e celebridades que recebam pagamento para criação de anúncios nas redes com uso de técnicas de pré e pós-produção de imagem. O não cumprimento da lei pode implicar não somente em sanções pecuniárias, como também pena de prisão.

Acerca da construção de um ideal de beleza física e da influência das redes sociais sobre o bem-estar, uma pesquisa recente realizada pela Dove, e conduzida pela Edelman Data & Intelligence, com mulheres dos EUA, Reino Unido e Brasil, aponta que 84% das jovens com 13 anos já aplicaram filtro ou realizaram algum tipo de edição em suas fotos. Os dados divulgados pela pesquisa ainda tratam do fato de que mais da metade das mulheres se compara com as fotos publicadas na internet, além de temer publicar fotos de seu corpo em virtude dos padrões atualmente estabelecidos.

Em Portugal, a pesquisa aponta que 2 em cada 3 raparigas tentem mudar ou esconder pelo menos uma parte do corpo antes de publicarem uma fotografia sua, tal como a cara, o cabelo, a pele, a barriga ou o nariz, para removerem “imperfeições” e corresponderem a padrões de beleza irrealistas”.

As técnicas de produção que aprimoram ou alteram uma imagem com fins comerciais não são novidade no mundo da publicidade e exige atenção dos consumidores que, em razão dos retoques realizados, possam vir a ser enganados pelas alegações visuais exageradas ou, até mesmo, impossíveis de atingir. Em Portugal, o tema ainda não tem nenhum tipo de tratamento especial, embora vigore o Código da Publicidade e a Constituição da República Portuguesa estabeleça, no art. 60º, a proibição à publicidade considerada oculta, o que, em nossa visão, pode estar pressuposta em posts relacionados a produtos e serviços de estética, alimentação ou emagrecimento, por exemplo.

No mesmo sentido, a Entidade Reguladora da Saúde, em 2015, após a aprovação do Decreto-Lei n.º 238/20, tornou-se a entidade competente para a fiscalização em matéria de publicidade em saúde. A normativa é mais uma a prescrever a obrigatoriedade de clareza na publicidade, em seu art. 7.º, ainda que não trate especificamente da abordagem relacionada às redes sociais. 

Fato é que padrões de beleza sempre existiram e as características ideais variam ao longo da história. A despeito do esforço legislativo em favor do combate à distorção digital de corpos e da construção de padrões inatingíveis de beleza física, normalmente ocultos sob retoques e adaptações de imagem, é preciso notar que nem sempre o Direito terá as soluções para problemas cujas raízes são de cunho muito mais social, e psíquico, do que legal. Atualmente, até mesmo a mercantilização do movimento “body positive” pode impedir uma autêntica solução da questão que, historicamente, remonta ao uso de espartilhos, pílulas de arsênicos, maquiagens com chumbo e dietas absurdamente restritivas.

Ainda que os instrumentos regulamentares sejam necessários e possamos enxergá-los como meios hábeis a reduzir a pressão sobre a imagem física, é preciso compreender o espectro limitado dessas atuações e recordar que a idealização da beleza é muito mais profunda e complexa do que a utilização de filtros. Não podemos, não queremos e nem devemos nos reduzir a somente legislar o tema, quando é preciso discutir seriamente questões como representação, sexualização e objetificação do corpo como instrumento comercial, atentos ao fato de que redes sociais são mais do que redes de socialização, mas grandes empresas voltadas, sobretudo, ao lucro.


[1] Tradução da Decisão resumida da emenda legislativa à Lei de Marketing, 2009, da Noruega.

[2] WOOLF, N. O Mito da Beleza. Como as Imagens de Beleza são usadas contra as Mulheres. Tradução de Waldéa Barcellos. Rio de Janeiro. Ed. Rocco, 1992


As taxas de juro bancárias estão liberalizadas?

Doutrina

De acordo com o entendimento jurisprudencial dominante[1], as taxas de juro bancárias, seja em relação aos juros remuneratórios, seja no que tange aos juros de mora, podem ser livremente estabelecidas pelas instituições de crédito e sociedades financeiras, pelo que não se encontram sujeitas aos limites ditados pelos arts. 559.º-A e 1146.º do Código Civil, aplicáveis ex vi art. 102.º, § 2 do Código Comercial.

Sustenta esta corrente que, por força do n.º 2 do Aviso n.º 3/93, do Banco de Portugal (Aviso n.º 3/93), foram praticamente liberalizadas as taxas de juro no domínio das operações e contratos bancários, representando aquelas, assim, no que respeita à sua formação nominal, o resultado da livre concorrência no mercado financeiro, salvo nos casos em que sejam fixadas por lei que regule, em especial, o crédito bancário, de que é exemplo paradigmático o art. 28.º do Decreto-Lei n.º 133/2009.

Ora, se a quase unanimidade da nossa jurisprudência afirma a inaplicabilidade do disposto pelos arts. 559.º-A e 1146.º do Código Civil nos casos em que o concedente do crédito é uma entidade sob a supervisão do Banco de Portugal (com esta exceção), já na doutrina vozes se insurgem contra tal posição. Não é o caso de Jorge Morais Carvalho, que, no seu Manual de Direito de Consumo (p. 422), também apresenta outras referências doutrinais (Carlos Ferreira de Almeida e Maria Cristina Portugal) que defendem a liberalização dos juros bancários.

Carlos Gabriel da Silva Loureiro terá sido o primeiro autor a pugnar pela sujeição dos juros estipulados por instituições bancárias ao regime da usura da lei civil comum, observando que a norma do n.º 2 do Aviso n.º 3/93, enquanto manifestação do poder regulamentar da autoridade reguladora do sistema bancário, foi emitido depois da revogação da norma habilitante, que constava do art. 28.º-1-b) da Lei Orgânica do Banco de Portugal de 1975[2] (revogada, esta, pela LOBP 90). À luz do princípio da legalidade​, nas vertentes de precedência e prevalência da lei (arts. 112.º-7 e 266.º-2 da CRP), pode, “por isso, questionar-se (…) a virtualidade de uma disposição com a referida natureza poder derrogar normas legais de natureza claramente imperativa”, como são os arts. 102.º do Código Comercial e 1146.º do Código Civil[3].

No mesmo sentido, também se pronuncia Manuel Januário da Costa Gomes, que revela sérias dúvidas quanto à idoneidade das “vagas e difusas” normas dos arts. 18.º, 22.º e 23.º-f), da LOBP 90 para conferirem a necessária habilitação à previsão daquela disciplina em matéria de juros. E ainda que se admita a existência de lei prévia, com um grau de pormenorização suficiente, que habilite o Banco de Portugal a emanar aquele Aviso n.º 3/93, acrescenta o mesmo autor que importa «(…) demonstrar – ponto este que exige urna valoração que extravasa o campo estritamente jurídico, entrando no financeiro e até na macroeconomia – que essa “intervenção” é necessária», nos termos do art. 16-1-a) da LOBP 98 (atualmente em vigor), para “garantir os objetivos da política monetária e cambial”.

Por sua vez, Pedro Pais de Vasconcelos enfatiza que a ressalva final da norma do n.º 2 do Aviso n.º 3/93 (“salvo nos casos em que sejam fixadas por diploma legal”) “é muito significativa e não tem merecido a devida atenção”. Assinalando a insuficiência dos Avisos do Banco de Portugal para, por si só, concretizarem a derrogação dos limites de taxas de juro estatuídos no Código Civil e no Código Comercial e aditando que, mesmo fundados em lei prévia habilitante, tais Avisos “não dispensariam, sem mais, as taxas TAEG do regime do art. 1146.º do Código Civil” (i.e., os limites gerais e não apenas os limites especiais), este autor nota que “[d]a comparação dos três regimes legais, da LOBP 75, da LOBP 90 e da LOBP 98, resulta com clareza a perda pelo Banco de Portugal da competência para fixar os limites de taxas de juro das operações ativas bancárias. Logo na LOBP 90 deixou de haver qualquer preceito que atribuísse ao Banco Central essa competência, e assim se manteve na LOBP 98. E, no entanto, os Avisos emitidos pelo Banco de Portugal em que regeu sobre taxas de juro TAEG continuam a referir como normas habilitantes o art. 17.º da LOBP 98, além do art. 28.º do Decreto-Lei n.º 133/09, de 2 de junho (que rege atualmente o crédito ao consumo)”.

A propósito do regime especial sobre a usura no crédito ao consumo que, em termos inovadores, foi consagrado no art. 28.º do DL 133/2009, alerta, de resto, o mesmo autor que este preceito, “se interpretado como único limite de taxas de juro e de usura, permite que as taxas de juro cresçam exponencialmente [um acréscimo, em cada trimestre, de 25% da taxa média do trimestre anterior para aquele específico tipo de operação, ou de 50% da taxa média da globalidade do contrato de crédito ao consumo celebrado no trimestre anterior] sem limite” temporal. Donde, considerando que “a ratio juris imanente ao regime jurídico do crédito ao consumo é de ordem pública de proteção do consumidor, não é de proteção do seu financiador”, na perspetiva do autor, não é defensável (…) o abandono dos consumidores a taxas de juro como aquelas que são permitidas pela sua limitação apenas ao regime do art. 28º do DL 133/09 com dispensa [da aplicação] dos limites dos arts. 559.º e 559.º-A do Código Civil e do art. 102.º do Código Comercial” a “(…) taxas das operações bancárias (…) objetivamente mercantis, porque assim o são as operações de banco, segundo o art. 362.º do Código Comercial” – em sentido objetivo (v., também, art. 2.º-1.ª parte do Código Comercial) – e de acordo com os arts. 2.º-2.ª parte e 13.º do Código Comercial – em sentido subjetivo.

Por último e em idêntico sentido da aplicação dos limites legais do Código Civil e do Código Comercial às taxas de juro bancárias, Luís Miguel Pestana de Vasconcelos, em artigo publicado na Revista de Direito Comercial e em recente webinar organizado pela Faculdade de Direito da Universidade do Porto, realça a elasticidade da redação do art. 559.º-A do Código Civil (aditado pelo Decreto-Lei n.º 262/83) quanto ao âmbito de aplicação do disposto no art. 1146.º do Código Civil – “[é] aplicável o disposto no artigo 1146.º a toda a estipulação de juros ou quaisquer outras vantagens em negócios ou atos de concessão, outorga, renovação, desconto ou prorrogação do prazo de pagamento de um crédito e em outros análogos” –, extensível a todas as obrigações que se traduzam em formas de remuneração de capital mutuado. Por conseguinte, advoga, nenhum sentido faria estabelecer um “duplo regime” em que “a lei criava quase sem brechas (ver o art. 559.º-A) um regime protetor do creditado, e afastava-o depois na esmagadora maioria dos casos em que é concedido crédito, através dos seus concedentes profissionais (…)”, que “(…) têm uma capacidade muitíssimo maior do que os que não (…) para o obter [o crédito] mais barato, e para avaliarem melhor o risco – e a consistência das garantias, se elas forem exigidas.”

Socorrendo-se ao argumento histórico da hermenêutica jurídica, exalta o último autor referido que o regime do Código Civil deriva daqueloutro (de fixação das taxas de juro dos empréstimos feitos por particulares) consagrado no Decreto 21730, de 14 de outubro de 1932, mas com uma destrinça não despicienda: “enquanto no regime anterior se excecionavam os juros bancários [art. 10.º], o Código Civil não consagrou exceção alguma, sendo assim evidente a intenção [de] os submeter ao regime geral.”

Projetando a sua posição no regime do art. 28.º do DL 133/2009, Pestana de Vasconcelos, depois de acentuar que a norma que determina a redução automática da TAEG, prevista do art. 28.º, n.º 6, daquele diploma legal, “(…) não constitui uma regra excecional relativamente ao art. 1146.º, permitindo a fixação de taxas de juro superiores” e que os comandos normativos ora em confronto visam “(…) regular figuras diferentes, calculadas de forma diversa: num caso uma taxa de juro, noutra uma forma de expor percentualmente o conjunto de custos associados ao crédito, no qual se inclui, também, a taxa de juro”, assevera que a aplicação do art. 1146.º do Código Civil importa, então, “a realização de três operações diversas:

(i) Em primeiro lugar, verificar se a taxa de juro nominal está dentro dos limites do art. 1146.º, e, quando não esteja, proceder à redução aos máximos legais (art. 1146.º, n.º 4). Desde logo, por força da aplicação deste limite, o valor em excesso que tenha sido pago terá que ser restituído, uma vez que se trata de um caso de nulidade parcial (art. 289.º, n.º 1).

(ii) De seguida, integrar na fórmula de cálculo da TAEG a taxa de juro nominal apurada, traduzi-la no montante de juros, e fixar o seu valor.

(iii) Por fim, aplicar os limites definidos para a TAEG (e já não para a taxa nominal, sublinhe-se novamente) ao valor apurado. Ultrapassados esses máximos, que assentam (…) nas taxas médias para a generalidade, ou determinados, contratos de crédito ao consumo, poderá proceder-se à redução”.

Pela nossa parte, embora entendamos que a inexistência de previsão legislativa, mormente no Decreto-Lei n.º 58/2013 (diploma fundamental na regulação dos juros bancários), que determine expressamente a inaplicabilidade dos limites de taxas de juro estatuídos nos arts. 559.º-A e 1146.º do Código Civil e 102.º do Código Comercial às operações bancárias ativas abona a favor da corrente doutrinal aqui desenvolvida, a fim de se dissiparem as divergências persistentes, seria aconselhável uma intervenção legislativa que viesse consagrar expressis verbis uma das soluções em confronto.


[1] V., neste sentido, só desde 2010, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11.02.2010, Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 19.06.2012, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 11.03.2014, Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 11.05.2017, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 14.11.2017, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11.04.2018, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19.05.2020.

[2] O art. 28.º-1-b) da LOBP 75 rezava nos seguintes termos: “Com vista à orientação e contrôle das instituições de crédito, compete ao Banco [de Portugal], nomeadamente: (…) b) Fixar o regime das taxas de juro, comissões e quaisquer outras formas de remuneração para as operações efetuadas pelas instituições de crédito ou por quaisquer outras entidades que atuem nos mercados monetário e financeiro (…)”.  

[3] Na LOBP 90, o preceito correspondente ao art. 28.º-1-b) da LOBP 75 encontrava-se plasmado no art. 22.º-1-a) e já não permitia a fixação administrativa das taxas de juro: “Para orientar e fiscalizar os mercados monetário, financeiro e cambial, cabe ao Banco [de Portugal]: a) Regular o funcionamento desses mercados, adotando providências genéricas ou intervindo, sempre que necessário, para garantir o cumprimento dos objetivos da política económica, em particular no que se refere ao comportamento das taxas de juro e de câmbio (…)”.

Fornecimento de água e rotura em rede predial

Doutrina

Infelizmente, alguns de nós já tivemos de lidar com uma situação de rotura na rede predial de imóvel que, nos termos de contrato, é abastecido de água através da rede pública. Nessas circunstâncias, além dos encargos com a verificação e reparação da rotura, tememos a repercussão em faturação do volume de água perdida. Do ponto de vista jurídico, como deve a rotura no sistema de distribuição predial ser refletida em termos de faturação?

Com efeito, em primeiro lugar, importa ter presente que, na situação exposta, utilizador e entidade gestora se acham ligados por contrato para prestação do serviço de fornecimento de água, um contrato misto, com elementos de compra e venda e de prestação de serviços, de execução duradoura, nos termos do qual a segunda se obriga ao fornecimento permanente de água canalizada potável (prestação de execução continuada), encontrando-se o utente adstrito a contraprestações, de execução periódica, consistentes, nomeadamente, no pagamento de uma “tarifa de disponibilidade”, devida em função do intervalo temporal objeto de faturação, e de uma “tarifa variável”, proporcional à quantidade de água por si efetivamente consumida – art. 81.º do Regulamento n.º 594/2018, da Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos (ERSAR).

Na vigência do contrato, assiste ao utente o direito à medição dos respetivos níveis de utilização do serviço de abastecimento de água, a ser assegurado pela colocação de instrumento de medição (contador) adequado às características do local e ao perfil de consumo do utilizador (arts. 66.º-1 e 2 do DL 194/2009 e 84.º-1 e 4 do Regulamento n.º 594/2018).

De acordo com o art. 69.º-1 do DL 194/2009 (assim como o art. 41.º-1 e 2 do Regulamento n.º 594/2018), “[t]odos os edifícios, existentes ou a construir, com acesso ao serviço de abastecimento público de água ou de saneamento de águas residuais devem dispor de sistemas prediais de distribuição de água e de drenagem de águas residuais devidamente licenciados, de acordo com as normas de conceção e dimensionamento em vigor, e estar ligados aos respetivos sistemas públicos”, sendo o abastecimento predial de água (em boas condições de caudal e pressão), desde a rede pública até ao limite da propriedade a servir, assegurado por ramal de ligação, cuja instalação (assim como a respetiva conservação, renovação e substituição) é da responsabilidade da entidade gestora (arts. 32.º-1, 282.º, 284.º e 285.º do Decreto Regulamentar n.º 23/95, 69.º-9 do DL 194/2009 e 43.º-2 do Regulamento n.º 594/2018).

O art. 59.º-2 do DL 194/2009 (como também o art. 37.º-2 do Regulamento n.º 594/2018) dispõe que o serviço de abastecimento público de água através de redes fixas se considera disponível – e, portanto, o utente tem direito à prestação do serviço público essencial (art. 1.º-2-a) da LSPE) – desde que o sistema infraestrutural da entidade gestora do serviço esteja localizado a uma distância igual ou inferior a 20 metros do limite da propriedade, caso em que os proprietários dos prédios existentes ou a construir (qualquer que seja a sua utilização) são obrigados a instalar, por sua conta, a rede de distribuição predial (arts. 69.º-4 do DL 194/2009 e 41.º-1-a) e 44.º-3 do Regulamento n.º 594/2018) e a solicitar a ligação ao sistema público de abastecimento de água (arts. 69.º-1 do DL 194/2009 e 41.º-1-b) do Regulamento n.º 594/2018).

A conservação em boas condições de funcionamento e salubridade do sistema de distribuição predial também é da responsabilidade do proprietário, uma incumbência que abarca a deteção e a reparação de roturas ou de anomalias nos dispositivos de utilização (arts. 69.º-4 do DL 194/2009 e 44.º-3 e 4 do Regulamento n.º 594/2018). No entanto, de forma a garantir a integridade dos sistemas prediais de distribuição de água, a entidade gestora deve tomar as medidas necessárias para evitar a deterioração anormal ou mesmo a produção de danos naqueles sistemas, resultantes de pressão excessiva ou variação brusca de pressão na rede pública de distribuição de água (ou de alteração das características físico-químicas da água suscetíveis de causar incrustações nas redes), assegurando, para tanto, a manutenção da pressão de serviço dentro dos intervalos indicados no art. 21.º do Decreto Regulamentar n.º 23/95 (arts. 71.º-1-a) do DL n.º 194/2009 e 35.º-2-c) e 47.º do Regulamento n.º 594/2018).

Um dos motivos para a realização de “acertos de faturação”, além da produção de faturação baseada em estimativa de consumo nos períodos em que não haja leitura do contador, assenta na situação de comprovada rotura na rede predial (art. 99.º-1-e) do Regulamento n.º 594/2018).

Citando a Sentença do Centro de Informação de Consumo e Arbitragem do Porto (CICAP) de 6.7.2014, proferida no Processo n.º 7/2014, Relator: Paulo Duarte, a partir do ensinamento de M.J. Almeida Costa, o fornecimento de água pela entidade gestora do serviço origina uma obrigação genérica, que se concentra no momento da «passagem da água da rede pública para o sistema predial, através do contador, coincidindo com o acionamento dos dispositivos de utilização pelo utente. Nesse momento, nos termos do art. 408.º-2 do Código Civil, transfere-se para o utente a propriedade sobre a quantidade de água especificada (estando aquele obrigado ao pagamento do preço correspetivo). Tendo em conta o art. 796.º-1 do Código Civil, porque a transferência do risco acompanha, em regra, a transmissão da propriedade, o risco de perda (ou perecimento) da água já medida e entregue, por causa não imputável ao utente nem ao prestador do serviço, corre por conta do utente. Em suma, independentemente de ter consumido ou não a água, o utente tem de pagar o respetivo preço.

Assim, nos casos em que o utente usa, ao longo do período de faturação, os dispositivos que provocam o consumo de água, e parte dessa água, por motivo de rotura, acaba por perder-se no circuito da sua rede predial, é o mesmo responsável pelo pagamento de toda a água que lhe tenha sido entregue, mesmo a que não tenha consumido[1]. Sem embargo, em caso de comprovada rotura na rede predial, há lugar à correção da faturação emitida, operando-se o acerto de faturação nos seguintes termos: a) Ao consumo médio apurado nos termos do art. 93.º do Regulamento n.º 594/2018[2] aplicam-se as tarifas dos respetivos escalões tarifários e ao volume remanescente, que se presume imputável à rotura, a tarifa do escalão que permite a recuperação de custos nos termos do Regulamento Tarifário aprovado pela ERSAR[3]; b) O volume de água perdida e não recolhida pelo sistema público de drenagem de águas residuais não é considerado para efeitos de faturação dos serviços de saneamento e de gestão de resíduos urbanos, quando indexados ao consumo de água (art. 99.º-6 do Regulamento n.º 594/2018).


[1] Pedro Falcão, O problema jurídico das fugas de água, in “Novos Estudos sobre Serviços Públicos Essenciais”, Petrony Editora, 2018, p. 97; Cátia Sofia Ramos Mendes, O contrato de prestação de serviços de fornecimento de água, Dissertação submetida com vista à obtenção do grau de Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade NOVA de Lisboa, 2015, p. 51.

[2] Apurado, em princípio, entre as duas últimas leituras reais efetuadas pela entidade gestora, dividindo os m3 consumidos entre as duas últimas leituras pelo número de dias decorridos entre as mesmas, multiplicando o consumo diário assim obtido pelos dias que pretende faturar por estimativa (art. 67.º-6-a) do DL 194/2009, art. 93.º-1-a) e 2 do Regulamento n.º 594/2018). Ou em função do consumo médio do período homólogo do ano anterior quando o histórico de consumos revele a existência de sazonalidade ou, ainda, em função do consumo médio de utilizadores com características similares no âmbito do território municipal verificado no ano anterior, na ausência de qualquer leitura subsequente à instalação do contador (art. 67.º-6-b) do DL 194/2009 e art. 93.º-1-b) e c) do Regulamento n.º 594/2018).

[3] Sendo que, até à presente data, a ERSAR ainda não fez aprovar o Regulamento Tarifário dos Serviços de Águas (RTA), no uso da competência prevista nos arts. 11.º, alínea a) e 13.º do Anexo à Lei n.º 10/2014, de 6 de março. Neste caso, a definição da tarifa do escalão que permite a recuperação de custos resultará do regulamento tarifário de cada município ou sistema multimunicipal, adotado nos termos do respetivo procedimento aplicável previsto nos artigos 24.º a 28.º do Regulamento dos Procedimentos Regulatórios da ERSAR.

Período de fidelização e alteração da morada, desemprego ou emigração nos serviços de comunicações eletrónicas

Doutrina

Uma das questões que vem sendo dirimida com mais frequência nos centros de arbitragem de conflitos de consumo prende-se com a existência (ou não) do direito de o consumidor fazer cessar unilateralmente um contrato de prestação de serviços de comunicações eletrónicas, no decurso do período de fidelização convencionado com o profissional, fundamentando a desvinculação numa alteração das circunstâncias em que as partes basearam a decisão de contratar.

Os casos de alegada modificação da “base do negócio objetiva” reportam-se, essencialmente, a situações de alteração do local de residência do consumidor, existindo, contudo, registo de diferendos entre assinante e prestador de serviços de comunicações eletrónicas determinados por declaração de resolução do contrato (emitida pelo primeiro e com a qual o segundo não se conformou) fundada em situação de emigração ou de desemprego (ou quebra acentuada de rendimentos) do consumidor titular do contrato (ou do seu agregado familiar).

Nestes casos, revela-se pacífico que a possibilidade de o profissional prestar o serviço em determinada morada de instalação e o consumidor nele poder recebê-lo constitui uma condição determinante para a decisão de contratar das partes. E não raras vezes se verifica que a proposta apresentada pelo operador para modificação do contrato não se afigura a mais equilibrada no que tange aos interesses do assinante, sobretudo por força da diminuição qualitativa, de modo sensível, dos serviços a prestar pelo primeiro. Acresce que, nas situações de alteração do local de residência do consumidor, o facto de este, por um lado, continuar a pagar as prestações devidas por um serviço de que não vai usufruir (por continuar a ser fornecido na sua morada antiga) e, por outro lado, contratar serviços de comunicações eletrónicas para a sua nova residência (por nisso ter interesse e se tratar de um serviço público essencial – art. 1.º-2-d) da LSPE) determina uma situação de desequilíbrio entre o prejuízo causado na esfera jurídico-patrimonial do assinante e o lucro auferido pelo prestador, à custa daquele prejuízo[1].

Noutra perspetiva, a morada de prestação do serviço constitui um elemento essencial do contrato e, nessa medida, o profissional apenas se encontra adstrito a assegurar o cumprimento da sua obrigação principal com as características acordadas no concreto local estipulado no negócio celebrado com o consumidor, não podendo ser forçado a aceitar a alteração do contrato quanto à instalação de consumo[2], sobretudo quando o obstáculo que se colocou ao normal desenvolvimento do quadro contratual previsto surgiu por vontade do utente (e não por facto exterior à vontade das partes), não se revelando imprevisto e anómalo.

Não ignorando a assinalável litigiosidade em torno desta matéria, a Autoridade Nacional de Comunicações (ANACOM), no seu Anteprojeto de diploma de transposição do Código Europeu das Comunicações Eletrónicas[3], gizou, nos arts. 132.º (Alteração da morada de instalação) e 133.º (Situação de desemprego ou emigração do titular do contrato), duas soluções normativas inovadoras, especificamente pensadas para as situações acima identificadas.

Assim, nos termos do art. 132.º do Anteprojeto, “[e]m caso de alteração do local de residência do consumidor, a empresa que oferece serviços de comunicações eletrónicas acessíveis ao público (…) não lhe pode exigir o pagamento de quaisquer encargos relacionados com o incumprimento do período de fidelização, caso não possa assegurar a prestação do serviço contratado ou de serviço equivalente, nomeadamente em termos de características e de preço, na nova morada (n.º 1), sendo que, para tais efeitos, “o consumidor comunica à empresa que oferece os serviços a alteração da respetiva morada com uma antecedência mínima de um mês, apresentando documentação que a comprove” (n.º 2), fixada pela ANACOM (n.º 3), isto sem prejuízo do “direito de a empresa cobrar os serviços prestados durante o período de pré-aviso” (n.º 4).

Já de acordo com o art. 133.º do Anteprojeto, “[e]m situações de emigração ou de desemprego do consumidor titular do contrato devidamente comprovadas, a empresa que oferece serviços de comunicações eletrónicas acessíveis ao público (…) não lhe pode exigir o pagamento de quaisquer encargos relacionados com o incumprimento do período de fidelização (n.º 1), podendo a ANACOM “determinar quais os elementos comprovativos que podem ser exigidos pelas empresas que oferecem serviços aos consumidores” (n.º 2). Esta solução normativa apresenta semelhanças com o disposto no art. 361.º-3-a) da Lei n.º 75-B/2020 (aqui já referido no blog), podendo representar uma sobrevigência de uma medida excecional e temporária para além do atual contexto de emergência de saúde pública provocado pela pandemia da doença COVID-19.

Ora, com base no anteprojeto preparado pela ANACOM (e noutros contributos recolhidos), em 9.4.2021, o Governo apresentou à Assembleia da República a Proposta de Lei n.º 83/XIV/2.ª (PL), a qual, no que respeita à matéria de que aqui trato, acolheu, no essencial, a disciplina desenhada pela ANACOM para as situações de alteração do local de residência do consumidor (art. 132.º da PL). Porém, eliminou o art. 133.º constante do Anteprojeto, quedando-se por uma regra que pouco ou nada acrescenta (em face da prática dos tribunais): “[o] disposto nos artigos 131.º e 132.º não prejudica a aplicação dos regimes de resolução e de modificação do contrato por alteração das circunstâncias previstos no Código Civil” (art. 133.º da PL).

Acompanhando a apreciação efetuada pela Direção-Geral do Consumidor (DGC) em parecer sobre a PL, independentemente da bondade da solução, certo é que o art. 132.º da PL “vem sanar, de forma inequívoca, a questão, eliminando o espaço de discricionariedade existente, até ao momento, com eventuais ganhos em termos de segurança jurídica”, deixando de ser “os operadores a definir, numa primeira instância, se a mudança de residência constitui ou não uma alteração anormal das circunstâncias”. Sem embargo, diversamente do que se verificava no Anteprojeto, o PL surge desprovido de uma “norma estabelecendo o poder de a ARN determinar quais os elementos comprovativos que podem ser exigidos pelas empresas para efeitos de prova da alteração de morada”, o que, de acordo com a mesma lógica de preclusão da margem de discricionariedade, é merecedor de crítica. Acresce que, como nota a DGC, afigura-se «necessária a clarificação do que se entende por “serviço equivalente”», devendo ficar expresso em letra de lei que “serviço equivalente” é todo aquele que não importa “qualquer downgrade da tecnologia do serviço contratado, uma vez que, em qualquer tecnologia, este downgrade acarreta uma perda significativa da qualidade do serviço contratado”.

Já a supressão do art. 133.º do Anteprojeto deveria ser repensada, atenta a necessidade de intervenção legislativa para pacificação dos conflitos existentes entre assinantes e prestadores de serviços em casos de emigração ou de desemprego (ou quebra acentuada de rendimentos) do consumidor titular do contrato (ou do seu agregado familiar), ainda que, como reconhece a ANACOM com a sua nova proposta de redação para o artigo vertida em parecer sobre a PL (p. 207), a previsão normativa possa (e deva) ser mais “equilibrada, do ponto de vista da proteção dos legítimos interesses das empresas” e no quadro de uma disciplina jurídica dos contratos que encontra no princípio pacta sunt servanda (os contratos devem ser pontualmente cumpridos – art. 406.º do Código Civil) um dos seus princípios fundamentais.


[1] Dália Shashati, Períodos de Fidelização, Dissertação com vista à obtenção do grau de Mestre em Direito na especialidade de Ciências Jurídicas Empresariais pela Faculdade de Direito da Universidade NOVA de Lisboa, 2015, pp. 81-93.

[2] Flávia da Costa de Sá, Contratos de Prestação de Serviços de Comunicações Eletrónicas: A Suspensão do Serviço em Especial, Dissertação com vista à obtenção do grau de Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade NOVA de Lisboa, 2014, p. 45.

[3] O Código Europeu das Comunicações Eletrónicas foi estabelecido pela Diretiva (UE) 2018/1972, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de dezembro de 2018, tendo o Anteprojeto de diploma de transposição sido aprovado por Decisão de 31.07.2020, para envio à Assembleia da República e ao Secretário de Estado Adjunto e das Comunicações.

Procedimento fraudulento e determinação do consumo de energia elétrica

Doutrina

Além da hipótese de faturação baseada em estimativa de consumo (já aflorada em post anterior), a realização de “acertos de faturação” de energia elétrica pode fundar-se, também, em “procedimento fraudulento” (art. 49.º-1-b) do Regulamento de Relações Comerciais do Setor Energético e do Gás (RRC)).

Nos termos do art. 1.º-1 e 2 do Decreto-Lei n.º 328/90, de 22 de outubro (DL 328/90)[1], “[c]onstitui violação do contrato de fornecimento de energia elétrica qualquer procedimento fraudulento suscetível de falsear a medição da energia elétrica consumida ou da potência tomada, designadamente a captação de energia a montante do equipamento de medida, a viciação, por qualquer meio, do funcionamento normal dos aparelhos de medida ou de controlo da potência, bem como a alteração dos dispositivos de segurança, levada a cabo através da quebra dos selos ou por violação dos fechos ou fechaduras”, sendo que “[q]ualquer procedimento fraudulento detetado no recinto ou local exclusivamente servido por uma instalação de utilização de energia elétrica presume-se, salvo prova em contrário, imputável ao respetivo consumidor”.

Estabelece-se, assim, uma presunção ilidível contra o consumidor, no sentido em que este é o presuntivo responsável por qualquer procedimento fraudulento que se verifique em “recinto ou local exclusivamente servido por uma instalação de utilização de energia elétrica”, salvo se aquele demonstrar, de modo cabal, que tal procedimento não procede de culpa sua[2]. Como sucede com qualquer presunção, “a prova inferencial (por meio, precisamente, da inferência, do desconhecido a partir do conhecido, em que consiste a presunção) do facto presumido depende da prova do facto indiciário”, que, na estrutura da norma do art. 1.º-2 do DL 328/90 consiste na ocorrência de “procedimento fraudulento (…) no recinto ou local exclusivamente servido por uma instalação de utilização de energia elétrica”[3].

Existindo indícios ou suspeita da prática de qualquer procedimento fraudulento, o operador da rede de distribuição pode proceder à inspeção da instalação elétrica pela qual é responsável, por meio de um técnico seu (entre as 10 e as 18 horas, incluindo os equipamentos de medição – art. 2.º-1 do DL 328/90 e ponto 31.1 do GMLDD), de que é lavrado auto. A inspeção deve ser feita, sempre que possível, na presença do consumidor (ou de quem no local o represente, designadamente um seu familiar ou empregado), a quem deverá ser deixada cópia. No auto, se for o caso, é descrito, sumariamente, o procedimento fraudulento detetado, bem como quaisquer outros elementos relevantes para a identificação, comprovação e imputação da responsabilidade do procedimento, sendo o mesmo instruído com os elementos de prova eventualmente recolhidos (art. 2.º-2 e 3 do DL 328/90 e ponto 31.1 do GMLDD).

Após a identificação e verificação de factos passíveis de configurarem a prática de procedimento fraudulento, o operador da rede de distribuição deve notificar, por escrito, o consumidor a quem é imputável a sua autoria, devendo constar dessa notificação a identificação, entre outros, dos factos justificativos, do valor presumido do consumo irregularmente feito e do período de tempo devido para efeitos de acerto de faturação, bem como dos direitos do consumidor, designadamente, o de requerer a avaliação da prova recolhida. A avaliação é feita através de vistoria à instalação elétrica, a realizar pela Direção-Geral de Energia e Geologia (DGEG), no prazo máximo de 48 horas após ter tido conhecimento do facto, sempre que aplicável (cf. arts. 4.º-1 e 5.º-2 do DL 328/90 e ponto 31.1 do GMLDD). Diga-se, aliás, que uma eventual interrupção do fornecimento de energia elétrica da instalação (arts. 3.º-1-a) do DL 328/90 e 79.º-1-g) do RRC e ponto 31.1 do GMLDD), consequente à deteção do procedimento fraudulento por facto imputável ao consumidor, sob pena da prática de ato ilícito, não pode deixar de ser antecedida daquela notificação (art. 4.º-1 do DL 328/90)[4].

Ainda que se conclua que o consumidor não foi autor ou responsável pelo procedimento fraudulento, o art. 3.º-2 do DL 328/90 reconhece ao “distribuidor” (leia-se, numa interpretação atualista, ao “comercializador”) o direito a ser “ressarcido” do consumo irregularmente feito (mas já não, claro, dada a ausência de culpa, das “despesas inerentes à verificação e eliminação da fraude” a que alude a alínea b) do n.º 1 do mesmo artigo 3.º)[5].

O art. 6.º-1 do DL 328/90 vem oferecer diretrizes para a “determinação do valor do consumo irregularmente feito”, estabelecendo que devem ter-se em conta “todos os factos relevantes para a estimativa do consumo real durante o período em que o ato fraudulento se manteve, designadamente as características da instalação de utilização, o seu regime de funcionamento, as leituras antecedentes, se as houver, e as leituras posteriores, sempre que necessário”. Este regime permite ao comercializador a satisfação possível do seu crédito perante uma situação deste tipo[6].

Densificando algumas destas orientações, o ponto 31.2.1 do GMLDD faz impender sobre o operador da rede de distribuição o encargo probatório de apurar o período de tempo durante o qual subsistiu o procedimento fraudulento. O período ficará sempre condicionado pela data de início do contrato do titular a quem for imputada a responsabilidade pela prática do procedimento, se existir contrato, não podendo, em qualquer caso, ser superior a 36 meses. O operador da rede deve verificar, entre outras situações, a eventual ocorrência de variações abruptas no perfil de consumo da instalação e a data da última deslocação à instalação, com acesso ao equipamento de medição. Já o ponto 31.2.2 admite que o cálculo do consumo de energia elétrica associado a procedimento fraudulento possa atender, se o mesmo existir, ao histórico de registos fiáveis do equipamento de medição. Na sua ausência, o quantum do consumo de energia elétrica será estimado com base no consumo médio anual por escalão de potência contratada(sempre que o Dispositivo de Controlo de Potência não tiver sido manipulado, deve atender-se à potência que estiver regulada nesse dispositivo), nos termos do ponto 33.1.2. do GMLDD, adicionado do respetivo desvio padrão, sendo que os valores a atender para ambos os elementos constam da Diretiva n.º 11/2016, da ERSE.


[1] V., de forma mais desenvolvida, também o ponto 31.1 do Guia de Medição, Leitura e Disponibilização de Dados de energia elétrica em Portugal continental (GMLDD), no qual se preveem, ainda, situações de ligação direta à rede.

[2] Sentença do CNIACC – Centro Nacional de Informação e Arbitragem de Conflitos de Consumo, de 30.05.2017, Relator: Jorge Morais Carvalho.

[3] Sentença do Centro de Informação de Consumo e Arbitragem do Porto (CICAP) de 29.01.2017, proferida no Processo n.º 3283/2016, Relator: Paulo Duarte.

[4] Ver, a este propósito e com interesse, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10.05.2016, proferido no Processo n.º 1929/13.1TBPVZ.P1.S1, Relator: Gabriel Catarino, e o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 21.11.2019, proferido no Processo n.º 3823/18.0T8BRG.G1, Relator: António Sobrinho.

[5] Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13.05.2021, proferido no Processo n.º 2422/19.4T8AGD.P1, Relator: Aristides Rodrigues de Almeida.

[6] Pedro Falcão, A tutela do prestador de serviços públicos essenciais no ordenamento jurídico português, in Estudos de Direito do Consumidor, n.º 12, 2017, p. 416.

Escravatura moderna made in Portugal: não era mau que o que é nacional fosse mesmo bom

Doutrina

Muito se escreveu por ocasião da requisição civil do Zmar, cujo intuito era o de alojar temporariamente alguns trabalhadores do setor agrícola que não dispunham de condições de habitação suficientes à resolução da situação sanitária de Odemira.

O debate foi interessante, mas rápido, e terminou ainda mais depressa, sobretudo porque o que mais pareceu relevar discutir foram supremos conceitos jurídicos de propriedade. Arquivado o caso, arquivada a questão. Analisar o problema basal ficou para depois.

Até aqui, a exploração laboral de imigrantes, que está longe de ser uma novidade, não causou empatia de maior. Os produtos alimentares que afluem desta lógica exploratória são largamente procurados pelos consumidores portugueses, desde as framboesas às azeitonas, dos morangos às amêndoas. E isto só para falar da produção do Alentejo. O consumidor médio considerará, provavelmente, que consumir nacional é até uma atitude sensata, inquinado pela pedagogia viciada de que o que é nacional é bom. Bom para quem?

Estima-se que são as mãos de cerca de 28.000 trabalhadores provenientes, entre outros, do Senegal, Guiné-Conacri, Paquistão, Índia, Nepal, Bangladesh, Roménia, Moldávia, Brasil e Bulgária que as põem à obra nas nossas agriculturas. “Ninguém quer ser escravo na sua terra”[1] parece, pois, ser uma excelente súmula da arquitetura do sistema que perpetua a esquizofrenia entre a certeza dos direitos fundamentais inderrogáveis e a vida real.

Se a exploração laboral de imigrantes está longe de ser uma novidade, nem o mais ingénuo cidadão poderá supor que as habitações que lhes estão destinadas são lugares que cumprem os requisitos de um lar. Este problema estende-se muito para lá do que pode significar a proliferação do contágio de Covid-19. A violação de direitos humanos ainda é mais do que isso. Assim, não se compreende como possa ter sido levantado tanto alvoroço em torno da questão do Zmar, para depressa se deixar perecer a discussão que realmente importava.

A discussão que realmente importava trazer para a mesa, literalmente, era a de que há produtos que queremos consumir, mas não queremos produzir, a menos que alguém o faça por nós, de preferência a baixo custo. A discussão que realmente importava trazer para a mesa era a de que “há entre 80 a 100 pessoas a viverem «dentro de uma oficina»”, “outras 30 pessoas dentro de um apartamento, com homens e mulheres misturados, dispondo apenas de um chuveiro e de uma sanita” e “onde 55 pessoas vivem num T3, pagando no total 1.530 euros de renda por mês”[2].

Aproximam-se argumentos de inferioridade civilizacional, apregoando que mesmo sendo mal pagos em Portugal, mesmo vivendo sob condições indignas para os nossos padrões, a situação destes imigrantes é melhor do que a que tinham ou teriam nos seus países de origem. É bem provável que seja verdade. Mas se, enquanto comunidade, estabelecemos que há um mínimo de dignidade abaixo do qual não toleraremos descer, esse mínimo também tem de se estender a qualquer ser humano que ingresse em território nacional.

A violação de direitos humanos torna-se cada vez mais vizinha, não sendo só um exotismo bárbaro sobre o qual ouvimos falar. Olhar para o lado já não serve de nada, pois é exatamente ao lado onde agora reside o problema.


[1] https://sicnoticias.pt/pais/2021-05-05-Nao-ha-portugueses-quase-a-trabalhar-nesta-agricultura-ninguem-quer-ser-escravo-na-sua-terra-a51da714

[2] https://www.publico.pt/2017/01/18/sociedade/noticia/falta-de-maodeobra-no-alqueva-alimenta-novas-formas-de-escravatura-1758670

Uma análise empírica do Regulamento Harmonizado dos centros de arbitragem de conflitos de consumo – Parte II

Doutrina

Prosseguindo a análise ao Regulamento Harmonizado dos centros de arbitragem de consumo, iniciada em post anterior, julgamos que a redação das normas regentes da elaboração da sentença arbitral, plasmadas no artigo 15.º do Regulamento, impõem duas observações críticas.

Em primeiro lugar, à semelhança do que é imposto pelo n.º 4 do artigo 607.º do CPC, inexiste fundamento bastante para se considerar inexigível a declaração, na sentença arbitral, dos factos que se julgam não provados de entre aqueles que hajam sido alegados pelas partes, tendo em consideração o objeto do litígio, para além dos factos que se encontram em contradição com os julgados provados e dos prejudicados por estes e excluindo aqueles que são meramente conclusivos.

Em segundo lugar, atendendo à tendencial maior complexidade que os litígios de consumo submetidos à jurisdição arbitral vêm conhecendo, à qual não é, de todo, alheia a previsão de arbitragem necessária na Lei de Defesa do Consumidor entendemos razoável um aumento do prazo para prolação da sentença arbitral em mais 15 (quinze) dias, desta forma se promovendo um alinhamento com a solução prevista no n.º 1 do artigo 607.º do CPC, aplicável aos tribunais judiciais de 1.ª instância.

Por sua vez, a letra da regra consagrada no artigo 17.º do Regulamento, sob a epígrafe “Prazos processuais”, ao referir-se a “processos de reclamação”, alimenta dúvidas quanto à aplicação do prazo de conclusão de 90 (noventa) dias ao conjunto dos procedimentos de resolução alternativa de litígios de consumo (mediação, conciliação e arbitragem) ou a cada procedimento individualmente considerado. Com efeito, em face do disposto pelo n.º 5 do artigo 10.º da Lei RAL, dúvidas não devem subsistir de que o prazo de 90 dias se aplica a cada procedimento de RAL. O Regulamento do CNIACC – Centro Nacional de Informação e Arbitragem de Conflitos de Consumo já o estabelece de forma inequívoca. Esta é a única solução que se conforma com a lógica de “multi-step dispute resolution” adotada nos centros de arbitragem de conflitos de consumo nacionais (surgindo a mediação como fase prévia, seguida da conciliação e da arbitragem) e que assegura a exigível proteção ao consumidor[1].

Uma derradeira e mais aturada consideração se impõe acerca de uma diferença relevante e que salta à vista na redação que toma a norma do n.º 3 do artigo 19.º do regulamento interno de cada um dos centros de arbitragem de conflitos de consumo. Se, por um lado, os regulamentos do CIAB – Centro de Informação, Mediação e Arbitragem de Consumo (Tribunal Arbitral de Consumo), do Centro de Informação de Consumo e Arbitragem do Porto (CICAP), do Centro de Arbitragem de Conflitos de Consumo da Região de Coimbra (CACRC) e do Centro de Arbitragem de Conflitos de Consumo de Lisboa (CACCL) preveem que, em caso de omissão, se aplica, subsidiariamente e “com as devidas adaptações”, o Código de Processo Civil, já os regulamentos do TRIAVE – Centro de Arbitragem de Conflitos de Consumo do Ave, Tâmega e Sousa, do Centro de Arbitragem de Conflitos de Consumo do Algarve (CIMAAL) e do CNIACC – Centro Nacional de Informação e Arbitragem de Conflitos de Consumo não estatuem o recurso às regras e princípios da lei processual civil “em tudo o que não estiver previsto” no Regulamento Harmonizado.

Nesta controvérsia sobre a aplicação do Código de Processo Civil à arbitragem de conflitos de consumo, posicionamo-nos a favor de uma aplicação, de último grau, da lei adjetiva comum, ainda que adaptada “à natureza marcadamente abreviada e informal do procedimento arbitral”, como dispõe, com particular acerto, a regra do n.º 2 do artigo 32.º do Regulamento do Centro de Informação, Mediação e Arbitragem de Seguros (CIMPAS).

Não se ignora que, como salienta Manuel Pereira Barrocas, “[o] Código de Processo Civil, tal como qualquer outra lei processual, nacional ou estrangeira, não foi pensado, elaborado e publicado para regular a arbitragem em geral e o processo arbitral em particular, sob pena de se transpor para a arbitragem a complexidade, quando não discussões doutrinarias e jurisprudenciais que não têm a ver com a arbitragem, desvirtuando e retirando as vantagens que lhe são próprias”. Afinal, “[a] jurisdição arbitral funda-se em juízos de equidade e na extrema simplificação e agilização dos procedimentos, recortando-se como uma forma de resolução de litígios em modo simplex, ao passo que a jurisdição estadual assenta no rigor do estrito cumprimento da lei processual e na absoluta salvaguarda de todas as garantias do pleno exercício das mais amplas faculdades processuais, de que não abre mão em circunstância alguma.”

Sem prejuízo do que antecede e, ainda, do disposto no n.º 3 do artigo 30.º da Lei da Arbitragem Voluntária, propugnamos, porém, que a certeza e da segurança jurídicas na aplicação do Direito reclamam que, na ausência de solução aplicável prevista na Lei RAL, na Lei da Mediação (aplicável ao procedimento de RAL de mediação) ou na LAV (aplicável ao procedimento de RAL de arbitragem), se imponha aos colaboradores das entidades de RAL responsáveis por cada um dos procedimentos a convocação e observância das regras e princípios postulados no Código de Processo Civil, ainda que despojados dos formalismos próprios e específicos de uma lei que rege o processo perante os tribunais estaduais.

A aplicação da lei processual civil reveste de particular interesse na verificação dos pressupostos processuais de que depende a regularidade da instância arbitral, seja os relativos ao próprio tribunal arbitral, e.g. competência em razão do valor (artigos 296.º e seguintes do CPC), seja os relativos às partes, e.g. personalidade e capacidade judiciárias (artigos 11.º e seguintes e 15.º e seguintes do CPC), seja, ainda, os relativos ao próprio objeto da demanda arbitral, e.g. aptidão da reclamação (artigo 186.º do CPC) e inexistência de litispendência e de caso julgado (artigos 577.º, alínea i), 580.º, 581.º e 582.º, todos do CPC), seguindo-se aqui de perto Sara Lopes Ferreira, em apresentação feita recentemente num webinar.

Mas não só. Também algumas disposições relativas à prática dos atos processuais, como o princípio da proibição da prática de atos inúteis (artigo 130.º do CPC), a alegação e prova de “justo impedimento” pela parte ou seu representante ou mandatário que obste à prática atempada do ato ou à presença na audiência arbitral, cuja marcação, por norma, não é antecedida de acordo prévio das partes, seja por contacto direto do tribunal, seja com a intermediação do secretariado do tribunal (artigos 139.º, n.º 4, 140.º, 151.º, n.ºs 2 e 3 e 603.º, n.º 1, todos do CPC), ou atinentes à instrução do processo, como a inexigibilidade de alegação e prova dos factos públicos e notórios (artigo 412.º do CPC), o critério de julgamento em caso de dúvida sobre a realidade de um facto (artigo 414.º do CPC), a prova por apresentação de coisas móveis ou imóveis (artigo 416.º do CPC), a prova por depoimento de parte e por declarações de parte, prova por inspeção e prova testemunhal (artigos 452.º e seguintes, artigo 466.º, artigos 490.º e seguintes e artigos 495.º e seguintes, todos do CPC, com as devidas adaptações), ou mesmo respeitantes à sequência dos atos a praticar na audiência de julgamento (artigo 604.º, n.º 3 do CPC) devem ser, a nosso ver, atendidas e respeitadas pelo árbitro na condução do processo arbitral.            

Por último, sem embargo do disposto no n.º 2 do artigo 10.º da Lei RAL, considerando que, paulatinamente, demandados e, sobretudo, demandantes vêm tomando consciência da importância que, amiúde, reveste a constituição de mandatário forense em prol da melhor tutela da sua posição jurídica no litígio, importa levar em consideração, no sentido do texto, que os advogados e os solicitadores trabalham quotidianamente com o Código de Processo Civil e têm a sua forma mentis moldada pela lei adjetiva comum.


[1] Jorge Morais Carvalho, João Pedro Pinto-Ferreira e Joana Campos Carvalho, Manual de Resolução Alternativa de Litígios de Consumo, Almedina, 2017, p. 130.

Uma análise empírica do Regulamento Harmonizado dos centros de arbitragem de conflitos de consumo – Parte I

Doutrina

Com a entrada em vigor da Lei n.º 144/2015, de 8 de setembro (Lei RAL), que transpôs a Diretiva 2013/11/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de maio de 2013, sobre a resolução alternativa de litígios de consumo, os regulamentos dos centros de arbitragem de conflitos de consumo harmonizaram-se entre si, apresentando sistematização e disciplina normativa idênticas, embora subsistam algumas dissemelhanças pontuais.

Neste contexto e com base na nossa experiência como árbitro em centros de arbitragem de conflitos de consumo, desenvolvemos, agora e em próximo texto, uma breve análise crítica de algumas disposições do Regulamento Harmonizado, tomando essencialmente por base o Regulamento do Centro de Arbitragem de Conflitos de Consumo do Vale do Ave/Tribunal Arbitral.

Desde logo, a redação atual do n.º 2 do artigo 4.º do Regulamento Harmonizado, cuja epígrafe é “Competência material”, não acolhe plenamente a conceção estrita de consumidor – e, por essa via, de litígio de consumo – adotada na norma da alínea d) do artigo 3.º da Lei RAL, diploma que regula, em especial, os mecanismos de resolução extrajudicial de litígios de consumo. Assim, para efeitos da submissão de um conflito aos procedimentos de mediação, conciliação e arbitragem (artigo 3.º, alínea j) da Lei RAL), devia adotar-se o sentido jurídico-formal do conceito de consumidor, que se restringe às pessoas físicas, tal como imposto por um princípio de interpretação conforme ao Direito Europeu do Consumo, e deixar de tomar como referencial a noção ampla plasmada na Lei de Defesa do Consumidor – a Lei n.º 24/96, de 31 de julho.

Ainda a respeito do âmbito material de competência dos centros de arbitragem (e, em particular, da jurisdição do tribunal arbitral), a norma do n.º 4 do artigo 4.º do Regulamento Harmonizado – “[o] Centro não pode aceitar nem decidir litígios em que estejam indiciados delitos de natureza criminal ou que estejam excluídos do âmbito de aplicação da Lei RAL” – suscita-nos duas observações que vêm revestindo importância no (não) conhecimento e apreciação de relações jurídico-consumerísticas controvertidas por aquelas entidades de RAL (artigo 3.º, alínea b) da Lei RAL).

Por um lado, afigura-se-nos imperioso clarificar que a norma visa excluir a competência dos centros de arbitragem apenas no que à matéria penal diz respeito. O facto de o litígio configurado pelo reclamante apresentar elementos indiciadores da prática de qualquer delito criminal (e.g. furto de energia elétrica, em ações de simples apreciação negativa em que é demandado o operador da rede de distribuição, ou burla, em ações em que é demandado prestador de serviço de comunicações eletrónicas) não deve obstar à qualificação da demanda como “litígio de consumo”, se preenchidos os quatro elementos – subjetivo, objetivo, teleológico e relacional – a partir dos quais é estruturado o conceito técnico-jurídico de consumidor. Impõe-se, de modo diverso, a distinção (e separação, para efeitos jurídico-processuais) da questão de natureza jurídico-civil suscitada pelo demandante perante a entidade de RAL da eventual relevância e ressonância jurídico-criminal que a alegada conduta por aquele perpetrada pode assumir.

Por outro lado, a fim de se viabilizar a inclusão de litígios relacionados com os serviços de saúde, quando prestados por entidades privadas, na esfera de competência dos centros de arbitragem, a parte final do n.º 4 do artigo 4.º do Regulamento Harmonizado não devia conter remissão expressa para a delimitação negativa do conceito de “litígio de consumo” operada pelo n.º 2 do artigo 2.º da Lei RAL. Até porque, afora a solução normativa da sua alínea b), grande parte dos litígios abarcados pelas alíneas a) a c) do mesmo número, artigo e diploma legal revestem a natureza de relações jurídico-administrativas e, como tal, encontram-se, por natureza, excluídos da competência em razão da matéria do Centro.

Por sua vez, a tramitação do processo de arbitragem, disciplinada, em particular, pelo artigo 14.º do Regulamento Harmonizado, carece, a nosso ver, de uma regulação mais aturada, que promova e concretize plenamente os princípios do processo equitativo (artigo 12.º, n.º 1 da Lei RAL), nos seus corolários de igualdade e de defesa e contraditório.

Neste sentido, pugnamos pela eliminação da possibilidade de apresentação de contestação oral na própria audiência arbitral – para a qual as partes devem ser convocadas com uma antecedência mínima de 20 dias –, estabelecendo-se, em alternativa, que a parte reclamada pode apresentar contestação escrita até 10 dias da data marcada para a audiência. Desta forma, obstar-se-ia a que o reclamante, que surge, não raras vezes, desacompanhado de advogado ou solicitador a representá-lo em juízo (em virtude da diminuta utilidade económica do pedido formulado no processo arbitral, que fica aquém do previsível valor dos honorários devidos ao profissional forense, cuja contratação para assegurar patrocínio judiciário não é, além do mais, obrigatória – cf. artigo 10.º, n.º 2 da Lei RAL), só conheça a posição assumida pela reclamada, nos autos de arbitragem, naquela diligência.

Os mesmos princípios fundamentais do processo arbitral (artigo 30.º, n.º 1 da Lei da Arbitragem Voluntária – LAV) e, bem assim, o princípio da celeridade processual, que é timbre da arbitragem, levam-nos a defender que, por imposição regulamentar, a apresentação da contestação devia ser, de imediato, notificada à parte reclamante, a qual devia poder apresentar resposta ou réplica, por escrito, até à data da audiência ou oralmente na própria audiência (ditando para ata, se se sentir mais confortável com tal alternativa), caso a parte reclamada deduza defesa por exceção ou reconvenção, respetivamente. Desta forma, afastar-se-ia a necessidade de suspensão da audiência arbitral para o demandante gozar do necessário tempo de reflexão e de análise para se poder pronunciar sobre a matéria de defesa por exceção ou de reconvenção deduzida na contestação.

Idênticas preocupações de economia processual e de meios justificam que se imponha às partes a apresentação de toda a prova documental disponível (i.e., de que as partes já disponham) – e de que pretendam fazer uso – com a reclamação e a contestação, assim como fundamentam a previsão expressa da possibilidade de realização da audiência arbitral com recurso a meios de comunicação à distância adequados, nomeadamente videoconferência, como já sucede com o Regulamento do CNIACC – Centro Nacional de Informação e Arbitragem de Conflitos de Consumo. Ressalva-se, quanto a este último aspeto, que deve privilegiar-se, sempre que possível, a colaboração, para o efeito, de centro/serviço/núcleo de informação autárquica ao consumidor, julgado de paz, tribunal estadual ou outra instituição instalada em edifício público da área do domicílio do sujeito ou interveniente processual.

A fim de se superar a divergência de entendimentos quanto à admissibilidade da reconvenção (aplicando-se ou não, supletivamente, a norma do n.º 4 do artigo 33.º da LAV), sem prejuízo da unidirecionalidade dos litígios de consumo (cf. artigo 2.º, n.ºs 1 e 2, alínea d) da Lei RAL), cremos que o princípio da eficiência processual aponta no sentido de que a mesma deve ser aceite. Na verdade, a improcedência de pedido de declaração de inexistência de dívida (em ação de simples apreciação negativa), em arbitragem iniciada pelo consumidor, não se consubstancia em sentença condenatória que possa ser executada, de imediato, pelo profissional (cf. artigo 703.º, n.º 1, alínea a) do CPC), obrigando este último a propor nova ação (ou iniciar procedimento de injunção) para obtenção de título executivo. Por último, de acordo com a jurisprudência firmada pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26.11.2015, proferido no Processo n.º 538/13.0YRLSB.S1, Relator: Fernanda Isabel Pereira, e pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28.06.2019, proferido no Processo n.º 1957/18.0YRLSB.C1, Relator: Arlindo Oliveira, entendemos que a norma do Regulamento Harmonizado relativa à responsabilidade pelas despesas com meios de prova requeridos em audiência arbitral devia conter uma remissão expressa para a solução normativa da segunda parte do n.º 5 do artigo 42.º da LAV – possibilidade de o árbitro decidir que alguma(s) das partes compense(m) a outra(s) pela totalidade ou parte dos custos e despesas razoáveis que esta(s) última(s) demonstre(m) ter suportado por causa da sua intervenção na arbitragem –, dissipando quaisquer dúvidas quanto à inaplicabilidade das normas do Código de Processo Civil e do Regulamento das Custas Processuais referentes a encargos com o processo de arbitragem, porque incompatíveis com a regulamentação própria dos litígios arbitrais.

Non-Fungible Tokens (NFT) – o que são estes cripto-ativos? Mais uma bolha?

Doutrina

Para quem tem acompanhado a evolução dos mercados financeiros, commodities e cripto durante 2021, este tem sido um ano cheio de episódios que desafiam conceções básicas que temos como garantidas. Em Janeiro (e depois em Março, embora menos comentado na comunicação social), a saga do r/Wallstreetbets a tentar provocar um short squeeze das ações da GameStop, AMC (entre outros) chocou o mundo quanto à possibilidade de grupos de investidores amadores se conseguirem “coordenar” em redes sociais. Em Fevereiro, após o Elon Musk ter adicionado a hastag #bitcoin na sua bio do Twitter, o anúncio de que a Tesla tinha comprado mais de mil milhões de doláres em Bitcoins e que passaria a aceitar pagamentos feito com esta criptomoeda, provocou mais uma subida vertiginosa do seu valor, quebrando recordes.

Este tipo de notícias atraiu os olhares de muitas pessoas para os mercados de cripto-ativos, procurando replicar as inúmeras histórias de pequenos amadores que viraram milionários – acabando por descobrir os Non-Fungible Tokens (NFT), através de notícias de leilões milionários de arte em NFT, como o que ocorreu com a venda de um NFT representando o popular vídeo do Nyan Cat. Mas afinal, o que são NFT?

Non-Fungible Tokens (NFT) ou em português, “Tokens” (fichas) não fungíveis, são um tipo de cripto-ativo, um token criptográfico, que, como o nome indica, representa algo único, não fungível. Distinguem-se assim da generalidade das tokens já conhecidas do público em geral, como as criptomoedas e cripto-ativos emitidos em ICOs com obrigações de crédito associados (por exemplo). Como estes cripto-ativos estão registados em Blockchain, a sua infungibilidade é assegurada – devido ao carácter descentralizado da Blockchain e do sistema de certificação peer-to-peer, nenhum NFT pode ser duplicado, nem falsificado (na Blockchain) – se alguém quiser um determinado NFT, tem de conseguir que o seu detentor lhe transmita o ativo.

Qual é a utilidade dos NFT? A sua infungibilidade e a forma como podem ser transmitidos utilizando diversas plataformas interoperáveis entre si, permite que estes possam atuar como uma espécie de “propriedade virtual” – as transações de NFT são autenticadas e registadas na Blockchain, permitindo o tracking da detenção de cada ativo singular. Desta forma, NFT podem ser utilizados para funções onde a escassez é necessária, seja para criar itens digitais exclusivos, colecionáveis, itens em jogos criptografados e “arte criptográfica”. 

A ideia de ter itens digitais que podem ser colecionados, que são escassos e alvo de grande cobiça já é antiga – desde que há videojogos online que permitem aos jogadores possuir e trocar itens virtuais, que isto se verifica em parte, com o surgimento de autênticos mercados secundários (geralmente não oficiais), em que certos itens são vendidos por grandes quantias monetárias. A questão é que ao contrário dos NFT, esses items virtuais, mesmo quando são excecionalmente raros, não são “verdadeiramente” únicos e exclusivos – mesmo quando existe apenas um, a empresa que opera o videojogo online, o prestador de serviço nesta relação, tem a capacidade de facilmente criar mais itens iguais – pode “editar” o número existente deste item, copiando o item supostamente único. Além de aumentar a quantidade, as próprias funções e características (incluindo a possibilidade de serem transmitidos entre contas de utilizadores) podem também ser alteradas da mesma forma. Assim, esta suposta ideia de escassez é “artificial”, baseada na relação de confiança entre o operador da plataforma e a comunidade de jogadores. Um simples update pode mudar tudo, sem que os utilizadores o possam impedir – sendo que os Termos de Utilização geralmente permitem isto. Com a utilização da tecnologia Blockchain, estas preocupações (que não impediram o surgimento de um mercado que vale milhões), não se aplicam.

A utilização inicial de NFT foi em jogos de cartas “cripto-colecionáveis”, mas a sua grande popularidade recente deveu-se à sua relação com a Arte, nomeadamente a Arte Digital ou Criptográfica. Vários artistas e personalidades, desde o produtor de música “Deadmau5”, o bilionário Mark Cuban, Justin Roiland da série Rick and Morty, até à atriz Lindsay Lohan, têm emitido e vendido NFT, que vão desde um clip de vídeo do LeBron James num jogo de baskteball, a quadros e desenhos, tweets[1] e músicas. A emissão e venda de NFT foi uma importante fonte de receitas para diversos artistas impedidos de realizar as suas atuações presenciais devido à pandemia da Covid-19. 

É importante referir que quando algum artista vende um NFT de uma música original da sua autoria, o comprador não adquire quaisquer direitos de autor (o “Copyright”) da música em si[2], mas um ativo único, exclusivo, não replicável que apenas “representa” a música[3] – é a autenticidade e exclusividade que atrai os colecionadores. Qualquer pessoa pode ser proprietária de uma cópia da Mona Lisa, mas existe apenas um original autêntico que se encontra no Louvre. 

Em termos de Direito de Consumo Europeu – enquanto a proposta de Regulamento de Mercados de Cripto-ativos (MiCA) (que já abordamos neste Blog) não é aprovada – o contrato realizado para a obtenção de um NFT trata-se de um contrato para o fornecimento de conteúdos digitais, sendo de destacar a aplicação dos seguintes diplomas (assumindo que estamos perante uma relação profissional-consumidor): 

-Diretiva das Cláusulas Contratuais Abusivas (93/6/CEE); 

-Diretiva das Práticas Comerciais Desleais (2005/29/CE);

-Diretiva dos Direitos dos Consumidores (2011/83/UE);

-Diretiva dos Conteúdos e Serviços Digitais (UE 2019/770)[4];

Quanto à Diretiva de Bens de Consumo (UE) 2019/771, é de destacar que mesmo quando bens de consumo são vendidos acompanhados por um NFT que representa aquele bem físico – o fenómeno da tokenização de certos bens exclusivoscomo ténis da Nike –  esta não será aplicável à transmissão do NFT. Neste contrato misto, o fornecimento do NFT é uma prestação separada da venda do bem, dado que o token não está incorporado ou interligado com o bem físico, segundo as definições do nº 3 e 4 do artigo 2º, e o nº 4 do artigo 3º da Diretiva da Conteúdos Digitais e os nº 5-B e nº 10 do artigo 1º e o nº3 do artigo 3º da Diretiva de Bens de Consumo. 

No entanto, mesmo com aplicação das normas destes diplomas, a melhor forma de proteção dos consumidores neste caso é o seu conhecimento sobre este tipo de ativos e a moderação das suas expetativas – neste momento há muitas pessoas que estão a adquirir estes ativos apenas com o objetivo de aproveitar o potencial especulativo do seu valor. Todas as semanas há vendas que batem recordes e é fácil cair no entusiamo. 

Existem receios fundados que algumas destas vendas podem frustrar seriamente as expectativas dos seus detentores – é possível que exista ou se esteja a formar uma “bolha” e que estes ativos estejam sobrevalorizados – da mesma forma que existem alegações similares para outros tipos de cripto-ativos, e mesmo quanto aos mercados financeiros tradicionais. A possibilidade de uma inflação galopante se abater sobre o dólar também alimenta estes receios.

A verdade é que os NFT representam várias realidades muito diferentes entre si, sendo difícil de falar destes no seu todo. Por um lado, é muito provável que vários estejam sobrevalorizados e que uma bolha rebente – de forma similar à especulação dos colecionadores no mercado de bandas desenhadas nos anos 90 – e ou que continuem a ser bastante procurados, mantendo-se o interesse – de forma semelhante ao mercado de venda de arte, onde os colecionadores continuam bastante participativos em grandes leilões


[1] Dominic Cummings, ex-conselheiro do Primeiro-Ministro do Reino Unido Boris Johnson, ameaçou vender um NFT de documentos cruciais que demonstravam a incompetência e negligência do governo britânico na gestão da pandemia.

[2] Exceto no caso dessa transmissão estiver mesmo incluída nas cláusulas do contrato celebrado com o comprador do cripto-ativo. Neste caso a transmissão dos direitos de autor acontece devido a esta cláusula, não devido à transmissão do cripto-ativo, são prestações diferentes de um contrato misto. 

[3] Geralmente, devido à quantidade de memória exigida, a própria obra de arte digital que o token representa não se encontra armazenada na Blockchain, mas num website, geralmente de terceiros. O token funciona assim como um certificado, um registo de detenção. Devido a isto, surge frequentemente o problema de links mortos (dead links, due to link rot), isto é, o website onde estava alojada a obra foi apagado ou o link foi alterado. 

[4] O problema dos links mortos será particularmente relevante para a questão da conformidade do conteúdo digital com o contrato, de acordo com os artigos 7º e 8º da Diretiva dos Conteúdos e Serviços Digitais.