Crianças-consumidoras também «votam com o dinheiro» dos pais

Doutrina

O Comentário Geral n.º 26 à Convenção sobre os Direitos da Criança, recentemente publicado pelo Comité dos Direitos da Criança das Nações Unidas, introduz uma perspetiva inovadora em relação ao direito da criança a um ambiente seguro e sustentável. Esta abordagem, ao entrelaçar o conceito de consumo com os direitos ambientais, impõe ao Estado e às entidades privadas a responsabilidade de protegerem as crianças[1], não apenas como beneficiárias passivas do consumo, mas como agentes com um papel próprio nas decisões e práticas de consumo que afetam o ambiente e a sua qualidade de vida futura.

A expressão «votar com o dinheiro» é frequentemente utilizada para ilustrar o poder dos consumidores na direção do mercado. No simples ato de optar, escolhendo comprar determinado bem ou contratar determinado serviço, o consumidor não está apenas a adquirir algo para sua satisfação pessoal, mas também a demonstrar as suas preferências em relação a valores como a qualidade, a ética e a sustentabilidade. Ocorre também, por vezes, estar apenas a transmitir qualquer outra mensagem nada relacionada com estes valores (como, por exemplo, que prefere bege a bordeaux), embora, nesse caso, em princípio, já não se deva assumir que se trata de uma motivação política. Neste sentido, algumas decisões de compra tornam-se uma forma de expressão política, onde os consumidores «votam» nas práticas que consideram mais alinhadas com os seus princípios. O conceito tem vindo a ser cada vez mais relevante, à medida que o consumo consciente e responsável ganha terreno, com os consumidores a optarem por empresas e bens que se destacam pela sua responsabilidade social e ambiental.

Este fenómeno, embora habitualmente reconhecido no contexto dos adultos, também pode ser aplicado às crianças, cuja influência nas decisões de compra do agregado familiar é crescente. De forma indireta, as crianças «votam» com o dinheiro dos pais, ao pressioná-los a adquirir bens específicos, como brinquedos e alimentos. Em boa verdade, esta parece ser a sua única remota hipótese de «votar» antes dos 18 anos de idade, pelo menos em Portugal.

Este poder de influência das crianças pode ter um impacto significativo nos padrões de consumo familiar, moldando não apenas os hábitos de compra, mas também a orientação para práticas mais sustentáveis. O Comentário Geral n.º 26 sublinha precisamente este ponto, ao destacar a importância de capacitar as crianças para se tornarem consumidoras informadas e responsáveis, capazes de influenciar, com as suas escolhas, um futuro mais sustentável e alinhado com os princípios da justiça social e ambiental.

O Comentário reconhece que a criança tem influência direta nos padrões de consumo do agregado familiar, muitas vezes determinando, ainda que de forma indireta, as escolhas dos cuidadores e do mercado. Esta influência, quando exercida num contexto informado e sustentável, pode moldar práticas de consumo orientadas para a sustentabilidade. O Comentário alerta, assim, para a importância de assegurar o direito da criança a receber «informações ambientais exatas e fiáveis» (parágrafo 33), fundamental para o seu desenvolvimento como consumidora consciente, internalizando práticas de consumo sustentável.

O direito ao consumo informado e sustentável articula-se aqui com o direito à educação, definido como essencial para a aquisição de competências que capacitem a criança a tomar decisões informadas e ambientalmente responsáveis. O parágrafo 53 do Comentário estabelece que a educação deve proporcionar às crianças «competências necessárias para enfrentar os desafios ambientais esperados nas suas vidas», promovendo a reflexão crítica sobre o consumo, a resolução de problemas ambientais e a adoção de estilos de vida que respeitem a sustentabilidade. Esta visão remete-nos para o conceito de «evolução das capacidades» da criança, reconhecido na Convenção, sublinhando a importância de ajustar as estratégias educativas e normativas à maturidade progressiva das crianças enquanto sujeitos de direitos. Ao promover a sua capacitação no consumo, o Comité estabelece uma ligação entre a formação do consumidor consciente e a proteção do ambiente, criando uma base para o exercício de um consumo informado que respeita as capacidades evolutivas da criança, enquanto princípio habilitador do processo de aquisição gradual de competências, compreensão e autonomia[2].

Um dos aspetos mais relevantes do Comentário no âmbito do consumo prende-se com a regulação da publicidade direcionada às crianças. O parágrafo 81, ao abordar o conceito de greenwashing, destaca a necessidade de as normas de publicidade e comercialização serem aplicadas de forma a prevenir práticas que possam induzir em erro as crianças, apresentando bens ou práticas empresariais como sustentáveis quando, na realidade, não o são. Este ponto convoca desafios jurídicos significativos, pois revela que, para proteger a criança enquanto consumidora, é indispensável o desenvolvimento de um quadro regulatório robusto, que imponha às empresas obrigações concretas de transparência. A prevenção do greenwashing é, assim, um imperativo para evitar a manipulação do consumidor infantil, que, devido à sua vulnerabilidade e capacidade cognitiva em formação, é especialmente suscetível a práticas comerciais enganosas.

Neste sentido, o Comentário opera uma transformação no modo como o direito do consumo pode e deve enquadrar o papel da criança: não apenas como destinatária de bens e serviços, mas como cidadã de direitos e responsabilidades no seio de um sistema que deve promover o consumo sustentável e a proteção do ambiente. Esta nova abordagem impõe ao direito do consumo a obrigação de não só proteger a criança contra práticas comerciais desleais, mas também de assegurar que a informação e as práticas comerciais estejam alinhadas com os princípios de transparência e sustentabilidade. A criança é, assim, promovida a um papel ativo no direito do consumo, alinhando o seu estatuto jurídico com a exigência crescente de um consumo responsável e ecologicamente consciente, (também) na defesa do seu superior interesse.


[1] Nos termos do artigo 1.º da Convenção sobre os Direitos da Criança, “criança é todo o ser humano menor de dezoito anos, salvo se, nos termos da lei que lhe for aplicável, atingir a maioridade mais cedo”. Nos termos do artigo 122.º do Código Civil, “é menor quem não tiver ainda completado dezoito anos de idade”.

[2] Comentário Geral n.º 7 (2005), parágrafo 17; e Comentário Geral n.º 20 (2016), parágrafos 18 e 20.

A essencialidade da “lei dos seis meses”

Doutrina

Todos os meses, a certeza de despesas associadas ao consumo de água, energia elétrica e gás natural acompanha a maioria das famílias portuguesas. Reconhecendo o interesse que informação relativa a estes consumos suscita nos seus telespectadores, a rubrica Contas-Poupança do Jornal da Noite (SIC) divulgou, no passado dia 2 de outubro, uma breve reportagem centrada na Lei n.º 23/96, de 26 de julho, apelidando-a de “lei dos seis meses”.

Esta é, em rigor, a Lei dos Serviços Públicos Essenciais. Não pode ignorar-se que o jornalismo procure simplificar linguagem a fim de mais facilmente divulgar informação e, assim, aumentar níveis de audiência. Contudo, ao fazê-lo é expectável que a mais irrelevante das imprecisões não escape ao atento seguidor do Direito do Consumo. É sob essa perspetiva que este texto é escrito.

Pensada com o objetivo de criar no ordenamento jurídico mecanismos destinados a proteger o utente de serviços públicos essenciais, a Lei dos Serviços Públicos Essenciais condensa, em 16 artigos, um regime relevante sobretudo para prestações de serviços continuados e duradouros, como acontece com os serviços de água, energia elétrica e gás natural, mas também com o serviço de comunicações eletrónicas, o serviço postal e o serviço de transporte de passageiros.

Ora, o conceito de utente a que este diploma recorre abrange qualquer pessoa a quem seja prestado um serviço público essencial, isto é, abrange pessoas singulares mas também pessoas coletivas públicas e privadas. Além disso, consideram-se serviços públicos essenciais todos os que, taxativamente, o n.º 2 do art. 1.º da referida Lei elenca. A este respeito, deve notar-se que esta lista tem sido alargada ao longo dos anos.

Regressando ao motivo pelo qual esta lei foi apelidada de “lei dos seis meses”, cumpre olhar para o n.º 1 do seu art. 10.º, de acordo com o qual o direito ao recebimento do preço do serviço prestado prescreve no prazo de seis meses após a sua prestação. Quer isto dizer que, caso o prestador de serviços não inicie um processo judicial ou apresente um requerimento de injunção no que respeita a um consumo relativo a um período de faturação com mais de 6 meses de anterioridade, o consumidor pode invocar a prescrição para se opor ao pagamento desses mesmos serviços.

Aqui chegados, deve admitir-se a hipótese de litígio entre utente e prestador de serviços. De acordo com o art. 15.º deste diploma, o utente pode exercer o seu direito potestativo à arbitragem, o que não acontece com o prestador de serviços. Só o utente pode impor ao prestador de serviços a arbitragem – e não vice-versa. Esta possibilidade evidencia uma das mais célebres características do Direito do Consumo: a proteção do consumidor (ou utente) face a um profissional (ou prestador de serviços).

Pese embora a sua parca difusão, a verdade é que a Lei dos Serviços Públicos Essenciais concede a todos os utentes direitos bastante importantes, tornando-a verdadeiramente essencial no amplo leque de normas que integram o Direito do Consumo.

Gorjeta incluída na conta

Doutrina

Nos últimos anos, tem-se generalizado em alguns restaurantes, em especial os de gama mais alta, uma prática que consiste em incluir na conta um valor relativo a gorjeta, sendo em regra apresentados dois preços, um sem gorjeta e o outro com esta incluída. A percentagem é variável, situando-se em torno de 5% a 10%.

Esta prática parece-me contrária ao Direito português vigente, pelo menos nos casos em que se trate de uma relação de consumo, ou seja, o cliente não esteja a agir na qualidade de profissional na relação com o restaurante.

A análise que se segue tem como base os princípios do Direito do Consumo e a sua aplicação a esta situação concreta.

As principais questões colocam-se ao nível da transparência e da lealdade. No entanto, antes de entrar na sua análise, importa perceber as razões que estão subjacentes a esta prática.

Trata-se de uma forma de aumentar o valor pago pelo cliente, que tem como destinatários os trabalhadores dos restaurantes. Ou seja, está em causa uma prática que visa aumentar a parte variável da remuneração dos trabalhadores, relativa às gratificações dadas pelos clientes. A sua inclusão na conta poderá ter a vantagem de ser mais claro, do ponto de vista da tributação, qual o rendimento relevante. Haverá, portanto, um interesse geral subjacente a esta prática, ainda que indiretamente considerado.

Do ponto de vista do Direito do Consumo, a prática é, no entanto, muito problemática.

Desde logo, levanta problemas de transparência.

Com efeito, o consumidor não tem conhecimento, quando lhe é apresentado o menu, que, ao valor da comida e das bebidas, será aplicada, no final, uma percentagem variável, não obrigatório, na conta. Tipicamente, não é afixado qualquer cartaz com essa informação no restaurante, não constando igualmente da ementa a referência a essa percentagem nem a circunstância de esta ser posteriormente apresentada com a conta. Assim, quando está a fazer as contas quanto ao que irá gastar, o consumidor não inclui esse montante na operação.

O preço é um elemento essencial da decisão de contratar do consumidor e deve ser obrigatoriamente incluído antes de este avançar para a decisão de transação. Tal é exigido pelo art. 1.º do DL 138/90 (regime da indicação de preços), aplicável aos serviços por via do art. 10.º do mesmo diploma. Também o art. 8.º-1-c) da Lei de Defesa do Consumidor e o art. 10.º-c) do DL 57/2008 (práticas comerciais desleais) impõem a indicação do preço, incluindo taxas e impostos, e, acrescento eu, qualquer outro valor que possa ser acrescentado ao consumidor.

A indicação do preço deve incluir, parece-me, por questões de transparência, valores facultativos eventualmente apresentados ao consumidor em momento posterior. A situação é ainda mais problemática se tivermos em conta que a percentagem é variável. Em alguns restaurantes são 5%, noutras 7%, noutras 10%, por exemplo.

Acresce ao que já foi referido, em termos de transparência, o modo como a gorjeta é apresentada e a relação entre este valor e o valor total constante da conta. Muitas vezes é apresentado o valor total, sem gorjeta, em tamanho mais pequeno do que o valor total, acrescido da gorjeta, apresentado numa linha abaixo. Ou seja, o total apresentado num tamanho maior e no final é o valor com a gorjeta. Muitos consumidores leem apenas esse valor total, julgando ser esse o valor a pagar. Tal é ainda mais problemático se se tratar de um consumidor estrangeiro, que pode não saber ler em português e, por isso, não conseguir entender que o valor da gorjeta é facultativo e não tem de ser pago. Embora o problema de transparência não se circunscreva a consumidores que não leiam português, atinge estes de modo ainda mais significativo.

A não inclusão imediata da informação enviesa a decisão de contratar livre e esclarecida do consumidor. Este acaba por ser surpreendido, mais à frente, já depois de se ter vinculado irreversivelmente. Nesse momento, terá apenas uma de duas opções: (i) confrontar o empregado que o serviu com a sua decisão de não pagar o valor da gorjeta indicado; (ii) pagar esse valor. Para muitos consumidores, a primeira decisão é muito difícil de tomar.

Isto leva-nos para o segundo – e mais grave – problema associado a esta prática: a deslealdade.

Em relações de consumo, o comportamento do profissional deve ser especialmente norteado pela honestidade e pela proteção dos interesses económicos dos consumidores (v. art. 60.º da Constituição da República Portuguesa).

O já referido DL 57/2008 proíbe as práticas comerciais desleais. Temos, desde logo, a cláusula geral (art. 5.º), segundo a qual é desleal a prática desconforme à diligência profissional que leve o consumidor a tomar uma decisão de transação diferente da que tomaria se não fosse confrontado com a prática em causa.

A prática de incluir a gorjeta na conta, ainda que facultativa, parece ser contrária à diligência profissional – definida no art. 3.º-h) –, pois não corresponde à prática mais comum e honesta de mercado nem está de acordo coma boa-fé, em especial porque surpreende o consumidor, que fica numa situação de certa forma limitada, com a dupla opção referida anteriormente neste texto. É igualmente indiscutível que o comportamento do consumidor seria, em princípio, outro se soubesse que seria apresentada uma conta com a indicação de um valor adicional a pagar, ainda que este seja facultativo.

As práticas desleais distinguem-se entre práticas enganosas e agressivas.

Neste caso, parece-me que estamos perante uma prática agressiva. Nos termos do art. 11.º do DL 57/2008, há uma prática agressiva nos casos em que a liberdade do consumidor é afetada por assédio, coação ou influência indevida.

No caso em análise, não estaremos perante uma situação de coação, pois, pelo menos em regra, o consumidor não é forçado, física ou psicologicamente, a pagar a gorjeta. Em certos casos, podemos conceber que o empregado faça alguma pressão adicional, inadmissível, no sentido de informar o cliente que a sua remuneração depende em grande medida das gorjetas pagas pelos clientes. Nestes casos, poderemos estar perante situações de coação.

Parece-me que estaremos, no entanto, na generalidade dos casos, perante uma situação de influência indevida, conceito definido no art. 3.º-j).

Com efeito, o profissional utiliza uma posição de poder, que consiste na circunstância de ter servido o consumidor, estar no final da refeição, num momento em que o consumidor tem o dever de pagar, ficando por isso limitado, ainda que não fisicamente. Se não quiser pagar esse valor, o consumidor terá de o dizer ao empregado, a pessoa que o serviu e que irá receber, diretamente, esse valor. Um consumidor médio, com um nível de conhecimento e um perfil psicológico normal, tem dificuldade em confrontar a pessoa com quem interagiu com essa decisão. E isso é aproveitado pelo profissional por via dessa prática. Há, portanto, uma influência indevida sobre o consumidor, que o leva a tomar uma decisão de transação diferente da que tomaria, dando uma gorjeta que não daria ou dando uma gorjeta de valor superior àquela que daria (até tendo em conta o que é habitual no nosso país). Em Portugal, é relativamente comum não ser dado qualquer valor de gorjeta ou ser dado um valor relativamente baixo, arredondando-se o valor total à unidade de euro mais próxima ou um valor fixo em euros (um, dois ou cinco euros, por exemplo, consoante o valor total).

A prática em análise visa, claramente, aumentar o valor pago em gorjeta. E, como vimos, esse aumento resulta de uma influência indevida eficaz, pouco transparente, sendo, por isso, a prática desleal. O profissional tem uma forma muito mais transparente e leal de resolver o problema que o leva a adotar esta prática, que consiste em aplicar essa percentagem a cada um dos produtos que comercializa. Nesse caso, os preços serão maiores, mas o consumidor pode decidir de modo livre e esclarecido.

Cláusulas contratuais gerais abusivas: a propósito do caso do casal que não pôde processar a Uber num tribunal judicial por ter subscrito o serviço da Uber Eats

Doutrina

Quando criamos uma conta ou consumimos diariamente os serviços fornecidos por grandes empresas, como o Google ou a Meta, dificilmente nos recordamos dos minuciosos detalhes e das vinculações a que estamos suscetíveis. A falta de uma leitura atenta e prévia permite que as cláusulas, muitas delas abusivas, surpreendam o consumidor e limitem o exercício dos seus direitos perante um litígio. É neste contexto que se iniciou, nos Estados Unidos da América, uma nova onda de conflitos nos contratos de adesão.

Segundo uma notícia publicada em Portugal, no dia 31 de março de 2022, um casal de Nova Jérsia, EUA, sofreu um acidente de viação após o seu motorista de Uber ter desrespeitado o sinal vermelho e ter colidido com outro veículo. Consequentemente, o casal sofreu inúmeros ferimentos e foi submetido a diversas cirurgias. No ano seguinte, tentaram processar a Uber pelo comportamento do motorista parceiro.

Para surpresa do casal, o tribunal declarou a sua própria incompetência para julgar o caso, sob fundamento da existência de uma convenção de arbitragem em vigor entre as partes, presente nos (incorretamente designados) “Termos e Condições” do serviço da Uber Eats, aceites uns meses antes do acidente pela filha de 8 anos do casal. A cláusula compromissória estabelece que qualquer litígio entre a empresa e os particulares deve ser resolvido por arbitragem. Segundo a notícia, a cláusula foi considerada válida pelo Tribunal Superior de Nova Jérsia.

Não é a primeira vez que este tipo de práticas é notícia. Por exemplo, em outubro de 2023, um homem foi impedido de propor uma ação judicial contra um restaurante ligado à Disney, pois havia subscrito a Disney+ em 2019 (pelo período de um mês, sem contrapartida financeira) e, nas respetivas cláusulas, estava igualmente prevista uma cláusula arbitral.

Apesar de as grandes empresas terem obtido sucesso nas decisões judiciais proferidas nos Estados Unidos da América, em Portugal (e, em geral, na União Europeia) a solução seria, muito provavelmente, diferente.

Destaco dois diplomas legais para o tratamento deste tema:

Começamos pelo regime das cláusulas contratuais gerais, consagrado no Decreto Lei n.º 446/85, que transpõe a Diretiva 93/13/CEE. As cláusulas impostas por uma das partes (predisponente), sem possibilidade de negociação pela outra (aderente), estão sujeitas a um exigente dever de comunicação. Com efeito, o art. 5.º-2 do DL 446/85 estabelece as exigências mínimas para uma cláusula ser considerada comunicada: deve ser apresentada ao aderente “de modo adequado”, de forma a tornar possível “o seu conhecimento completo e efetivo por quem use de comum diligência”. A cláusula compromissória surge, neste caso, no momento da criação de uma conta na plataforma da Uber Eats, no meio de um extenso documento, o que leva a que um contraente que corresponda ao padrão normal, que usa de comum diligência, não a leia, ou, pelo menos, não a leia atentamente, tomando conhecimento completo e efetivo do seu conteúdo. Assim, nos termos do art. 8.º-a), a cláusula não integra o contrato e não tem nenhum efeito.

É ainda possível recorrer ao art. 8º-c), que exclui do contrato “as cláusulas que, pelo contexto em que surjam, (…) passem despercebidas a um contratante normal, colocado na posição do contratante real”. Parece evidente que a cláusula arbitral, se aplicada a qualquer relação da empresa com o consumidor, não tendo qualquer ligação ao contrato celebrado (serviços associados à Uber Eats ou à Disney+), será surpreendente para este. A sua inclusão (formal) no contrato pressuporia uma comunicação autónoma e devidamente realçada, o que, como sabemos, não sucede na adesão a serviços como estes. Um consumidor médio não está à espera que surja num contrato relativo a serviços digitais uma cláusula arbitral relativa a relações físicas e presenciais, contratuais ou extracontratuais, com outras empresas do grupo.

Do ponto de vista material, a cláusula dificilmente passaria igualmente o crivo da boa-fé, consagrado no art. 15.º do DL 446/85, em especial porque estão em causa serviços diferentes, resultantes de relações contratuais diversas, ainda que eventualmente entre as mesmas partes. No entanto, numa relação de consumo, a resposta é mais direta (e, por isso, clara) por via da aplicação da Lei n.º 144/2015, que regula a resolução alternativa de litígios de consumo, incluindo a arbitragem. O art. 13.º determina que, num contrato de consumo, quando é acordado entre as partes um meio de resolução alternativa de lítigios, o consumidor não fica vinculado ao mesmo e pode sempre submeter o litígio a um tribunal judicial.

Em síntese, de um ponto de vista prático, os consumidores, no seu dia a dia, muitas vezes aceitam cláusulas contratuais sem plena consciência da sua complexidade, ficando, assim, mais vulneráveis e limitados face às empresas e outros profissionais. Neste contexto, torna-se essencial a aplicação rigorosa das normas de Direito do Consumo, não só para combater cláusulas abusivas, mas também para assegurar a proteção dos consumidores, garantindo que possam exercer os seus direitos sem restrições.

Jogar Sai Caro: A Manipulação Silenciosa dos Preços nos Videojogos

Doutrina

Por Leonor Gomes Martins e Tiago Ribeiro Longa

Numa era fortemente marcada pela digitalização, é compreensível que o elevado consumo de videojogos seja uma tendência crescente. A nível europeu, mais de metade dos consumidores jogam videojogos regularmente, sendo que as crianças jogam ainda mais, com 84% dos jovens entre os 11 e 14 a fazê-lo.

No passado dia 12 de setembro de 2024, o BEUC e outras 22 organizações membros de 17 países apresentaram uma queixa às autoridades europeias (Comissão Europeia e a CPC-Network – Consumer Protection Cooperation Network) sobre as práticas comerciais desleais das principais empresas de jogos online, como a Electronic Arts, a Epic Games e a Mojang Studios, responsáveis por jogos como EA Sports FC, Minecraft e Fortnite. A base da queixa assenta no facto de os consumidores não terem uma perceção clara do custo real dos itens digitais, o que acaba por levar a gastos excessivos. Desta forma, a ausência de transparência nos preços das moedas premium nos jogos (itens digitais, como jóias, pontos ou moedas, que podem ser comprados com dinheiro real, geralmente nos próprios jogos) e as “promoções” de moedas adicionais em pacotes incentivam os consumidores a gastar mais do que pretendem.

Ao visitar uma loja dentro do jogo para verificar as compras disponíveis, os consumidores costumam encontrar os preços apenas nas moedas utilizadas no próprio jogo, sem qualquer indicação do custo em dinheiro real, isto é, a informação sobre os preços efetivos não está acessível, exceto quando se adquirem moedas virtuais premium, o que constitui violação das leis de proteção do consumidor da União Europeia.

Esta prática cria um distanciamento entre o verdadeiro gasto de dinheiro real da ação de obter o item do jogo, o que torna desnecessariamente difícil para o jogador consumidor saber o custo monetário exato do que está a comprar (a título exemplificativo, podemos afirmar que um preço de 1.000 X – moeda fictícia – é significativamente menos concreto do que 10€).

Consequentemente, com este afastamento, as empresas de jogos conseguem reduzir a chamada “dor de pagar” (refere-se aos sentimentos negativos que as pessoas sentem ao gastar dinheiro) para os consumidores, diminuindo o seu limite, e aumentando a sua disposição para gastar. Este fenómeno é documentado por estudos recentes, que revelaram que o uso de moedas premium aumentou os gastos dos consumidores nos jogos, e que 92,3% dos jogadores que fizeram compras num jogo por meio de moedas virtuais e moedas reais declararam que era mais doloroso pagar em moeda real do que em moeda virtual.

Embora muitos consumidores escolham não usar dinheiro real nestes jogos, a introdução de moedas premium pode ser usada para explorar pessoas em situações vulneráveis, como aquelas com dependência de jogo, dificuldades em controlar impulsos, ou crianças. Os jogos “free to play” atraem especialmente estas últimas, já que não exigem uma compra inicial por parte dos pais. Esta barreira de entrada baixa deixa as crianças mais expostas a práticas manipuladoras incorporadas em diversos jogos.

Apesar da ausência de uma legislação específica na União Europeia para jogos e aplicações, o quadro legal atual garante uma proteção abrangente aos consumidores, incluindo a indústria dos videojogos.

Assim, no âmbito do direito substantivo, a Diretiva sobre os Direitos dos Consumidores, no artigo 6.º-1-a), transposto para o nosso ordenamento jurídico pelo Decreto-Lei n.º 24/2014) e a Diretiva relativa às Práticas Comerciais Desleais, no artigo 7.º-4 (transposto pelo Decreto-Lei n.º 57/2008), que são totalmente aplicáveis aos setores em causa, estabelecem que os consumidores devem ser devidamente informados acerca de elementos essenciais e pertinentes antes de celebrarem um contrato. Entre os dados que devem ser comunicados, destaca-se o preço efetivo do produto ou serviço que se pretende adquirir, informação que não está presente em muitas destas lojas virtuais. Por outras palavras, as compras dentro dos jogos deveriam ser sempre apresentadas em dinheiro real (por exemplo: euros), ou, pelo menos, indicar claramente a equivalência em moeda real. Se por alguma razão o preço não puder ser calculado razoavelmente com antecedência, deve estar indicado como é que este o será, caso contrário configura uma omissão enganosa à luz do regime das práticas comerciais desleais. O quadro jurídico europeu já prevê a proteção dos direitos dos consumidores, mas é essencial que as autoridades e reguladores adaptem essas normas às novas realidades digitais, promovendo um ambiente de jogo mais justo e transparente, uma vez que esta é uma prática recorrente e antiga. Só assim será possível proteger os jogadores, especialmente as crianças, e garantir que a indústria dos videojogos evolui de forma responsável e ética, sem colocar em risco o bem-estar financeiro dos seus consumidores.

Agressividade ou Lealdade? O Dilema do Modelo “Consent or Pay”

Doutrina

Em novembro de 2023, os utilizadores europeus das redes sociais Facebook e Instagram foram confrontados com uma escolha quanto à utilização dos seus dados pessoais, para efeitos da sua utilização em publicidade comportamental pela gigante Meta. De repente, um consumidor utilizador destas redes sociais recebe uma notificação persistente, na qual a Meta informa que terá de optar entre continuar a “utilizar gratuitamente com anúncios”, ou pagar uma subscrição mensal de pelo menos € 9.99 para aceder a uma versão da rede social sem publicidade comportamental. Para a maior parte dos milhares de milhões de utilizadores esta foi uma escolha simples (e obrigatória), uma vez que não era fácil remover a notificação que bloqueava o acesso à página do utilizador na rede.

Contudo, as instituições europeias e a doutrina têm feito correr muita tinta quanto à legalidade deste modelo de negócio implementado pela Meta e comumente designado de “Consent or pay” ou “Pay or okay”. Esta novidade surgiu na sequência do Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia Bundeskartellamt, no qual o Tribunal reconhece que os utilizadores têm o direito de recusar dar o seu consentimento de forma individual a operações de tratamento de dados que não sejam necessárias à execução do contrato, sem serem obrigados a abdicar da utilização do serviço digital no seu todo. Assim, é referido que o operador do serviço deve fornecer uma “alternativa equivalente não acompanhada de tais operações de tratamento de dados” e, se necessário, “mediante uma remuneração adequada” (Parágrafo 150).

Este tema está longe de estar encerrado, e encontra-se em discussão aberta à luz de vários ramos do direito da União, nomeadamente à luz do direito à proteção de dados pessoais, do direito da concorrência, e ainda do direito do consumo.

Após o lançamento do modelo de subscrição, o Bureau Européen des Unions de Consommateurs (doravante BEUC) emitiu um comunicado de imprensa expressando a sua convicção de que este modelo viola a Diretiva da Práticas Comercias Desleais, consubstanciando uma prática agressiva pelo exercício de influência indevida sobre o consumidor, e uma prática comercial enganosa por ação. Em julho de 2024, a Comissão Europeia e a CPC anunciaram o seguimento da ação e enviaram uma carta à Meta pedindo-lhe que proponha soluções até 1 de setembro de 2024 (as quais são, até ao momento, desconhecidas).

Cabe-nos aqui desenvolver o modelo “Consent or pay” pelo olhar da Diretiva das Práticas Comerciais Desleais, cingindo-se esta análise à validade dos argumentos que sustentam a agressividade desta prática.

Prática Comercial Agressiva

A Organização de Consumidores argumenta que o design da notificação consubstancia um “dark pattern”, que não possibilita que o consumidor utilizador aceda à sua página, contactos e fotos, e o pressiona a tomar uma decisão quanto ao modelo de subscrição.

De facto, uma configuração tendenciosa da interface da rede, se apresentada num contexto B2C, pode consubstanciar uma prática comercial enganosa, agressiva ou contrária à diligência profissional imposta pelo artigo 5.º da Diretiva. Tal dependerá do padrão em concreto, e se for suscetível de afetar o comportamento económico do consumidor médio (ou, tratando-se uma prática dirigida a um grupo de consumidores particularmente vulneráveis, o consumidor médio desse grupo).

No caso em análise, o argumento prende-se especificamente com a persistência da notificação da alteração do modelo de negócio, e a urgência que cria no consumidor para tomar uma decisão para poder aceder à sua conta. Ainda que este tipo de “subscrição forçada” não conste do elenco exemplificativo apresentado pela Comissão na UCPD Guidance, a verdade é que os elementos do caso concreto nos levam facilmente à conclusão de que tal prática é suscetível de distorcer o comportamento económico e transacional do consumidor médio.

Como nos indica o Acórdão Orange Polska[1] (C-628/17 [2019] ECLI:EU:C:2019:480), os Tribunais nacionais devem ter cautela ao qualificar uma prática comercial como o “exercício de influência indevida”, e na análise deste conceito as “informações prestadas antes da celebração de um contrato sobre as condições contratuais e as consequências da referida celebração são de importância fundamental para o consumidor” (para. 35).

Ora, por um lado, voltando ao nosso caso, a Meta anunciou no seu site oficial, a 30 de outubro de 2023, que iria “oferecer uma subscrição sem anúncios para os utilizadores na Europa”. Não obstante, o consumidor médio não é suficientemente diligente ao ponto de verificar este site, pelo que um email ou notificação prévia na própria interface da rede social teria mais oportunidades de retirar o elemento surpresa da notificação. É aqui que reside uma diferença factual muito relevante face ao Acórdão Orange Polska e que poderá por analogia, porventura, nortear uma decisão favorável ao BEUC.

Por outro lado, o formato binário e a persistência da notificação criam indubitavelmente uma pressão para o consumidor fazer a sua escolha de imediato, que penderá, tendencialmente, para a opção que afirma a continuação da utilização “gratuita”, mas com anúncios.

O formato e modo da notificação utilizado pela Meta é suscetível de prejudicar significativamente o período de ponderação do consumidor, nomeadamente, quanto ao impacto que cada opção tem nos seus dados pessoais e na sua carteira, levando-nos a tomar uma decisão de transação que, possivelmente, não tomaríamos em circunstâncias comerciais leais. Aliás, muitos de nós não lemos o texto até ao fim, com a pressa de verificar se tínhamos notificações novas.

Assim, a natureza da notificação, qualificável como “dark pattern”, e a persistência da mesma, intercedem a favor do argumento de que a Meta exerceu influência indevida sobre os seus utilizadores.

Ademais, não era evidente, para o consumidor médio, a opção de apagar a sua conta de utilizador ou de fazer o download dos seus dados pessoais, uma vez que tal não aparecia diretamente na notificação que bloqueava a página principal da rede.

É aqui que reside o fundamento da qualificação desta prática como “subscrição forçada”, como argumenta o BEUC.

Este elemento, por si só, justifica a invocação do Artigo 9(d) da Diretiva, consubstanciando um entrave desproporcional ao exercício pelo consumidor dos seus direitos, nomeadamente, a resolução do contrato ou troca de serviço.

Noutra perspetiva, esta é também uma clara violação do normativo do RGPD (Regime Geral de Proteção de Dados), segundo o qual retirar o consentimento deve ser tão fácil para o sujeito de dados, como dá-lo (Artigo 7(3), in fine). Esta violação de direito da proteção de dados pessoais deverá ser considerada e pesada na qualificação da prática comercial como agressiva, como o refere várias vezes a Comissão na UCPD Guidance.

Conclusão

A alteração do modelo de negócio da Meta per se não viola a Diretiva da Práticas Comerciais Desleais. A questão é mais profunda que isto, pois estão aqui essencialmente em conflito o direito fundamental à proteção dos dados pessoais (Artigo 8.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia) e o direito fundamental à liberdade de empresa (Artigo 16.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia) e de livre iniciativa económica (Artigo 61.º da Constituição da República Portuguesa). A análise que aqui se fez reporta-se sobretudo ao modo como o modelo foi apresentado aos consumidores europeus. E, nessa medida, a ponderação geral destes argumentos leva-nos a acompanhar a posição do BEUC quanto à qualificação como prática comercial desleal agressiva. No entanto, considerando a falta de precedente, não é inteiramente evidente se os Tribunais acompanharão este juízo.


[1] O caso em questão envolvia um consumidor que solicitou um contrato de telecomunicações por via do site da empresa de telecomunicações. Durante o processo de solicitação do contrato, o consumidor teve a possibilidade de consultar os detalhes da oferta e os contratos-padrão diretamente no site da empresa. Contudo, a celebração do contrato só seria possível na presença do funcionário da empresa, tendo o consumidor de declarar que tomou conhecimento dos documentos e que aceitava o seu conteúdo. O TJUE acabou por concluir que não se tratava de uma prática comercial agressiva por influência indevida, tendo, contudo, deixado orientações para a interpretação do conceito.

Que razões levam a uma escassa aplicação prática do Direito do Consumo em Portugal?

Doutrina

Por Ana Rita Agostinho, Andreia Gouveia, Carolina Furtado, Catarina Teixeira, Jorge Morais Carvalho, Laís Tourinho, Madalena Duarte, Mafalda Coimbra, Margarida Riso, Mariana Pais Albuquerque e Rafael Carvalho

No dia 11 de setembro, teve início a Pós-Graduação em Direito do Consumo, organizada pela Jurisnova e pela NOVA School of Law. Os participantes foram desafiados, desde logo, a responder à seguinte questão: que razões levam a uma escassa aplicação prática do Direito do Consumo em Portugal? A escassa aplicação prática reflete-se não só na perceção de um nível de cumprimento baixo, em comparação com uma legislação especialmente exigente, mas também na pouca jurisprudência dos tribunais judiciais, poucos reenvios prejudiciais, poucas decisões administrativas.

Neste texto, responde-se a essa questão, salientando os aspetos que foram assinalados na análise feita pelos participantes[1].

Destaca-se, em primeiro lugar, o nível baixo de literacia da generalidade dos consumidores. Os consumidores estão, em geral, pouco (e mal) informados sobre os seus direitos e deveres. A formação escolar a este nível é deficiente, o que leva a que o problema comece, desde cedo, na vida das pessoas, acentuando-se ao longo da vida, tendo em conta a falta de formação para a cidadania em geral e para o consumo em especial.

A falta de conhecimento da legislação aplicável está ligada a este baixo nível de literacia, sendo acentuada pela dispersão legislativa característica do Direito do Consumo em Portugal. A existência de normas dispersas pelo ordenamento jurídico, de forma pouco clara e organizada, constitui um entrave ao seu conhecimento efetivo. Neste sentido, assinala-se as vantagens que poderiam advir da aprovação de um código ou, pelo menos, de uma lei mais ampla, que agrupasse e sistematizasse os principais direitos e deveres dos consumidores.

O desconhecimento é especialmente evidente no que respeita a consumidores mais vulneráveis, com especial destaque para os imigrantes, que têm uma dificuldade no acesso e na compreensão da realidade, por não estarem tão adaptados à cultura jurídica e prática das relações de consumo.

O nível de conhecimento dos profissionais é também bastante baixo. Com um tecido empresarial dominado por micro e pequenas empresas, os aspetos indicados a propósito dos consumidores aplicam-se, quase sem variações, aos profissionais. Assim, as pessoas que devem cumprir a generalidade das normas de Direito do Consumo também não as conhecem em toda a sua extensão e complexidade. A dispersão legislativa torna o Direito de difícil apreensão, verificando-se ainda algumas incongruências e contradições em diferentes diplomas legais. A codificação poderia contribuir para melhorar a literacia dos profissionais em matéria de Direito do Consumo. Outro aspeto assinalado é a necessidade de formação dos profissionais, em especial os que têm contacto direto com o público, que deveria ser incentivada ou mesmo tornada obrigatória.

Por vezes, mesmo que o profissional queira cumprir, não o consegue fazer, pois, além de ser difícil, mesmo para quem procure, saber ao certo o que tem de ser feito, o nível de exigência é muito elevado, passando por um conjunto excessivo de deveres, por vezes sem eficácia prática, com custos muito elevados (quer financeiros quer organizacionais). Uma microempresa não tem, muitas vezes, condições para dar resposta a tudo aquilo que lhe é, no Direito escrito (ou em teoria), exigido. O Direito em ação (ou na prática) acaba, depois, por isso, por corresponder a menos do que a lei prevê.

É igualmente assinalada uma questão cultural, ligada à anterior, com impacto no nível de cumprimento da legislação de consumo. Os consumidores e os profissionais concordam muitas vezes, ainda que tacitamente, que ao negócio em causa não é aplicável toda a legislação de consumo. Estamos a falar de relações pessoais existentes entre o cliente habitual e o dono do café, do cabeleireiro ou da papelaria, muitas vezes a única pessoa que nele trabalha, que levam a uma informalidade com efeitos na consciência dos direitos subjacentes. Um pouco como se, nesses pequenos estabelecimentos, as regras não fossem as mesmas. O traço cultural de não conflituosidade confrontativa leva também os consumidores a, muitas vezes, não assinalar o incumprimento da lei perante o profissional

Outro aspeto indicado é a insuficiência da fiscalização de práticas contrárias ao Direito do Consumo.

Por um lado, salienta-se a falta de meios humanos das entidades fiscalizadoras e a ausência de orientações claras e transversais quanto à aplicação das normas de consumo. Acresce a perceção da inexistência de uma ação concertada por parte das várias entidades competentes nos casos em que a competência é partilhada.

Por outro lado, realça-se a inexistência de sanções adequadas em caso de incumprimento dos deveres por parte dos profissionais.

Do ponto de vista das normas de direito substantivo, é realçada, em especial por comparação com o direito brasileiro, a circunstância de o ressarcimento por danos não patrimoniais ser raro nas relações de consumo em Portugal e de, nos casos em que são atribuídas indemnizações, o seu valor ser baixo. Também as dificuldades de prova, por parte do consumidor, não são porventura compensadas por uma suficiente inversão do ónus. A utilização de conceitos indeterminados em vários diplomas constitui igualmente uma dificuldade no que respeita à aplicação prática do Direito do Consumo.

A verificação de pouca jurisprudência dos tribunais judiciais em matéria de Direito do Consumo estará relacionada com o valor médio baixo dos litígios, o que leva a que os consumidores internalizem o risco e não recorram a tribunal. Os custos associados ao acesso aos tribunais judiciais não compensam, na maioria dos casos, a propositura da ação. Os centros de arbitragem têm um papel importante neste domínio, sendo importante que se tornem mais conhecidos e que as suas decisões sejam publicadas. Por fim, é ainda realçado o papel que poderão ter algumas vias privadas de resolução de litígios, como as redes sociais ou os portais dedicados a inserção de queixas pelos consumidores. Estes mecanismos podem ser, em alguns casos, mais eficazes, mas fazem de certa forma concorrência à própria legislação e à sua aplicação, pois não se baseiam, em regra e no essencial, na estrita consideração do Direito aplicável.


[1] Tratando-se de um texto coletivo, é possível que alguma ideia não corresponda à perspetiva de todos os autores.

O que a Siri não diz sobre o que faz com dados pessoais

Doutrina

Os assistentes de voz virtuais são cada vez mais integrados no nosso dia a dia, permitindo realizar tarefas com simples comandos de voz. No entanto, as implicações da sua utilização para a privacidade dos utilizadores muitas vezes passam despercebidas.

Neste blogpost, vamos explorar os desafios que estes dispositivos apresentam em termos de proteção de dados, focando-nos nas bases de licitude para o tratamento de dados e nos requisitos de transparência que os responsáveis pelo tratamento devem observar.

O que são assistentes de voz virtuais?

Essencialmente, os assistentes de voz virtuais são concebidos para facilitar a execução de tarefas e, ao mesmo tempo, proporcionar ao consumidor acesso a informação. Por exemplo, smartphones já utilizam estes assistentes virtuais para definir alarmes ou lembretes. Da mesma forma, alguns automóveis integram assistentes que permitem ao condutor e ocupantes controlar o GPS por via de comandos de voz. O seu alcance é vasto, não se limitando, portanto, a ser um altifalante inteligente integrado em smartphones, smartwatch ou outro qualquer dispositivo com capacidades de Internet, um microfone e altifalantes.

Contudo, estes assistentes são também softwares complexos que levam ao tratamento de dados do consumidor – por exemplo, comandos de voz – e de eventuais terceiros, como palavras faladas, dados de texto, informações pessoais partilhadas e dados biométricos (reconhecimento de voz). Por exemplo, quando o consumidor pede ao seu assistente virtual para acender as luzes de casa, este capta a sua voz, converte o seu discurso em texto, processa o comando e implementa-o através, por exemplo, de ligação a outros sistemas a que o consumidor lhe tenha dado acesso.

Assim, para traduzir os comandos dos consumidores em ações, os assistentes virtuais têm uma contraparte de software que complementa o suporte físico onde estão integrados e que trata os dados pessoais de modo a executar as tarefas para que foram programados. Este tratamento de dados é complexo, envolvendo frequentemente diversas entidades e protocolos.

Dada a utilização quotidiana destes sistemas e a quantidade – e sensibilidade – dos dados pessoais tratados, dois problemas em particular surgem aquando da sua utilização: a necessidade de uma base de licitude para o tratamento de dados e o cumprimento de deveres de transparência por parte do responsável pelo tratamento.

Bases de licitude aplicáveis

O Regulamento Geral de Proteção de Dados (‘RGPD’) exige que o tratamento de dados pessoais dependa da aplicação de uma base de licitude do seu art. 6.º. Para categorias especiais de dados (por exemplo, dados biométricos), é também exigida a aplicação de uma das exceções do art. 9.º(2). Por isso, um dos elementos essenciais para um tratamento lícito de dados pessoais no contexto de assistentes de voz virtuais será a definição da base (ou bases) legal aplicável.

A escolha passa por compreender os vários tratamentos a que os dados pessoais estão sujeitos. Inicialmente, o assistente está em estado de espera até ser ativado por uma expressão-chave. Com a deteção dessa expressão (e, em alguns casos, o reconhecimento de voz do consumidor), o áudio é transmitido para fora do dispositivo, sendo processado pelo operador do software. Em seguida, o comando do utilizador é transcrito, interpretado e, dependendo da solicitação, pode ser compartilhado com aplicativos de terceiros (por exemplo, para controlar outros dispositivos inteligentes). A resposta ou ação solicitada é então executada.

Neste contexto, diferentes finalidades poderão estar em causa, pelo que a escolha de base de licitude pode variar.

Como vimos, o principal uso de um assistente de voz virtual é executar comandos de voz. Quando este tratamento envolve o armazenamento ou o acesso a informações no dispositivo terminal do consumidor, aplica-se o art. 5.º(3) da Diretiva ePrivacy, que exige o consentimento prévio. Contudo, há uma exceção: se o armazenamento ou o acesso for “estritamente necessário” para fornecer o serviço solicitado, o consentimento não é exigido.

Portanto, quando o tratamento de dados é necessário para a execução do pedido do consumidor, como a captura, transcrição e interpretação de comandos de voz, a base de licitude a utilizar será a execução de um contrato com o consumidor, conforme ao art. 6.º(1)(b) do RGPD. Todo o tratamento de dados suplementar a este – e que não seja necessário para a prestação do serviço solicitado – será, na maioria dos casos, sujeito a consentimento. Isto engloba três casos tipicamente relacionados com assistentes de voz virtuais.

Em primeiro lugar, nos casos em que a voz do utilizador é também utilizada para o identificar, estamos perante o tratamento de dados biométricos conforme definido no art. 4.º(14) do RGPD. O tratamento de tais dados requer não apenas uma base de licitude do art. 6.º, mas também uma exceção constante do artigo 9.º. A exceção será o consentimento explícito do titular dos dados (art. 9.º(2)(a) do RGPD).

Outra situação típica prende-se com o aperfeiçoamento contínuo dos assistentes virtuais levado a cabo pelos seus operadores. Em geral, este tratamento não pode ser enquadrado como necessário para a execução do contrato com o consumidor, pelo que a melhoria do serviço ou o desenvolvimento de novas funcionalidades requerem uma base legal distinta. Com base no raciocínio anterior, em princípio será necessário o consentimento do titular dos dados.

Por último, estes assistentes virtuais podem ter funcionalidades adicionais. Por exemplo, a personalização de conteúdos, embora esperada por alguns consumidores, nem sempre é um elemento intrínseco ao serviço oferecido por estes assistentes. Assim, quando a personalização não é estritamente necessária para a execução do contrato, o consentimento do titular de dados será novamente necessário.

O responsável pelo tratamento deve, assim, garantir que o tratamento de dados está em conformidade com os padrões definidos pelo RGDP e a Diretiva ePrivacy. Caso o consentimento do titular de dados seja necessário – nos casos em que o tratamento de dados não é essencial para a prestação do serviço solicitado, ou aquando do tratamento de categorias especiais de dados – este deve ser fornecido livremente e de forma específica, informada e inequívoca.

Direito de informação

A transparência é outro elemento fundamental. Os responsáveis pelo tratamento devem cumprir os requisitos estabelecidos pelo RGPD, nomeadamente nos arts. 5.º(1)(a), 12.º e 13.º, que impõem a obrigação de informar os utilizadores de forma concisa, transparente e acessível sobre o tratamento dos seus dados pessoais.

Cumprir estas exigências de transparência pode, contudo, ser um desafio significativo para os fornecedores de assistentes de voz virtuais, devido às particularidades tecnológicas desses sistemas.

Um dos principais obstáculos é a necessidade de informar todos os utilizadores — não apenas o consumidor que inicialmente adquire o dispositivo, mas também os utilizadores acidentais que podem interagir com o assistente de voz. Por exemplo, em dispositivos pessoais, como um smartphone, pode haver um único utilizador, mas em dispositivos partilhados, como os utilizados em casas inteligentes ou em automóveis, estaremos potencialmente perante múltiplos utilizadores. A situação torna-se ainda mais complexa quando, por exemplo, um smartphone pessoal se conecta a um carro e o assistente de voz passa a estar disponível para todos os passageiros. Nestes casos, os responsáveis pelo tratamento de dados devem garantir o cumprimento do dever de informação perante todos os titulares de dados cujos dados pessoais trate.

A forma de interação com estes assistentes gera também dificuldades na transmissão desta informação. Políticas de privacidade extensas e complexas, resultantes da integração de múltiplos serviços, podem agravar esta dificuldade. Por isso, embora esta tecnologia seja desenhada para interações por voz, por vezes torna-se necessário incluir ecrãs auxiliares que permitam um acesso facilitado à informação. Outros modelos são possíveis, como por exemplo o envio de hiperligações por e-mail. De igual forma, é recomendado que o dispositivo informe o consumidor e outros titulares de dados de quando está ‘à escuta’ de comandos, através de sinais visuais, como ícones ou luzes. Desta forma, os responsáveis pelo tratamento de dados gerado por estes assistentes podem facilitar o acesso à informação devida nos termos do RGPD, garantindo um tratamento de dados transparente e leal.

Pet Welfare: A New Realm for Consumer Protection?

Doutrina

Products and services intended for pets, including pet food, toys and other accessories, veterinary drugs and insurances, have been regulated for quite some time in the EU. Conversely, pet welfare is an emerging concept that reflects changing societal attitudes towards companion animals and their status in households. Especially cats and dogs are increasingly viewed as family members rather than property items, thus warranting legal protection as far as their physical and mental welfare is concerned (Duarte Cardoso et al, 2017).

Still, the regulation of pet welfare may also have important implications in terms of consumer protection, namely if one considers pet owners as consumers in the context of B2C commercial transactions.  

The European Union (EU) is moving exactly in this direction.

On 7 December 2023, the European Commission published a legislative proposal for the welfare of dogs and cats, which is undergoing ordinary legislative procedure at EU level. This proposal is meant to lay down a comprehensive set of welfare requirements for such animals when involved in commercial activities, i.e., when kept in and sold by breeding establishments, pet shops (where national legislation so allows) or animal shelters. 

In the last 50 years, the EU has developed a wide-ranging body of law for the protection of animals. In 2009, the Treaty of Lisbon gave more political prominence to animal welfare by formally recognising animals as sentient beings and by requiring the EU and its Member States to take their welfare into account when developing and implementing other EU policies, such as agriculture, fisheries, research, or the internal market (Article 13 of the Treaty on the Functioning of the European Union).

However, until now EU legislation has mainly focussed on the protection of the welfare of farmed animals. General welfare requirements exist for the rearing, transport and slaughter of farmed animals, in addition to standards that are species-specific (e.g., laying hens, broilers, calves, pigs, etc.).

Conversely, references to pet welfare in EU animal welfare legislation are scant. One notable exception is Regulation (EC) No 1/2005, which regulates animal welfare during transport and sets out specific standards for the transport of dogs and cats in the context of commercial activities (notably, minimum age as well as feeding and watering requirements). These standards are currently being reviewed to ensure a higher level of protection for those companion animals.

Other than that, EU legislation currently requires dogs and cats to be identified through a microchip, but only when imported into the EU or moved from one EU Member State to another one. This requirement – which is laid down in the Animal Health Law – pursues animal health objectives rather than animal welfare ones and acknowledges that even the most seemingly harmless pet may carry diseases that can be transmitted to other animals as well as to humans (e.g., rabies).

But why are EU-wide welfare rules for companion animals necessary in the long run? And why are such rules also relevant for pet owners as consumers?

The number of dogs and cats living in European households has grown exponentially over the last years and turned into a commercial activity of great economic significance (valued 1.3 billion EUR annually and employing around 300,000 workers). This makes the trade of dogs and cats particularly exposed to illegal activities. Two EU control plans coordinated by the European Commission (the first one in 2018 and the second one in 2022 -2023) have shown that  illegal trade of dogs and cats is a highly profitable business for rogue traders with online platforms providing new opportunities for them to operate undisturbed and undetected. Forgeries of documents (e.g., vaccination and health certificates), sale of underage and/or unvaccinated pets and cross-border trafficking are amongst the most recurrent violations reported.

While the economic impact of this illegal trade remains quite hard to estimate, its prevalence and the associated risks – for animal health and welfare but also for human health – have warranted it the legal status of ‘organised crime’, following the adoption of the EU Strategy to Tackle Organised Crime 2021-2025.  

In addition, higher consumer demand for specific aesthetic traits – like shortened limbs in Basset Hounds or extremely folded ears in Scottish fold cats – have resulted in the adoption of industry breeding strategies that may be detrimental to the welfare of the animal as well as of its offsprings.

From this standpoint, prospective pet owners engaging in a commercial transaction for the purchase of a companion animal are no different from any other consumer. As such, they may reasonably expect law to afford adequate protection of their financial interests, their health and safety, for instance, by ensuring they receive complete, accurate and reliable information about the animal before purchasing it. This information might include:

– The identity of the pet (e.g., date of birth, sex, breed, etc.);

– Its origin (e.g., country, but also breeding / selling establishment, litter etc.); and

– Its health status as attested, e.g., by the vaccinations administered, genetic tests and other veterinary records, but also its physical and mental welfare resulting from the way in which the animal was bred and kept just before being sold.

The latest draft text of the European Commission’s proposal under exam – which was adopted in June this year and is the outcome of the first round of discussions held by EU Member States in Council – recognises the right of prospective pet owners to be duly informed by introducing more stringent traceability requirements for the whole EU.

Against this background, in the future most breeding establishments will have to be registered, audited and approved by national competent authorities before being able to operate (Articles 7 and 7a). In addition, all dogs and cats will have to be identified and duly registered in national databases (currently, most EU Member States ensure that for dogs but not for cats), which will be interconnected with an EU database to be managed by the European Commission (Articles 17 and 19). Prospective pet owners will be given the possibility to access the information kept in such databases, free of charge, with the objective to verify the authenticity of the information provided by the seller about the animal (Article 17, par. 6). As an additional guarantee, future EU legislation will require owners introducing their pets into the EU to pre-notify this movement to an additional IT system yet to be built, i.e., the EU Pet Traveller’s database (Article 21, par. 4a). This last requirement is intended to ensure stricter surveillance at EU borders to unveil cases where pets are introduced into the EU market for commercial purposes under the disguise of non-commercial movements.

Of course, the contours of the EU protection that prospective pet owners may come to enjoy in the future will ultimately depend on the outcome of the ongoing interinstitutional negotiations. Besides, EU tertiary legislation is poised to set out further details for its exercise, application and enforcement.    All in all, even if the primary goal of the European Commission’s legislative proposal is to regulate pet welfare, both as an element of EU’s agricultural policy and of a well-functioning internal market, its current text clearly shows that consumer protection has a role to play in this context. Ultimately, this may be regarded as the latest evolution in the broader societal shift we have been witnessing towards the recognition of the moral and legal status of companion animals in our lives.

Gold-Plating na Transposição do Direito Europeu do Consumo para o Ordenamento Jurídico Português

Doutrina

O conceito de gold-plating[1]

Quando o procedimento legislativo europeu acaba, com a publicação final dos diplomas no Jornal Oficial da União Europeia, começa frequentemente uma “fase intermédia” antes das novas normas se efetivarem. Nas diretivas, os destinatários são os Estados-Membros, que têm a obrigação de as transpor; os regulamentos, embora sejam diretamente aplicáveis, muitas vezes carecem de atos legislativos nacionais para a sua implementação efetiva.

É nesta fase em que um fenómeno muito particular frequentemente ocorre: o gold-plating.

Gold-Plating é o processo pelo qual um Estado-Membro, ao transpor ou implementar diplomas europeus, acrescenta requisitos, obrigações ou normas[2] que vão além do que está previsto na legislação transposta.

É importante frisar que o goldplating é uma prática lícita e conforme o direito da União Europeia. O Estado-Membro exerce apenas a sua competência legislativa, discricionariamente, de forma permitida e frequentemente até prevista pelo diploma europeu em causa.

O gold-plating é frequentemente discutido no contexto de sistemas legislativos de multinível como uma ocorrência que, embora natural e admissível, deve ser acautelada devido aos seus possíveis efeitos nefastos. Na OCDE, e na União Europeia em particular, é tipicamente criticado devido à falta de transparência, por um lado, e os custos e barreiras inesperados que pode causar ao funcionamento do mercado interno, por outro lado. Se o objetivo é garantir a livre circulação de bens, serviços, pessoas e capital (além de dados), quaisquer discrepâncias entre os diplomas europeus, que pretendem uniformizar ou harmonizar o direito aplicável o máximo possível, e os diplomas nacionais que os transpõem ou implementam, são vistas como contradições, constituindo entraves ao mercado interno.

Neste sentido, se o gold-plating pode ter custos económicos avultados, incluindo a perda de competitividade das empresas e dos agentes económicos sediados nessas jurisdições, podemos perguntar-nos porque é que ocorre.

Múltiplas razões podem motivar o legislador nacional “a ir mais longe” do que o necessário. Pode ocorrer por razões puramente políticas, culturais, obrigações internacionais previamente assumidas ou outras, como preocupações sociais e ambientais.

Ocorrências de gold-plating são, por vezes, fáceis de antecipar, tendo em atenção o procedimento legislativo europeu. Nas (cada vez mais frequentes) diretivas de harmonização máxima, é relativamente fácil identificar as matérias em que houve discordância entre os Estados-Membros nas negociações e se optou por permitir a adoção de medidas diferentes. Estes pontos encontram-se normalmente sinalizados nos próprios diplomas, quando apresentam derrogações expressas, “válvulas de escape”, múltiplas opções para o mesmo objetivo ou mesmo intervalos admissíveis em certas obrigações (com tetos mínimos e/ou máximos). Noutros casos, são os considerandos que “reconhecem” esta discricionariedade aos Estados-Membros, admitindo que vários já têm normas e regimes anteriores que vão além do necessário, podendo mantê-los.

Gold-plating no Direito do Consumo Português

Tipicamente o Legislador Português não costuma afastar-se muito do texto dos diplomas europeus, recorrendo, na generalidade dos casos, à técnica de “copy-paste”, que resulta num elevado número de transposições mínimas, incorrendo assim em pouco gold-plating.

No entanto, no domínio do Direito do Consumo, o legislador português é mais criativo, porventura por razões históricas ou políticas, exercendo mais esta prática.

Cláusulas abusivas

Começando por um caso exemplar, em que os motivos históricos são patentes, temos a transposição da Diretiva 93/13/CEE (cláusulas abusivas), integrada no Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de outubro, o Regime Jurídico das Cláusulas Contratuais Gerais.

As discrepâncias entre os dois diplomas são óbvias. A Diretiva, com os seus 13 artigos[3], aplica-se apenas a contratos de consumo e tem um anexo com uma “curta” lista de (17) cláusulas, meramente indicativa, que podem ser consideradas abusivas, dependendo das circunstâncias. Uma grey list.

Por sua vez, o diploma nacional, atualmente com 50 artigos[4], tem um regime aplicável a todos os contratos, incluindo os concluídos entre profissionais, e um regime aplicável apenas a contratos de consumo. Tem 4 listas de cláusulas bastante extensas, com cláusulas que são sempre consideradas abusivas, independentemente das circunstâncias, em todos os contratos e em contratos de consumo, e cláusulas tendencialmente abusivas, em todos os contratos e em contratos de consumo.

Compreende-se as razões que justificam este fenómeno. O Decreto-Lei é muito anterior à Diretiva (8 anos), sendo que a Diretiva é de harmonização mínima, permitindo esta “marca nacional” no regime jurídico. Finalmente, a Diretiva, na sua génese, resulta de uma teia de compromissos entre 4 visões bastante diferentes[5] de conceptualizar e considerar o seu objeto, e o caráter abusivo de cláusulas gerais. O seu texto teve, assim, de permitir formas bastante diferentes de conseguir alcançar o mesmo objetivo.

“Garantia legal” na compra e venda

Outra matéria em que é visível que, ao longo dos anos, o legislador português se quis demarcar do Direito da União Europeia, na medida do possível, diz respeito ao período de responsabilidade do profissional nos contratos de compra e venda de bens de consumo, comummente designado por prazo da “garantia legal”.

Temos dois exemplos claros, um na transposição da antiga Diretiva 1999/44/CE pelo Decreto-Lei n.º 67/2003, e o outro na mais recente transposição da Diretiva (UE) 2019/771 pelo Decreto-Lei n.º 84/2021, em que nos vamos focar de seguida.

A Diretiva (UE) 2019/771, de harmonização máxima, estabelece que os Estados-Membros têm de transpor para o seu ordenamento jurídico um período de responsabilidade (com um período mínimo de 2 anos, mas permitindo períodos superiores) e de período de inversão do ónus da prova da existência de falta de conformidade no momento da entrega, a favor do consumidor (num período mínimo de 1 ano e máximo de 2 anos), deixando os Estados-Membros incluir medidas que suspendam ou interrompam o decurso deste prazo no caso de uma reparação ou substituição[6].

Portugal optou por estabelecer (i) um período de 3 anos de responsabilidade, (ii) um período de 2 anos no qual se prevê inversão do ónus da prova, (iii) que a substituição do bem tenha como efeito o recomeço do período de responsabilidade e (iv) prorrogações de 6 meses por cada reparação, até um máximo de 4 reparações ou 2 anos “extra” no período de responsabilidade.

Se compararmos a transposição portuguesa com o panorama nos restantes Estados-Membros, há muita diversidade nas soluções adotadas. A Alemanha e a Itália estabeleceram períodos de 2 anos no que respeita à responsabilidade do profissional e de 1 ano quanto à inversão do ónus da prova. Por sua vez, em França, ambos são de 2 anos, prevendo-se prorrogações de 6 meses em caso de caso de reparação.

Um olhar para o futuro

O gold-plating é um dos temas da Legística e da Ciência da Legislação com mais impacto e ramificações multidisciplinares. Em áreas como o Direito do Consumo, em que a influência europeia é tão vincada e em que as divergências entre ordenamentos jurídicos nacionais têm tanto impacto nos agentes económicos, nas expectativas dos consumidores e no funcionamento do mercado interno, o tema é especialmente interessante, quer para os juristas quer para os policy makers.

Aliás, um dos primeiros passos na preparação de uma proposta legislativa, no procedimento europeu[7], consiste na avaliação de impacto (“Legislative Impact Assessment”), que considera os efeitos desta prática, antes da intervenção ou a posteriori. Nos fitness check europeus, a Comissão tem de considerar sempre esta dimensão na sua análise da adequabilidade dos diplomas em vigor (se estão “fit for purpose”). A partir destes estudos, casos de gold-plating em transposições anteriores podem acabar por ser incorporados em novas propostas.

Estas questões são importantes quando consideramos as transposições recentes para o ordenamento jurídico português e aquelas que terão de ser realizadas nos próximos dois anos. Entre os diversos casos de gold-plating do DL 84/2021 que poderíamos estudar (desde o conceito abrangente de consumidor à como a “arrojada” responsabilidade dos prestadores de mercados em linha, prevista no art. 44.º), temos de regressar ao período de responsabilidade do profissional.

A Diretiva (UE) 2024/1799 (direito à reparação) prevê, no seu artigo 16.º, uma série de alterações à Diretiva (UE) 2019/771. Entre estas, o art. 16.º-2-a) indica que o exercício do direito de reparação de um bem por falta de conformidade prorroga o período de responsabilidade do profissional, por uma vez, em 12 meses (ou 1 ano). A alínea seguinte permite aos Estados-Membros manter ou introduzir prorrogações adicionais e/ou prazos mais longos. Este artigo e o considerando 40 colocam um desafio interessante ao legislador português, que reflete a importância desta reflexão.

O art. 18.º-4 do DL 84/2021 terá de ser necessariamente alterado. Embora os consumidores portugueses beneficiem atualmente de 3 anos de proteção + 6 meses + 6 meses + 6 meses + 6 meses (ou 3+2 anos), a primeira prorrogação de 6 meses, na sequência da primeira reparação, é incompatível com a nova letra da Diretiva. 

A alteração necessária pode culminar em inúmeros cenários:

  1. Sem qualquer tipo de gold-plating (2+1) – reduz-se o período de proteção “inicial” para 2 anos e estabelece uma única prorrogação de 1 ano com a reparação em caso de falta de conformidade. Os consumidores portugueses perdem efetivamente 2 anos de proteção.
  2. Sem gold-plating na nova medida (3+1) – período de 3 anos mantém-se e passa a ser possível uma única prorrogação de 12 meses. Os consumidores portugueses perdem 1 ano de “garantia”.
  3. Gold-plating (3+1+6m+6m) – mantém-se o período inicial de 3 anos, cumpre-se com 1 ano “extra” relativo à primeira reparação e mantém-se o direito a duas prorrogações adicionais de 6 meses. Mantém-se, no essencial, o nível de proteção pata os consumidores, embora a primeira prorrogação seja mais longa.
  4. Outras variações da hipótese acima, com diferentes valores no número de prorrogações adicionais que podem ser mais/menos longas. Por exemplo, 3+2 ou 3+1+1, 2+2+1, etc..

Uma única medida, que pode parecer tão simples e direta, oferece inúmeras hipóteses de transposição, com resultados radicalmente diferentes para consumidores e operadores económicos, num único Estado-Membro. Este exemplo demonstra a complexidade e a importância deste fenómeno e a necessidade do seu estudo ao nível do Direito do Consumo.


[1] Parte deste texto tem como base o artigo Martim Farinha e Manuel Cabugueira, “Metodologia de Identificação e Análise de Gold-Plating na Transposição de Diretivas Europeias”, e-Publica Vol. 10(3) Dez 2023, e resultou da investigação realizada no âmbito do projeto “LegImpact – A produção legislativa enquanto meio de realização de políticas públicas: análise quantitativa e de impacto socioeconómico”, financiado pela FCT com a bolsa de investigação PTDC/DIR-OUT/32353/2017.

[2] A antecipação da produção de efeitos de normas também é uma forma de gold-plating.

[3] Na versão original, tinha apenas 11 artigos.

[4] Originariamente, tinha 36 artigos.

[5] A perspetiva do Reino Unido, que não reconhecia uma regra geral sobre o caráter abusivo de cláusulas, a perspetiva alemã, a perspetiva francesa e a perspetiva nórdica.

[6] Na Diretiva de 1999/44/CE, estava previsto um prazo mínimo de 2 anos de responsabilidade do profissional (art. 4.º), que foi seguido à letra no Decreto-Lei n.º 67/2003 (art. 5.º), que manteve os 2 anos. No entanto, quanto à inversão do ónus da prova, a Diretiva previa apenas um período de 6 meses após a entrega do bem, enquanto a nossa lei equiparou este período ao da responsabilidade do profissional (2 anos).

[7] E a nível nacional também, nos decretos-lei e propostas do Conselho de Ministros.