Em busca de um conceito jurisprudencial de consumidor

Jurisprudência

Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 4/2019

Uma das questões mais caras e importantes no âmbito do direito do consumo é, sem dúvida, a do conceito de consumidor. Sem sabermos o que se deve entender por consumidor, nunca saberemos que relações jurídicas estão abrangidas pelas normas deste “sub-ramo jurídico”. 

No ordenamento português, inexistindo um código e estando a  legislação de direito do consumo dispersa por vários diplomas legais, cada diploma, ao delimitar o seu âmbito de aplicação (subjetivo), contém uma definição de consumidor. Não existe, portanto, um conceito único de consumidor, quer a nível nacional quer a nível internacional.

Se o legislador não conseguiu ou não quis uniformizar a noção de consumidor, também a jurisprudência tem revelado flutuações acentuadas quanto à interpretação das várias normas legais que a definem. 

E não se pense que a discussão se restringe às definições constantes de diplomas de direito do consumo. Inusitadamente, uma das mais profícuas querelas quanto ao que se deve entender por consumidor surgiu e desenvolveu-se no âmbito da graduação de créditos em insolvência.

Tudo “começou” quando o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/2014 uniformizou jurisprudência no sentido de que, “no âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no art. 755º nº 1 alínea f) do Código Civil”.

Em suma, estava em causa saber se num contrato promessa incumprido pela promitente vendedora insolvente, o promitente-comprador que seja consumidor e a quem foram transmitidos os imóveis objeto do contrato meramente obrigacional, goza do “direito de retenção” sobre os mesmos para pagamento dos seus créditos, prevalecendo assim sobre outro crédito hipotecário que sobre eles incidia. 

A decisão do STJ foi claramente favorável à posição do consumidor ante a dos credores hipotecários (em regra, entidades bancárias), imbuído do espírito legislativo que deu origem à inclusão da referida al. f) ao n.º 1 do artigo 755.º do Código Civil. Como se pode ler no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 379/86, de 11 de Novembro, “neste conflito de interesses, afigura-se razoável atribuir prioridade à tutela dos particulares. Vem na lógica da defesa do consumidor. Não que se desconheçam ou esqueçam a proteção devida aos legítimos direitos das instituições de crédito e o estímulo que merecem como elementos de enorme importância na dinamização da atividade económico-financeira. Porém, no caso, estas instituições, como profissionais, podem precaver-se, por exemplo, através de critérios ponderados de seletividade do crédito, mais facilmente do que o comum dos particulares a respeito das deficiências e da solvência das empresas construtoras”.

No entanto, o AUJ n.º 4/2014 não incluiu no segmento uniformizador a noção de consumidor, o que despoletou nova querela. Nessa decisão, apenas se refere, numa nota de rodapé (!), que o consumidor é o “utilizador final com o significado comum do termo, que utiliza os andares para seu uso próprio e não com escopo de revenda”. 

A jurisprudência posterior divergiu, essencialmente, entre duas posições: uma vertente que, numa tentativa de restringir os efeitos da interpretação restritiva do artigo 755.º-1-f) do Código Civil, entendia o conceito de consumidor como todo o utilizador final de um bem (mais abrangente); e outra vertente, que recorria à noção de consumidor consagrada na LDC, restringindo a noção de consumidor aos que destinam o bem objeto do contrato-promessa a um uso não profissional.

Para perceber o alcance da querela, nada melhor do que convocar o caso que motivou nova uniformização de jurisprudência. Tratou-se de um contrato-promessa de duas frações de um edifício constituído em propriedade horizontal, onde os promitentes-compradores, obtida a traditio, “efetuam, diariamente, tratamentos de fisioterapia, se realizam consultas de cirurgia, consultas de otorrinologia, consultas e tratamentos de saúde dentária, consultas de fisiatria, diversos exames de Tac, Ressonâncias, Raio X, Cardio e outros serviços de saúde a diversos doentes”.

Ora, com este exemplo, fica claro o sentido e alcance da querela, na medida em que apenas adotando o conceito mais amplo de consumidor poderão os promitentes-compradores daquelas frações beneficiar do direito de retenção das mesmas para obter o pagamento dos seus créditos no processo de insolvência, visto que, apesar de serem utilizadores finais do bem, o destinam a um uso profissional.

A divergência foi sanada então com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/2019, que uniformiza jurisprudência no sentido de que, “Na graduação de créditos em insolvência, apenas tem a qualidade de consumidor, para os efeitos do disposto no Acórdão n.º 4 de 2014 do Supremo Tribunal de Justiça, o promitente-comprador que destina o imóvel, objeto de traditio, a uso particular, ou seja, não o compra para revenda nem o afeta a uma atividade profissional ou lucrativa”.

De facto, esta é a solução que mais se adequa à fundamentação do primitivo acórdão uniformizador, onde se sustentou que “a opção legislativa no conflito entre credores hipotecários e os particulares consumidores, concedendo -lhes o direito de retenção teve e continua a ter uma razão fundamental: a proteção destes últimos no mercado da habitação; na verdade, constituem a parte mais débil que por via de regra investem no imóvel as suas poupanças e contraem uma dívida por largos anos, estando muito menos protegidos do que o credor hipotecário (normalmente a banca) que dispõe regra geral de aconselhamento económico, jurídico e logístico que lhe permite prever com maior segurança os riscos que corre …”.

Cumprimento da obrigação de fornecimento de conteúdos e serviços digitais

Legislação

Nos termos do seu art. 1.º, a Diretiva (UE) 2019/770 estabelece, entre outras, regras relativas “ao fornecimento de conteúdos ou serviços digitais”, no sentido de cumprimento da obrigação de fornecimento por parte do profissional, e “aos meios de ressarcimento em caso (…) de não fornecimento e as modalidades de exercício dos mencionados meios de ressarcimento”. A obrigação de fornecimento aparece no diploma estruturalmente separada da obrigação de fornecer os conteúdos ou serviços digitais em conformidade com o contrato, outra matéria nele tratada, aliás até com mais profundidade. Neste texto aborda-se apenas a obrigação de fornecimento.

No que respeita ao contrato de compra e venda, o “fornecimento” propriamente dito pode ser enquadrado no conceito de “entrega”, matéria que não é tratada pelo Diretiva (EU) 2019/771. Isto porque vários aspetos do regime da compra e venda já se encontravam abrangidos por outra diretiva (v. arts. 17.º e segs. da Diretiva 2011/83/UE), incluindo um artigo sobre a entrega (art. 18.º).

Aos contratos de fornecimento de suportes materiais que funcionam exclusivamente como meio de disponibilização de conteúdos digitais (por exemplo, CD, DVD, etc.), que são qualificados como contratos de compra e venda de coisa corpórea, aplica-se o art. 18.º da Diretiva 2011/83/UE, em matéria de entrega, o que justifica a não aplicação das regras que, na Diretiva (EU) 2019/770, regulam esta matéria (arts. 5.º e 13.º), como expressamente resulta do seu art. 3.º-3 (v. também consid. 20).

O art. 5.º trata das modalidades e do prazo do cumprimento da obrigação de fornecimento dos conteúdos e serviços digitais, entendida como a obrigação principal que recai sobre o profissional (consid. 41).

O art. 5.º-1 começa por determinar que o profissional tem a obrigação de fornecer os conteúdos ou serviços digitais ao consumidor. O n.º 2 esclarece quando é que se considera cumprida esta obrigação.

Nos termos do art. 5.º-2, considera-se cumprida a obrigação se o consumidor puder utilizar os conteúdos ou serviços digitais em conformidade com o contrato sem estar dependente de qualquer ato do profissional. Podemos imaginar vários casos em que tal sucede:

  • o conteúdo digital é disponibilizado ao consumidor (por exemplo, enviado por e-mail);
  • o consumidor descarrega o conteúdo digital numa página ou aplicação (podendo estas ser do profissional ou de terceiro, nomeadamente uma plataforma digital ou um prestador de serviços de alojamento em nuvem);
  • o consumidor acede ao conteúdo ou serviço digital numa página ou aplicação (podendo também estas ser do profissional ou de terceiro).

No caso de ser acordado, por opção do consumidor, que o conteúdo ou serviço digital ficará disponível para descarregar ou aceder numa página ou aplicação de um terceiro, o profissional cumpre a sua obrigação de fornecimento se colocar o conteúdo ou serviço digital acessível nessa página ou aplicação.

Se o consumidor não tiver optado especificamente por descarregar ou aceder ao conteúdo ou serviço digital junto de um terceiro, à qual é equiparada a situação em que não lhe foi apresentada outra opção em alternativa (v. consid. 41), considera-se cumprida a obrigação apenas quando o conteúdo ou serviço digital é disponibilizado ao consumidor ou este a ele acede. Não basta que o objeto do contrato esteja na página ou plataforma, sendo necessário que o consumidor consiga utilizá-los em conformidade com o contrato.

A Diretiva refere-se a “instalação física ou virtual”, o que parece ir mais além do que as páginas ou plataformas a que aludimos nos parágrafos anteriores. Será uma situação mais rara aquela em que o consumidor acede a conteúdos ou serviços digitais numa instalação física.

Relativamente ao momento do fornecimento, o art. 5.º-1 estabelece que este deve realizar-se, salvo acordo em contrário, “sem demora indevida”. A referência a “após a celebração do contrato”, associada à utilização do conceito indeterminado de “demora indevida” parece-nos impor, na verdade, como regra geral supletiva, o fornecimento imediato do conteúdo ou serviço digital no momento imediatamente seguinte ao da conclusão do contrato. Isto tendo em conta, como se pode ler no consid. 41, “as práticas do mercado e as possibilidades técnicas”, abrindo-se assim um certo “grau de flexibilidade”. Se as partes estipularem um prazo para o fornecimento, é nesse prazo que os conteúdos ou serviços digitais devem ser fornecidos.

FIFA World Cup Qatar 2022: a caminho de um boicote?

Doutrina

Morreram mais de 6.700 pessoas no Qatar desde que o país foi designado anfitrião do campeonato do mundo de futebol. Não foram umas pessoas quaisquer e não foi numas circunstâncias quaisquer. Foram trabalhadores migrantes provenientes da Índia, do Bangladesh, do Nepal, do Sri Lanka e do Paquistão, e o número divulgado pelo The Guardian nem inclui a mão-de-obra proveniente de países como o Quénia e as Filipinas[1]. São sempre os mesmos.

Problema número um: os registos de óbito não especificam o local de trabalho dos falecidos, muito embora Nick McGeehan (diretor da FairSquare Projects) assegure que “uma proporção muito significativa dos trabalhadores migrantes que morreram desde 2011 estava no país apenas porque o Qatar obteve o direito de receber o Mundial de Futebol”[2].

Se os registos não especificam se morreram na construção de infraestruturas para o Mundial do Futebol, então não temos um problema. Exceto se, de repente, a Noruega aparecer com uma t-shirt estampada com o slogan “Human Rights: on and off the pitch” no jogo contra Gibraltar e ainda ganhar 3-0. Aí começam a surgir dúvidas acerca da veracidade da “causa natural” de 69% das mortes de indianos, nepaleses e bangladeshianos no Qatar.

Já em 2013 a Amnistia Internacional expusera a “exploração alarmante” dos trabalhadores estrangeiros no Qatar, afirmando que estes são “tratados como animais”[3]. Em 2016, nova investida sobre o lado feio do jogo bonito[4]. E nada. Perante várias pressões mediáticas, o Qatar anunciou um programa de proteção e garantia de bem-estar e agora, em 2021, os organizadores do evento assinam um memorando de entendimento com a CNDH. Atempado é que não foi.

Vários clubes noruegueses apoiam um boicote ao Mundial. 55% dos noruegueses são favoráveis a um boicote ao Mundial. A Alemanha, a Dinamarca e a Holanda já se juntaram ao movimento. Outros estão a caminho. Que parece em curso uma campanha articulada de boicote por parte das grandes estruturas, já não há grandes dúvidas. As acusações de sportwashing a isso obrigam, mas já obrigavam antes. Nesta cadência, as consequências não serão bonitas para o futebol: milhões de euros investidos em vão, milhares de promessas rompidas, algumas carreiras prejudicadas. Mas, sobretudo, milhares de vidas perdidas até agora e outras tantas com a sua atividade dispensada daqui para a frente.

Resta agora saber se também o público se juntará ao movimento. Não será surpreendente que o comportamento de boicote se torne viral, sobretudo se içado pelos sonantes nomes da indústria do futebol. No entanto, o público adepto da modalidade não tem contornado a devoção perante os múltiplos escândalos que estoiram permanentemente na área (e isto nem é um trocadilho). Talvez só mesmo a ausência das principais estrelas da modalidade poderiam justificar o desinteresse do público, o que, em teoria, nunca seria um verdadeiro boicote por parte do consumidor.

Também não será surpreendente o seu reverso, marcado pela já conhecida indiferença pelo fenómeno da violação de direitos humanos, conduzindo, sem qualquer rasgo de perturbação, o público ao estádio e ao comando. Tudo dependerá do eco que o movimento vai recolher, como já temos sido habituados. De todo o modo, é até inteligível a interrogação dos que não venham a compreender o que tem o futebol a ver com trabalhadores migrantes, dos que venham a não conceber que a perversa máquina por trás dos relvados, sempre tão bem regados a cifrões, desta vez encerre em si vidas dos seus iguais.

Qualquer um dos desfechos será agonizantemente hipócrita. Como bem referiu Håvard Melnæs, “não deveria Martin Ødegaard, ao protestar contra a exploração dos trabalhadores no Qatar, fazer o mesmo contra o patrocinador mais importante do seu clube, os Emirados Árabes Unidos, que trata os seus trabalhadores migrantes da mesma forma ou talvez pior do que o Qatar?”[5].

Não deixa nem por isso de ser curioso que a iniciativa venha do clube norueguês Tromsø, do Círculo Polar Ártico. Talvez lá de cima se veja melhor o panorama (do) mundial.


[1] https://www.theguardian.com/global-development/2021/feb/23/revealed-migrant-worker-deaths-qatar-fifa-world-cup-2022

[2] https://www.business-humanrights.org/en/latest-news/qatar-guardian-investigation-finds-6500-migrant-workers-have-died-in-world-cup-host-country-since-2010/

[3] https://www.amnesty.org/download/Documents/16000/mde220102013en.pdf

[4] https://www.amnesty.org/en/documents/mde22/3548/2016/en/

[5] https://www.theguardian.com/commentisfree/2021/mar/30/norway-boycott-qatar-world-cup-football

Das Diretivas aos Regulamentos – Em busca da União pela regulamentação quase-federal

Legislação

A crescente opção da União Europeia pelos Regulamentos é um sinal da dificuldade em conjugar políticas e interesses nacionais, acordando no que pode ser comum, deixando espaço à diversidade. A diferença principal entre a Diretiva e o Regulamento é que aquela estabelece um regime consensual dando margem, maior ou menor, a que os Estados-membros acomodem as suas diferenças. Essa margem origina, como seria de esperar, discrepâncias entre ordenamentos jurídicos nacionais, o que dificulta o “transnacional”. O Regulamento colmata essas diferenças, estabelecendo regimes jurídicos diretamente aplicáveis e obrigatórios para todos os Estados-Membros.

Esta tendência tem vindo a aumentar e a consciência de que existe e das suas consequências é, também, crescente, constituindo o final de 2020 uma espécie de apoteose.

Destaca-se, em vigor e pela atenção que tem vindo a despertar, o Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD)[1].

Destacam-se, pela dimensão e previsível impacto, as recentes Propostas apresentadas, em 24 de setembro de 2020, no âmbito do Pacote Financeiro Digital (PFD)[2] que inclui, entre outros documentos, a Proposta de Regulamento relativo aos Criptoativos (Markets in Crypto Assets – MiCA)[3], a Proposta de Regulamento DLT, relativo a um regime-piloto para as infraestruturas de mercado baseadas na tecnologia de registo distribuído e a Proposta de Regulamento relativo à resiliência operacional digital do setor financeiro (Digital Operational Resilience Act – DORA), bem como as apresentadas em 15 de dezembro de 2020, no âmbito das novas regras sobre serviços e mercados digitais, que incluem a Proposta de Regulamento Serviços Digitais (DSA) e a Proposta de Regulamento Mercados Digitais (DMA)[4].

Este caminho, da Diretiva para o Regulamento, revela uma dificuldade de base da União Europeia que, tudo indica, poderá levar ao seu fim.

A atual União Europeia é fruto de uma espécie de milagre originário que mostra até que ponto as pessoas conseguem ser sensatas.

Vencedores e vencidos europeus, da Segunda Guerra Mundial, uns e outros quase totalmente destruídos, olharam para a origem do problema, constatando que boa parte se situava na bacia do Ruhr, rica em carvão e ferro (minério de base na liga de aço), fundamentais ao normal funcionamento e desenvolvimento das economias resultantes de uma revolução industrial que assentava grandemente nessas matérias-primas. A região fica situada na Alemanha, Ruhr é um rio afluente do Reno, que desagua na cidade de Duisburgo, próximo de Düsseldorf, muito perto das fronteiras com a Holanda e a Bélgica, pouco longe do Luxemburgo e de França. No final da Primeira Guerra Mundial, vencidos os alemães – em cumprimento das imposições do Tratado de Versailles, de 1919, que oficialmente lhe pôs fim – foi a região ocupada por tropas belgas e francesas. A vontade e necessidade de aceder à sua riqueza foi um ponto relevante na tensão e conflitualidade que acabou por culminar no conflito mundial de 39-45.

Por isso, saídos da guerra desfeitos, liderados por gigantes visionários, a França, os países do Benelux (Holanda, Bélgica e Luxemburgo), a Alemanha Ocidental e a Itália assinaram, em 1951, o Tratado de Paris que instituiu a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço. Até aqui, embora grandioso, ainda se poderia dizer que seria uma questão de sobrevivência básica, mas decidiram ir muito mais longe criando em 1957, com o Tratado de Roma, a Comunidade Económica Europeia (CEE) e a Comunidade Europeia da Energia Atómica (CEEA ou Euratom), colocando assim a nova e catastrófica energia no seu âmbito.

No princípio e durante algum tempo a regra era a da unanimidade na tomada de decisões e os Tratados eram fundamento direto de muito do que se decidia. O Tratado de Maastricht (vale a pena ver no mapa onde fica a cidade), também denominado Tratado da União Europeia, os sucessivos alargamentos, com a sempre crescente necessidade de procurar acordos entre países cada vez mais diversificados, foi tornando mais difícil o governo da União. A hipótese de transformação num Estado Federal, estrutura já muito testada e com sucesso pelo mundo, foi colocada e rejeitada. Os Estados que compõem a União Europeia, na sua maioria, são antigos e têm uma forte identidade nacional. Este orgulho nacional impediu-os de aceitar disporem de parte da sua soberania a favor de um Estado Federal que integrariam e levou, recentemente, à saída inusitada do Reino Unido. A bem do comércio, a livre circulação foi sendo conseguida, foi boa a adesão ao sistema Euro e vários obstáculos vão sendo transpostos. 

O abandono da unanimidade das decisões, que originaria menor necessidade de consenso, foi contrabalançado pelo aumento de membros, com perfis muito diversificados.

Na legislação, a árdua negociação e a busca do acordo, sempre foi notória pela existência de considerandos e pela consagração de elevado número de exceções praticamente a consumir as regras.

As alterações geopolíticas das últimas décadas têm vindo a colocar a Europa numa situação delicada. À queda dos impérios do Ocidente seguiu-se a fulgurante (re)ascensão do Oriente, em que a China assume papel de grande destaque, o que só pode causar surpresa se a sua milenar história for ignorada, ofuscada pelos comparativamente minúsculos finais do século XIX e século XX. Alguém disse “A América inventa, a China copia, a Europa regula”. Já não é assim, a China (re)começou a inventar.

Neste contexto, a desunida União Europeia sabe que precisa de se manter junta e coesa para ter dimensão minimamente comparável e de rapidez semelhante à originada pela vitalidade americana e o dirigismo chinês. Sabe, também, que precisa de inovação e digitalização para ser economicamente competitiva e que, enquanto desenvolve um mercado comum com condições para ter uma palavra a dizer na nova ordem económica e política global, tem de preservar os direitos fundamentais, em geral, e os direitos dos consumidores, em particular, que são parte integrante da sua natureza e da sua identidade comum. 

A crescente adoção, pelo menos em áreas estratégicas, de Regulamentos pela UE, parece uma manifestação clara daquelas necessidades. É o instrumento com efeito “quase-federal” e menos lento que tem disponível. Assim se explicará a cascata Regulamentar em curso.

O sucesso, a julgar pelo RGPD, está longe de ser garantido. Pode ser que funcione com os futuros regulamentos prestes a sair da linha de montagem e que, em grande medida, contam conter Big Tech’s de fora da Europa. Ao ritmo a que estas andam não será tarefa fácil.


[1] Já abordado neste blog aqui.

[2] Já abordado neste blog aqui.

[3] Já abordado neste blog aqui.

[4] Neste blog anunciadas aqui, encontrando-se o tema também já tratado no que diz respeito às grandes plataformas, à liberdade de expressão, relacionado com Acórdão do STJ e com a proteção dos consumidores.

A proteção dos consumidores no Digital Services Act

Legislação

Já aqui foram escritos neste blog vários textos sobre o Digital Services Act, um de enquadramento geral, escrito por mim e pelo Martim Farinha, um sobre as grandes plataformas digitais (Francisco Arga e Lima) e outro questionando sobre se o diploma garante a liberdade de expressão (Nuno Sousa e Silva). Entretanto, também Sofia Lopes Agostinho aqui escreveu sobre o diploma, a propósito de um Ac. do STJ, de 10/12/2020.

Hoje voltamos à Proposta de Regulamento em causa, mas com um tema diferente.

Embora o Digital Services Act não esteja estruturado em torno do objetivo de proteção dos consumidores, várias normas reforçam a sua posição.

Resulta expressamente do considerando 10 e do art. 1-5(h) da Proposta que esta não afeta o acervo legislativo europeu de direito do consumo. O considerando faz referência à Diretiva 93/13/CEE, à Diretiva 98/6/CE, à Diretiva 2005/29/CE e à Diretiva 2011/83/UE, todas elas alteradas pela Diretiva (UE) 2019/2161.

Embora se defenda que as diretivas de proteção dos consumidores continuam a ser aplicáveis, o princípio da neutralidade das plataformas digitais pode afetar a aplicação prática do direito dos consumidores em muitos casos em que se justifique a responsabilização das plataformas. A própria conclusão de que as plataformas se limitam a fornecer serviços de armazenagem em servidor (hosting) é, à partida, muito duvidosa.

Contudo, este é o regime que temos, sendo mantida a essência da abordagem já adotada anteriormente pela Diretiva sobre o comércio eletrónico.

Uma das disposições do Digital Services Act que mais se destina à proteção do consumidor e que pode ser particularmente relevante para estes é a que impõe deveres às plataformas para assegurar a rastreabilidade dos comerciantes (ver considerando 49). O art. 22.º aplica-se apenas às plataformas em linha que permitem aos consumidores celebrar contratos com profissionais. O operador da plataforma deve assegurar que os profissionais só possam estar presentes na plataforma se fornecerem uma série de informações pertinentes relativas à sua identificação. Além deste dever, o operador da plataforma deve também fazer “esforços razoáveis” para avaliar se a informação é fiável, solicitar ao profissional que corrija a informação inexata ou incompleta e suspender o profissional até que essa correção seja feita. As informações devem ser armazenadas durante o período de duração da relação contratual entre as partes. O consumidor tem o direito de aceder a estas informações “de forma clara, facilmente acessível e compreensível”.

Esta informação pode ser muito importante para que o consumidor consiga exercer os seus direitos perante o comerciante.

Perdida no art. 22.º está uma norma que trata, não da rastreabilidade, mas da conceção da interface das plataformas digitais. O n.º 7 estabelece que a interface em linha da plataforma deve ser concebida e organizada “de forma a permitir que os comerciantes cumpram as suas obrigações em matéria de informação pré-contratual e de informação sobre a segurança dos produtos nos termos do direito da União aplicável”. Falamos, no essencial, dos deveres de informação que estão previstos nas diretivas de direito do consumo.

Outro aspeto tratado no Digital Services Act diz respeito à proteção do consumidor no que diz respeito ao princípio da identificabilidade da publicidade. O art. 24.º exige que, para cada anúncio específico, o consumidor possa perceber imediata e claramente que se trata de uma mensagem publicitária. A lei vai ainda mais longe ao exigir também uma indicação da pessoa em nome de quem é emitida a mensagem publicitária, ou seja, em regra, o profissional com quem o consumidor pode celebrar um futuro contrato. Os principais parâmetros utilizados para definir a razão pela qual a publicidade foi mostrada a essa pessoa em particular, e não a outra, devem também ser indicados. A automatização e a personalização da publicidade permitem selecionar os destinatários de forma cada vez mais precisa e rigorosa e pode dar origem a problemas de discriminação e a práticas não transparentes ligadas à recolha e tratamento de dados do consumidor.

O Digital Services Act também contém uma disposição para reforçar a transparência em torno dos sistemas de recomendação (art. 29.º). É especialmente dirigida a plataformas de muito grande dimensão, ou seja, “plataformas em linha que prestam os seus serviços a um número médio mensal de destinatários ativos do serviço na União igual ou superior a 45 milhões” (art. 25.º).

Visa-se assegurar que, relativamente à informação apresentada, os consumidores são, por um lado, adequadamente informados sobre os critérios para a sua apresentação de uma determinada forma e, por outro lado, são capazes de influenciar a forma como a informação é apresentada. As plataformas em linha devem apresentar várias possibilidades em alternativa aos consumidores relativamente aos principais parâmetros de priorização da informação, incluindo pelo menos uma que não se baseie na definição de perfis. As possibilidades devem ser facilmente acessíveis.

Por fim, temos o art. 5.º-3, que será talvez a norma mais discutida em torno da proteção dos consumidores no Digital Services Act. O princípio geral de isenção dos prestadores de serviços de hosting não se aplica “no que respeita à responsabilidade, nos termos do direito em matéria de proteção dos consumidores, de plataformas em linha que permitam aos consumidores celebrar contratos à distância com comerciantes, sempre que essas plataformas apresentem o elemento específico de informação ou permitam, de qualquer outra forma, que a transação específica em causa induza um consumidor médio e razoavelmente bem informado a acreditar que a informação, o produto ou o serviço objeto da transação é fornecido pela própria ou por um destinatário do serviço que atue sob a sua autoridade ou controlo”.

Apresentamos três críticas principais a esta disposição.

Em primeiro lugar, não é de todo claro o que se entende por “sempre que essas plataformas apresentem o elemento específico de informação ou permitam, de qualquer outra forma, que a transação específica em causa”. Será provavelmente a informação que pode ser acedida na plataforma em linha, mas, sendo isso, penso que poderia ser dito com bastante mais clareza.

O segundo elemento problemático desta norma diz respeito à concretização do conceito de “consumidor médio e razoavelmente bem informado”, que pode conduzir a alguma incerteza jurídica. Embora já exista jurisprudência do TJUE sobre esta matéria, os limites encontram-se indefinidos. Confiar neste conceito para um objetivo tão relevante parece não ser a melhor solução.

O mesmo se pode dizer sobre o conceito de atuas “sob a sua autoridade ou controlo”. Será que a Airbnb exerce controlo sobre os anfitriões? Julgo que sim, nos termos desta disposição, mas suspeito que muitas pessoas, incluindo certamente a própria Airbnb, dirão que não. Temos um conceito que levanta este tipo de dificuldades em relação a uma plataforma como a Airbnb, que tem claramente um controlo sobre os anfitriões, ou que pelo menos deveria ter algum grau de responsabilidade, devido à importância que tem no contrato de hospedagem posteriormente celebrado. Como é possível verificar pela análise feita, o diploma tem vários preceitos com grande relevância em matéria de direito do consumo. Espera-se que alguns dos problemas identificados possam ser resolvidos ao longo do processo legislativo.

A proteção dos consumidores no texto constitucional em vigor

Doutrina

Em dois textos anteriormente publicados neste blog (aqui e aqui), analisou-se a evolução histórica da Constituição em matéria de consumo. Foi possível então verificar que a proteção dos consumidores foi entrando gradualmente na Constituição, tendo hoje um espaço com uma amplitude assinalável.

Começando por aspetos gerais, constituem hoje incumbências prioritárias do Estado, além de assegurar o funcionamento dos mercados, reprimindo as práticas lesivas do interesse geral, também “garantir a defesa dos interesses e dos direitos dos consumidores” (alíneas f) e i) do art. 81.º), sendo mesmo “a proteção dos consumidores” um dos objetivos da política comercial (alínea e) do art. 99.º).

A Constituição estabelece como tarefas fundamentais do Estado, entre outras, “garantir os direitos e liberdades fundamentais e o respeito pelos princípios do Estado de direito democrático” (alínea b) do art. 9.º) e “promover o bem-estar e a qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os portugueses, bem como a efetivação dos direitos económicos, sociais, culturais e ambientais, mediante a transformação e modernização das estruturas económicas e sociais” (alínea d) do art. 9.º). Em concreto, e referindo para já apenas os direitos que são conferidos em geral, independentemente da natureza de consumidor da parte protegida, citamos as principais normas: “a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos” e “todos têm direito, nos termos da lei, à informação e consulta jurídicas, ao patrocínio judiciário e a fazer-se acompanhar por advogado perante qualquer autoridade” (art. 20.º-1 e 2); “o domicílio e o sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação privada são invioláveis” (art. 34.º-1); “todos os cidadãos têm o direito de acesso aos dados informatizados que lhes digam respeito, podendo exigir a sua retificação e atualização, e o direito de conhecer a finalidade a que se destinam, nos termos da lei”, e “a informática não pode ser utilizada para tratamento de dados referentes a convicções filosóficas ou políticas, filiação partidária ou sindical, fé religiosa, vida privada e origem étnica, salvo mediante consentimento expresso do titular, autorização prevista por lei com garantias de não discriminação ou para processamento de dados estatísticos não individualmente identificáveis” (art. 35.º-1 e 3); “os cidadãos têm o direito de, livremente e sem dependência de qualquer autorização, constituir associações [incluindo de consumidores], desde que estas não se destinem a promover a violência e os respetivos fins não sejam contrários à lei penal”, e “as associações [incluindo as de consumidores] prosseguem livremente os seus fins sem interferência das autoridades públicas e não podem ser dissolvidas pelo Estado ou suspensas as suas atividades senão nos casos previstos na lei e mediante decisão judicial” (art. 46.º-1 e 2); “todos os cidadãos têm o direito de apresentar, individual ou coletivamente, […] petições, representações, reclamações ou queixas para defesa dos seus direitos, da Constituição, das leis ou do interesse geral […]”, sendo também “conferido a todos, pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa, o direito de ação popular nos casos e termos previstos na lei, incluindo o direito de requerer para o lesado ou lesados a correspondente indemnização” (art. 52.º-1 e 3); “a todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão […], nos termos da Constituição” (art. 62.º-1).

Embora se discuta a sua natureza jurídica, nomeadamente o seu caráter de direito fundamental, inclui-se também na lista anterior o princípio contido no art. 13.º. Este preceito, depois de enunciar que “todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei” (n.º 1), concretiza no sentido de que “ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual” (n.º 2). O artigo 26.º-1-in fine acrescenta ainda que a todos é concedido o direito “à proteção legal contra quaisquer formas de discriminação”.

Por fim, a Constituição da República Portuguesa contém atualmente uma norma – o art. 60.º – que atribui determinados direitos – atente-se na epígrafe do artigo: “Direitos dos consumidores” – a todos aqueles que numa determinada relação atuem como consumidores. O n.º 1 contém o elenco dos direitos que a Constituição considera mais relevantes, atribuindo-os aos consumidores individualmente considerados: direito à qualidade dos bens e serviços, direito à formação, direito à informação, direito à proteção da saúde e da segurança, direito à proteção dos interesses económicos e direito à reparação de danos.

A norma parece agrupar os direitos à formação e à informação num só direito, o mesmo sucedendo com os direitos à proteção da saúde, da segurança e dos interesses económicos. Entendemos, no entanto, que se trata de direitos que, pela sua singularidade, devem ser referidos de forma isolada. Apenas mantemos a associação dos direitos à saúde e à segurança.

O n.º 3 atribui direitos aos consumidores, embora não diretamente, mas através das associações de consumidores e das cooperativas de consumo: direito ao apoio do Estado, com vista à prossecução dos fins destas entidades, que passa pela garantia dos direitos dos consumidores, direito “a ser ouvidas sobre as questões que digam respeito à defesa dos consumidores” e direitos processuais especiais relacionados com a defesa dos associados ou de interesses coletivos ou difusos.

O n.º 2 trata da publicidade, uma problemática que vai além da proteção dos consumidores, embora o seu centro de relevância se encontre neste âmbito. A norma proíbe “todas as formas de publicidade oculta, indireta ou dolosa”.

O art. 60.º da CRP tem cariz essencialmente programático, embora alguns autores reconheçam a aplicabilidade direta às relações jurídicas de consumo de parte dos direitos consagrados no preceito[1].

Em relação à exigência de qualidade, defende-se que, além do seu sentido programático, o preceito constitui elemento de interpretação de contratos de consumo, determinando o nível de qualidade da prestação. Em caso de dúvida sobre o objeto do contrato, por terem sido utilizados termos vagos ou referências genéricas, deve ter-se em conta a necessidade de interpretação do clausulado no sentido de o bem ou serviço ser de boa qualidade. Em regra, o recurso a este elemento de interpretação é mais relevante quanto menos elementos concretos forem definidos contratualmente pelas partes, o que sucede em grande medida quando se remete a determinação da prestação para momento posterior.


[1] Diovana Barbieri, “The Binding of Individuals to Fundamental Consumer Rights in the Portuguese Legal System”, 2008, in ERPL, Vol. 16, n.º 5, 2008, pp. 676 e 677.

Internet of Brains (IoB) – a nova conexão

Doutrina

Quando algo toma conta da realidade, se espalha por todo o lado, domina e baseia muito do que passa a ser feito, tornando-se um dado tão adquirido que já nem se nota – como a eletricidade, a água, as estradas – usamo-lo como tal, não reparando no quanto nos torna dependentes, nos formata e nos transforma inexoravelmente.

A internet, juntamente com a Big Data e Inteligência Artificial (Artificial Intelligence – AI), têm tido um desenvolvimento extraordinário nos últimos anos e paulatinamente, vêm tomando conta das nossas coisas (Internet of Things – IoT), das nossas vidas (Internet of Everything – IoE) e, mais recentemente, dos nossos cérebros naquilo que poderá vir a ser denominado Internet of Brains (IoB).

O desenvolvimento da inteligência biológica e da AI tem andado a par, juntando em projetos comuns, parceiros ou colaborantes, cientistas da área das neurociências e das ciências da computação, a que se agregam os imprescindíveis conhecedores da física, da matemática, da química, da engenharia, da psicologia. Só em grandes grupos multidisciplinares é possível ir tentando tomar conta das várias partes, procurando não perder a noção do todo, em algo que a milenar parábola sobre os cegos e o elefante tão bem ilustra.

É assim que aceitamos, sem reparar, que o telemóvel se tornou uma extensão de nós, ou nós dele, que nos é sugerido, sistematicamente, o que ver, fazer, comer, onde ir e por onde ir, que em vez de nos guiarmos pelas estrelas, nos deixamos guiar por aplicações baseadas em geolocalização que, mais centímetro, menos centímetro, nos mostram num mapa levando-nos de um ponto a outro por onde consideram melhor, ou por onde lhes pagaram para considerarem melhor, ou quem sabe se aleatoriamente, coisas de que suspeitamos quando calha conhecermos o caminho e sermos encaminhados absurdamente.

Também não reparamos que estamos a aceitar que os dispositivos eletrónicos nos sugiram o que responder a correio eletrónico ou a mensagens mais instantâneas, bastando para tal um click, um toque no ecrã ou uma ordem de voz. Por exemplo, insistem “Parabenize” fulano, seja lá isso o que for. Se carregarmos, vemo-nos a escrever “Congrats!” ou Parabéns com um monte de emogis extremamente esfusiantes acoplados, totalmente desapropriados para a longínqua relação profissional ou nem isso que (não) temos com a pessoa a quem estamos “ligados” online.

Assim como damos como adquirido o corretor automático, que todos os dias nos “desensina de” escrever, habilidade que tão trabalhosamente fomos adquirindo ao longo de muitos anos de ditados e trabalho árduo e que se tornou praticamente desnecessária. Dispositivos eletrónicos de várias espécies corrigem os erros que damos, o que agradecemos, mas também os que não damos, transformando poesia em jargão de rua.

É preciso uma atenção redobradíssima, uma diligência muito acima de um homem médio, de um bonus pater famílias – ou como hoje se usa “homem/mulher médio(a)” e “pater/mater” – para conseguir manter em níveis de decência aceitáveis as comunicações online.

O pano de fundo em que tudo se passa é o das comunicações.

É neste plano que cientistas de várias áreas criaram o BrainNet, que expõem em artigo publicado, em abril de 2019, na revista Nature.

A ideia é três pessoas com os cérebros ligados através da internet jogarem, em colaboração, uma espécie de Tetris simplificado. Começam por explicar que “Direct brain-to-brain interfaces (BBIs) in humans are interfaces which combine neuroimaging and neurostimulation methods to extract and deliver information between brains, allowing direct brain-to-brain communication”.

Na sua experiência, o objetivo é que uma peça seja virada  ou não, o que for mais eficaz para que se venha a formar uma linha. Duas pessoas (Senders) estão a ver a peça no ecrã e a terceira, que vai tomar a decisão, não a vê (Receiver). Os Senders enviam informação ao Receiver, através de comunicação cérebro-a-cérebro, este recebe-a e toma a decisão. Até aqui tudo relativamente clássico, dentro do género, claro.

O que é feito a seguir, embora pareça e seja lógico, já me parece muito ousado, nomeadamente no que diz respeito à aproximação de investigações em inteligência biológica e artificial. É o seguinte: há uma segunda ronda em que os Senders enviam feedback sobre a decisão e o Receiver tenta melhorá-la.

A “retropropagação do erro” (Backpropagation – BP) é precisamente o modo mais eficaz e promissor de a AI aprender, treinando-se assim os algoritmos.

No essencial, na aprendizagem por reforço, estabelece-se o objetivo e deixa-se o sistema (Artificial Neural Nets – ANN) treinar e aprender, procurando a melhor forma de o alcançar.

No caso da AI, melhora se os humanos forem completamente retirados do processo como, por exemplo, a evolução no jogo Go demonstra. A versão melhorada do sistema, o AlphaGo Zero aprendeu a jogar Go, a partir do zero, chegando em três dias ao nível de campeão. O sistema ficou melhor quando inseriram simplesmente as regras básicas do jogo, sem informação sobre jogadas humanas que, conforme se verificou, constrangiam.

No final do século passado pensava-se que tal mecanismo não existia no funcionamento do cérebro biológico, mas a evolução do conhecimento parece ir noutro sentido.

Se pensarmos que os BBIs, que ligam cérebros biológicos através da internet, provavelmente sem fios, podem ligar(-se) a AI, vislumbramos um pouco daquilo em que estamos.

Os cientistas do BrainNet concluem: “Our results point the way to future brain-to-brain interfaces that enable cooperative problem solving by humans using a “social network” of connected brains.”, o que torna oficial e cientificamente demonstrada a telepatia.

É neste contexto científico, não de ficção científica, que o Direito positivo esbraceja e que o consumidor consome. Urge procurar caminhos, senão alternativos, pelo menos complementares.

Cursos e investimentos em mercados financeiros – Sinto-me enganado: e agora?

Doutrina

Talvez por força da pandemia, do desemprego, ou até da maior quantidade de tempo livre para a maioria das pessoas, nos últimos meses temos estado muito mais online.   

Por sua vez, aumentou o tempo passado nas redes sociais, onde alguns sortudos ostentam a sua vida luxuosa, que, segundo dizem, teve origem no sucesso no investimento em mercados financeiros. Confrontados com este estilo de vida à distância de um ecrã, muitos jovens viram-se aliciados com a ideia de começar a investir em mercados financeiros.

Foi assim que surgiu, entre muitos outros, um curso sobre criptomoedas, desenvolvido pela empresa de um conhecido youtuber, que tem gerado grande polémica nas últimas semanas, depois de o seu conteúdo ter sido exposto publicamente. Alguns dos alunos têm vindo a manifestar o seu descontentamento perante uma formação que tinha sido publicitada como “bastante completa e feita por especialistas, sendo o melhor curso do mercado” e que não correspondeu às expectativas. 

A questão que aqui me proponho resolver é, precisamente, a de saber quais os direitos que assistem a estes consumidores, tendo já sido abordada a dimensão penal deste problema neste blog.

Decreto-Lei n.º 57/2008, de 26 de março, regula a matéria das práticas comerciais desleais comerciais das empresas nas relações com os consumidores, ocorridas antes, durante, ou após uma transação comercial relativa a um bem ou serviço (art. 1.º).

Quanto à sua aplicabilidade ao caso concreto, os destinatários do curso preenchem o conceito de consumidor previsto no art. 3.º-a), também não havendo dúvidas de que a empresa que o promoveu preenche o conceito de profissional, descrito no art. 3.º-b. ). Com efeito, o youtuberexerce profissionalmente esta atividade.  

Também o elemento objetivo está preenchido, na medida em que a ação levada a cabo se insere no conceito de prática comercial do art. 3.º-d). 

Sendo aplicável este diploma, estabelece o art. 4.º que são proibidas as práticas comerciais desleais, concretizando-se este conceito nos arts. 5.º (práticas comerciais desleais em geral) e 6.º (práticas comerciais desleais em especial). 

O art. 6.º-b) remete para o art. 7.º, que nos indica quais são as ações suscetíveis de constituir uma prática enganosa, subcategoria de prática comercial desleal.

Ora, estatui o art. 7.º-1 que as práticas comerciais enganosas são aquelas que induzam ou sejam suscetíveis de induzir em erro o consumidor sobre um dos elementos descritos nas alíneas seguintes. Em especial, foquemo-nos na alínea b), que se refere às principais características do bem ou serviço, tais como as suas vantagens, ou os resultados que podem ser esperados da sua utilização. 

Neste caso, algumas das queixas recebidas a propósito do curso referiam-se ao facto de uma parte do seu conteúdo corresponder a uma cópia de informações que podem ser encontradas em sitespúblicos, não parecendo que o mesmo tenha sido feito por profissionais, como havia sido publicitado. A este propósito, relembre-se ainda o art. 22.º do Código da Publicidade,que impõe que aos cursos sem reconhecimento oficial seja feita essa menção expressa.

Não tendo tal sucedido, e parecendo haver informações sobre as vantagens do serviço que são falsas ou, mesmo que factualmente corretas, suscetíveis de conduzir o consumidor a tomar uma decisão de transação que não teria tomado de outro modo, considero que temos uma prática comercial desleal, à luz dos arts. 6.º e 7.º-1-b) do referido Decreto-Lei. 

Assim, estes contratos são anuláveis a pedido do consumidor, ao abrigo do art. 14.º, que remete para o art. 287.º do Código Civil. Quer isto dizer que o consumidor terá direito à reposição da situação anterior à celebração do contrato, produzindo a anulação do negócio efeitos retroativos, nos termos do art. 289.º do Código Civil. 

Concluindo, o investimento em mercados financeiros é aliciante e a procura por formação capaz de tornar qualquer cidadão num investidor de sucesso é cada vez maior, tornando-se urgente uma maior regulamentação e formação da população em geral quanto a este tema, que tem tanto de fascinante quanto de perigoso. 

Os consumidores na Constituição: de 1989 em diante

Doutrina

aqui se escreveu recentemente sobre o papel dos consumidores e da sua proteção na versão originária da Constituição de 1976 e na primeira revisão constitucional. Hoje concluímos esta análise histórica, descrevendo brevemente a evolução posterior, resultante das revisões constitucionais subsequentes.

A Lei Constitucional n.º 1/89, que aprovou a segunda revisão da Constituição, completou o caminho que havia sido iniciado pela revisão anterior rumo à atribuição de direitos aos consumidores.

O art. 32.º desta Lei Constitucional aditou o art. 60.º, com a epígrafe “Direitos dos consumidores”, que correspondia aproximadamente ao anterior artigo 110.º, com a diferença do aditamento do “direito à qualidade dos bens e serviços consumidos”. A principal novidade consistia na localização privilegiada deste art. 60.º, na parte da Constituição da República Portuguesa dedicada aos direitos fundamentais, embora no título relativo aos direitos económicos, sociais e culturais. Pode, assim, dizer-se que, com a revisão de 1989, se deu a fundamentalização dos direitos dos consumidores.

Com relevância significativa para os consumidores, foi ainda aditado à Constituição um novo art. 102.º, que definiu os objetivos da política comercial, incluindo especificamente entre esses objetivos “a proteção dos consumidores” (alínea e)).

Esta revisão constitucional também alterou os arts. 35.º (que aborda a problemática da utilização da informática), 52.º (com a alteração da epígrafe para “Direito de petição e direito de ação popular”) e 81.º-e) (eliminando a expressão “através de nacionalizações ou outras formas”), renumerou o art. 84.º, que passou a art. 86.º, e eliminou os arts. 109.º e 110.º.

Quanto ao art. 52.º, a epígrafe foi alterada nas duas primeiras revisões constitucionais: na versão originária, era “Direito de petição e ação popular”; depois da primeira revisão, passou a “Direito de petição e de ação popular”; e, na sequência da segunda revisão, ficou “Direito de petição e direito de ação popular”, epígrafe que ainda se mantém. Note-se que se trata de uma valorização progressiva da ação popular. Na versão originária, não tinha, face à epígrafe, o caráter de direito, na versão da primeira revisão, passou a ter o caráter de direito, mas abrangido na categoria mais ampla do direito de petição e de ação popular (parece tratar-se de um direito apenas), enquanto, na segunda revisão, manteve-se como direito, mas já autonomizado do direito de petição. A norma atribui, assim, dois direitos: um direito de petição e um direito de ação popular. Esta conclusão já teria de resultar de uma interpretação adequada da versão originária, pelo que nos parece que se trata apenas de uma curiosidade linguística.

A terceira revisão constitucional, que procurou adaptar a Constituição da República Portuguesa à União Europeia, não produziu alterações diretas ao nível da posição dos consumidores.

A Lei Constitucional n.º 1/97 (quarta revisão constitucional), pelo contrário, procedeu a alterações pontuais mas relevantes no que respeita à temática em análise. A exceção é o artigo 35.º da Constituição, que sofreu uma profunda remodelação, certamente originada pela massificação da utilização da informática e a consequente multiplicação de situações de tratamento de dados dos cidadãos.

Além desta alteração, deve destacar-se a inclusão expressa dos direitos dos consumidores entre os bens jurídicos que podem ser objeto de uma ação popular em caso de infração – art. 52.º-3-a). Embora no texto anterior já se pudesse concluir que os direitos dos consumidores estavam abrangidos pelo espírito da norma, especialmente dado o caráter exemplificativo da lista de bens enunciada, a sua inserção na letra do preceito retirou qualquer dúvida que se pudesse colocar.

O n.º 3 do artigo 60.º também foi alterado, tendo sido acrescentada aquela que ainda hoje constitui a parte final do preceito: “sendo-lhes [às associações de consumidores e às cooperativas de consumo] reconhecida legitimidade processual para defesa dos seus associados ou de interesses coletivos ou difusos”.

Igualmente relevante, embora simbolicamente, foi a alteração da redação da alínea j), que passou a constituir a alínea h) e a estabelecer como incumbência prioritária do Estado, já não a proteção do consumidor, mas a garantia da defesa dos interesses e dos direitos dos consumidores. Assim, o Estado passa a estar diretamente vinculado à defesa dos direitos dos consumidores.

Refira-se ainda que os arts. 86.º e 102.º passaram, respetivamente, a 85.º (cooperativas) e 99.º (objetivos da política comercial). Das quinta, sexta e sétima revisões constitucionais, apenas a sexta, aprovada pela Lei Constitucional n.º 1/2004, atingiu as normas referidas neste post e no anterior sobre o tema, embora com pouca profundidade: acrescentou a orientação sexual ao elenco dos fatores de discriminação previstos no n.º 2 do art. 13.º, veio admitir a apresentação de petições também a órgãos das regiões autónomas (art. 52.º-1 e 2) e alterou a numeração do art. 81.º, passando as alíneas e) e h) a f) e i), respetivamente.

Reconhecimento facial a quanto obrigas

Legislação

O Despacho n.º 2705/2021, de 11 de março do Gabinete Nacional de Segurança (GNS) vem tratar da “Identificação de pessoas físicas através de procedimentos de identificação à distância com recurso a sistemas biométricos automáticos de reconhecimento facial.”, assunto que é apresentado no “Sumário:”, sem bold, em tamanho de letra pequeno e com ponto final e, imediatamente a seguir, como título, em letra de tamanho grande, a bold e sem ponto final, o que, além de aparentar gaguez, indica que é coisa para continuar com algum desenvolvimento.

O que vem a seguir não desilude. Inicia com os enquadramentos, obrigatórios para evitar que o incauto cidadão seja levado a crer que se Despacha sem os devidos fundamentos programáticos, legais e, também, de Regulamento comunitário. Nestes termos se expõem: “O Programa do XXII Governo Constitucional identifica como um dos desafios estratégicos a promoção de incentivos da sociedade digital, da criatividade e da inovação, privilegiando a simplificação administrativa, o reforço e a melhoria dos serviços prestados digitalmente pelo Estado, o seu acesso e usabilidade, a par da desmaterialização de mais procedimentos administrativos.” e “O Regulamento (UE) N.º 910/2014 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de julho de 2014, relativo à identificação eletrónica e aos serviços de confiança para as transações eletrónicas no mercado interno, veio considerar que: Criar confiança no ambiente em linha é fundamental para o desenvolvimento económico e social.”. É, ainda, indicado que a execução na ordem jurídica interna foi assegurada pelo Decreto–Lei n.º 12/2021, de 9 de fevereiro.

É, pois, por isso que o GNS, designado pelo acima referido Regulamento, vem “definir requisitos e instruções, relativamente à possibilidade dos prestadores qualificados de serviços de confiança adotarem formas de identificação não presencial, com garantias equivalentes, em termos de confiança, à da presença física”, possibilitando a “identificação por sistemas biométricos automáticos de reconhecimento facial”.

Os requisitos são apertados. A pessoa que está, em tempo real, a efetuar o pedido de reconhecimento tem de começar por mostrar que é titular do documento de identificação após o que, com consistência suficiente para convencer os sistemas de deteção, precisa de mostrar que está viva. Será ainda necessária demonstração de que “o documento de identificação apresentado é autêntico” e aí vai ser determinante conseguir convencer o sistema “de inteligência artificial e de deep learning”, que já se sabe é o mais difícil de iludir e que(m) decide.

Como usual, e já praticamente imprescindível em qualquer diploma que estabeleça normas, são apresentadas definições, neste caso no n.º 1 do Anexo A.

Destacam-se, porque merecem, as seguintes:

– “Sujeito biométrico. É uma pessoa que se submete a um processo de captura biométrica.”

– “Impostor biométrico. É um sujeito biométrico subversivo, que desenvolve ataques biométricos.”.

– “Prova de vida. Representa o estado de “estar vivo”, em tempo real. É evidenciado por características anatómicas, reações involuntárias e voluntárias, funções fisiológicas ou comportamentos.”.

É, ainda, definido “Deep learning (como) um ramo da inteligência artificial (AI), assente em sistemas/redes com capacidade de aprender com os dados, identificar padrões e tomar decisões com o mínimo de intervenção humana.”. Realce-se a ideia de “tomar decisões”, sem ser muito empatada pelo humano.

No n.º 4 do mesmo anexo vem o “Modelo funcional”, informando o Despacho que: “Este capítulo apresenta, sob o ponto de vista funcional, o sistema biométrico automático de reconhecimento facial (sBIO), de modo a poder ser facilmente identificado o âmbito, os componentes e as diversas atividades desenvolvidas por cada um destes componentes/subsistemas.”. Neste ponto não pode deixar de ser sublinhada a expressão “facilmente”, tanto no contexto do próprio parágrafo introdutório em que se insere, como depois da leitura do tal modelo funcional, que se lhe segue.

O n.º 5 apresenta os requisitos gerais estabelecendo que “Para os efeitos previstos neste documento, considera-se que a entidade que se submete ao processo de identificação, é uma pessoa física e passa a ser designada de subscritor, a entidade que verifica a identidade do subscritor, é um prestador qualificado de serviços de confiança, designada de QTSP. Quando (no original “Quanto”) um subscritor, demonstra com sucesso, a existência, posse ou controlo de mais que um mecanismo de autenticação requeridos pelo QTSP para validar a sua identidade, passa a ser designado por titular.”

Acaba, por fim e para nosso alívio, com um Anexo B, relativo à “Certificação dos sistemas biométricos automáticos de reconhecimento facial”.

Assina o Diretor-Geral do GNS, aparecendo após o nome, “CALM”. Não é, como à primeira vista se poderia pensar, um incentivo final a que o sujeito biométrico subscritor que, vivo e de cartão na mão, se sujeita a um QTSP, mantenha a calma durante o processo.

Em face de tal regulamentação parece, pois, que o reconhecimento facial vai ser reconhecido pelo Estado, como modo de identificar cidadãos, cumpridores dos requisitos do Despacho.

Na rua, um jovem aproxima o seu smartphone do rosto para o desbloquear, enquanto o amigo usa a impressão digital para desbloquear o seu. Sendo necessário confirmar os ingredientes da pizza, o primeiro diz ao seu dispositivo móvel “liga ao Manuel” e o aparelho, reconhecendo a voz, faz a ligação. No take-away a que a pandemia obriga, o segundo paga com o cartão que obteve registando-se com um documento de identificação e reconhecimento facial. Pelo caminho testam o desbloqueamento do telemóvel com a íris, funcionalidade que ainda não tinham experimentado e que funciona muito bem, o que os diverte. Sentem-se bastante confiantes, provavelmente demais, no ambiente em linha onde usualmente habitam e onde, com o confinamento, têm quase toda a sua vida.

Não sabem que, desde sexta feira, passaram a ser um sujeito biométrico e que, daqui a algum tempo, aquele que o Estado demorar a implementar o Direito, do Regulamento comunitário ao Despacho, se quiserem um reconhecimento facial a valer, vão ter de apresentar cartão e, em tempo real, fazer prova de que estão vivos a um QTSP.