Direito de arrependimento em contratos de crédito ao consumo: notas ao Acórdão Mercedes-Benz Bank e Volkswagen Bank

Jurisprudência

O Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) pronunciou-se, no Acórdão C-143/23, sobre um tema sensível no regime do crédito ao consumo: o momento em que começa a correr o prazo para o exercício do direito de arrependimento. O caso, que envolveu contratos de crédito para compra de automóveis, coloca no centro do debate os deveres de informação a cargo do mutuante, bem como o alcance da proteção do consumidor neste domínio.

Entre os pontos submetidos ao Tribunal figurava a seguinte questão: pode o consumidor exercer o direito de arrependimento se o contrato não indicar, sob a forma de percentagem concreta, a taxa de juros de mora aplicável? O Tribunal considerou que, enquanto faltar essa informação obrigatória, o prazo para exercício do direito de arrependimento não começa a correr, o que tem consequências relevantes para a prática contratual.

Entendeu o TJUE que o início do prazo de 14 dias depende da comunicação, ao consumidor, de informações obrigatórias previstas no artigo 10.º, n.º 2, da Diretiva 2008/48/CE, especificamente a taxa de juros de mora aplicável ao contrato. O Tribunal esclareceu que não basta uma menção genérica: a taxa deve ser comunicada de forma clara e compreensível.

Além disso, concluiu que a informação em falta pode ser comunicada ao consumidor posteriormente à celebração do contrato, caso não conste desse instrumento. A Diretiva não exige que todas as menções obrigatórias figurem no próprio contrato, bastando que sejam «devidamente comunicadas» ao consumidor. O acórdão, no entanto, não fixa um limite temporal para essa comunicação. Assim, enquanto a informação obrigatória não for devidamente prestada, pode entender-se, com base na própria lógica da decisão, que o prazo de 14 dias não chega sequer a iniciar-se ao longo de toda a vigência contratual, independentemente da sua duração. Ademais, o Tribunal não se pronunciou sobre os requisitos formais dessa comunicação posterior, pelo que também essa questão mantém-se em aberto.

Importa notar que o TJUE afasta expressamente qualquer indagação sobre o conhecimento efetivo do consumidor quanto às informações obrigatórias não prestadas pelo profissional. Dito de outro modo, é irrelevante que o consumidor, na prática, conhecesse ou não a informação omitida. O que importa é a conduta objetiva do mutuante: enquanto não cumprir integralmente o dever de informação, o prazo para exercício do direito de arrependimento não se inicia.

Quanto à alegação de abuso do direito de arrependimento, o Tribunal concluiu que não há abuso possível enquanto faltar informação obrigatória que cabia ao profissional prestar: o consumidor não pode ser prejudicado pela omissão do próprio mutuante, e a invocação do direito (mesmo após longo decurso de tempo de vigência do contrato) não constitui, por si só, um exercício abusivo do direito de arrependimento. Dito de outra forma, não há abuso de um direito que sequer chegou a aperfeiçoar-se.

Embora o acórdão se refira a contratos de crédito ao consumo ligados à compra de veículos, a sua lógica pode vir a influenciar a interpretação de situações análogas noutros regimes. Reforça-se, assim, o entendimento de que o prazo para o exercício do direito de arrependimento depende do cumprimento prévio dos deveres de informação pelo profissional, sem o qual esse prazo não se inicia.

Ao admitir que a informação em falta pode ser suprida posteriormente, o Tribunal resolve uma dificuldade prática relevante, mas deixa em aberto questões suscetíveis de gerar debate – nomeadamente o momento até ao qual essa comunicação pode ocorrer e a forma adequada para a sua realização, quando não conste inicialmente do contrato. Mesmo assim, o essencial permanece claro: o prazo do direito de arrependimento só se inicia quando o profissional cumpre adequadamente o seu dever de informação.

É, portanto, uma decisão que reforça a proteção do consumidor no regime do crédito ao consumo e evidencia a relevância dos deveres de informação no direito do consumo europeu.

Review of the case law of the Court of Justice of the European Union: November 2025

Jurisprudência

November 2025 brought a series of noteworthy judgments from the Court of Justice of the European Union (CJEU), shaping key aspects of consumer law. These decisions not only clarify the interpretation of EU directives and regulations but also reinforce fundamental principles such as consumer protection, legal certainty, and market fairness. Below is an overview of the most relevant rulings delivered in the last month (end of October and November to date), highlighting their practical implications for businesses, consumers, and regulators across the EU.

Withdrawal Period in Linked Vehicle Credit Agreements Starts Only After Full Disclosure of Mandatory Information

On 30 October 2025, the CJEU clarified that the withdrawal period for a consumer credit agreement linked to a vehicle purchase does not begin until all mandatory information, including the specific interest rate for late payment, has been duly communicated to the consumer. The case (C-143/23), referred by the Regional Court of Ravensburg (Germany) and involving KI v. Mercedes-Benz Bank AG and FA v. Volkswagen Bank GmbH, concerned the scope of the withdrawal right under Directive 2008/48/EC. The Court held that compensation for depreciation must reflect only the actual use of the vehicle, excluding unrelated costs such as dealer margins, resale expenses or VAT. The Court also confirmed that Directive 2008/48 does not fully harmonise the legal consequences of withdrawal, leaving Member States discretion to regulate the repayment of capital and interest provided that national rules do not render the exercise of the withdrawal right impossible or excessively difficult. The ruling reinforces the principle of effectiveness, enhancing consumer protection while maintaining contractual balance within linked credit agreements.

Choice-of-Court Agreements Between Natural Persons Not Invalidated by National Economic-Activity Requirements

On 30 October 2025, the CJEU clarified the interpretation of Article 25(1) of Regulation (EU) No 1215/2012 on jurisdiction and the recognition and enforcement of judgments in civil and commercial matters. The case (C-398/24), referred by the Supreme Court of Estonia, concerned a dispute between two natural persons regarding the transfer of a flat, in which the parties had agreed that Estonian law would apply and that any disputes would be resolved by a specific Estonian court. The Court held that a national-law condition requiring a link with the economic or professional activity of the parties does not render the choice-of-court agreement “null and void as to its substantive validity” within the meaning of EU law. The judgment strengthens party autonomy and the effectiveness of jurisdiction agreements, ensuring that individuals, including consumers, can rely on predictable contractual arrangements, while preventing national legislation from imposing additional validity conditions that would undermine freedom of choice.

Delay Compensation Must Be Calculated on the Basis of the Originally Scheduled Arrival Time

On 30 October 2025, the CJEU held that when an air carrier postpones a flight and issues a new booking confirmation with revised departure and arrival times, the delay for compensation purposes under Regulation 261/2004 must be assessed by reference to the originally scheduled arrival time. The case (C-558/24), referred by the Regional Court of Landshut (Germany), concerned a dispute between Corendon Airlines Turistik Hava Tasimacilik AS and Myflyright GmbH. The Court confirmed that a mere postponement of flight times, without any change to the route or flight number, constitutes a delay, not a cancellation, and that passengers arriving three hours or more after the originally scheduled time suffer an irreversible loss of time entitling them to compensation. Allowing airlines to rely on unilaterally modified arrival times would undermine the regulation’s objective of ensuring a high level of passenger protection, enabling carriers to avoid liability simply by issuing last-minute confirmations with later times. The Court therefore ruled that the revised booking confirmation is irrelevant for calculating delay length: compensation is due whenever the arrival exceeds the three-hour threshold measured against the initial timetable.

Non-Profit Associations Can Qualify as “Travellers” Under EU Package Travel Rules

On 13 November 2025, the CJEU held that a legal person, such as a non-profit association, that books a package travel contract in its own name but on behalf of its members qualifies as a “traveller” under Article 3(6) of Directive (EU) 2015/2302. The case (C-445/24), referred by the Court of Cassation (Belgium), concerned a dispute between MS Amlin Insurance SE and (W)onderweg VZW. The Court emphasised that the definition of “traveller” (“any person who seeks to conclude a contract or is entitled to travel under a concluded contract”) does not distinguish between natural and legal persons. Even though the association cannot physically travel, it can conclude contracts for the benefit of those who will. Denying such an entity the status of “traveller” would undermine the directive’s objective of ensuring a high level of protection, particularly for vulnerable persons. The ruling ensures that associations and other legal entities acting on behalf of their members may invoke rights such as insolvency protection, confirming that EU law protects the contracting entity, not only the individuals who ultimately travel.

“Non-Alcoholic Gin” Prohibited and Validity of Regulation 2019/787 Confirmed

On 13 November 2025, the CJEU held that a beverage marketed as “non-alcoholic gin” cannot lawfully use the designation “gin” under Regulation 2019/787. The case (C-563/24), referred by the Regional Court of Potsdam (Germany), involved a dispute between Verband Sozialer Wettbewerb eV and PB Vi Goods GmbH. The Court found that Article 10(7) expressly prohibits the use of protected spirit drink names for products that do not fulfil the category’s essential requirements, including production with ethyl alcohol of agricultural origin and reaching a minimum alcoholic strength of 37.5%. The addition of “non-alcoholic” does not circumvent this prohibition, which also extends to qualified or imitative designations. Article 12(1) was held inapplicable because it concerns foodstuffs produced using alcohol, whereas the product at issue was water-based. Turning to validity, the Court rejected the challenge based on Article 16 of the Charter, holding that the restriction affects only the use of the legal name, not the manufacture or sale of non-alcoholic juniper-flavoured beverages. The measure was found suitable and necessary to protect consumers, prevent misleading impressions, safeguard fair competition, and defend the reputation of EU spirit drinks. The Court thus confirmed both the prohibition and the validity of Article 10(7).

Individuals Hiring Lawyers to Form Companies May Be Consumers, Not Undertakings

On 13 November 2025, the CJEU clarified the scope of Directive 2011/7/EU on late payment in commercial transactions and Directive 93/13/EEC on unfair terms in consumer contracts. The case (C-197/24), referred by the City Court of Bratislava IV (Slovakia), concerned a dispute between AK, a legal services company, and RU, a natural person who hired the firm to establish a commercial company of which he intended to become co-founder, member and managing director. The Court held that engaging a lawyer to form a company does not automatically classify the individual as an undertaking, nor does it automatically render the transaction “commercial” under Directive 2011/7. The Court further confirmed that such a person may be regarded as a consumer under Directive 93/13, provided they were not acting within an independent professional or economic activity at the time of contracting. The ruling strengthens legal certainty for individuals entering into legal-service contracts and ensures that national provisions on legal fees are interpreted consistently with EU consumer-protection rules, preventing reclassification as “undertakings” based solely on future entrepreneurial intentions.

Use of Email Addresses for Marketing Must Comply with Directive 2002/58

On 13 November 2025, the CJEU clarified the interpretation of Directive 2002/58 with respect to the use of email addresses for direct marketing. The case (C-654/23), referred by the Court of Appeal of Bucharest (Romania), involved a dispute between Inteligo Media SA and the National Supervisory Authority for the Processing of Personal Data (ANSPDCP). The Court held that a user’s email address is obtained “in the context of the sale of a product or service” when the user creates a free account on an online platform giving access to a limited number of articles, a daily legislative newsletter, and optional paid content. Sending such a newsletter constitutes a use of electronic mail for direct marketing of similar products or services under Article 13(1) and (2) of Directive 2002/58. Furthermore, when unsolicited communications comply with Article 13(2), the conditions for lawful processing under Article 6(1) GDPR do not apply. The ruling confirms that the e-privacy rules, read alongside Article 95 GDPR, form the regulatory framework for email marketing, ensuring consumer protection and respect for users’ rights.

National Authorities Must Assess Civil Engineering Access Obligations Against All Objectives of the EU Electronic Communications Code

On 20 November 2025, the CJEU clarified that when a national regulatory authority considers imposing an obligation of access to civil engineering assets on an undertaking with significant market power under Article 72 of Directive (EU) 2018/1972, it must ensure compliance with all objectives listed in Article 3 of the directive. The case (C-327/24), referred by the Administrative Court of Cologne (Germany), involved a dispute between Telekom Deutschland GmbH and the Federal Republic of Germany. The Court emphasised that the objectives, promoting connectivity and high-capacity networks, fostering competition, contributing to the internal market, and protecting consumers, must all be taken into account on an equal footing, with none enjoying priority. This ruling ensures that national authorities adopt access obligations in a way fully aligned with the broader goals of the European Electronic Communications Code, rather than focusing solely on competition or end-user considerations.

COOKIES: ACEITES OU INEVITÁVEIS?

Doutrina

A maioria da população mundial dir-nos-á que uma cookie é sempre inevitável. Contudo, quando falamos em cookies digitais em contexto de proteção e tratamento de dados pessoais, a confusão entra em cena.

Chama-se cookie a um pequeno ficheiro descarregado por determinados websites para o dispositivo do utilizador, de forma a acompanhar e registar as preferências e o comportamento do mesmo enquanto navega naquele domínio. Comummente, estes são conhecidos como mais um botão ‘aceitar’ em que toda a gente carrega sem saber do que se trata.

Com o crescimento do comércio online, importa, cada vez mais, olhar para a forma como a nossa privacidade digital e os nossos dados pessoais são tratados, não só enquanto utilizadores digitais, mas também enquanto consumidores. Tal é de elevada relevância porque o preço a pagar por uma t-shirt à venda numa loja online não pode ser 29,99€ e, já agora, a sua palavra-passe das finanças.

Legitimamente, os dados pessoais de uma pessoa apenas podem ser tratados mediante:

1. O seu expresso e inequívoco consentimento (artigo 6.º-1-a) RGPD);

2. A sua necessidade para a execução de um contrato de que a pessoa titular seja parte (artigo 6.º-1-b) RGPD);

3. A sua necessidade para a defesa dos seus interesses vitais (artigo 6.º-1-d) RGPD) e;

4. Outras situações que legitimem esse tratamento, mas que não são tão interessantes para este tema.

Retirando-se, à partida, a necessidade de executar um tal contrato que, a este ponto, ainda não existe (discussão reconhecidamente complexa), ou a defesa de interesses vitais do consumidor (até porque a preferência por determinadas cores de meias de concreto consumidor não são de lá grande vitalidade), só nos resta ponderar se a aprovação dada ao carregar no botão “aceitar” é efetivamente um consentimento livre e informado ou se é uma aposta na típica e generalizada passividade dos consumidores-utilizadores.

É de conhecimento geral que vivemos num mundo onde ninguém lê “termos e condições”, “termos de privacidade” ou até bulas de medicamentos sujeitos a prescrição médica. Estes são tantos e tão extensos que, ao longo dos últimos anos, foram-se tornando numa verdade absoluta das nossas vidas. Por conseguinte, é difícil encontrar quem não sinta fadiga pela simples menção aos documentos acima descritos.

Aproveitando-se de tal fator, dir-se-á ser muito fácil que certos e determinados websites obtenham, indiscriminadamente, consentimento por parte dos consumidores, para um qualquer tratamento dos seus dados. Podemos até falar de “dark patterns” (em tradução direta, padrões obscuros), no sentido em que, não bastando a “fadiga do consentimento”, por vezes, são-nos ainda apresentadas janelas de “aceitação” desenhadas especificamente para que esse consentimento seja ainda mais facilmente obtido.

A utilização de determinadas cores que transmitem positividade, como é o caso do verde de “aceitar”, a propositada e desmedida extensão dos “termos” a ler ou cookies a escolher, e a, por ventura, dificuldade em navegar o website sem antes aceitar os mesmos, são exemplos de mecanismos de manipulação do utilizador digital que muito se observam hoje em dia, sendo ainda mais gravoso que, por vezes, estas escolhas são implementadas de forma propositada e intencional por parte do profissional ou desenvolvedor.

Além do mais, o desenvolvimento tecnológico e o surgimento da era do comércio digital, são acontecimentos muito recentes, pelo que, por exemplo, gerações que lhes antecederam, sofrem, em grande parte, daquilo a que se chama “assimetrias informacionais” ou até de uma certa “vulnerabilidade digital”, algo extensível a diversos grupos de pessoas e cuja exploração demonstra uma ainda maior gravidade das escolhas do desenvolvedor digital.

Esta é uma temática que abrange todas as áreas do quotidiano atual, mas é de especial importância no âmbito do Direito do Consumo, uma vez que, com o exponencial crescimento das compras e vendas online (ou apoiadas em serviços digitais), deparamo-nos com a especial vulnerabilidade dos dados bancários e financeiros do titular.

Cabe-nos questionar o atual paradigma. Se toda a lei que lhes seja pertinente tem como fundamento a proteção do consumidor, do titular ou do utilizador, como é que se concebe que este consentimento de que falamos e a sua vitalidade para o tratamento dos dados pessoais tenha sido cristalizado numa espécie de indiferença ou cegueira sociológica?

No que concerne ao consumidor e ao mundo do Direito do Consumo, existem diversos perigos emergentes do tratamento “consentido sem real consentimento” de dados pessoais para além da mera violação da privacidade e do aproveitamento do seu valor económico-comercial. Desde logo:

1. A formação de perfis comportamentais (o chamado profiling) que podem levar às restantes consequências ou a outras mais gravosas;

2. A redução da autodeterminação e do controlo informacional, fazendo com que os consumidores percam o real controlo dos seus dados pessoais e dos caminhos (legítimos ou não) que estes percorrem;

3. A criação e difusão de publicidade direcionada e indesejada;

4. O aproveitamento da acumulação de dados pessoais como plataforma de crescimento económico-empresarial insustentável e desigual (ao introduzir externalidades negativas no funcionamento do mercado), o que, entre outras, prejudica as pequenas empresas que dependem de consentimentos legítimos, e;

5. Tantos outros casos que se verificam no dia a dia de qualquer utilizador digital.

Que não se pense que estas temáticas são inevitáveis, nem da parte do legislador, nem da parte do utilizador-consumidor. Diversas soluções cumulativas foram e são discutidas a todo o momento.

Em primeiro lugar, regulamentação pertinente deverá ser debatida e adotada no sentido de estabelecer regras de “design ético” para janelas de confirmação de consentimento que não condicionem o consumidor, ainda que inconscientemente, a aceitar determinado tratamento de dados pessoais ou cookies. Na mesma nota, dever-se-á adotar uma premissa de “privacidade por padrão” (“privacy by default”) na criação e disponibilização de websites. Isto significaria que, à partida, qualquer website teria como predefinição a total privacidade e anonimato dos seus utilizadores, que, só e apenas se quisessem, poderiam subscrever e aceitar distinta política de privacidade quando assim o entendessem (procurando, por exemplo, uma experiência mais personalizada ou completa, sendo que aquela oferecida por padrão, nunca poderia carecer de funcionalidades essenciais).

Por outro lado, deve haver um maior “investimento”, tanto da parte dos consumidores, como das autoridades competentes (como por exemplo, a CNPD e a EDPB), respetivamente, no desenvolvimento de uma melhor literacia digital e de melhores esforços de supervisão e fiscalização do cumprimento das regras de proteção de dados e de consumo digital de acordo com princípios éticos, de justiça e, sobretudo, de privacidade.

Recentemente (mais concretamente, no dia 19 de novembro de 2025) foi publicada a proposta do Digital Omnibus, um pacote legislativo europeu que, entre diversas alterações e adições relevantes, pretende modernizar as regras referentes aos cookies, melhorando a experiência do utilizador digital. Esta proposta almeja reduzir o número de vezes em que janelas pop up são apresentadas ao utilizador, permitindo que este apresente o seu consentimento e preferências de escolha de cookies, guardando-os nas definições gerais dos seus browsers e sistemas operativos.

Esta proposta representa uma iniciativa refrescante, ainda que relativamente tímida, para a simplificação e melhoria do tratamento de dados proveniente de cookies. Não sendo propriamente uma “privacidade por padrão”, é uma “escolha padrão” que permitirá combater a “fadiga do consentimento” e, por conseguinte, aumentar a disponibilidade do utilizador para atender mais facilmente ao modo como são tratados os seus dados e à forma como é gerida a sua privacidade digital.

No mesmo sentido e (curiosamente) no mesmo dia de publicação da proposta Digital Omnibus, foi ainda publicada a 2030 Consumer Agenda que, entre outras temáticas, pretende promover a proteção do consumidor digital. Através do Digital Fairness Act (a ser proposto em 2026), a Comissão Europeia pretende combater práticas como os já referidos “dark patterns” e, entre outras, a personalização abusiva baseada em vulnerabilidades dos utilizadores (algo bastante relevante quando discutimos cookies que exploram padrões de comportamento e preferências aparentes dos utilizadores). Esta é uma notícia bastante agradável no que toca à segurança e privacidade digital, especialmente no que concerne a grupos de maior vulnerabilidade, tais como as crianças.

Os cookies digitais são, atualmente, mais inevitáveis do que propriamente escolhidos ou consentidos. A sociedade encontra-se condicionada por si mesma no que toca à aceitação passiva do tratamento dos seus dados pessoais, parecendo não atender à elevada importância que estes têm, não só ao nível da privacidade individual, mas também do seu real valor económico. É, portanto, de suma importância que continuemos a explorar e a debater soluções para que o Direito do Consumo, especialmente na sua vertente digital, evolua a fim de garantir escolhas verdadeiramente livres e informadas, integrando no seu domínio a proteção de dados e seus relevantes diplomas como uma nova dimensão essencial do consumidor digital.

Greenwashing y fast fashion: la sanción a SHEIN por evoluSHEIN

Doutrina

Por Camilo Duarte M [1].

Actualmente, el derecho del consumo se enfrenta a desafíos tales como la publicidad alusiva a atributos medioambientales de los productos o la tutela colectiva de los intereses de los consumidores, y fuera del derecho del consumo, pero cercanos a éste, el fast fashion.

El propósito del presente escrito es revelar una reciente estrategia de mercadeo, que se muestra de manera atractiva a los consumidores, pero que a la luz del derecho del consumo es una práctica desleal cuya finalidad es inducir a los consumidores a engaño, error o confusión respecto de las características de un producto, toda vez que aquellas son anunciadas a través de afirmaciones falsas y aparentemente consideradas con el medio ambiente. Dicha practica es conocida como Greenwashing.  

En el escenario europeo, el pasado 29 de julio de 2025 la Autorità Garante della Concorrenza e del Mercato sancionó con un millón de euros a Infinite Styles Services Co. Ltd, sociedad quien gestiona en Europa los sitios de compraventa de los productos SHEIN (conocida por ser una minorista de moda rápida). La mencionada autoridad mencionó en su decisión que SHEIN dio a conocer su propio proyecto de sostenibilidad ambiental denominado “evoluSHEIN.

Dentro de este proyecto, la misma autoridad identificó que se lanzó la iniciativa pretendidamente de bajo impacto ambiental y reconocible como “evoluSHEIN by Design”. Sin embargo, se determinó, entre otros, que la información sobre la sostenibilidad de las prendas en esta iniciativa era confusa y vaga respecto de la cantidad de materiales de origen responsable/ecosostenibles utilizados para fabricar cada prenda.

De esta manera, es plausible que una de las autoridades europeas en ejercicio de sus facultades, imponga una sanción disuasiva y significativa a una empresa de moda rápida por desplegar un mensaje publicitario contenido de información dudosa, de tal suerte que, los consumidores pudieron tomar su decisión de consumo convencidos de que los productos que estaban adquiriendo en línea tenían una cantidad de materiales de origen responsable/ecosostenibles que no era cierta. En la Unión Europea, cabe mencionar también, en este ámbito, la propuesta de Directiva sobre alegaciones ecológicas.

Aún se critique la facultad sancionatoria, no se puede negar que previene la comisión de conductas que pueden afectar los derechos de los consumidores y promueve el cumplimiento de la normativa en materia de protección al consumidor independiente del país del que se trate. Además, sigue siendo una manera de hacer frente nuevas prácticas comerciales desleales como la revelada en este texto y permitir que los consumidores de manera libre compren productos cuyas características se anuncien como amables con el medio ambiente y realmente lo sean.


[1] Abogado de la Facultad de Derecho de la Pontificia Universidad Javeriana (Colombia). Especialista en Derecho Comercial de la misma Universidad. Especialista en Economía de la Facultad de Ciencia Económicas y Administrativa de la Pontifica Universidad Javeriana. Magíster en Derecho de Consumo y Comercio Electrónico -en curso- por la Universidad Autónoma (Chile). Curso de Pós-Graduação em Direito dos Contratos e do Consumo de la Universidad de Coimbra (Portugal). Diplomado en Compliance de Consumo de la Universidad del Rosario (Colombia). Curso de Marketing Legal de la Universidad Austral (Argetina). Participante de la escuela de verano 2025 “Consumer and Market Law in the European Circular Economy” de la Universidad de Údine (Italia). Consumerista®

Comentário à Agenda do Consumidor 2030

Doutrina

No dia 19 de novembro, a Comissão Europeia apresentou a Agenda do Consumidor 2030, um plano estratégico para os próximos cinco anos, que visa reforçar a proteção dos consumidores, promover a competitividade e apoiar o crescimento sustentável no mercado único. Apesar da relevância do tema, esta Agenda suscita algumas questões quanto à sua ambição e orientação estratégica.

Uma Agenda pouco ambiciosa?

À primeira vista, a Agenda não parece particularmente ousada. Não são propostas reformas estruturais significativas ou novos paradigmas regulatórios, optando-se por uma abordagem centrada na revisão e adaptação de legislação existente. O foco está na simplificação das regras e na redução dos encargos administrativos para as empresas, mais do que na criação de um quadro normativo inovador.

Esta opção reflete uma tendência recente do Direito Europeu do Consumo: uma regulação mais pormenorizada, com normas específicas para setores ou práticas concretas, em detrimento de instrumentos gerais e abrangentes.

Competitividade como objetivo central

Outro ponto que merece destaque é a orientação da Agenda para a competitividade das empresas europeias. O documento sublinha repetidamente a necessidade de simplificar normas e reduzir encargos administrativos, de modo a criar um ambiente “claro, justo e previsível” para as empresas. Esta prioridade está alinhada com a lógica da Bússola para a Competitividade e com a estratégia para completar o mercado único.

A ideia é que regras mais simples e a sua aplicação mais eficaz permitam às empresas reduzir os custos de conformidade e aproveitar melhor as oportunidades do mercado interno. A eficácia da legislação europeia em matéria de consumo constitui, assim, também um objetivo da Comissão Europeia.

Proteção dos consumidores vulneráveis e sustentabilidade

Apesar desta orientação geral a favor da competitividade, a Agenda mantém as preocupações mais recentes da política de consumo:

– Proteção dos consumidores mais vulneráveis, com referência expressa e abrangente aos menores;

– Lealdade em ambientes digitais, com destaque para medidas contra a manipulação algorítmica e a publicidade enganosa;

– Consumo sustentável, nomeadamente no que se refere a ecodesign para produtos sustentáveis, direito à reparação e transição verde, com o objetivo de promover produtos duradouros, reparáveis e com menor impacto ambiental.

Estas ações respondem a desafios sociais e ambientais muito relevantes.

Calendário das principais propostas legislativas e iniciativas

Segundo o que aparece indicado na Agenda, podemos prever, para já, seis propostas legislativas neste período, todas em 2026 (v. o Commission Work Programme 2026 para um cronograma mais preciso):

– Regulamentos sobre serviços multimodais de mobilidade digital e reserva e emissão de bilhetes digitais e revisão do Regulamento sobre os direitos dos passageiros ferroviários (1.º trimestre de 2026).

– European Product Act (3.º trimester de 2026).

– Digital Fairness Act (4.º trimestre de 2026).

– Revisão do Regulamento (UE) 2017/2394, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2017, relativo à cooperação entre as autoridades nacionais responsáveis pela aplicação da legislação de proteção dos consumidores (4.º trimestre de 2026).

Admite-se que, de outras iniciativas previstas na Agenda, possa resultar a adoção de mais propostas, tendo em conta os resultados da avaliação feita pela Comissão Europeia.

Outras iniciativas previstas mais palpáveis previstas no diploma são o lançamento da:

– Carteira Europeia de Identidade Digital (4.º trimestre de 2026).

– Lançamento da Plataforma Europeia em Linha para Reparação, prevista no artigo 7.º da Diretiva (UE) 2024/1799, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de junho de 2024, relativa a regras comuns para promover a reparação de bens (2028)

Conclusão

A Agenda do Consumidor 2030 confirma a tendência europeia para uma regulação detalhada e setorial, com foco na simplificação e na competitividade das empresas. Embora inclua medidas relevantes para a proteção dos consumidores vulneráveis e para a promoção da sustentabilidade, falta-lhe uma abordagem mais integrada e ambiciosa que responda aos desafios globais do consumo no século XXI. Estou a pensar, por exemplo, na responsabilidade por decisões automatizadas ou na proteção contra a manipulação algorítmica em larga escala, na globalização das cadeias de fornecimento, incluindo a necessidade de due diligence no que respeita a práticas sustentáveis com origem fora da União Europeia, nos efeitos do consumo excessivo na crise climática ou no descontrolo da exploração comercial (e não só) dos dados pessoais dos cidadãos europeus. Para os juristas e os académicos, este documento é um sinal claro da evolução do Direito do Consumo Europeu: menos grandes princípios, mais micro-regulação.

O que LLM sabem sobre nós: memorização de dados e o RGPD

Doutrina

Por Beatriz Gonçalves Russell e Francisco Arga e Lima

Com o crescimento exponencial da Inteligência Artificial (“IA”) generativa, e, em especial, de Large Language Models (ou “LLMs”), levantam-se questões sobre a sua compatibilidade com os padrões regulamentares aplicáveis, nomeadamente no domínio da proteção de dados. Neste contexto, uma das principais preocupações prende-se com a dependência dos LLMs na ingestão de vastas quantidades de informação para o seu desenvolvimento, e a preocupação inerente em compreender se estes retêm os dados (pessoais) ingeridos durante o seu treino.

Treino dos LLMs

De modo a saber se há uma efetiva retenção de dados, é necessário compreender a forma como LLMs são, em geral, treinados. Uma das primeiras fases deste processo é a conversão de texto em tokens, ou seja, representações numéricas de elementos normalmente menores que palavras, mas maiores que letras isoladas, que o modelo possa processar, criando-se, assim, um vocabulário interpretável pelo algoritmo, embora não diretamente interpretável pelo indivíduo. Após esta conversão, o modelo é treinado, criando-se embeddings, ou seja, vetores que representam as relações contextuais entre tokens, estatisticamente abstraídas do treino, permitindo ao modelo distinguir o significado de, por exemplo, um banco enquanto instituição financeira e enquanto mobiliário doméstico.

À primeira vista, esta abstração parece levar à conclusão de que, caso haja treino com dados pessoais, os dados perdem a sua ligação com titulares de dados, uma vez que os modelos deixam de conter informação associável a indivíduos identificáveis. Assim sendo, os tokens e embeddings seriam considerados meros padrões linguísticos, desprovidos de ligação a pessoas concretas, de modo que não estariam abrangidos pelo escopo da definição de dados pessoais, prevista no Regulamento Geral de Proteção de Dados (“RGPD”).

Contudo, esta linha de raciocínio baseia-se numa compreensão incompleta acerca do funcionamento técnico do treino destes modelos.

A realidade técnica de retenção de informação

Embora a transformação de texto em tokens abstraia o conteúdo original, a informação subjacente não se perde totalmente. Por um lado, a tokenização moderna — como a byte-pair encoding — é frequentemente lossless, permitindo que os números codificados sejam reconvertidos em texto sem perda de informação substancial. Por outras palavras, mesmo que os dados sejam convertidos em números, isso não elimina necessariamente a possibilidade de identificação de titulares dos dados.

Além disso, os embeddings capturam o significado contextual e as relações entre palavras, espelhando os padrões e estruturas estatísticos abstraídos do treino, algo que poderá levar à memorização de dados. Para entender como isso pode ocorrer, é importante distinguir dois fenómenos que ocorrem durante o treino destes modelos:

1. Codificação (“Encoding”): Processo de abstração de padrões e relações estatísticas dos dados de treino em representações numéricas úteis, descartando detalhes menos significativos.

2. Memorização (“Memorization”): Ocorre quando partes específicas dos dados de treino são retidas quase na integralidade, permitindo a sua potencial reprodução.

Ora, a memorização difere da simples aprendizagem de padrões abstratos que ocorre na codificação, uma vez que leva à retenção de detalhes de dados de treino quase exatos das fontes. Isto pode dever-se a diferentes fatores, como a multiplicação dos dados de treino nos datasets utilizados, o que pode enviesar a sua relevância estatística. Por outras palavras, surgindo com maior frequência uma determinada sequência de tokens, o modelo irá adaptar o peso dessas relações de modo a reforçar essa sequência no seu output. Por isso, mais do que abstrair padrões, haverá uma retenção de sequências específicas de dados que poderão ser pessoais.

De qualquer forma, para que as informações incorporadas nos LLMs sejam consideradas dados pessoais, as mesmas devem, contudo, ser acessíveis. A este respeito, o nosso ponto de partida será o facto que, em regra, os dados estão dispersos pelos inúmeros parâmetros dos modelos e não estão armazenados como unidades discretas ou legíveis por humanos, ao contrário do que sucede, por exemplo, com um ficheiro .pdf. No entanto, há que se notar que a ausência da suscetibilidade de interpretação direta não é impeditiva de que a informação seja considerada dado pessoal: o que nos diz o art. 4.º, n. º1 do RGPD, é que qualquer informação relativa a uma pessoa identificada ou identificável é considerada dado pessoal, mesmo que careça de meios complementares para ser legível por humanos.

Por isso, se um modelo for capaz de reproduzir dados sobre uma pessoa, contidos nos datasets de treino, essa informação continua a ser pessoal, ainda que esteja codificada no modelo sob a forma de vetores numéricos. Desta forma, e pese embora a dispersão da informação pelos parâmetros torne a inspeção direta extremamente onerosa, entende-se que a acessibilidade pode ser feita através de meios indiretos, em particular prompting e ataques direcionados, onde essa memorização é confirmada por via do output consistente de informação contida nos datasets de treino.

Importa também perceber que a memorização não é uma falha de treino ou funcionamento destes modelos, mas sim uma característica inerente dos mesmos. Isto percebe-se facilmente quando constatamos que estes precisam de “memorizar” estruturas de palavras e regras gramaticais de modo a poderem criar construções frásicas corretas. Nesse sentido, a memorização é necessária, atendendo às finalidades destes modelos. Contudo, pode também revelar-se problemática, na medida em que essa capacidade pode conduzir à retenção – e posteriormente divulgação – de dados pessoais.

Assim, o erro está em assumir que a ausência de dados pessoais é garantida apenas pelo facto de tokens e parâmetros serem valores numéricos. Na verdade, é possível que esses números e relações estatísticas levem à retenção de dados (pessoais) contidos nos datasets de treino no próprio modelo.

Por isso, é possível tirar duas conclusões relevantes para a discussão sobre se LLMs memorizam dados pessoais. Em primeiro lugar, a memorização de dados de treino é uma característica essencial e não um bug dos LLMs. Isto significa que os desenvolvedores de LLMs são responsáveis não só pelo tratamento de dados na fase de treino, mas também pelo potencial armazenamento de dados pessoais no modelo, para assegurar a sua compatibilidade com o RGPD. Em segundo lugar, e não obstante a natureza black box dos LLMs conceder alguma margem para argumentar pela impossibilidade de acessibilidade aos dados eventualmente armazenados, a evolução tecnológica pode, no futuro, permitir que a informação armazenada seja reconstruída por meios que hoje desconhecemos, sendo uma questão de tempo até que os mecanismos atuais de mitigação se revelem insuficientes. Até lá, a possibilidade de extração destes dados por via de i.e. prompting é algo que confirma esta retenção, pelo que caberá também aos desenvolvedores destas tecnologias mitigarem tanto a retenção, como a possibilidade da sua extração.

Novo Regulamento da Portabilidade: afinal, qual é a verdadeira novidade?

Doutrina

Nas últimas semanas têm sido várias as notícias sobre a entrada em vigor do novo regulamento da portabilidade. Entre as novidades destacadas pela comunicação social, sobressai a ideia de que as operadoras de telecomunicações passam agora a estar proibidas de cobrar pela portabilidade dos números de telemóvel. Mas será mesmo essa a novidade?

A Lei n.º 16/2022, de 16 de Agosto (Lei das Comunicações Eletrónicas – LCE), reconhece, há muito, queo utilizador dos serviços de comunicações eletrónicas tem o direito à portabilidade dos números – artigo 113.º n.º 1, alínea r) da LCE – sendo-lhe garantida a manutenção do seu número, no âmbito do mesmo serviço, independentemente da empresa que oferece os serviços (n.º 1 do artigo 141.º da LCE), quer se trate de (a) números geográficos, associados a  um local/área geográfica específica; ou de (b) de números não geográficos, em todo o território nacional, incluindo os números móveis (telemóveis), nómadas, de chamadas gratuitas e de tarifa majorada (cfr. alíneas w) e x) do artigo 3.º da LCE)

A portabilidade, introduzida nas redes fixas a 30 de Junho de 2001 e nas redes móveis a 1 de Janeiro de 2002, vem, desde então, sendo entendia como “a funcionalidade através da qual os assinantes dos serviços telefónicos acessíveis ao público que o solicitem podem manter o seu número ou números, no âmbito do mesmo serviço, independentemente da empresa que o oferece, no caso de números geográficos num determinado local, e, no caso dos restantes números, em todo o território nacional” [1]. A terminologia “assinantes dos serviços telefónicos” (Regulamento n.º 58/2005, de 18 de agosto) foi depois substituída por “assinantes de serviços de comunicações eletrónicas acessíveis ao público” (Regulamento n.º257/2018, de 8 de maio) e hoje por “utilizadores finais titulares de contratos associados a números incluídos no PNN” (Regulamento n.º 38/2025, de 9 de janeiro).

No fundo, falamos da possibilidade de mudar de operadora sem o transtorno de ter de, obrigatoriamente, mudar de número.

Se, há duas décadas, esta funcionalidade era sobretudo conveniente, hoje tornou-se indispensável. Pense-se no número de serviços e contas, incluindo mecanismos essenciais de identidade e autenticação digital, que temos atualmente associados ao nosso número de telemóvel – como a Chave Móvel Digital (ID.GOV), os acessos bancários, as validações de e-mail e serviços públicos online, por exemplo. A possibilidade de manter o nosso número de telemóvel em caso de mudança de operador chega a ser, a nosso ver, uma questão de identidade digital. Ao mesmo tempo, o mercado atual oferece-nos uma tão vasta panóplia de operadores e modelos contratuais que, por si só, justificam a existência de um modelo facilitador (e gratuito) da decisão de mudar, ou não, de operador.

O primeiro Regulamento da Portabilidade (RP), o Regulamento n.º 58/2005, de 18 de agosto, foi aprovado a 22 de julho de 2005 pela ANACOM (à data ICP-ANACOM) e publicado em Diário da República a 18/08/2005. No seu preâmbulo, afirmou-se como objetivo primordial estabelecer “os princípios e regras aplicáveis à portabilidade nas redes telefónicas públicas”, tendo em conta a “experiência colhida da implementação da portabilidade desde o seu início.”

O Regulamento n.º 58/2005, de 18 de agosto, foi, entretanto, alterado pelos Regulamentos n.º 87/2009, de 18 de fevereiro, n.º 302/2009, de 16 de julho, e n.º 114/2012, de 13 de março, e, mais recentemente, pelo Regulamento n.º 257/2018, de 8 de maio. [2]

O Regulamento n.º 257/2018, de 8 de maio, introduziu novos e importantes conceitos, como o “Código de validação da portabilidade” – identificador que permite ao prestador doador ou detentor identificar univocamente o assinante e o(s) seu(s) número(s) para efeitos de portabilidade – e alargou o horário de utilização da «Janela de Portabilidade» [3]. Veio ainda reiterar a irrenunciabilidade do direito do utilizador a manter o número ao mudar de prestador e proibiu a privação do acesso à portabilidade por questões contratuais e abusivas. Ademais, de uma maneira geral, no que diz respeito à tramitação do processo de portabilidade, passou a exigir-se às empresas, de forma clara e expressa, uma postura colaborativa e de boa-fé, com vista à celeridade do processo. Nesse sentido, dispõe ainda o artigo 141.º, n. º 3, da LCE que“as empresas não podem atrasar nem cometer abusos nos processos de portabilidade”.

A título exemplificativo, o artigo 6.º, n.º 2, impunha que, perante uma denúncia associada a um pedido de portabilidade, o PD (Prestador de Origem/ Prestador Detentor) tivesse a obrigação de informar “de forma isenta o assinante de que essa denúncia deve ser apresentada junto do PR [Prestador Recetor].”

Foi a redação dada pelo Regulamento n.º 257/2018, de 8 de maio, que vigorou nos últimos cerca de 7 anos, e até 10/10/2025, data em que foi substituído pelo Regulamento n.º 38/2025, de 9 de janeiro. Este “novo” Regulamento da Portabilidade foi publicado no Diário da República no dia 9 de janeiro de 2025 e procedeu à revogação do Regulamento n.º 58/2005, de 18 de agosto (artigo 34.º, n.º 1), estabelecendo, no entanto, uma vacatio legis de 10 meses “após a sua publicação no Diário da República” (artigo 35.º, n.º 1).  Tal facto prende-se com a necessidade de proporcionar às empresas/operadoras o tempo necessário para a implementação das novas medidas técnicas e alterações processuais e em sistemas.

O “novo” Regulamento mantém como objetivo primordial assegurar a efetividade da portabilidade, mas introduz regras destinadas a assegurar maior eficácia, celeridade e uniformização de procedimentos. Como refere o próprio preâmbulo, foram mantidas a “maioria das disposições do Regulamento n.º 58/2005, de 18 de agosto, com as várias alterações que lhe foram sendo introduzidas, (…) que, sendo compatíveis com a LCE, continuam a ser necessárias e adequadas para garantir que a portabilidade de números entre as empresas ocorra de forma eficaz, assegurando a continuidade da prestação do serviço aos utilizadores finais (…)”.

Mas a grande novidade desta nova regulamentação não consiste, a nosso ver, na proibição de as operadoras de telecomunicações cobrarem pela portabilidade de números de telemóvel.

O artigo 6.º, n.º 3, do revogado Regulamento da Portabilidade já proibia o Prestador Detentor de “exigir ao seu assinante qualquer pagamento pela portabilidade do número”. Paralelamente, estabelecia-se a obrigação de o Prestador de Origem, mediante solicitação do assinante, fornecer imediatamente e em suporte durável o Código de Validação da Portabilidade (CVP) — elemento indispensável ao pedido eletrónico de portabilidade — não podendo a existência de eventuais dívidas constituir fundamento de oposição à portabilidade (artigos 12.º-A, n.º 8, e 13.º, n.º 7, do revogado Regulamento da Portabilidade). Significa isto que a portabilidade deveria já ser assegurada mesmo que existisse um contrato de fidelização ativo ou dívidas ao operador antigo, o que em qualquer caso não significava que eventuais dívidas fossem “esquecidas”. As contas a acertar com o operador antigo continuavam em aberto.

Estas disposições encontram hoje correspondência nos artigos 5.º, n.º 9, 12.º, n.º 11, e 15.º, n.º 4, respetivamente, do “novo” Regulamento. O que o “novo” Regulamento nos traz é um reforço ao princípio da gratuitidade da portabilidade, extensível a todas as empresas envolvidas no processo de portabilidade, e ainda a clarificação de que a proibição de exigir qualquer pagamento pela portabilidade do número abrange todos e quaisquer custos diretos relativos à portabilidade do número, nomeadamente taxas ou quaisquer encargos.

Efetivamente, enquanto o antigo artigo 6.º, n.º 3, limitava a proibição de exigir pagamento apenas ao Prestador Detentor/Doador, o novo Regulamento alarga expressamente esta proibição. O novo artigo 5.º, n.º 9, determina que:

As empresas não podem cobrar aos utilizadores finais titulares do contrato associado ao número encargos diretos relativos à portabilidade do número.”

Destaca-se ainda que, no caso de portabilidade de números afetos a serviços pré-pagos, o PD é obrigado a reembolsar ao utilizador qualquer crédito remanescente respeitante ao número portado, podendo cobrar um encargo máximo de 1 euro por operação, com reembolso a ser feito em até 10 dias úteis – cfr. artigos 6.º, n.º 2, e 24.º do novo Regulamento.  Neste cenário, e apenas caso esteja previsto no contrato, admite-se que o reembolso tenha encargos para o utilizador, cujo valor deverá ser “proporcionado e baseado nos custos efetivamente suportados pela empresa que realiza o reembolso” – cfr. artigo 24.º, n.ºs 1 e n.º 2 do Regulamento da Portabilidade e artigo 140.º, n.ºs 9 e 10 da Lei das Comunicações Eletrónicas.

Destaca-se aqui outras alterações significativas:

1. A obrigação de o novo operador garantir que a portabilidade e ativação do número ocorre na data acordada com o utilizador, ou até um dia útil após essa data (exceto quando for necessária instalação, caso em que será até um dia útil após instalação, ou dois dias úteis caso a instalação ocorra após as 17h) – cfr. Art. 11.º, n.os 7 e 8.

2. O utilizador final mantém o direito de portar o seu número (ainda que inativado) para outra empresa durante 3 meses após a cessação do contrato com o PD, salvo renúncia expressa no momento da desativação – o chamado “Tempo de Quarentena” (cfr. artigos 2.º, n.º 2, alínea ff), 3.º, n.º 2, alínea c), a contrario, e 19.º, n.º 1.

3. Mantém-se e aprofunda-se o regime de compensações por atraso ou falha na portabilidade e introduzem-se compensações adicionais em caso de incumprimento:

a) 10,00€ (dez euros) por incumprimento de intervenções físicas agendadas que obriguem à remarcação – Cfr. art. 29.º, n.º 3;

b) 3,00€ (três euros) por cada dia completo de atraso na portabilidade – cfr. art. 29.º, n. º 2, al. a);

c) 23,00€ (vinte e três euros) por cada dia de interrupção do serviço, até ao máximo de 5.750,00€ (cinco mil setecentos e cinquenta euros) por pedido de portabilidade – cfr. art. 29.º, n.º 2, al. b);

d) 23,00€ (vinte e três euros) por cada dia em que um número se mantenha indevidamente portado, em caso de portabilidade indevida, até ao máximo de 5.750,00€ (cinco mil setecentos e cinquenta euros) por pedido de portabilidade – cfr. art. 29.º, n.º 1, al. d).

[1] Preâmbulo do Regulamento n.º 58/2005, de 18 de agosto

[2] Este último, objeto de alteração pelo Regulamento n.º 85/2019, publicado a 21 de janeiro, que procedeu à alteração do artigo 6.º, n.º 1, alínea b), referente à entrada em vigor das disposições previstas no artigo 2.º, do n.º 8 do artigo 7.º e dos artigos 8.º, 9.º, 12.º, 12.º-A, 13.º, 14.º, 17.º, 18.º e 23.º-A, cuja previsão passou a determinar “que entram em vigor no dia 11 de maio de 2019”, ao invés de 9 meses após a sua publicação.

[3] O horário da «Janela de Portabilidade» refere-se ao período de três horas consecutivas, durante o qual ocorre a portabilidade ou alteração de NRN (Network Routing Number)  – Os NRN “são números usados como prefixos que, antepostos aos números portados, permitem identificar e reencaminhar as  chamadas para a rede do prestador para onde os números foram portados.

Codificar ou Não Codificar: Eis a Questão

Doutrina

Por Ana Xavier Soares, Bárbara Ferreira Alves, Graça Saúde, Diana Silva Cruz, Eveline Rodrigues de Areia, Felipe Caires, Filipa Farinha Santos, Filipa Osório Dias, Joana de Almeida, Jorge Morais Carvalho, Maria João Carapinha, Maria Clara Bauly, Mariana Brighton, Nuno Matias Gaspar, Rita Gomes Moreira, Sílvia Afonso e Vera Teodoro

No dia 11 de setembro, teve início a Pós-Graduação em Direito do Consumo, organizada pela NOVA School of Law Executive Education. Os participantes foram desafiados, desde logo, a indicar as vantagens e as desvantagens da dispersão da legislação de consumo em Portugal. Neste texto, reflete-se sobre esta questão, revelando uma análise rica e equilibrada[1].

A dispersão da legislação de consumo em Portugal tem sido objeto de debate académico e político há décadas. Em 2006, na sequência do trabalho de uma Comissão liderada por António Pinto Monteiro, chegou a ser apresentado um Anteprojeto de Código do Consumidor, que não teve seguimento, mas que reacendeu a discussão sobre os méritos e os limites da codificação nesta área. Hoje, essa questão continua atual: será preferível manter uma abordagem dispersa, com diplomas setoriais e especializados, ou avançar para uma codificação que sistematize e torne mais acessível o Direito do Consumo?

Este dilema foi explorado pelos/as estudantes da Pós-Graduação em Direito do Consumo da NOVA School of Law, que responderam ao desafio de identificar as vantagens e desvantagens da dispersão legislativa. As suas reflexões revelam uma análise profunda e ponderada, que aqui se sintetiza.

A dispersão permite uma regulação especializada, ajustada às especificidades de cada setor económico. Áreas como as telecomunicações, os transportes ou os serviços digitais beneficiam de normas técnicas mais detalhadas, preparadas por especialistas na matéria, que dificilmente caberiam num código único. Esta especialização favorece uma proteção mais eficaz dos consumidores em contextos específicos.

Outro argumento apresentado no sentido da dispersão é a flexibilidade. A existência de diplomas avulsos facilita alterações legislativas pontuais, sem necessidade de rever um corpo normativo extenso. Esta agilidade é particularmente relevante num mercado em constante transformação, marcado pela inovação tecnológica e pela evolução resultante das diretivas europeias.

Destaca-se ainda que a dispersão pode estimular a criatividade jurídica, permitindo interpretações jurisprudenciais adaptadas ao contexto social e económico do momento.

Em sentido contrário, a dispersão acarreta dificuldades de acesso ao direito, sobretudo para os consumidores sem formação jurídica, mas também para pequenas empresas. A fragmentação normativa torna mais complexa a identificação das regras aplicáveis, comprometendo a clareza, a simplicidade e a transparência do sistema jurídico.

A multiplicidade de diplomas pode gerar insegurança jurídica, com riscos de regimes contraditórios e interpretações divergentes ou da existência de lacunas. A ausência de versões consolidadas agrava esta dificuldade, dificultando a consulta e a compreensão das normas.

Além disso, a dispersão pode comprometer o princípio da igualdade, ao tratar de forma desigual situações semelhantes reguladas por diplomas distintos. E exige uma maior dependência de entidades de apoio ao consumidor, o que pode limitar a autonomia informada dos cidadãos consumidores.

Esta reflexão recupera o debate sobre a codificação do Direito do Consumo. Embora a dispersão tenha algumas vantagens, reconhece-se que a existência de um Código do Consumo poderia facilitar o conhecimento das normas, promover a segurança jurídica e aproximar o direito dos cidadãos.

A codificação não teria de ser rígida ou exaustiva. Poderia coexistir com diplomas complementares, permitindo um equilíbrio entre sistematização e especialização, entre acessibilidade e adaptabilidade.

Em suma, a análise mostra que não há respostas simples, mas há caminhos possíveis. A solução poderá passar por uma codificação inteligente, que preserve a flexibilidade e a especialização setorial, sem sacrificar a clareza e a acessibilidade do Direito do Consumo. Um desafio que merece ser debatido e enfrentado com seriedade e visão de futuro.


[1] Tratando-se de um texto coletivo, é possível que alguma ideia não corresponda à perspetiva de todos os autores.

Patas nas asas: oximoros sem lei? Viajar de avião com animal de companhia

Doutrina

Viajar de avião com um animal de companhia é uma realidade cada vez mais comum para os consumidores europeus. Além da percentagem de agregados familiares com animais de companhias superar já os 50% em Portugal, várias razões motivam a necessidade de os transportar de avião, entre elas viagens lúdicas que incluem o animal nas férias, emigração, participação em concursos internacionais e/ou necessidade de viajar com um cão de assistência (nomeadamente, cães-guias, cães-ouvintes ou cães de serviço).

No entanto, o enquadramento jurídico desta realidade é acinzentado, ou não estivéssemos nós no meio das nuvens. Afinal, quando um consumidor adquire uma passagem aérea e paga adicionalmente para transportar o seu animal de companhia, o que está, no fim de contas, a contratar?

O transporte aéreo de animais de companhia situa-se num cruzamento peculiar entre o direito do consumo e o «direito animal», este último sem autonomia científica em Portugal. No plano jurídico europeu, o Regulamento (UE) n.º 576/2013 trata da movimentação não comercial de animais de companhia entre Estados-Membros ou a partir de um país terceiro, definindo requisitos sanitários e documentais obrigatórios para que o animal possa viajar, como, por exemplo, entre outros, a exigência de o animal ser portador de passaporte, de estar vacinado contra a raiva e de lhe ter sido implantado um microchip de registo. Este regime é o mais detalhado que o consumidor irá encontrar quando necessitar de saber as regras que lhe são aplicáveis se quiser transportar o seu animal de estimação via aérea, mas ainda assim ficará com muitas dúvidas. Não encontrará, por exemplo, regulamentação sobre o transporte do seu animal na cabine do avião – portanto, o que quer que seja que a companhia aérea decida quanto a esse aspeto, se não é proibido, pode-se fazer.

No plano jurídico português, o Decreto-Lei n.º 276/2001, que transpõe a Convenção Europeia para a Proteção dos Animais de Companhia, não é eloquente para o caso. Consagra princípios gerais tendentes à garantia de que o bem-estar do animal não é comprometido em diferentes situações do quotidiano, nomeadamente, mas não só, durante o transporte, mas não esclarece mais. Em boa verdade, se excluirmos o caso excecional de viajar de avião com animais de assistência (Regulamento n.º 1107/2006), não existem ainda disposições específicas ou um regime jurídico que trate o transporte aéreo de animais de companhia. Para variar, o consumidor lidará com o nevoeiro. Na prática, as cláusulas são ditadas pelas políticas comerciais de cada companhia aérea, frequentemente distintas umas das outras. Assim, algumas permitem o transporte de animais de pequeno porte na cabine (estabelecendo limitações arbitrárias de peso ou espécie), outras remetem todos os animais obrigatoriamente para o porão, e outras, ainda, simplesmente não admitem o transporte de quaisquer animais.

Este quadro comercial fragmentário – e sem enquadramento jurídico direto – tem consequências relevantes. Em primeiro lugar, a informação prestada ao consumidor é muitas vezes insuficiente ou equívoca: nas companhias aéreas que permitem o transporte, não é claro em que condições o animal será transportado, nem qual a extensão da responsabilidade da transportadora em caso de incidente. Em segundo lugar, verifica-se uma prática generalizada que merece escrutínio: as transportadoras aéreas cobram preços suplementares, por vezes elevados (não raras vezes superior ao preço do bilhete do próprio passageiro), pelo transporte do animal, mas não asseguram um espaço efetivamente apropriado para esse transporte. Por exemplo, quando o animal viaja na cabine, o passageiro-tutor é frequentemente instruído a colocar a caixa transportadora aos seus pés, num espaço exíguo para ambos, o que compromete tanto o conforto do animal como a comodidade do próprio passageiro. Trata-se de um serviço adicional pago que dificilmente cumpre os princípios da adequação e da transparência contratual impostos pelo direito do consumo. A prestação de um serviço oneroso sem a correspondente qualidade pode configurar uma prática comercial desleal nos termos do Decreto-Lei n.º 57/2008, por induzir o consumidor em erro quanto às condições reais do transporte, e, no limite, a violação de deveres de lealdade e boa-fé, já que o consumidor, apesar de pagar por um serviço extra, fica numa posição pior do que aquela em que estaria se não tivesse pagado por esse serviço. O mínimo exigível sempre seria a disponibilização do assento contíguo. Mal comparado, veja-se que, quando um passageiro viaja com uma criança até aos 2 anos (e, por isso, viaja no colo do adulto obrigatoriamente), geralmente o serviço é gratuito, já que, na prática, apenas é utilizado um assento.

Questão diversa, ainda que conexa, é o transporte de animais de companhia no porão do avião, que comporta riscos para a vida do animal. O debate em torno do Projeto de Lei n.º 211/XVI/1.ª ilustra o problema. O diploma pretende proibir o transporte de animais de companhia no porão das aeronaves e garantir o transporte em cabine em condições dignas. Ainda que a proposta não tenha sido ainda vertida em lei, representa um passo relevante no sentido de reconhecer que o bem-estar animal não é um mero detalhe operacional, mas um elemento essencial da qualidade do serviço prestado.

Neste domínio, a experiência italiana merece destaque. No ano corrente, a autoridade nacional de aviação civil (ENAC) introduziu novas diretrizes que permitem que cães de médio e grande porte (até 25 kg) viajem na cabine, junto dos seus tutores, observadas as regras de segurança e em condições controladas a bordo. É a primeira medida deste tipo na Europa e constitui um exemplo de integração da proteção do bem-estar animal. A decisão italiana reconhece que o consumidor contemporâneo não é apenas um passageiro que leva uma mala, mas alguém que confia a um prestador de serviços algo que considera parte da sua esfera familiar, evitando, sempre que possível, a sua remessa para o porão e os riscos acrescidos para a saúde do animal.

Em contracorrente ao que parecia vir sendo o encaminhamento social da questão, o Tribunal de Justiça da União Europeia, em interpretação da Convenção de Montreal num caso concreto, pronunciou-se muito recentemente no sentido de que os animais transportados em avião são, para efeitos de responsabilidade, equiparados a «bagagem», uma qualificação que levanta sérias questões por subvalorizar o caráter senciente do animal, ignorar a dignidade valorativa do animal para o passageiro e por reduzir o transporte daquele a uma dimensão patrimonial.

O estatuto jurídico dos animais sempre foi causa de celeuma. Primordialmente considerados «coisas» pelo Código Civil, têm agora, em Portugal, estatuto próprio. Tal não é também suficiente para acautelar parte dos problemas que se colocam aos consumidores que viajam com os seus animais de companhia. Além das cláusulas contratuais gerais, essencialmente discricionárias, que são impostas aos passageiros pelas companhias aéreas, não reconhecer que o animal não é uma bagagem tem consequências práticas, por exemplo, em caso de atraso de voo (sobretudo numa Europa ainda pouco equipada ao nível de instalações sanitárias para animais dentro dos aeroportos).

Do ponto de vista do direito do consumo, o desafio é claro: garantir que as práticas comerciais das companhias aéreas são compatíveis com os princípios de transparência, lealdade e proporcionalidade. Cobrar um valor significativo pelo transporte de um animal sem garantir condições mínimas de conforto e segurança é incompatível com o princípio da boa-fé e com a legítima expectativa do consumidor. A harmonização europeia nesta matéria é, por isso, necessária.

Entre a oportunidade e o engano: o direito do consumo no contexto da Black Friday

Doutrina, Uncategorized

Com a aproximação da Black Friday, multiplicam-se as campanhas publicitárias e as ações promocionais que prometem descontos excecionais e oportunidades imperdíveis.

Contudo, a par do entusiasmo gerado por este período de intenso consumo, surgem questões relevantes como a publicidade enganosa, o direito à informação e a proteção do consumidor.

Esta campanha, que ocorre todos os anos na última sexta-feira do mês de novembro, encaixa-se no âmbito das legislações portuguesa e europeia sobre a defesa do consumidor, que procuram assegurar que as promoções sejam comunicadas de forma transparente, veraz e não suscetível de induzir o comprador em erro.

No contexto do mercado do consumo, a ocorrência de práticas comerciais desleais durante o período da Black Friday é muito frequente, como já se escreveu aqui no blog.

Um exemplo paradigmático manifesta-se na divulgação de informações falsas, omissas ou incompletas, com o intuito de induzir o consumidor em erro quanto às características reais do produto ou serviço, levando-o a realizar uma compra que, noutras circunstâncias, não efetuaria.

Esta situação é comum, por exemplo, em sites de companhias aéreas que, sob o pretexto de se tratar de uma campanha Black Friday, anunciam tarifas muito abaixo do valor habitual. Porém, ao iniciar o processo de compra, o consumidor constata, por vezes, que o preço anunciado não inclui taxas obrigatórias, como taxas de embarque, taxas de reserva ou custos administrativos de processamento de pagamento.

Tal prática configura uma omissão de informação essencial e pode ser qualificada como uma prática comercial desleal à luz do Decreto-Lei n.º 57/2008, de 26 de março, que transpõe para a ordem jurídica nacional a Diretiva n.º 2005/29/CE.

A Black Friday assenta ainda em práticas comerciais com reduções de preços.

De acordo com o Decreto-Lei n.º 70/2007, de 26 de março, os comerciantes devem anunciar o preço anterior em todas as reduções de preço, isto é, o preço mais baixo praticado nos 30 dias anteriores, a fim de assegurar a transparência e a lealdade da prática comercial.

No entanto, há relatos de consumidores que levam a crer que esta prática ainda não é totalmente aplicada. Ao acompanharem a evolução dos preços ao longo do tempo, vários consumidores afirmam que esta regra é aplicada de forma incorreta ou manipulada. Muitas vezes, verificam-se aumentos de preços simulados nas semanas que antecedem a campanha, seguidos de “descontos” que, na realidade, não representam qualquer vantagem efetiva para o consumidor.

Durante o período da Black Friday, é muito frequente que o consumidor tome, também, decisões de consumo online de forma impulsiva, sem refletir devidamente sobre a necessidade ou conveniência da sua aquisição.

Este comportamento suscita a questão do direito de arrependimento, ou direito de livre resolução, consagrado no Decreto-Lei n.º 24/2014, de 14 de fevereiro.

Este diploma funciona como um mecanismo de salvaguarda, permitindo ao consumidor refletir, durante um período de 14 dias, sobre a manutenção — ou não — da sua decisão de compra.

Assim, mesmo no contexto de promoções como a Black Friday, o consumidor tem sempre a possibilidade de devolver o produto e obter o reembolso integral do valor pago, incluindo os custos de entrega padrão.

Importa, contudo, salientar que este direito se aplica exclusivamente aos contratos celebrados à distância, ou seja, através de websites, plataformas digitais e aplicações móveis, não se aplicando às compras efetuadas em lojas físicas.

Apesar de estes direitos existirem e estarem regulamentados, verifica-se, em muitos casos, a omissão de informação relativa ao direito de arrependimento durante este tipo de campanhas. Tal leva muitos consumidores a acreditarem, erradamente, que perdem esse direito ao adquirirem produtos com desconto, o que é ilegal e constitui uma violação das normas de proteção do consumidor.

A Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE) deveria intensificar as ações de fiscalização para assegurar o cumprimento das normas legais, nomeadamente do regime jurídico aplicável às reduções de preços. O aumento das inspeções durante este tipo de campanhas é crucial para proteger os consumidores e garantir que as empresas cumpram a legislação de defesa do consumidor, promovendo a transparência e a veracidade da informação publicitária.

Num mundo cada vez mais consumista, em que os consumidores apresentam comportamentos cada vez mais impulsivos e previsíveis para os algoritmos, é necessário refletir sobre a influência que os profissionais do mercado de consumo exercem sobre as nossas escolhas de compra.

É fundamental promover uma maior consciencialização dos consumidores sobre as táticas de marketing utilizadas para influenciar, e por vezes controlar, as suas decisões de compra.

Cabe ao consumidor filtrar e selecionar a informação que recebe e assimila, adotando uma postura crítica face às estratégias de persuasão que moldam as suas preferências e necessidades.

Hoje em dia, mais do que nunca, é crucial compreender que por trás de cada anúncio publicitário persuasivo há um conjunto de técnicas cuidadosamente estudadas para despertar a curiosidade e incentivar o consumo.

A verdadeira liberdade do consumidor não consiste na capacidade de comprar o maior número de produtos no menor período de tempo possível, com um simples clique, mas sim na capacidade de reconhecer que estamos constantemente a ser aliciados por estratégias de marketing elaboradas. É necessário desenvolver uma consciência crítica que seleciona, rejeita ou valoriza aquilo que decidimos adquirir, não nos deixando persuadir facilmente pelo fenómeno do consumismo acelerado e automático.