Vishing, IA e o direito à saúde psicológica: o consumidor na era das chamadas telefónicas indesejadas

Doutrina

Chamadas não consentidas. Anedotas e realidade normativa

Gostaria de começar uma sequência de reflexões no blog do NOVA Consumer Lab com uma experiência pessoal, embora não seja exatamente fruto de uma viagem como a de Jorge Morais Carvalho. Não sei quantas vezes isto aconteceu convosco nos últimos meses (contem a experiência nos comentários, talvez sejamos muitos):

A qualquer hora do dia, um número de telefone identificado liga. Às vezes, o meu próprio telemóvel adiciona uma etiqueta de «suspeito de spam» acompanhada de um sinal de STOP; outras vezes, não. Ocasionalmente, o número parece telemóvel e outras parece fixo. O horário em que recebi chamadas vai das 9 da manhã à meia noite. As mais incómodas são as que ocorrem na hora da sesta, porque interrompem o descanso; mas não são menos desagradáveis as que ocorrem durante o horário de trabalho (a primeira impressão é que nos ligam por algo urgente, especialmente quando realmente se espera receber alguma chamada) ou as que ocorrem à noite (será que aconteceu alguma coisa à minha família ou a um amigo?).

Tenho o hábito de atender essas chamadas, apesar do aviso de spam, para surpresa dos meus amigos e familiares. As respostas que recebo são as seguintes:

(1) silêncio e desligamento da chamada em menos de 10 segundos;

(2) voz robótica a dizer «o seu trabalho é muito importante para nós» / «foi selecionado para uma oferta de emprego»;

(3) pessoa humana que me cumprimenta em nome de uma empresa de call center para me fazer uma oferta de mudança de empresa.

Se tenho o telefone em silêncio e vejo uma chamada perdida desses números, retorno a chamada, para maior surpresa dos meus amigos e familiares; e… o meu telefone indica que «o número marcado não existe», para meu espanto e, espero, dos leitores deste blog: como é que não existe se tenho uma chamada perdida dele!

Em Espanha, de acordo com dados do Instituto Nacional de Cibersegurança (INCIBE), desde a entrada em vigor do plano anti-fraudes em março de 2025, as operadoras de telefonia bloquearam cerca de 48 milhões de chamadas fraudulentas. Em Portugal, a ANACOM recebeu em 2025 70 reclamações por este tipo de práticas, mais do dobro do que em 2024 (cerca de 30). A nível mundial, no primeiro trimestre de 2025, foram detetadas 12,5 mil milhões de chamadas suspeitas de serem spam (137 milhões de chamadas por dia).

Estas chamadas pretendem explorar as vulnerabilidades da população, especialmente dos grupos mais vulneráveis. A frase que acabou de ler não é uma redundância: perante determinadas ferramentas de IA, todos somos vulneráveis, uma vez que a vulnerabilidade digital está relacionada com a fonte (IA, tratamento massivo de dados, perfilagem, padrões obscuros); e esta vulnerabilidade digital afeta ainda mais os grupos vulneráveis clássicos (menores, migrantes, idosos…). No caso das chamadas fraudulentas, o grupo mais exposto são os idosos. Precisamente, em junho de 2024, numa operação conjunta das forças de segurança espanholas e portuguesas, foram detidas 54 pessoas responsáveis por roubar pelo menos 84 vítimas através de táticas de vishing e engenharia social.

Tanto Espanha como Portugal propuseram alterações à Lei dos Serviços de Atendimento ao Cliente e à Lei das Comunicações Eletrónicas, respetivamente, com o objetivo de facilitar a identificação e o bloqueio deste tipo de chamadas.

Estas iniciativas pretendem, e devem ser saudadas, eliminar esta prática e os danos que ela causa. No entanto, por um lado, trata-se, por enquanto, de meras propostas de alteração; por outro, não contemplam medidas reativas para as situações em que a referida prática já ocorreu. É importante lembrar que estas não são apenas um meio eficaz para a prática de fraudes, mas que a repetição dessa prática em todos os tipos de população e a qualquer hora do dia gera um estado de inquietação latente dificilmente compatível com uma vida saudável.

O direito à saúde psicológica dos consumidores. Visão comparada Espanha – Portugal

O direito à saúde dos consumidores é reconhecido a nível constitucional tanto em Espanha como em Portugal:

– O artigo 60.º, n.º 1, da Constituição portuguesa estabelece que «Os consumidores têm direito à qualidade dos bens e serviços consumidos, à formação e à informação, à proteção da saúde, da segurança e dos seus interesses económicos, bem como à reparação de danos».

– O artigo 51.1 da Constituição espanhola estabelece que os poderes públicos devem garantir a defesa dos consumidores e utilizadores, protegendo, através de procedimentos eficazes, a segurança, a saúde e os legítimos interesses económicos dos mesmos.

O desenvolvimento do direito à saúde dos consumidores na regulamentação do consumo centrou-se na proteção da saúde física. Assim se pode observar nos artigos 3.º, alínea b), 5.º e 10.º, alínea a), da Lei de defesa do consumidor (Lei n.º 24/96, de 31 , de Julho); e nos artigos 8.1.a, 11, 14, 15 e outros do Texto Reunido da Lei Geral para a Defesa dos Consumidores e Utilizadores (Real Decreto Legislativo 1/2007, de 16 de novembro). Tanto a regulamentação portuguesa como a espanhola utilizam sempre a dupla «saúde e segurança». O caso da regulamentação portuguesa é ainda mais claro, uma vez que fala de «saúde e segurança física» e não apenas de «saúde», como a norma espanhola.

A vertente psicológica do direito à saúde dos consumidores é pouco explorada. Em 2023, o Parlamento Europeu publicou um relatório em que sublinha a necessidade de proteger tanto a saúde física como a saúde mental (p. 3, alínea C). Este relatório salienta igualmente que «a tecnologia digital pode trazer benefícios importantes ao ligar zonas remotas e proporcionar meios acessíveis e económicos de apoio psicológico, mas que, ao mesmo tempo, a omnipresença dos smartphones e das tecnologias digitais, como as aplicações móveis e as redes sociais, representa um risco para a saúde mental e o isolamento social». No entanto, o texto centra-se fundamentalmente nas consequências do uso excessivo das tecnologias digitais, especialmente na população jovem e infantil. Embora seja verdade que as chamadas falsas não seriam possíveis sem o uso das tecnologias digitais atuais, não estamos a falar exatamente da mesma coisa. De qualquer forma, a proteção e a promoção da saúde mental são uma preocupação da Comissão Europeia, como demonstram os documentos emitidos desde 2023 sobre uma abordagem integral da saúde mental na UE. É de salientar, no entanto, que esses documentos não fazem referência explícita à saúde mental dos consumidores.

Não consegui encontrar decisões judiciais em Espanha ou Portugal, nem no Tribunal de Justiça da UE, que tratem da vertente psicológica do direito à saúde dos consumidores. No entanto, é importante lembrar que «saúde» é o «estado do indivíduo em que as funções orgânicas, físicas e mentais decorrem com normalidade». Neste termo, o Dicionário da Língua Portuguesa é mais preciso do que o Dicionário da Real Academia da Língua Espanhola, que define «saúde» como o «estado em que o ser orgânico exerce normalmente todas as suas funções», mas sem fazer referência expressa às funções orgânicas, físicas e mentais. Nesse sentido, parece razoável e coerente com a crescente preocupação da UE com a promoção e o cuidado da saúde mental preencher uma lacuna importante na aplicação da nossa regulamentação de consumo: os consumidores têm direito à saúde e à segurança, não apenas física, mas também mental.

Fora do âmbito do direito do consumo, os danos psicológicos são reconhecidos como danos não patrimoniais, tanto em Portugal como em Espanha. Em Portugal, o artigo 70.º do Código Civil estabelece que «a lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral», o que é posteriormente complementado pelos critérios de compensação de danos não patrimoniais (art. 464.º) e de cálculo da indemnização (art. 564.º). Um critério semelhante é seguido em Espanha, neste caso apoiado nos artigos 1902.º e 1103.º a 1107.º do Código Civil. Os danos psicológicos são geralmente considerados como uma categoria específica de danos morais; no entanto, considero oportuno salientar o seguinte:

– Os danos morais visam compensar o sofrimento (pretium doloris, de acordo com o acórdão do Supremo Tribunal de Espanha de 31 de maio de 2000), mas esse sofrimento não tem necessariamente de estar associado a uma doença psicológica (acórdão do Supremo Tribunal de Espanha de 16 de junho de 2016). Tanto é assim que o Tribunal de Justiça da UE reconheceu em várias sentenças que o medo da utilização indevida de dados pessoais após o incumprimento do RGPD constitui um dano moral indemnizável no âmbito do artigo 82.º do RGPD.

– Os danos psicológicos estão associados a uma doença psicológica, normalmente derivada de alguma circunstância traumática ou de um sofrimento. São, deste ponto de vista, danos relativos à saúde.

Para efeitos práticos, o importante é que existe uma prática consolidada de compensar o sofrimento (esteja ou não associado a uma doença psicológica) como dano moral. No entanto, para efeitos do objetivo destas reflexões, penso que é importante salientar que, neste momento, a via fundamental de proteção dos danos à saúde psicológica dos consumidores (questão que faz parte da proteção do seu direito à saúde) não se encontra nas normas de consumo, mas nas normas gerais do direito civil sobre indemnização por danos não patrimoniais.

Ações coletivas em defesa do direito à saúde psicológica dos consumidores?

Esta falta de critérios claros na regulamentação e, naturalmente, ainda mais na jurisprudência, deixa desprotegida metade do conteúdo do direito à saúde dos consumidores, se lembrarmos que, de acordo com o Parlamento Europeu, a saúde física e a saúde mental devem ser tratadas de forma igualitária.

Acrescentemos a tudo isso uma última questão: e a saúde pública psicológica?

Utilizo, emprestadas, as palavras de Ana Rita Fontes Pinto na sua dissertação “A responsabilidade civil pela perturbação psicológica (emotional distress) causada pelos meios de comunicação social”:

«O abalo psicológico que os meios de comunicação social podem provocar no ser humano é inquestionável, tomemos como exemplo a pandemia. Quanta ansiedade e stress foram causados à população pela imensidão de notícias minuto a minuto com atualizações sobre as mortes, internamentos, números de infetados?»

A reflexão, muito oportuna, sobre um dano coletivo à saúde psicológica refere-se à atuação dos meios de comunicação social durante a pandemia. Sem pretender equiparar o stress causado pelos meios de comunicação e redes sociais nos meses mais críticos (nem muito menos entrar na sua ponderação com o dever de informação e a liberdade de expressão), cabe questionar se 137 milhões de chamadas falsas por dia podem estar a causar danos coletivos à saúde psicológica dos consumidores.

Se chegarmos à conclusão de que sim (eu acredito que sim), talvez a ação coletiva contra as empresas responsáveis por essa abundância de chamadas falsas por danos psicológicos coletivos possa ser uma forma de defesa dos consumidores. Para saber mais sobre a ação coletiva, consulte o post de Leonor Gambôa Machado, publicado na semana passada.

Ações Coletivas de Consumidores: Nova Era de Defesa

Doutrina

Louis Brandeis, ex-juiz do Supreme Court dos Estados Unidos da América e defensor ativo da justiça social, dos direitos dos consumidores e da responsabilidade corporativa, conhecido por “the people’s Lawyer”, em determinado momento referiu que “[o] cargo político mais importante é o de cidadão comum”.

Brandeis foi um dos primeiros juristas a denunciar abusos das grandes empresas e a defender o direito dos consumidores à informação e à proteção contra práticas abusivas. Este juiz defendia que o envolvimento individual era crucial para garantir uma democracia saudável e justa e, talvez fruto desse contexto, surgem, mais tarde, as ações coletivas de consumidores.

As referidas ações permitem a defesa conjunta de direitos ou interesses homogéneos de um grupo de consumidores, sendo um instrumento jurídico importante de garantia de direitos e tutela efetiva e dissuasora das infrações ao direito do consumo.

Em Portugal, as ações coletivas surgem pela primeira vez na Constituição da República Portuguesa, no seu artigo 52.º, n.º 3, al. a) sendo posteriormente consagradas na Lei n.º 83/95, de 31 de agosto, que regula o direito de participação procedimental e de ação popular, abrangendo diversos interesses, entre eles o relativo ao consumo de bens e serviços.

A mencionada Lei consagra um regime de representação processual por iniciativa própria, com dispensa de mandato ou autorização expressa, em que o autor representa todos os demais titulares dos interesses em causa que não tenham exercido o direito de autoexclusão (opt-out). A Lei prevê ainda um regime especial de custas, de recolha de provas e de responsabilidade civil e penal.

Este regime nacional foi complementado pelo Decreto-Lei n.º 114-A/2023, de 5 de dezembro, que transpôs para a ordem jurídica interna a Diretiva (UE) 2020/1828 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de novembro de 2020, relativa a ações coletivas para proteção dos interesses coletivos dos consumidores.  Esta diretiva visa harmonizar e reforçar os meios processuais para proteção dos interesses coletivos dos consumidores na União Europeia, assegurando a existência de, pelo menos, um mecanismo processual de ação coletiva eficaz e eficiente em todos os Estados-Membros.

O Decreto-Lei n.º 114-A/2023 trouxe mudanças significativas para as ações coletivas no âmbito do direito do consumo em Portugal, alinhando a legislação nacional com a Diretiva (UE) 2020/1828. Entre as principais novidades, destacam-se critérios mais rigorosos para associações e fundações que pretendam representar consumidores em tribunal, exigindo independência, transparência no financiamento e ausência de conflitos de interesses. A Direção-Geral do Consumidor assume um papel central, sendo responsável pela designação das entidades qualificadas e pela comunicação com a Comissão Europeia e outros Estados-Membros.

Outra inovação importante é a possibilidade de entidades estrangeiras, reconhecidas noutros países da União Europeia, intentarem ações coletivas em Portugal, e vice-versa. Para proteger consumidores não residentes, o regime opt-in foi adotado, exigindo manifestação expressa de vontade para serem representados em processos transfronteiriços. O Decreto-Lei n.º 114-A/2023 também regula o financiamento por terceiros, impondo limites à remuneração dos financiadores e proibindo situações de dependência ou concorrência entre financiador e demandado.

Como já é apanágio da área do direito do consumo, o referido diploma incentiva a resolução extrajudicial de conflitos, obrigando a uma consulta prévia ao profissional antes de recorrer ao tribunal para medidas posteriores. Além disso, estabelece um regime especial de prescrição, facilitando o acesso dos consumidores à justiça ao interromper prazos enquanto decorrem as ações coletivas. Ademais, as regras sobre indemnizações foram clarificadas, prevendo critérios para identificação dos lesados, distribuição proporcional dos valores, assim como para destinação dos montantes não reclamados.

Por fim, o Decreto-Lei n.º 114-A/2023 reforça a transparência e a divulgação das ações coletivas, obrigando à publicação das decisões e à prestação de informações detalhadas tanto pelos demandantes como pela autoridade competente. Isenta, também, consumidores e associações de custas processuais e prevê sanções para incumprimento das decisões judiciais. Estas medidas visam tornar as ações coletivas mais acessíveis, eficazes e transparentes, promovendo uma maior proteção dos direitos dos consumidores em Portugal.

A jurisprudência recente tem vindo a ilustrar, de forma concreta, o impacto do Decreto-Lei n.º 114-A/2023 na prática das ações coletivas em Portugal, destacando-se algumas particularidades. No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de março de 2025, Processo n.º 5623/23.7T8BRG.S1 (Relatora: Catarina Serra), o tribunal valorizou a autonomia das ações populares face ao processo penal, sublinhando que o novo regime reforça a tramitação própria e a independência destas ações, mesmo quando envolvem ilícitos criminais ou contraordenacionais.  

Já no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de julho de 2024, Processo n.º 607/24.0T8GMR.G1.S1 (Relator: Jorge Leal), foi dada especial atenção à legitimidade das associações de consumidores e à necessidade de concretização dos pedidos e da causa de pedir, em linha com as exigências de transparência e rigor introduzidas pelo novo diploma.  

Por sua vez, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 30 de abril de 2025, Processo n.º 3106/23.4T8GMR.G2 (Relator: António Pereira), destacou a admissibilidade de pedidos de indemnização coletiva e a importância da correta identificação da entidade demandada, refletindo as preocupações do Decreto-Lei n.º 114-A/2023 quanto à clareza processual e à proteção efetiva dos lesados.  

Além disso, os tribunais têm aplicado as novas regras sobre a publicação das decisões, a gestão e distribuição das indemnizações e a necessidade de transparência e independência das entidades demandantes, como se observa nos pedidos e decisões que remetem para a designação de entidades responsáveis pela administração dos montantes devidos aos lesados.  O regime de financiamento por terceiros e a obrigatoriedade de consulta prévia ao profissional antes da propositura da ação também têm sido referidos como garantias adicionais de equilíbrio e boa-fé processual.  

Em suma, pelo que podemos interpretar da jurisprudência recente, parece-nos que o Decreto-Lei n.º 114-A/2023 já está a ser utilizado como um instrumento legislativo fundamental para a efetivação dos direitos dos consumidores, promovendo maior segurança jurídica, transparência e eficácia nas ações coletivas em Portugal.

Henry David Thoreau, no seu grande ensaio “Desobediência Civil” referia que “[j]amais haverá um Estado realmente livre e esclarecido até que este venha a reconhecer o indivíduo como um poder mais alto e independente, do qual deriva todo seu próprio poder e autoridade, e o trate da maneira adequada”. Talvez as ações coletivas de consumidores, cada vez mais reguladas, possam vir a trazer resultados reais a este grupo de indivíduos e contribuir para o fortalecimento da sua posição perante o Estado e o mercado, promovendo uma efetiva proteção de seus direitos e interesses, ao mesmo tempo em que reafirmam o papel do indivíduo como fundamento e limite do poder coletivo.

Desafios da proteção do consumidor em Timor-Leste e o papel essencial a desempenhar pelas Universidades

Doutrina

Por João Fernandes Moreira (1)

O Direito do Consumo tem sido erigido em Timor-Leste por via de uma forte influência lusófona (e europeia), apesar da distância física que separa o seu território do velho continente europeu.

A ligação histórica, linguística, cultural e religiosa que une Portugal a Timor-Leste sobreviveu à ocupação da República da Indonésia entre 1975 e 1999 e, atualmente, apesar de todos os obstáculos existentes, o ordenamento jurídico timorense é composto por legislação totalmente redigida em língua portuguesa, sendo que apenas alguns diplomas são traduzidos oficialmente para a outra língua oficial do país (o tétum), observando-se o n.º 1 do artigo 13.º da Constituição da República Democrática de Timor-Leste. Perante uma eventual divergência entre os textos publicados, dá-se sempre prevalência à versão em língua portuguesa (cfr. n.º 3 do artigo 3.º da Lei n.º 1/2002, de 7 de agosto).

Contudo, sendo a língua portuguesa fluentemente falada por apenas 30% da população timorense (segundo os dados constantes nos Censos da População do ano de 2015), há uma forte limitação do efetivo conhecimento do Direito legislado em Timor-Leste. Verifica-se, assim, uma realidade assente na ideia de “Law in books, law in action”, expressão de Roscoe Pound, de 1910, colocando-se um problema de conhecimento e respeito da lei em vigor por parte dos membros da sociedade, seus destinatários.

A influência jurídica portuguesa no Direito do Consumo timorense não se manifesta só na Constituição, mas também em inúmeros diplomas infraconstitucionais, de natureza legal e administrativa, que foram sendo produzidos e publicados desde a independência em 2002. A Lei n.º 8/2016, de 8 de julho, a Lei de Proteção do Consumidor (LPC), é o principal diploma legal que estabelece as normas destinadas à defesa do consumidor em Timor-Leste. Uma lei emergente da consagração dos direitos dos consumidores no artigo 53.º da Constituição da República Democrática de Timor-Leste, que segue uma redação inspirada no artigo 60.º da homóloga Constituição portuguesa.

A LPC também não é exceção, tratando-se de um diploma legal que adotou uma redação similar à utilizada na Lei n.º 24/96, de 31 de Julho, de Portugal, designadamente na sua 6.ª versão, após a entrada em vigor da Lei n.º 47/2014, de 28 de julho.

Apesar de seguir uma redação simples e clara, destinada a uma fácil interpretação, mesmo para um leitor que não tenha conhecimentos jurídicos, a LPC encontra a suas dificuldades de implementação prática em resultado do obstáculo do fraco conhecimento da língua portuguesa por parte da maioria da população timorense.

Tratando-se de um país em desenvolvimento, onde a literacia do consumo é muito diminuta, o consumidor médio de Timor-Leste assume uma posição de muito maior vulnerabilidade se comparado com o consumidor (sempre vulnerável) português ou europeu. Perante este facto, a LPC, na alínea c) do artigo 5.º e artigo 8.º, prevê o direito aos consumidores de acederem a um concreta formação e educação para o consumo, tendo em vista a realização da sua plena liberdade de escolha no mercado, em paralelo com a solução legal resultante da alínea c) do artigo 3.º e artigo 6.º da LDC portuguesa. Todavia, apesar da louvável intenção do legislador timorense, ao impor ao Estado a competência para “incentivar e promover a realização de ações de sensibilização para o consumo”, ditando, igualmente, este mesmo dever de formar os consumidores às associações de consumidores e aos serviços públicos de rádio e televisão, a experiência prática demonstra que os resultados têm sido muito limitados.

Perante este cenário, urge refletir sobre o papel fundamental que os estabelecimentos de ensino superior dos países em desenvolvimento, sobretudo as universidades públicas, podem, e devem, assumir na concretização deste direito à formação e educação do consumidor, enquanto concretização de atribuições de interesse público e coletivo do país. Apesar de a lei não mencionar expressamente os estabelecimentos de ensino superior, estas instituições, enquanto espaços de estudo e pensamento, têm as condições adequadas para trabalharem na materialização da defesa do consumidor, seguindo o exemplo do que se tem feito em muitas Universidades portuguesas.

Propõe-se a possível criação de uma nova unidade de investigação na Universidade Nacional Timor Lorosa’e (UNTL), a única universidade pública do país, destinada a trabalhar exclusivamente na área do Direito do Consumo em Timor-Leste. Observando o contexto de mercado do país, esta unidade iria contribuir para a formação dos primeiros especialistas e investigadores timorenses nesta área de conhecimento, realizar conferências e seminários de carácter internacional, bem como trabalhar conjuntamente com os serviços do Governo de Timor-Leste competentes nas matérias do direito do consumidor, para trabalhar na melhoria da qualidade da legislação em vigor no país. O atual desinteresse académico relativamente ao Direito do Consumo em Timor-Leste faz com que para a concretização efetiva desta ideia pareça necessário que uma iniciativa que provenha parceiros internacionais, designadamente oriundos de Portugal, como única forma de surgir o primeiro estímulo na criação de um projeto pioneiro para o estudo e investigação do Direito do Consumo timorense.

Face à insuficiente concretização da proteção do consumidor, as Universidades devem assumir um papel de destaque ao colmatar o vazio deixado pela inação das entidades legalmente incumbidas de promover o aumento da literacia de consumo, sendo que a esperança reside na possibilidade de haver uma futura cooperação académica com uma iniciativa proveniente de Portugal.

(1) Licenciado pela Faculdade de Direito do Porto. Técnico Superior da Direção de Assuntos Jurídicos da Reitoria da Universidade Nova de Lisboa.

Preços misteriosos e água gratuita: reflexões de uma viagem aos EUA

Doutrina

Viajar é conhecer outras culturas, outras realidades, outros hábitos, outras práticas. É perceber que, também no que respeita ao consumo, há diferenças legais e culturais relevantes.

Numa recente viagem aos EUA de férias, percebi que há algumas diferenças relevantes que me parece interessante partilhar. Num caso, as diferenças não colocam a realidade portuguesa num bom cenário, noutros o consumidor português encontra-se mais bem protegido. É importante notar que, nos EUA, existem diferenças muito significativas de Estado para Estado.

Começo pelos preços e pela sua indicação.

Na maioria das lojas de uma região da Flórida que visitei, o preço não se encontra afixado ou não é visível. Isto significa que o cliente não sabe, à partida, quanto é que tem de pagar para comprar a coisa.

Isso implica perguntar. E estar, por isso, em contacto com o representante da empresa, que assim já se apercebeu do interesse da pessoa e pode, com as técnicas que tiver, interagir, pressionar, convencer. Muitas vezes, não é apenas indicar o preço. É mostrar melhor essa e outras coisas, relevando as características que entender, que lhe parecerem melhores para que o consumidor decida comprar.

Além da omissão da indicação do preço, este, quando indicado ou transmitido, não é o preço final. Ainda é necessário acrescentar o imposto ou impostos sobre o consumo que forem aplicáveis. Assim, se um café custa dois dólares – e o café nunca custa apenas dois dólares –, o preço a pagar será sempre superior, e desconhecido sem contas incertas.

Os impostos dependem do estado, do município, da localidade, pelo que é sempre surpreendente o que nos é dito para pagar. Bem podemos querer gastar as últimas moedas que temos na carteira, bem contadas e ajustadas ao que escolhemos. No final, são mais uns cêntimos. E acabamos por sair com mais moedas do que aquelas com que entrámos.

Em restaurantes, há ainda a surpresa do serviço acrescentado ao valor da refeição. Nunca é certo o que será cobrado. Cinco por cento. Dezoito por cento. Vinte por cento. E ainda é muito apreciada uma gorjeta adicional.

Em Portugal, o cliente sabe sempre o que tem de pagar, incluindo o preço da coisa, os impostos e quaisquer outros valores incluídos no preço. O valor indicado tem de ser o valor total.

As empresas têm, assim, um custo acrescido associado à indicação do preço em cada contexto, em função das taxas aplicáveis. Num contexto, como o dos EUA, em que o imposto sobre o consumo pode variar de cidade para cidade, poderia ser realmente muito exigente obrigar a indicar o preço final em cada caso. Ainda assim, tal permitiria ao cliente tomar uma decisão mais esclarecida.

Imagem gerada por IA

Em sentido inverso, a água é realmente gratuita para o cliente. Pede-se água em qualquer restaurante, e vem água da torneira, fresquinha, reposta regularmente, sem qualquer custo. A não ser o custo da refeição, claro.

Bem sabemos, como aqui já se deixou escrito, que, em Portugal, o cliente também tem direito a copos de água gratuitos. No entanto, generalizou-se nos últimos tempos a prática de encher umas garrafinhas bonitas com água da torneira e cobrar por esse “serviço”. Em alguns casos, a água é apresentada como tratada, depurada, quem sabe benzida pelo Deus dos líquidos puros. Ainda que assim seja, esta parece ser apenas uma prática destinada a contornar a obrigação de fornecer copos de água gratuitos.

É certo que é uma prática relativamente sustentável, em comparação com a tradição portuguesa, uma vez que se evita a utilização de muitas garrafas de plástico. Cumpre-se um dos objetivos. Mas à custa dos direitos dos clientes.

Nos EUA, tal como aliás em muitos outros países, mesmo europeus, a prática é limpa, linear, comum. O cliente não se sente mal por pedir e beber água.

Mesmo de férias, o consumo não nos larga. E é uma boa oportunidade para pensarmos em diferentes realidades e nos aspetos positivos e negativas de outras práticas.

Sistemas de Recomendação, nudging e o Direito do Consumo

Doutrina

Sistemas de recomendação estão largamente empregados na experiência digital cotidiana dos consumidores — seja ao navegar por redes sociais, escolher um filme, fazer compras online ou interagir com conteúdos selecionados algorítmica e continuamente para si. Esses sistemas, largamente utilizados por plataformas digitais, podem influenciar de forma significativa as escolhas dos consumidores. Uma das técnicas mais recorrentes nesse contexto é o nudging — estratégia de design que orienta o comportamento por meio da forma como as opções são organizadas, apresentadas ou destacadas, sem, entretanto, eliminar totalmente a liberdade de escolha.

Determinados casos de nudging, no entanto, podem configurar os chamados dark patterns — práticas de design que, em vez de facilitar escolhas conscientes, acabam por comprometer a autonomia do usuário ao interferir de forma opaca ou desproporcional no seu processo decisório. Essas práticas podem explorar vieses cognitivos, ocultar ou desvalorizar opções relevantes, induzindo assim decisões que favorecem os objetivos comerciais da plataforma, em detrimento dos melhores interesses do consumidor. Em sistemas de recomendação, isso ocorre, por exemplo, quando o design favorece conteúdos que maximizam o tempo de permanência ou o consumo impulsivo, induzindo o utilizador a certas escolhas à sombra da transparência sobre os critérios subjacentes à personalização das recomendações.

Essa influência, portanto, nem sempre ocorre de forma positiva: certos casos de nudging podem, na prática, produzir efeitos intrusivos e indesejáveis. No entanto, cabe notar que uma mesma estratégia pode ser percebida de forma distinta por diferentes usuários, o que evidencia o quanto a fronteira entre influência legítima e manipulação pode ser difícil de definir na prática.

Ao reduzir o ônus decisório que recai sobre os consumidores e destacar certos caminhos de ação, o nudging pode facilitar a navegação e ser benéfico na medida em que contribui para enfrentar o problema da sobrecarga informacional. Porém, ao fazê-lo, pode também comprometer a tomada de decisões informadas, sobretudo quando não há um nível adequado de conhecimento ou consentimento por parte do consumidor. O problema, portanto, não está na técnica em si, mas no modo como ela é implementada e nos efeitos que produz sobre a autonomia individual.

Embora o AI Act não seja, em essência, um diploma voltado à proteção do consumidor, pode contribuir para esse objetivo ao proibir determinados sistemas de IA e estabelecer obrigações de transparência proporcionais ao grau de risco de outros, de acordo com critérios definidos no próprio regime. No caso dos sistemas de recomendação, exigências rigorosas no sentido de que os utilizadores sejam informados de maneira compreensível sobre a lógica e os principais parâmetros por detrás da personalização das recomendações podem esbarrar na questão da opacidade ainda inerente a muitos desses sistemas. Trata-se do conhecido problema da black box, que pode ser entendido, de forma simples, como a impossibilidade de explicar de maneira eficaz e compreensível a lógica por detrás do funcionamento desses sistemas.

Além disso, não se deve perder de vista que exigências excessivamente técnicas ou densas em termos de transparência podem gerar um efeito contrário ao pretendido, ao sobrecarregar o utilizador com informações que dificultam — em vez de facilitar — a tomada de decisão. Trata-se, ironicamente, de um obstáculo que os próprios sistemas de recomendação — frequentemente por meio de técnicas de nudging — buscam (ou deveriam buscar) minimizar.

O conceito emergente de bright patterns — estratégias de design que priorizam os interesses e a autonomia do consumidor — oferece uma pista de como o design algorítmico pode evoluir num sentido mais ético. Uma questão crucial, nesse cenário, consiste em traçar parâmetros que garantam que o nudging seja utilizado de forma mais adequada à salvaguarda dos direitos dos consumidores — especialmente no que toca à sua autonomia decisória. O AI Act, mesmo não sendo destinado à proteção do consumidor, pode desempenhar um papel de relevo ao pressionar por arquiteturas de escolha mais transparentes e alinhadas com os direitos desses agentes.

Assim, embora outros instrumentos — como, por exemplo, o regime das práticas comerciais desleais — ofereçam salvaguardas mais evidentes no campo da proteção do consumidor, é importante reconhecer o contributo indireto que o AI Act pode oferecer quando aplicado a sistemas de recomendação baseados em IA. Ao lado de outros regimes normativos, o AI Act ajuda a compor um quadro regulatório que requer ser interpretado de forma integrada. Essa leitura sistémica do Direito é essencial para enfrentar assimetrias estruturais entre consumidores e plataformas digitais, promovendo escolhas mais informadas, transparentes e compatíveis com seus direitos e legítimos interesses.

Shein: Loja Online ou Jogo de Vício?

Doutrina

A recente “ofensiva” da União Europeia contra a Shein não é apenas uma questão de descontos falsos ou devoluções difíceis. É, acima de tudo, um alerta sobre como o design digital (invisível, mas omnipresente) se tornou uma ferramenta poderosa para manipular decisões de consumo. O que está em causa não é apenas o que a Shein vende, mas como o vende, através de uma arquitetura digital pensada para contornar a racionalidade do consumidor e explorar as suas vulnerabilidades cognitivas.

A investigação coordenada pela Comissão Europeia e pela Consumer Protection Cooperation Network (CPC Network) identificou práticas como descontos fictícios, contagens decrescentes artificiais e outras manipulações. Estas estratégias não são novas, mas a sua eficácia foi amplificada pela interface digital da Shein, que utiliza elementos de design para induzir decisões rápidas e impulsivas. Este fenómeno, conhecido como dark patterns ou padrões obscuros, representa uma forma emergente de manipulação através do design digital. Embora a sua qualificação jurídica deva ser feita caso a caso, estas estratégias podem, em certas circunstâncias, constituir práticas comerciais desleais.

A Shein transformou a experiência de compra online numa espécie de jogo, em que os consumidores são incentivados a participar em desafios, acumular pontos e desbloquear recompensas. Esta ludificação do consumo cria um ambiente onde a compra deixa de ser uma decisão racional e passa a ser uma resposta condicionada a estímulos cuidadosamente desenhados. A autonomia do consumidor é assim progressivamente substituída por comportamentos automatizados que beneficiam exclusivamente a plataforma.

Outro aspeto preocupante é a opacidade da Shein em relação às suas responsabilidades legais. A empresa dificulta o acesso a informações de contacto e não esclarece adequadamente a relação entre a plataforma e os vendedores terceiros. Esta fragmentação da informação impede que os consumidores compreendam plenamente os seus direitos e a quem devem recorrer em caso de problemas, criando um ambiente propício à impunidade e à violação sistemática das normas de proteção do consumidor.

A Comissão Europeia e a CPC Network notificaram a 26 de maio de 2025 a Shein, informando de que um conjunto de práticas na sua plataforma viola várias diretivas comunitárias, incluindo a Diretiva das Práticas Comerciais Desleais, a Diretiva dos Direitos dos Consumidores e a Diretiva de Indicação de Preços. Não se trata apenas de “descontos” que nunca existiram ou de prazos de oferta que se renovam sempre que o utilizador muda de página, é antes um padrão sistémico de engenharia do consumo, em que cada elemento do design digital é pensado minuciosamente.

Ao apresentar reduções de preço sobre valores fictícios, a Shein apela ao sentimento de urgência e oportunidade imediata, técnicas de pressão comercial que a UE classifica como “pressure selling”. Estas contagens decrescentes artificiais e mensagens de “última chance” criam um ambiente de compra marcado pela ansiedade, em que o tempo percebido pelo consumidor difere do tempo real, conduzindo-o a decisões precipitadas guiadas por impulsos.

Mas a manipulação vai mais longe do que simples conteúdos visuais. A Shein transformou a experiência de compra num jogo contínuo de recompensas, com níveis de fidelidade que prometem descontos progressivos, sistemas de pontos que só se revelam após algum investimento. Cada clique, cada visita e cada euro gasto contribuem para desbloquear “prémios” que mantêm o utilizador conectado e emocionalmente investido, reduzindo drasticamente a sua capacidade de decisão consciente.

Para já, a Shein tem um mês para responder às conclusões da CPC e propor medidas corretivas, sob pena de ver as autoridades nacionais impor multas proporcionais ao volume de negócios anual nos Estados‑Membros envolvidos.

O desafio colocado pela Shein é, no fundo, um espelho do futuro do comércio digital, um ecossistema em que a inovação tecnológica pode tanto emancipar como subjugar o consumidor. Proteger estes direitos num mundo em que cada interface, cada algoritmo e cada notificação push é desenhado para captar atenção e provocar emoções, obriga-nos a repensar não só as leis, mas sobretudo a forma como encaramos o processo de compra online.

O consumo nos programas eleitorais dos partidos políticos para as eleições legislativas de 2025

Doutrina

Num contexto de crescente complexidade nas relações de consumo e de aceleração das transformações económicas, sociais e digitais, o direito do consumo assume um papel cada vez mais relevante nas políticas públicas. As eleições legislativas de 2025 constituem uma oportunidade para avaliar de que forma os partidos políticos integram o tema nos seus programas. Neste texto, procedo a uma análise do tratamento dado ao consumo e ao direito do consumo nos programas eleitorais dos partidos com assento parlamentar, destacando medidas concretas, ausências e tendências comuns. A ordenação dos partidos resulta da relevância que entendo que, cada um, tendo em conta o programa, dá ao tema.

Partido Socialista

O Partido Socialista tem um ponto do seu Programa Eleitoral dedicado a “Maior proteção dos consumidores” (p. 26). Este ponto 1.6 está incluído na 1.ª missão: Uma economia em transformação assente em contas equilibradas, dentro de um ponto 1 dedicado a “Uma economia inovadora em transformação”.

Em matéria de consumo, o documento faz referência ao “património e […] compromisso” do Partido Socialista nesta área, incluindo “a extensão dos prazos de garantia dos bens móveis, a proibição da obsolescência programada, a regulação de ecossistemas digitais, o reforço da legislação para a prevenção e fiscalização de cláusulas abusivas em contratos”.

Considera-se que “a proteção dos consumidores é uma questão central na transformação da economia, tanto a nível nacional como europeu”, destacando-se a importância dos “consumidores mais vulneráveis”.

São oito as medidas mais concretas referidas no documento:

– Criação de um Portal do Consumidor, numa lógica de balcão único. Não é muito claro que diferentes portas de entrada no sistema irão ser substituídas por este balcão único. E quem fará a gestão deste Portal, admitindo-se que possa ser uma incumbência da Direção-Geral do Consumidor;

– Definição do Estatuto do Consumidor Vulnerável. Tenho algumas dúvidas em relação a um diploma autónomo destinado a proteger apenas consumidores vulneráveis. Trata-se de um conceito complexo e difícil de tornar operacional. Julgo que, neste domínio, a ação se deveria centrar no acompanhamento próximo do processo legislativo a nível europeu. Destaco, em especial, o Digital Fairness Act, que está prestes a ser apresentado, como proposta, pela Comissão Europeia, na sequência do Digital Fairness Fitness Check, publicado em outubro de 2024;

– Revisão do Código da Publicidade;

– Melhoria dos sistemas públicos de prevenção e apoio ao consumidor endividado;

– Definição de um “Índice de Reparabilidade de Produtos”, que permita ao consumidor obter informação sobre a vida útil dos produtos. Está aqui em causa, essencialmente, a transposição da Diretiva (UE) 2024/1799, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de junho de 2024, relativa a regras comuns para promover a reparação de bens. Trata-se de um desafio relevante para os legisladores nacionais, como identifiquei num pequeno texto publicado recentemente, tendo em conta alguns problemas resultantes do diploma europeu. Estranha-se que não haja referência no documento à necessidade de transposição de outras diretivas europeias aprovadas nos últimos anos e que implicam opções relevantes da parte do Governo;

– Transmissão aos consumidores “toda a informação sobre a composição dos produtos agroalimentares”;

– Alargamento e modernização da rede de centros de arbitragem de consumo. Trata-se de uma medida com grande relevância prática. Além de dotar os centros de mais condições, julgo que seria muito importante fazer-se um efetivo controlo de qualidade das práticas dos centros e das decisões proferidas. Não basta o tratamento de muitos casos, é necessário que os procedimentos e as decisões tenham qualidade;

– Melhoria do enquadramento legal e reforço da fiscalização do jogo.

É possível encontrar mais referências ao consumo noutras partes do Programa.

AD – Coligação PSD/CDS

O Programa Eleitoral da AD – Coligação PSD/CDS também tem um ponto autónomo relativamente desenvolvido dedicado à “Defesa do Consumidor” (pp. 167 e 168). Este ponto surge num capítulo de que tem como título “Com Sentido de Estado”. Ao contrário do que sucede no documento do Partido Socialista, o tema aparece neste mais próximo da justiça do que da economia.

Num primeiro subponto introdutório, realça-se a necessidade de proteger os “interesses e os direitos dos cidadãos que adquirem bens e serviços no mercado”, defendendo-se que uma defesa eficaz do consumidor contribui, entre outros aspetos, para “o desenvolvimento económico e social do país”. Indicam-se ainda os “princípios da transparência, da informação, da participação, da prevenção e da reparação”. Não é claro em que medida transparência e informação se distinguem.

O segundo ponto indica as metas a atingir. Estas passam (i) pelo reforço da educação e da literacia digital dos consumidores, (ii) pela melhoria da fiscalização e (iii) pela melhoria da resolução alternativa de litígios de consumo.

Para se atingir estas metas, são indicadas quatro medidas:

– “Simplificar os mecanismos de reclamação e de resolução de conflitos”. Não é indicado o que se fará com vista a esta simplificação. Os procedimentos já são relativamente simples. Existirá, porventura, um problema relevante no que respeita à informação sobre a existência desses mecanismos;

– “Criar um sistema de mediação e arbitragem de consumo, que permita resolver de forma rápida, eficaz e gratuita os conflitos entre consumidores e fornecedores de bens e serviços”. Esta medida é difícil de compreender, pois já existe (há quase quarenta anos) um sistema de mediação e arbitragem de consumo. Será necessário, como já se referiu a propósito do Programa Eleitoral do Partido Socialista, garantir o seu funcionamento adequado, nomeadamente no que respeita à qualidade dos procedimentos e das decisões. Não deixa de ser muito interessante, e um ótimo sinal, a referência expressa ao tema nos dois programas;

– “Reforçar a fiscalização e a aplicação de sanções aos infratores das normas de defesa do consumidor, especialmente nos setores mais sensíveis, como a energia, as telecomunicações, os transportes e a saúde”. Um dos principais problemas do direito do consumo em Portugal é o da sua aplicação prática. Como já se defendeu num texto publicado neste blog, poderá estar em causa, por um lado, a falta de meios humanos das entidades fiscalizadoras e a ausência de orientações claras e transversais quanto à aplicação das normas de consumo. Acresce a perceção da inexistência de uma ação concertada por parte das várias entidades competentes nos casos em que a competência é partilhada. Por outro lado, realça-se a inexistência de sanções adequadas em caso de incumprimento dos deveres por parte dos profissionais;

– “Promover a educação e a literacia financeira dos consumidores, para que possam tomar decisões informadas e responsáveis sobre os seus créditos, poupanças e investimentos”.

É possível encontrar mais referências ao consumo noutras partes do Programa.

Livre

O Programa do Livre, apesar de não ter, ao contrário dos anteriormente referidos, um ponto especificamente dedicado à política de consumo e aos direitos dos consumidores, apresenta um conjunto muito alargado de ideias relevantes e concretas neste domínio. Justifica, por isso, uma análise autónoma e desenvolvida.

O documento contém medidas expressamente indicadas como visando a proteção do consumidor, no que respeita à cobrança abusiva de comissões bancárias (p. 8), à certificação das áreas de atuação dos profissionais da cultura (p. 87), à regulação dos “algoritmos imobiliários de portais digitais de divulgação de imóveis para venda e arrendamento” (p. 111).

No domínio da cultura, interessante é igualmente a ideia de incentivar “o público a não ser apenas consumidor, mas também criador”, por via da promoção de uma rede de “Casas da Criação” (p. 93).

Para responder à crise ambiental, defende-se uma “verdadeira transição para uma economia circular, que reduza o consumo de recursos” (p. 123). Nas páginas 131 e 132, são indicadas várias medidas relativas a “encorajar a economia circular e o consumo responsável”. Entre os objetivos indicados, destaco o de acabar com a obsolescência programada e instigar produtos de longa duração e defender o direito à reparação, fazendo-se referência expressa a diretivas europeias, o que não se verifica, em geral, nos restantes programas, o que mostra a atenção dada à necessidade de integrar o direito europeu nas soluções propostas. Igualmente interessante é a medida que consiste em limitar a publicidade no espaço público.

Encontramos também, tal como na generalidade dos programas, medidas relativas ao consumo de energia e de água.

No domínio do mercado digital, defende-se a “soberania digital” e a construção de uma “internet livre”, com destaque para o controlo dos dados e atividade pelas pessoas, nomeadamente a garantia de “que os roteadores e modems façam parte do domínio dos consumidores” (p. 182), ou para a proteção contra “práticas publicitárias intrusivas” (p. 183).

Outra medida concreta neste domínio é a abolição de “práticas de manipulação de consumidores em compras na internet conhecidas como «junk fees»” (p. 186). No essencial, está aqui em causa a garantia da transparência no que respeita ao preço ou outros valores a pagar pelo consumidor. Refere-se expressamente a proibição de impor custos adicionais pela escolha de um método de pagamento.

PAN – Pessoas-Animais-Natureza

O Programa Eleitoral também não dedica um ponto autónomo com medidas na área dos direitos dos consumidores.

No entanto, tem um conjunto alargado de referências ao consumo, com destaque para os setores da energia e da água. A sustentabilidade também constitui uma preocupação na ligação com o consumo. Neste domínio, referem-se expressamente medidas que consistem em “implementar o Índice de Reparação em todos os bens de modo a informar os consumidores sobre o potencial de reparação do produto e a sua atualização no ato da compra” e “assegurar a rotulagem ambiental de todos os produtos alimentares”.

O aspeto que gostaria de destacar no Programa do PAN é, no entanto, a ideia de que “é essencial ultrapassar a atual sociedade de consumo em ordem a uma sociedade da empatia”, acrescentando-se que de trata “de superar uma economia extrativista e linear por uma economia circular baseada no consumo consciente, no comércio justo e numa banca pública de fomento, a Banca Ética e das Finanças Solidárias”. Existe, portanto, um objetivo de mudança de paradigma no que ao consumo diz respeito.

Uma medida relevante consiste na “proibição de atualizações de preço durante o período de fidelização”, por via de uma alteração à Lei das Comunicações Eletrónicas. Tal medida parece-nos resultar dos princípios gerais de Direito e da própria lógica da fidelização, que deve ser bilateral, demonstrando, no entanto, a prática que os profissionais alteram por vezes os preços.

Igualmente relevante é a medida que consiste em “prever que todas as chamadas comerciais não solicitadas, realizadas por empresas para fins de vendas ou atendimento ao cliente, sejam realizadas através de números especificamente atribuídos para este efeito, garantindo a fácil identificação das chamadas por parte dos consumidores”. As chamadas comerciais não solicitadas são um problema e é interessante verificar que existe esta preocupação. Já no que respeita às linhas telefónicas de apoio, pretende promover-se “a liberdade de escolha aos consumidores no âmbito de serviços que recorram à Inteligência Artificial”.

Por fim, realço uma medida no que respeita ao consumo digital, visando-se a promoção de hábitos saudáveis, com ligação ao impacto do uso excessivo de ecrãs.

Outros partidos, com poucas referências ao tema

O Chega, apesar de apresentar um Programa Eleitoral bastante longo, não dedica nenhum capítulo ou subcapítulo ao consumo. São feitas cerca de duas dezenas de referências a “consumo” e a “consumidor”, mas, no essencial, em contextos diferentes daqueles que estamos aqui a tratar, como o das drogas. Ainda assim, há uma medida concreta relativa ao domínio da proteção do consumidor. No ponto 584 (p. 232), pode ler-se que o Chega pretende “combater a obsolescência programada, reforçando os direitos do consumidor, por exemplo, consagrando a obrigatoriedade de informação dos prazos de duração estimada dos equipamentos e aumentando o prazo para reparação”. Trata-se de duas medidas relevantes no que respeita à ligação entre consumo e sustentabilidade. Não se percebe, no entanto, muito bem o que significa “aumentar o prazo para reparação”. Quererá dizer que o prazo geral de 30 dias para efetuar a reparação deve ser alargado, dando-se mais tempo ao profissional? Ou pretende alargar-se o período da garantia legal especificamente para se permitir, nesse novo período alargado, o exercício do direito à reparação da coisa? Na primeira interpretação, não seriam reforçados os direitos dos consumidores. Seriam reforçados os direitos dos profissionais.

O Programa Eleitoral da Iniciativa Liberal também não contém nenhum ponto dedicado à política na área do consumo ou à defesa do consumidor. Encontram-se, ainda assim, no documento algumas referências a consumo. Está em causa, entre outros aspetos, a abertura do mercado de pagamentos eletrónicos, dando maior liberdade de escolha a consumidores e comerciantes (p. 81) ou a liberalização do setor do transporte individual de passageiros em veículo descaracterizado (p. 98) ou do mercado livreiro (p. 134). São ainda feitas algumas referências nas matérias da energia (pp. 108 e segs.) e do desperdício alimentar (p. 127).

O Compromisso Eleitoral do PCP não contém nenhuma medida específica relacionada com a proteção do consumidor ou o direito do consumo. É feita uma breve referência (p. 32) à necessidade de “crescimento do rendimento disponível das famílias, pelo crescimento dos salários e pensões, travando e corrigindo um consumo desequilibrado centrado no crédito bancário”.

O Manifesto Eleitoral do Bloco de Esquerda não faz qualquer referência ao consumo ou aos consumidores.

Síntese conclusiva

A análise comparativa dos programas eleitorais evidencia uma crescente valorização das questões relacionadas com o consumo e o direito do consumo, ainda que com abordagens e profundidades distintas entre os partidos.

O Partido Socialista e a AD (Coligação PSD/CDS) apresentam propostas estruturadas e com secções específicas dedicadas ao tema, destacando medidas como a melhoria da resolução de litígios, a regulação da publicidade e a proteção dos consumidores vulneráveis.

O Livre e o PAN, embora não lhe dediquem capítulos autónomos, integram de forma transversal a questão do consumo, com uma forte ênfase na sustentabilidade, na economia circular e na transparência digital, revelando uma visão mais transformadora e sistémica.

O Chega, a Iniciativa Liberal, o PCP e o Bloco de Esquerda revelam uma abordagem mais marginal ou mesmo ausente ao tema, limitando-se a referências pontuais, muitas vezes desconexas da lógica do direito do consumo.

Entre as medidas comuns a vários partidos, destaca-se a preocupação com o combate à obsolescência programada, a promoção da literacia do consumidor e o reforço dos mecanismos de fiscalização.

Verifica-se, assim, um consenso crescente quanto à importância estratégica da política de consumo, mas também uma divergência significativa quanto à profundidade, coerência e inovação das propostas apresentadas. Esta diversidade de visões pode refletir não apenas diferentes posicionamentos ideológicos, mas também diferentes compreensões do papel do consumo na sociedade e na economia contemporâneas.

O que podemos esperar da proposta do Digital Fairness Act?

Doutrina

No seguimento do texto anterior deste blog (“Que política para o Direito de Consumo Europeu no futuro? O novo foco na competitividade europeia”), pretendemos agora analisar, muito sucintamente, que expetativas podemos ter para a proposta do Digital Fairness Act (DFA), com base em tudo o que se sabe sobre este futuro procedimento legislativo europeu, em especial com o foco nos resultados e recomendações do Digital Fairness Fitness Check.

Esta análise é particularmente importante pois, quando consideramos os compromissos políticos dos comissários ao Parlamento Europeu, em especial  da Vice-Presidente  Henna Virkkunen e de Michael McGrath, Comissário para Democracia, Justiça, Estado de Direito e Proteção dos Consumidores, e os planos públicos da Comissão para 2025 no seu work programme, a proposta do DFA deverá ser a principal medida legislativa prevista em matéria de Direito do Consumo para os primeiros anos do mandato. Outra iniciativa, o “Digital package”, também será relevante, mas o seu objetivo será essencialmente de simplificação da legislação digital, como o RGPD, Data Act, Data Governance Act, etc..

Este texto pretende então sumária e criticamente analisar: 1) as principais recomendações dos dois documentos que serão fundacionais ao DFA: a resolução do Parlamento Europeu sobre addictive design online de 2023 e o Digital Fairness Fitness Check de 2024; 2) qual a timeline esperada para a proposta do DFA; 3) o que é que podemos esperar da proposta do DFA.

A resolução do Parlamento Europeu sobre conceção de serviços online para criar dependência dos consumidores (addictive design)

É inegável que o debate sobre a necessidade do DFA surgiu da publicação do Digital Fairness Fitness Checkem outubro de 2024, tendo a nova Comissão Von der Leyen incorporado então essa bandeira nos seus compromissos políticos.

Ainda assim, é necessário salientar que o debate público nas instituições europeias sobre os temas do DFA já tinha sido aberto pela  Resolução do Parlamento Europeu, de 12 de dezembro de 2023, sobre conceção dos serviços em linha de forma a criar dependência e proteção dos consumidores no mercado único da UE (2023/2043(INI)).

Nesta resolução, o Parlamento Europeu recomenda à Comissão que tome medidas legislativas e políticas para combater práticas de conceção de serviços digitais que tenham como objetivo criar dependência nesses serviços (o addictive design), devido aos danos que podem causar à saúde física e mental dos consumidores, especialmente de menores. O Parlamento pediu que se proíbam as práticas mais nocivas, que se promova a conceção ética e que se garanta a transparência, a escolha e a autonomia dos utilizadores, bem como a proteção dos consumidores mais vulneráveis.

Como exemplos de práticas digitais consideradas viciantes, a resolução refere o deslizar da página/feeds sem fim (infinite scroll),[1] a recarga de páginas (pull to refresh), as funcionalidades de vídeo de reprodução automática (never-ending autoplay), as recomendações personalizadas, as notificações de recuperação (recapture notifications), o jogo por marcação (playing by appointment) em determinados momentos do dia, o design de serviços que causa ‘time fog’ (perda da noção de passagem do tempo) e as notificações sociais falsas, assim como medidas que se aproveitem das vulnerabilidades psicológicas dos consumidores.

A resolução aponta como “alvos” de intervenção legislativa a Diretiva Práticas Comerciais Desleais (DPCD), a Diretiva Direitos dos Consumidores (DDC) e a Diretiva das Cláusulas Abusivas (DCA), que devem ser revistas para abordar estas práticas, referindo ainda o Regulamento dos Serviços Digitais (Digital Services Act, DSA, em especial quanto aos artigos 25.º (“Conceção e organização da interface em linha”) e 35.º (“Atenuação de riscos”), e o Regulamento da Inteligência Artificial (AI Act).

Esta resolução, aprovada por uma esmagadora maioria[2], teve como rapporteur Kim van Sparrentak, do grupo parlamentar Greens/EFA. Posteriormente, Kim van Sparrentak foi uma das eurodeputadas que mais questionou o Comissário McGrath na sua audição de confirmação no PE sobre a sua visão para o DFA. Tem sido apontada como possível futura shadow rapporteur para o DFA, mantendo-se bastante ativa nos debates relativos a Direito do Consumo e ao DFA.[3]

As conclusões do Digital Fairness Fitness Check

O Digital Fairness Fitness Check por si só, considerando apenas a sua dimensão (parte 1 com 350 págs., parte 2 com 78 págs. focado na Diretiva Omnibus, e os anexos de Use Cases com 428 págs.), mereceria vários textos neste blog. Para o presente, vamos apenas abordar muito sumariamente os principais resultados e recomendações.

Este estudo foi uma avaliação abrangente do Direito do Consumo Europeu, focada na equidade (fairness) digital, com o objetivo principal de determinar se as Diretivas core (DPCD, DDC e DCA) são adequadas para proteger os consumidores no ambiente digital, em especial considerando as alterações que já tinham recebido pela Diretiva Omnibus de Modernização do Direito Consumo (2019/2161).

O estudo focou-se numa seleção de práticas consideradas problemáticas em ambientes digitais (dark patterns, práticas agressivas, subscrições difíceis de cancelar, publicidade personalizada, preços personalizados, comércio social e marketing de influenciadores e vício digital), avaliando a eficácia, eficiência, aplicabilidade e coerência das diretivas de consumo para lhes dar resposta, assim como a sua coerência (overlaps e blind-spots, lacunas legais) com a restante legislação digital europeia, como o Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD), o DSA, o Regulamento dos Mercados Digitais (DMA) e o AI Act.

O estudo identificou desafios significativos para a aplicabilidade destas normas de Direito do Consumo Europeu. A rápida evolução dos mercados de serviços digitais, juntamente com o surgimento de novas práticas comerciais, tem criado lacunas legais e incertezas regulatórias. Os princípios gerais das diretivas (nomeadamente da DPCD e DCA), embora flexíveis e adaptáveis, são dificilmente aplicáveis nos novos casos concretos, existindo muita incerteza jurídica para consumidores, empresas e autoridades mesmo quando sinalizados pelas comunicações da Comissão (como nas Orientações de Interpretação da DPCD). Devido a esta incerteza e a dificuldades no enforcement, práticas que estão teoricamente abrangidas (como dark patterns, armadilhas de subscrição e publicidade oculta) persistem, existindo a necessidade de normas mais específicas que, por exemplo, explicitamente proíbam dark patterns. Os anexos da DPCD e DCA devem assim ser modernizados.

Foram identificadas diversas lacunas legais e falhas de coerência entre os diplomas, especialmente com o RGPD e o DSA. O papel dos dados pessoais na economia digital e a personalização de serviços e do preço ainda não estão suficientemente concretizados na legislação de consumo. Várias das obrigações aplicáveis a plataformas em linha pelo DSA deveriam também aplicar-se a outros profissionais.

O principal entrave à aplicabilidade da DPCD, o conceito do consumidor médio (“average consumer”), assim como o de consumidor vulnerável, tem de ser revisto e novas definições incluídas, para incorporar as noções de vulnerabilidade digital e de vulnerabilidades situacionais. Estes novos conceitos são necessários pois a hiperpersonalização de serviços digitais baseada em perfis tem um impacto notório que já não se limita apenas aos grupos tipicamente considerados vulneráveis (em função da idade, doença mental ou física e credulidade).

Devem ser introduzidas normas específicas para os contratos digitais, para combater práticas específicas deste domínio, por exemplo quanto aos free-trials, subscription trap, botões para cancelamento, etc.

O relatório recomenda ainda que as normas sobre deveres de informação e transparência sejam melhoradas, atendendo aos overlaps entre diretivas e aos riscos de excesso de informação (“information overload”). O valor opaco das moedas virtuais nos videojogos é especialmente visado, devendo passar a ser acompanhados do seu valor real (que entretanto a Comissão e a Rede de Autoridades de Consumo já começaram a adotar), e as loot-boxes também devem ter normas específicas. A personalização dos preços (como é que foram calculados) e dos serviços e o marketing de influencers online são também abordados.

O relatório recomenda também a inversão do ónus da prova face a tecnologias opacas e algoritmos e o reforço da proteção e dos direitos dos menores pelo Direito do Consumo Europeu, com a incorporação da proibição de uso de dados pessoais destes para publicidade personalizada (não apenas pelas plataformas em linha como já contemplado pelo DSA) e do princípio de conceção adequada à idade (“age-appropriate design”) dos serviços digitais.

Finalmente, o relatório inclui uma série de recomendações para reforçar o enforcement e a cooperação pelas autoridades nacionais, assim como o seu papel ativo no mercado.

Depois de muita antecipação, a publicação deste este relatório em outubro de 2024 foi um marco que salientou a necessidade de revisão do Direito do Consumo Europeu.

Qual a timeline para a proposta do Digital Fairness Act (DFA)?

Além das declarações do Comissário McGrath na sua audição no Parlamento Europeu (em novembro 2024) e no World Economic Forum em Davos (final de janeiro 2025), Maria-Myrto Kanellopoulou, a Chefe de Unidade em matéria de Direito do Consumo, na Direção-Geral da Justiça e dos Consumidores da Comissão Europeia (Directorate-General for Justice and Consumers (DG JUST)), afirmou numa audição no Parlamento Europeu promovida pelo Partido Popular Europeu (PPE) sobre a proteção de menores online, que a proposta do DFA não deverá estar pronta antes de 2026, devendo ser apresentada no início desse ano. Em março, num evento em Washington DC sobre o futuro da cooperação transatlântica entre a UE e os EUA, McGrath forneceu mais pormenores e apontou que a proposta do DFA deveria ocorrer a meio de 2026.

Considerando as Better Regulation Guidelines de 2021 e a Better Regulation Toolbox de 2023 da Comissão Europeia e o Acordo Interinstitucional entre as instituições europeias Legislar Melhor de 2016,  ainda antes de a proposta do DFA ser publicada, deverá ainda ser aberta uma consulta pública no portal “Have your say”, que terá de ficar aberta durante um período de 12 semanas.

A timeline para a proposta do DFA fica assim um pouco mais clara. Se o objetivo for a sua apresentação até ao final da primeira metade de 2026, é possível que ocorra uma consulta pública sobre o DFA entre o segundo e o terceiro trimestres de 2025. A análise de impacto que acompanha a proposta legislativa deverá ser realizada também nesta janela temporal. O tema deverá ainda ser discutido e trabalhado no European Consumer Summit, previsto para o final de maio. Finalmente, no final do ano, o Consumer Policy Advisory Group (CPAG) irá analisar os resultados recolhidos para considerar na preparação final da proposta. Esta timeline parece consistente com as declarações de Maria-Myrto Kanellopoulou, e tem sido avançada por várias fontes. Porém… além de não ter sido explicitamente e firmemente prevista, nem colocada por escrito no work programme de 2025 (embora exista a justificação de que é uma proposta para 2026, ao contrário da 2030 Consumer Agenda), há sinais de algumas reticências dentro da Comissão (e mesmo no Parlamento Europeu), que podem levar ao atraso da proposta. 

Então, o que é que devemos esperar da proposta do Digital Fairness Act?

Em primeiro lugar, é necessário relembrar o novo foco da Comissão Europeia na competitividade da economia da União Europeia. Neste prisma, medidas como um DFA muito “forte” podem ser consideradas contraproducentes, por criarem ou exacerbarem custos para os operadores económicos e/ou forçarem alterações nos seus modelos de negócios que levem a perdas de receitas. É ainda mais um diploma a considerar, quando o mote atual é “simplificar”. Estas preocupações têm sido apontadas como motivos para os adiamentos da proposta do DFA, podendo também ter o efeito de que as suas medidas fiquem aquém do esperado e/ou que a proposta não saia da gaveta, como alguns defendem.

Em segundo lugar, temos de considerar as propostas de atuação da resolução do PE e do Fitness Check. Ambos os documentos tecem recomendações que visam diplomas existentes, nomeadamente as diretivas de consumo e a sua relação com o DSA, o RGPD e o AI Act. 

Quando consideramos estes dois fatores, podemos descartar o cenário de que o DFA seja um novo diploma radical que irá revogar diplomas antigos em bloco e substituí-los por um novo diploma paradigmático que vem revolucionar o Direito do Consumo Europeu. O objetivo é simplificar e apenas corrigir/modernizar os conceitos e normas existentes.

Aliás, quando consideramos todos estes fatores, também podemos considerar o seguinte: o cenário mais provável é que o Digital Fairness Act acabe por não ser um “Act”, ou seja, um regulamento europeu.

A abordagem mais provável é que o DFA seja ou um pacote legislativo ou um diploma semelhante à Diretiva Omnibus, contendo alterações (mais ou menos cirúrgicas) a outros diplomas existentes, nomeadamente às 3 diretivas core de consumo (DPCD, DDC e DCA) e possivelmente ao DSA.

Este método tem sido defendido por vários atores políticos. A nuance entra na extensão da intervenção. O DFA deve ser só um “patch” que corrige “bugs” singulares na legislação existente ou deve ir mais além na sua intervenção?

O Professor Christoph Busch (aqui, aqui), após ter participado na reunião do Consumer Policy Advisory Group da Comissão, onde apresentou o relatório do CERRE (“Shaping the Future of European Consumer Protection: Towards A Digital Fairness Act?”), alertou para estas preocupações e tem defendido que o DFA deve ser um regulamento europeu (e não uma diretiva), que altere as diretivas de consumo: a) adicionando novas práticas comerciais ao anexo I da DPCD e cláusulas absolutamente proibidas à DCA, b) estabelecendo normas de antievasão (“anti-circumvention rule”) das proibições (como no artigo 13 do Digital Markets Act), c) torne obrigatórias medidas que facilitem a automação da fiscalização e supervisão pelas autoridades, d) simplifique os deveres de informação, e) estabelecendo um princípio de conceção (“by design”), pois, para proteger eficazmente os consumidores no ambiente digital, não é suficiente consagrar os direitos dos consumidores na legislação e informá-los dos seus direitos, é necessário que estes consigam facilmente exercer os seus direitos, por exemplo, através das interfaces do serviço do profissional (exemplo: botões de cancelamento). Estas medidas parecem bastante interessantes, mas é muito incerto se estão a ser bem acolhidas pela Comissão.

A BEUC também tem avançado com várias recomendações para o DFA, em especial na proteção de menores online, com o seu position paper (“Better Safe than Sorry”).

Por enquanto, a Comissão mantém-se muito vaga neste tema, não abrindo o jogo nem sobre o formato do DFA nem sobre o seu conteúdo. Recentemente, no European Retail Innovation Summit, o Comissário McGrath voltou a pronunciar-se sobre o DFA, assegurando que o diploma seria tanto pró-consumidores como pró-empresas, que não pretende criar mais entraves administrativos às empresas, que pretende abordar as práticas manipulativas e viciantes. Marketing por influencers, preços personalizados, moedas virtuais em videojogos mantêm-se na mira da Comissão.

Conclusões e uma ideia para reflexão – Atos delegados para editar as blacklists das práticas e cláusulas proibidas

Como referido, a consulta pública para preparar a proposta do DFA deverá ser publicada nas próximas semanas. Por agora, ainda sabemos muito pouco sobre os conteúdos e medidas que a proposta pode conter, tendo apenas acesso a algumas “pistas” sobre a forma do diploma. As recomendações que têm sido feitas, seja pelo Parlamento, no Fitness Check, por associações ou por académicos são apenas isso, recomendações, que podem sempre ser acolhidas, rejeitadas, modificadas e ou ignoradas.

Até termos mais informações concretas estamos, portanto, no terreno da especulação.

Assumindo esta realidade, podemos olhar criticamente para as medidas que estão a ser propostas.

Neste sentido, damos destaque a uma recomendação, particularmente inventiva e potencialmente controversa, para resolver o problema da morosidade e complexidade dos procedimentos legislativos europeus face à evolução das práticas no mercado e evolução tecnológica: o DFA alterar a DPCD e DCA para incluírem artigos que permitam à Comissão Europeia, por atos delegados, “editar” as blacklists nos anexos, de forma a acrescentar novas práticas comerciais desleais/cláusulas contratuais absolutamente proibidas.

Este tipo de delegação de poderes, previsto nos Tratados e amplamente utilizado em diversas áreas, como na fixação de requisitos de sustentabilidade (Ecodesign) para diferentes gamas de produtos e no AI Act (para a Comissão alterar os critérios de classificação de sistemas de IA de alto risco e a lista do anexo III, entre vários exemplos), poderia ser uma forma eficaz de permitir que a Comissão fosse colmatando a lista de práticas comerciais absolutamente proibidas com diferentes dark patterns, à medida que fosse recolhendo evidências científicas da sua nocividade, mantendo o PE e o Conselho a prerrogativa de se oporem, formulando objeções.

A maleabilidade destes anexos pode reduzir a segurança jurídica dos operadores económicos, mas pode contribuir para reduzir a fragmentação regulatória entre Estados Membros, especialmente quanto à DCA. No plano nacional, mesmo com atrasos na transposição, o efeito conforme poderia contribuir para uma melhor atuação de todos os stakeholders.

Existe um outro obstáculo bastante mais difícil de transpor: não é exatamente claro se este tipo de delegação de poderes é válida à luz do artigo 190.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia. Os atos delegados são atos não legislativos de alcance geral que só podem completar ou alterar elementos não essenciais do ato legislativo.

Enfim, é apenas (mais) uma ideia a considerar.


[1] Os sistemas de recomendação de várias plataformas já estão a ser investigados à luz do DSA pela Comissão. https://www.euronews.com/next/2024/10/02/tiktok-youtube-snapchats-video-recommendations-probed-by-eu-commission, Commission addresses additional investigatory measures to X in the ongoing proceedings under the Digital Services Act | Shaping Europe’s digital future

[2] 545 votos a favor, 12 contra e 61 abstenções.

[3] Como se viu no debate do EU Consumers Day no plenário do PE a 12 de março.

The EU Deforestation Regulation and its unintended effects on the voluntary provision of food information to consumers – A new wave of free-from claims

Doutrina

Regulation (EU) 2023/1115 – which is also known as ‘EUDR’ (EU Deforestation Regulation) – is a major piece of EU environmental legislation with a significant impact on the supply chains of food and non-food commodities that most contribute to deforestation and forest degradation. These commodities currently include coffee, cocoa, soy, cattle, oil palm, rubber and wood as well as certain derived products. The EUDR requires concerned businesses to set up a complex due diligence system, which should ensure that products placed on the EU market and exported from it are deforestation-free besides being legally produced in their country of origin. From this perspective, the EUDR forms part of an array of legislative measures that the EU has introduced over the last few years to ensure greater transparency and sustainability of modern supply chains, which include, among others, the Corporate Sustainability Reporting Directive (CSRD) and the Corporate Sustainability Due Diligence Directive (CS3D).

During the second semester of 2024, the EUDR featured regularly and prominently in specialised media outlets. This because of the concerns that were voiced by various stakeholders regarding their preparedness to meet the obligations imposed by the EUDR by its entry into application. For this reason, the EUDR’s application date, initially foreseen on 30 December 2024, was eventually postponed by one year, following the adoption of Regulation (EU) 2024/3234.

Even if it is not yet fully applicable, it is quite interesting to observe that the EUDR is already producing effects in the EU market in terms of business practices. Some of these practices go beyond the necessary adjustments that companies affected by the EUDR are expected to implement to comply with its due diligence requirements.

In a previous post on this blog, EUDR’s impact and implications were analysed through the consumer lens. One of the main conclusions that were reached there is that, in the future, it will be difficult for businesses supplying commodities and products subject to this EU regulation to highlight their deforestation-free status – and, thus, their added value in terms of environmental sustainability – through product labelling, marketing, and/or advertising.

Now, one year later, this analysis needs to be complemented by considering some of the most recent market developments that EUDR’s adoption has prompted, however, I would say, unintendedly.

I am primarily referring to the surge of ‘soy-free’ or ‘no-soy’ claims made on the packaging or in advertisements of plant-based foods currently being sold across the European market.

Generally portrayed as more environmentally friendly than meat and meat products, plant-based foods often include soy and soy products as ingredients in their formulation, among others, to guarantee the provision of high-quality proteins to the human diet.

However, with the EUDR singling out and – please allow me to say – demonising soy as one of the main culprits of deforestation, various manufacturers of plant-based foods seized the opportunity to actively promote product recipes without soy in it.

‘Free-from’ food claims – like the ones for soy that are here under exam – are by no means a novelty in the agri-food sector. On the contrary, they are a powerful marketing tool, which, by leveraging on the preferences, beliefs or even the fears of specific consumer groups, can ultimately drive and influence their purchasing decisions. ‘GMO-free’ or ‘no-GMO’ claims are a case in point here insofar as they target consumers who are overall mindful of natural diets or simply worried about the safety of what they eat. By the same token, environmentally conscious consumers are more likely to buy products that do not contain ingredients that may negatively impact the sustainability of our planet, as it has been the case in the past for palm oil and now it is happening for soy.

The central question here is whether this new wave of ‘free-from’ claims about soy we are seeing rise in the European market is legally substantiated or, instead, presents risks for the companies making them.

As a general rule, ‘soy-free’ and ‘no soy’ claims can be made in the EU if food companies ensure compliance with the legal principles governing fair information practices, which are enshrined in art. 7 (1) of Regulation (EU) No 1169/2011 on the provision of food information to consumers. This provision states, among others, that food companies cannot highlight the characteristics of their food products if other foods pertaining to the same product category possess similar characteristics. Applying this principle to the case in hand, this means that ‘soy-free’ and ‘no soy’ claims can be lawfully made, for instance, on plant-based products if there exist other competing products on the market with soy as an ingredient.

However, things can get more complicated if one considers that soy is regulated as an allergen in the EU and, as such, listed in Annex II of Regulation (EU) No 1169/2011. Under EU food law, allergens must be properly highlighted in the list of ingredients whenever they are added and used intentionally in the formulation of another food product. Besides, it is often the case that the presence of allergens – even if it only amounts to traces – cannot be excluded with absolute certainty in a finished food product, due to technically unavoidable cross-contaminations that may occur during the production process and/or result from the use of ingredients provided by suppliers. It is because of this that disclaimers such as ‘May contain’ or ‘May contain traces of’ – which are also known as Precautionary Allergen Labelling (PAL) statements – are very common on the European market and used to warn consumers suffering from food intolerances or allergies about the possible accidental presence of one or more ingredients they should avoid ingesting.

Now this raises the fundamental question as to whether current market practices where a ‘soy-free’ or ‘no soy’ claim coexists with a PAL statement in the product labelling, marketing and/or advertising are legitimate under EU law.

In our view, such practices are of dubious legality and, as such, not exempt from legal, economic and reputational risks.

To start with, stating that a food product is soy-free while admitting, at the same time, the accidental presence of soy in the finished product could be regarded as contradictory consumer information. As such, it might be construed as being contrary to the legal principle that stipulates that food information – including that provided on a voluntary basis – must be accurate, clear, and easy to understand for the consumer, based on the joint reading of art. 7 (1) and 36 (2) lett. a) and b) of Regulation (EU) No 1169/2011

Also, the use of additional statements (for instance, on packaging) clarifying that soy is not used intentionally in the product recipe and/or that the product may contain that ingredient (or traces of it), because of cross-contamination, is no guarantee that ‘soy-free’ and other similar claims will not be subject to consumer complaints or challenged by enforcement authorities. All in all, additional statements of the type here under exam do not seem suitable to prevent the occurrence of situations where consumers who are allergic to soy – and even the most careful ones – are exposed to the health risk resulting from its consumption. This even in spite of the fact that authoritative food science tells us that soy is not amongst the most dangerous allergens from a public health standpoint, as it is instead the case for other food allergens that can provoke severe reactions (e.g., anaphylactic shocks) such as peanuts and seafood (FAO & WHO 2023).  

In conclusion, while ‘soy-free’ and ‘no soy’ claims might be effective marketing tools to boost sales amongst consumers following vegetarian diets and/or keen on adopting sustainable consumption patterns, their use must be carefully pondered by food businesses. As shown above, the improper use of claims that refer to the absence of soy in food products might, under certain circumstances, mislead consumers, put their health at risk and, ultimately, expose food companies to sanctions and other enforcement measures. These considerations are particularly relevant now considering the legislative efforts deployed by the EU following the publication of the Green Deal in 2019 with a view to curbing false, unsubstantiated, and ambiguous environmental claims on consumer goods and their packaging, including food products.

Que política para o Direito de Consumo Europeu no futuro? O novo foco na competitividade europeia

Doutrina

Embora estejamos já no fim do primeiro trimestre de 2025, mantém-se especialmente urgente realizar uma reflexão sobre o que podemos esperar do resto do ano, e que espectativas devemos ter do futuro, em termos de política europeia e, em especial, que política é vamos ter para a proteção dos consumidores e o Direito Europeu do Consumo.

2024 foi um ano de fim de ciclo[1], com as eleições europeias em junho, novo Parlamento Europeu em julho, a tomada de posse da nova Comissão Europeia Von der Leyen 2.0 em dezembro, eleições presidenciais americanas em novembro e nova Administração Trump em janeiro.2025 marca o início de um novo ciclo[2], bastante desafiante, cheio de incertezas e de desafios.

Esta reflexão foca-se em dois temas nucleares, que serão abordados em dois textos neste blog: a) o novo foco na competitividade europeia pela Comissão Europeia; b) expectativas para a proposta do Digital Fairness Act, considerando os resultados do Digital Fairness Fitness Check.

Mudanças no Ar – o novo foco na competitividade europeia

Em setembro, foi publicado o relatório “The future of European competitiveness”, preparado pelo anterior presidente do BCE (“salvador do Euro”) e ex-primeiro-ministro italiano, Mario Draghi, “encomendado” pela Comissão em 2023. O “Relatório Draghi”, como ficou conhecido, analisa a atual situação macroeconómica europeia, diagnosticando vários fatores e sintomas para a perda da competitividade e declínio face aos Estados Unidos e a China, propondo ainda uma série de recomendações estratégicas que visam inverter este processo e relançar a União Europeia enquanto bloco económico.

O relatório é extenso, divido em duas partes: a parte A, com análise inicial e estudo macroeconómico, com 69 páginas, enquanto a parte B, com 328 páginas, contém uma análise aprofundada setorial com recomendações de medidas e reformas. As recomendações visam essencialmente um maior aprofundamento das competências (e mesmo alguma federalização) da União Europeia. O relatório foca-se na necessidade de eliminar barreiras no mercado único, simplificar a carga regulatória sobre as empresas, “desbloquear” o movimento de capitais no espaço europeu, promover a consolidação de alguns grupos económicos europeus em certos sectores e a reindustrialização (mantendo um plano conjunto para descarbonização e transição climática), apostando na inovação tecnológica (destaque para a IA) e assegurando a segurança e soberania europeia.

As reações ao relatório foram diversas, entre a recetividade do diagnóstico geral e a controvérsia quanto a certas medidas, como a emissão de mais dívida comum europeia (oposta imediatamente pelos Países Baixos e Alemanha). Várias das reformas propostas dividiram assim Estado Membros e partidos europeus. Quanto à política em Direito do Consumo, várias das medidas foram elogiadas (especialmente em matéria de energia), enquanto outras levaram a críticas[3]. A BEUC manifestou preocupação quanto ao possível “relaxar” das normas de direito da concorrência para permitir a consolidação de certos mercados, como o das telecomunicações. Muitas vezes o direito do consumo, a regulação de segurança de produtos e a regulação digital são apontados como sendo excessivas, como um entrave ao crescimento das empresas (críticas semelhantes são também formuladas quanto ao modelo social europeu, em política fiscal ou laboral).

Surge assim a questão: até que ponto é que podemos assegurar o bem-estar dos consumidores sem sacrificar também a competitividade económica? Será possível compatibilizar ambos?

As instituições europeias, encabeçadas pela nova Comissão Europeia parecem pensar que sim. Muitas das principais recomendações do relatório foram integradas nos compromissos políticos dos comissários no seu escrutínio pelo Parlamento Europeu. Os primeiros resultados estão a começar a surgir.

No final de janeiro a Comissão publicou assim o seu primeiro grande documento programático, o “EU Compass to regain competitiveness and secure sustainable prosperity” (Bússola da Competitividade). A Comissão assume assim uma estratégia de investimentos em sectores estratégicos, na inovação, descarbonização, e uma aposta na simplificação e coordenação das normas aplicáveis.

Competitividade e Proteção de Consumidores

Quanto a medidas e políticas para o direito do consumo, ainda vamos ter de esperar um pouco mais, já que segundo o programa da Comissão para 2025 (“work programme 2025” e anexos), a “2030 Consumer Agenda” (que vai incluir “action plan for consumers in the Single Market”) só deverá ser publicada no último trimestre de 2025, sendo que deverá ser aberta uma consulta pública para este no segundo trimestre.

Ainda assim, a Comissão publicou já a comunicação “A comprehensive EU toolbox for safe and sustainable e-commerce” (acompanhado de um Q&A), em que delineia as suas prioridades e iniciativas para o comércio eletrónico, uma das áreas fundamentais com importância crescente.

É assumido que o mercado interno da UE é o mercado com as normas que mais protegem os consumidores e asseguram a segurança dos produtos no mundo, mas que estas normas e standards são frequentemente desrespeitadas e violadas no domínio do comércio eletrónico, em especial nas grandes plataformas online. Entre estas destacam-se as plataformas chinesas Temu[4] e Shein, as quais estão a ser alvo de investigações e ações judiciais, em especial para se perceber como estas plataformas têm permitido que uma “avalanche” de produtos de baixo preço, baixa qualidade, contrafeitos e perigosos para seres humanos (em especial crianças), inundem o mercado europeu. Além de representarem uma ameaça à segurança e bem-estar dos consumidores (e dos óbvios problemas no âmbito de sustentabilidade dos produtos e possíveis violações de direitos humanos no seu fabrico), a Comissão Europeia também realça os prejuízos que vendedores europeus sofrem com esta concorrência desleal, por terem de respeitar as normas e standards europeus.

Segundo esta comunicação, a solução não é diminuir a carga regulatória que consequentemente reduz a proteção dos consumidores, mas sim assegurar que as normas são devidamente cumpridas, impedindo a entrada de produtos desconformes e responsabilizando as plataformas. Desta forma, a comunicação propõe: a) uma reforma aduaneira, com um reforço dos controlos, fim da isenção de direitos para as encomendas cujo valor seja inferior a 150 euros e novas taxas sobre produtos importados para a UE através do comércio eletrónico, b) promover o enforcement dos novos diplomas para responsabilizar as plataformas online, como o Digital Services Act e o Digital Markets Act, o novo Regulamento de Segurança dos Produtos, o Regulamento de Cooperação entre Autoridades no domínio do Consumo, c) utilizar novas ferramentas digitais para a supervisão e para melhorar a cooperação, d) adotar um plano de ação para os diplomas em proteção ambiental, d) capacitar os consumidores e e) reforçar a cooperação internacional.

Esta primeira comunicação da Comissão constitui um primeiro sinal da sua política em Direito do Consumo, em conjunto com os já referidos compromissos políticos dos comissários, em especial da Vice-Presidente Henna Virkkunen e de Michael McGrath, Comissário para Democracia, Justiça, Estado de Direito e Proteção dos Consumidores, e os seus planos para uma proposta de um Digital Fairness Act baseado nas conclusões do Digital Fairness Fitness Check. Parece que a política em Direito Europeu do Consumo não será (muito) alterada no sentido de reduzir a proteção dos consumidores europeus. Embora haja um push quanto ao quadro regulatório digital, parece que a Comissão pretende continuar a complementar e aprofundar (talvez mais timidamente) o Direito do Consumo (em especial online) e em reforçar o seu enforcement.[5]

Quando a questão da competitividade europeia é levantada quanto à proteção dos consumidores, a abordagem (que também já tinha sido apontada no relatório do Digital Fairness Fitness Check) aparenta não passar necessariamente pela “desregulação”, mas pela “simplificação” do ordenamento jurídico, para melhorar a sua consistência (interna e externa) de forma a reduzir os custos de compliance para os agentes económicos, sem reduzir os direitos dos consumidores.

Porém, é necessário realçar que estes pressupostos podem mudar drasticamente.

Considerando apenas os sinais que vêm de dentro da Comissão, parece que outras matérias (como obrigações ambientais, de sustainable finance, corporate due dilligence) não vão ter tanta “sorte”, existindo um verdadeiro “push” para desregular. O work programme 2025 prevê vários diplomas de “simplificação” até ao final deste ano, incluindo no domínio “digital”, enquanto vários procedimentos legislativos anteriores foram “cancelados”, com a Comissão a retirar as suas propostas. Entre estes, é inevitável referir a proposta de diretiva relativa à responsabilidade civil em matéria de inteligência artificial (AI Liability Directive).

Brussels Effect vs Trump Effect

Finalmente, é necessário referir o “elefant in the room” subjacente à afirmação de que 2025 é o início de um novo ciclo “bastante desafiante, cheio de incertezas e desafios”: a nova administração Trump e as suas políticas comerciais e regulatórias.

Sem entrar em pormenores e análises geopolíticas, é necessário apontar que esta administração mudou substancialmente, radicalmente, a postura americana para a proteção dos consumidores – e que esta mudança também terá impacto nos consumidores europeus. Desde os planos de desmantelamento do Consumer Financial Protection Bureau, aos discursos do Vice Presidente JD Vance na campanha eleitoral e agora no AI Summit 2025 em Paris, tornou-se explícito e completamente incontornável com o memorando Defending American Companies and Innovators From Overseas Extortion and Unfair Fines and Penalties – The White House.

Neste memorando, a Administração Trump afirma que, se governos ou entidades reguladoras de outros Estados e blocos económicos aplicarem coimas, sanções, taxas ou outros tipos de penalizações discriminatórias, desproporcionadas ou destinadas a transferir fundos ou propriedade intelectual significativos sobre empresas americanas, a Administração irá aplicar tarifas e outras medidas retaliatórias em resposta.

Neste momento, estamos perante um confronto direto entre o “Brussels Effect” e o “Trump Effect”, e ainda não é clara qual vai ser a resposta europeia[6]. Por exemplo, será que as investigações em curso sobre X (antigo Twitter) por violações do Digital Services Act irão continuar? Não nos podemos esquecer de que, a nível nacional, as entidades reguladoras têm de ser independentes, enquanto, a nível europeu, a Comissão é um ator político.

Conclusões

2025 constitui o início de um novo ciclo, num número quase infindável de matérias e facetas.

Ainda não é inteiramente claro como vai ser a política europeia de Direito de Consumo este ano e no resto do mandato 2024-2029, mas já temos algumas pistas. A nova Comissão Europeia tem sido muito influenciada pelo Relatório Draghi e pela necessidade de desbloquear a competitividade europeia, com a redução/simplificação da carga regulatória. Até ao final do ano deverá ser publicado a 2030 Consumer Agenda, que, incluindo um “action plan for consumers in the Single Market”, deverá assim incluir mais indicações e planos para a proposta do Digital Fairness Act, que provavelmente ficará para 2026[7]. Em alternativa (mas muito menos provável) poderá ser parte do pacote legislativo “Digital”, embora o objetivo deste seja a simplificação da legislação digital.

Quanto à aplicabilidade extraterritorial dos diplomas europeus em regulação digital às Big Tech europeias, desde o Regulamento Geral de Proteção de Dados, o Digital Services Act, o Digital Markets Act e o AI Act, subsistem ainda dúvidas sobre como a União Europeia irá reagir:  o Brussels Effect irá vingar ou estas empresas escaparão impunes?

Fontes

Relatório Draghi The Draghi report on EU competitiveness

Digital Fairness Act Digital fairness – fitness check on EU consumer law

Briefings ao PE dos membros do conselho europarl.europa.eu/RegData/etudes/BRIE/2025/700896/IPOL_BRI(2025)700896_EN.pdf

Competitive compass EU Compass to regain competitiveness

Commission announces actions for safe and sustainable e-commerce imports Safe and sustainable e-commerce imports

Questions and answers on the E-commerce Communication Q&A on the E-commerce Communication

Commission work programme 2025 – European Commission

Defending American Companies and Innovators From Overseas Extortion and Unfair Fines and Penalties – The White House


[1] É necessário referir que ainda ficaram pendentes para 2025 alguns procedimentos legislativos que não ficaram concluídos no último ciclo, nomeadamente a Diretiva Green Claims, a nova Diretiva de Resolução Alternativa de Litígios, nova Diretiva dos Direitos dos Passageiros Aéreos  e, em segurança de produtos, o novo Regulamento de Segurança de Brinquedos.

[2] Foram aprovados em 2024 os seguintes diplomas: a Diretiva de capacitação dos consumidores para a transição ecológica, a nova Diretiva de Responsabilidade do Produtor, a Diretiva do Direito à Reparação, o Regulamento de descontinuação da plataforma europeia de resolução de litígios em linha (ODR), o Regulamento dos requisitos de conceção ecológica dos produtos sustentáveis, e claro, o Regulamento de Inteligência Artificial.

[3] Outras ONG, na área da proteção do ambiente, também apontaram críticas a certas propostas sobre industrialização.

[4] A investigação sobre a Temu partiu da queixa promovida por um consórcio liderado pela BEUC, na ação “Taming Temu”.

[5] Por exemplo, podemos dar destaque aos resultados do último sweep realizado pela Comissão e as autoridades nacionais, que detetaram que quase metade dos vendedores de bens em segunda mão não cumprem com as suas obrigações à luz do Direito do Consumo, publicados no início de março. Nearly half of second-hand online traders fail to correctly inform consumers of their return rights

[6] A BEUC já apelou a que a União Europeia não se deixe intimidar, que continue firme na defesa dos consumidores europeus.

[7] Segundo declarações recentes do Comissário McGrath, deverá haver uma consulta pública e a proposta será apresentada a meio de 2026 (no evento: The Future of Transatlantic Digital Collaboration with EU Commissioner Michael McGrath | CSIS Events transcrição das declarações: The Future of Transatlantic Digital Collaboration with EU Commissioner Michael McGrath