“Clean beauty”, talvez não tão clean

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Faz cerca de três anos desde que foram detetados os primeiros casos de Covid-19 em Portugal. Volvidos estes anos, é interessante pensar no impacto da pandemia no consumo e no consumidor.

Com alguma facilidade encontramos online vários estudos estatísticos que nos dão conta de um aumento do e-commerce, o que se compreende. Fruto dos períodos de confinamento e do encerramento temporário forçado das lojas físicas, muitos de nós passámos a fazer compras online, hábito que mantivemos mesmo após a reabertura das mesmas.

Segundo dados do Instituto Nacional de Estatísticas (INE) e Eurostat, em 2022, 43% dos indivíduos fizeram compras através da Internet, valor que tem aumentado, em especial, nos anos 2020 e 2021, conforme o relatório “O comércio eletrónico em Portugal e na União Europeia em 2022 – segmento residencial e empresarial” realizado pela ANACOM.
Dentro dos produtos físicos mais comprados pela Internet, a par de peças de vestuário/calçado e de refeições entregues ao domicílio, os produtos de cosmética, beleza e bem-estar assumem um papel de destaque (28%).

Com o uso de plataformas de reunião online, como o zoom, etc., somos confrontados com a nossa aparência em ângulos que podem não ser os que mais favorecem, o que, aliado a uma cultura de bem-estar e estilo de vida saudável, leva um crescimento do mercado da cosmética e da beleza.

De modo a cativar (ainda) mais clientes, as empresas apostam em aspetos que o consumidor valoriza e que podem ser diferenciadores dos demais concorrentes. Veja-se por exemplo a sustentabilidade na cosmética. Desde embalagens recicláveis, formas de produção mais sustentáveis e amigas do ambiente, mecanismos de recarga, ao consumo crescente de produtos sem plástico (champôs sólidos, cremes em barra e bombas de banho) temos testemunhado um grande investimento por parte de várias multinacionais.

A par desta aposta na sustentabilidade, assistimos ao fenómeno da “clean beauty” ou “beleza limpa”. Importa esclarecer do que se trata.

Procuramos uma definição legal, mas não existe, nem a nível nacional nem a nível internacional. Foram consultados vários sites de empresas de produtos de beleza na busca de algum consenso na definição, e concluímos que a “clean beauty” trata um conjunto de produtos que alegadamente não têm produtos “tóxicos”, e cujos ingredientes são naturais.

Além do problema de saber o que é a “clean beauty”, deparamo-nos com outro dilema: o que são produtos tóxicos. Se por um lado, não nos parece que alguém queira produtos tóxicos na sua pele/organismo, por outro questionamo-nos se os produtos que não tenham a etiqueta “clean beauty” são de algum modo prejudiciais.

Há de fato produtos e ingredientes potencialmente perigosos, havendo até restrições a nível europeu quanto ao seu uso.  A este propósito vejam-se os vários pareceres do  Comité Científico de Segurança do Consumidor da Comissão Europeia. Se a avaliação da segurança dos ingredientes cosméticos é feita ao abrigo do Regulamento (CE) n.º 1223/2009[1], qual é o propósito da “clean beauty”?

Será apenas uma estratégia de marketing, que abre caminho para um meio de conseguir cobrar mais por um produto? Um consumidor não informado do “vazio” do termo, não é influenciado por esta alegação?  Enquadrar-se-á numa prática comercial desleal, nos termos do Decreto-Lei n.º 57/2008, de 26 de março, ou é antes uma prática conforme à diligência profissional?

Poderemos considerar publicidade enganosa de acordo com o Decreto-Lei n.º 330/90, de 23 de outubro? Mas são falsas alegações? E na verdade, o que é alegado?

A informação é tutelada nos vários diplomas de direito do consumo, desde logo na Lei n.º 24/96, de 31 de julho, nos artigos 7.º e 8.º. Todavia, parece nos que a situação da “clean beauty” é até prévia, deste logo seria informar do quê?

O próprio termo clean assumiu-se como uma tendência nas mais diversas áreas, por exemplo no mundo da moda, com termos de “clean look” ou “clean girl”, muito devido às redes sociais, em especial ao TikTok. Tornou-se uma expressão popular, que impulsiona ainda mais a “clean beauty” por associação de termos.

Parece-nos imperativo uma definição legal da “clean beuty” para que o consumidor esteja devidamente informado. Para já, fica a reflexão (diga-se inquietação).


[1] Regulamento (CE) n.º 1223/2009 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 30 de novembro de 2009, relativo aos produtos cosméticos. As alterações sucessivas aos seus anexos encontram elencadas no site da Infarmed.

Alteração do Regime Jurídico dos Intermediários de Crédito – Uma Necessidade Inevitável?

Doutrina

Durante a última década, a maior utilização de canais digitais possibilitou a transição da intermediação de crédito para o mundo da Internet, particularmente para a esfera das redes sociais. Esta expansão trouxe novos riscos para o consumidor, os quais devem ser devidamente acautelados. O Banco de Portugal, não sendo alheio a esta situação, tem procurado tomar medidas que reforcem a proteção dos consumidores que utilizam estas plataformas e serviços.

Nos dias correntes, o número de entidades que se propõem a conceder crédito sem a devida autorização por parte do Banco de Portugal tornou-se num grave problema. Para o efeito, o Banco de Portugal tem feito por assegurar que as campanhas de publicidade identificam o intermediário de crédito e o mutuante desse crédito.

No Relatório de Avaliação do Impacto do Regime Jurídico dos Intermediários de Crédito, foi lançado um conjunto de propostas que visam reforçar a proteção que acima descrevemos.

A primeira proposta tem como objetivo garantir a concretização dos requisitos relacionados com a organização comercial e administrativa dos intermediários de crédito. O art. 53.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 81-C/2017, de 7 de julho (RJIC) não prevê, de forma expressa, requisitos quanto ao acesso dos consumidores a estes serviços na Internet, nem requisitos quanto à identificação dos intermediários de crédito que os operam. Desta forma, o Banco de Portugal propõe que os endereços informáticos dos intermediários de crédito possam: (i) estar disponíveis para acesso pelo público; (ii) possam permitir o acesso de modo direto e imediato pelo utilizador, sem dependência de registo, inscrição ou qualquer outra formalidade prévia e; (iii) ser alojados em domínio web próprio. Assim, a prestação de informações passa a ser feita de forma transparente, salvaguardando os direitos dos consumidores e permitindo conhecer a identidade dos intermediários de crédito.

Embora esta expansão da atividade de intermediação de crédito na Internet seja notória, os estabelecimentos abertos ao público continuam a representar 96,8% da atividade. Neste prisma, o Banco de Portugal identificou outros novos riscos para o consumidor, particularmente nas situações em que o intermediário de crédito desenvolve, no mesmo espaço físico, outras atividades para além da concessão de crédito.

Trata-se de uma situação especialmente gravosa nos intermediários de crédito a título acessório, sendo que também foi identificada nas situações em que os intermediários de crédito desenvolvem a sua atividade em espaços comerciais partilhados. Como consequência destas práticas, os intermediários de crédito devem garantir o cabal cumprimento do dever de sigilo, acautelando o acesso indevido a informação sensível e assegurando a existência de meios adequados ao atendimento dos consumidores. Face ao exposto, o Banco de Portugal propõe que exista, nos estabelecimentos abertos ao público, uma área reservada ao exercício da atividade de intermediação de crédito.

Embora o RJIC, nos artigos 53.º e seguintes, defina o conteúdo da informação que deve ser disponibilizada aos consumidores sobre a sua atividade, os intermediários de crédito gozam de uma ampla liberdade quanto à forma e aos meios utilizados para a prestação dessa informação. A liberdade conferida pelo legislador prejudica o cumprimento das normas legais no que respeita à informação que deve ser divulgada no interior e no exterior dos estabelecimentos abertos ao público. Esta situação é especialmente preocupante quando a atividade de intermediação é desenvolvida através da internet, tendo o Banco de Portugal defendido a harmonização da prestação da informação sobre a atividade dos intermediários de crédito como contramedida.

Face àquilo que temos vindo a expor, o Banco de Portugal propõe que os elementos sujeitos a registo (art. 32.º do RJIC) sejam revistos, incluindo, a título exemplificativo, a informação sobre os domínios de internet utilizados no exercício da atividade de intermediação de crédito. É importante notar que, atualmente, o registo dos intermediários de crédito não inclui informação relativa ao seu endereço na internet, o que comporta não só riscos para os consumidores, mas também para a atuação de supervisão do Banco de Portugal. A ausência dessa informação pode levar os consumidores a não conseguirem identificar os intermediários de crédito responsáveis pelos domínios de internet que consultam, sendo que, muitas vezes, estes intermediários não estão autorizados para a atividade de concessão de crédito. Desta forma, o Banco de Portugal propõe que o endereço dos domínios de internet dos intermediários de crédito deva ser incluído no elenco de elementos sujeitos a registo e, adicionalmente, objeto de divulgação pública.

Outro aspeto que mereceu destaque no Relatório de Avaliação do Impacto do Regime Jurídico dos Intermediários de Crédito é o facto de o legislador ter incluído no elenco de elementos sujeito a registo dos intermediários de crédito e objeto de divulgação pública, a informação sobre a entidade que garante a responsabilidade civil profissional emergente da atividade do intermediário e, nos casos em que foi subscrito contrato de seguro de responsabilidade civil, o número de contrato de seguro e o período de validade (art. 26.º-1-h e 2-m) do RJIC). Nos três anos da vigência do RJIC, o Banco de Portugal concluiu que este procedimento constitui um pesado ónus para os intervenientes no mercado, sobretudo se se tiver em conta que o regime jurídico já prevê outros mecanismos que permitem assegurar os objetivos prosseguidos com a inclusão da informação em causa no elenco de elementos sujeitos a registo. É importante notar que países como a França ou o Luxemburgo optaram por considerar que não é necessário ser incluído no elenco de elementos sujeitos a registo os relativos à garantia de responsabilidade civil profissional. Em Espanha, o registo do intermediário de crédito somente contém a identificação da entidade que garante a responsabilidade civil profissional emergente da atividade de intermediário de crédito. Face ao exposto, o Banco de Portugal propõe que, de entre os elementos sujeitos a registo e a divulgação pública, deva ser eliminada a informação respeitante ao número de contrato de seguro e ao período de validade.

Acrescentamos ainda que o Relatório versa, também, sobre a possibilidade de modificação dos requisitos obrigatórios quanto à publicidade (arts. 56.º e segs. do RJIC). As regras aplicáveis à publicidade relativa à atividade de intermediário de crédito e à publicidade a produtos de crédito divulgada por intermediários não exigem, de forma expressa, a identificação do anunciante, através da indicação do respetivo nome ou firma. De forma a garantir a transparência e o cumprimento do princípio da veracidade, o Banco de Portugal propõe a redação de uma disposição no RJIC que torne obrigatória a identificação dos intermediários de crédito nas mensagens publicitárias que estes produzam.

Como última medida, o Banco de Portugal defende a eliminação da informação sobre o exercício da atividade em regime de exclusividade, simplificando a disciplina da publicidade relativa à atividade dos intermediários de crédito.

Em suma, enaltece-se as propostas apresentas pelo Banco de Portugal, podendo estas representar um reforço da proteção dos direitos dos consumidores.