Que política para o Direito de Consumo Europeu no futuro? O novo foco na competitividade europeia

Doutrina

Embora estejamos já no fim do primeiro trimestre de 2025, mantém-se especialmente urgente realizar uma reflexão sobre o que podemos esperar do resto do ano, e que espectativas devemos ter do futuro, em termos de política europeia e, em especial, que política é vamos ter para a proteção dos consumidores e o Direito Europeu do Consumo.

2024 foi um ano de fim de ciclo[1], com as eleições europeias em junho, novo Parlamento Europeu em julho, a tomada de posse da nova Comissão Europeia Von der Leyen 2.0 em dezembro, eleições presidenciais americanas em novembro e nova Administração Trump em janeiro.2025 marca o início de um novo ciclo[2], bastante desafiante, cheio de incertezas e de desafios.

Esta reflexão foca-se em dois temas nucleares, que serão abordados em dois textos neste blog: a) o novo foco na competitividade europeia pela Comissão Europeia; b) expectativas para a proposta do Digital Fairness Act, considerando os resultados do Digital Fairness Fitness Check.

Mudanças no Ar – o novo foco na competitividade europeia

Em setembro, foi publicado o relatório “The future of European competitiveness”, preparado pelo anterior presidente do BCE (“salvador do Euro”) e ex-primeiro-ministro italiano, Mario Draghi, “encomendado” pela Comissão em 2023. O “Relatório Draghi”, como ficou conhecido, analisa a atual situação macroeconómica europeia, diagnosticando vários fatores e sintomas para a perda da competitividade e declínio face aos Estados Unidos e a China, propondo ainda uma série de recomendações estratégicas que visam inverter este processo e relançar a União Europeia enquanto bloco económico.

O relatório é extenso, divido em duas partes: a parte A, com análise inicial e estudo macroeconómico, com 69 páginas, enquanto a parte B, com 328 páginas, contém uma análise aprofundada setorial com recomendações de medidas e reformas. As recomendações visam essencialmente um maior aprofundamento das competências (e mesmo alguma federalização) da União Europeia. O relatório foca-se na necessidade de eliminar barreiras no mercado único, simplificar a carga regulatória sobre as empresas, “desbloquear” o movimento de capitais no espaço europeu, promover a consolidação de alguns grupos económicos europeus em certos sectores e a reindustrialização (mantendo um plano conjunto para descarbonização e transição climática), apostando na inovação tecnológica (destaque para a IA) e assegurando a segurança e soberania europeia.

As reações ao relatório foram diversas, entre a recetividade do diagnóstico geral e a controvérsia quanto a certas medidas, como a emissão de mais dívida comum europeia (oposta imediatamente pelos Países Baixos e Alemanha). Várias das reformas propostas dividiram assim Estado Membros e partidos europeus. Quanto à política em Direito do Consumo, várias das medidas foram elogiadas (especialmente em matéria de energia), enquanto outras levaram a críticas[3]. A BEUC manifestou preocupação quanto ao possível “relaxar” das normas de direito da concorrência para permitir a consolidação de certos mercados, como o das telecomunicações. Muitas vezes o direito do consumo, a regulação de segurança de produtos e a regulação digital são apontados como sendo excessivas, como um entrave ao crescimento das empresas (críticas semelhantes são também formuladas quanto ao modelo social europeu, em política fiscal ou laboral).

Surge assim a questão: até que ponto é que podemos assegurar o bem-estar dos consumidores sem sacrificar também a competitividade económica? Será possível compatibilizar ambos?

As instituições europeias, encabeçadas pela nova Comissão Europeia parecem pensar que sim. Muitas das principais recomendações do relatório foram integradas nos compromissos políticos dos comissários no seu escrutínio pelo Parlamento Europeu. Os primeiros resultados estão a começar a surgir.

No final de janeiro a Comissão publicou assim o seu primeiro grande documento programático, o “EU Compass to regain competitiveness and secure sustainable prosperity” (Bússola da Competitividade). A Comissão assume assim uma estratégia de investimentos em sectores estratégicos, na inovação, descarbonização, e uma aposta na simplificação e coordenação das normas aplicáveis.

Competitividade e Proteção de Consumidores

Quanto a medidas e políticas para o direito do consumo, ainda vamos ter de esperar um pouco mais, já que segundo o programa da Comissão para 2025 (“work programme 2025” e anexos), a “2030 Consumer Agenda” (que vai incluir “action plan for consumers in the Single Market”) só deverá ser publicada no último trimestre de 2025, sendo que deverá ser aberta uma consulta pública para este no segundo trimestre.

Ainda assim, a Comissão publicou já a comunicação “A comprehensive EU toolbox for safe and sustainable e-commerce” (acompanhado de um Q&A), em que delineia as suas prioridades e iniciativas para o comércio eletrónico, uma das áreas fundamentais com importância crescente.

É assumido que o mercado interno da UE é o mercado com as normas que mais protegem os consumidores e asseguram a segurança dos produtos no mundo, mas que estas normas e standards são frequentemente desrespeitadas e violadas no domínio do comércio eletrónico, em especial nas grandes plataformas online. Entre estas destacam-se as plataformas chinesas Temu[4] e Shein, as quais estão a ser alvo de investigações e ações judiciais, em especial para se perceber como estas plataformas têm permitido que uma “avalanche” de produtos de baixo preço, baixa qualidade, contrafeitos e perigosos para seres humanos (em especial crianças), inundem o mercado europeu. Além de representarem uma ameaça à segurança e bem-estar dos consumidores (e dos óbvios problemas no âmbito de sustentabilidade dos produtos e possíveis violações de direitos humanos no seu fabrico), a Comissão Europeia também realça os prejuízos que vendedores europeus sofrem com esta concorrência desleal, por terem de respeitar as normas e standards europeus.

Segundo esta comunicação, a solução não é diminuir a carga regulatória que consequentemente reduz a proteção dos consumidores, mas sim assegurar que as normas são devidamente cumpridas, impedindo a entrada de produtos desconformes e responsabilizando as plataformas. Desta forma, a comunicação propõe: a) uma reforma aduaneira, com um reforço dos controlos, fim da isenção de direitos para as encomendas cujo valor seja inferior a 150 euros e novas taxas sobre produtos importados para a UE através do comércio eletrónico, b) promover o enforcement dos novos diplomas para responsabilizar as plataformas online, como o Digital Services Act e o Digital Markets Act, o novo Regulamento de Segurança dos Produtos, o Regulamento de Cooperação entre Autoridades no domínio do Consumo, c) utilizar novas ferramentas digitais para a supervisão e para melhorar a cooperação, d) adotar um plano de ação para os diplomas em proteção ambiental, d) capacitar os consumidores e e) reforçar a cooperação internacional.

Esta primeira comunicação da Comissão constitui um primeiro sinal da sua política em Direito do Consumo, em conjunto com os já referidos compromissos políticos dos comissários, em especial da Vice-Presidente Henna Virkkunen e de Michael McGrath, Comissário para Democracia, Justiça, Estado de Direito e Proteção dos Consumidores, e os seus planos para uma proposta de um Digital Fairness Act baseado nas conclusões do Digital Fairness Fitness Check. Parece que a política em Direito Europeu do Consumo não será (muito) alterada no sentido de reduzir a proteção dos consumidores europeus. Embora haja um push quanto ao quadro regulatório digital, parece que a Comissão pretende continuar a complementar e aprofundar (talvez mais timidamente) o Direito do Consumo (em especial online) e em reforçar o seu enforcement.[5]

Quando a questão da competitividade europeia é levantada quanto à proteção dos consumidores, a abordagem (que também já tinha sido apontada no relatório do Digital Fairness Fitness Check) aparenta não passar necessariamente pela “desregulação”, mas pela “simplificação” do ordenamento jurídico, para melhorar a sua consistência (interna e externa) de forma a reduzir os custos de compliance para os agentes económicos, sem reduzir os direitos dos consumidores.

Porém, é necessário realçar que estes pressupostos podem mudar drasticamente.

Considerando apenas os sinais que vêm de dentro da Comissão, parece que outras matérias (como obrigações ambientais, de sustainable finance, corporate due dilligence) não vão ter tanta “sorte”, existindo um verdadeiro “push” para desregular. O work programme 2025 prevê vários diplomas de “simplificação” até ao final deste ano, incluindo no domínio “digital”, enquanto vários procedimentos legislativos anteriores foram “cancelados”, com a Comissão a retirar as suas propostas. Entre estes, é inevitável referir a proposta de diretiva relativa à responsabilidade civil em matéria de inteligência artificial (AI Liability Directive).

Brussels Effect vs Trump Effect

Finalmente, é necessário referir o “elefant in the room” subjacente à afirmação de que 2025 é o início de um novo ciclo “bastante desafiante, cheio de incertezas e desafios”: a nova administração Trump e as suas políticas comerciais e regulatórias.

Sem entrar em pormenores e análises geopolíticas, é necessário apontar que esta administração mudou substancialmente, radicalmente, a postura americana para a proteção dos consumidores – e que esta mudança também terá impacto nos consumidores europeus. Desde os planos de desmantelamento do Consumer Financial Protection Bureau, aos discursos do Vice Presidente JD Vance na campanha eleitoral e agora no AI Summit 2025 em Paris, tornou-se explícito e completamente incontornável com o memorando Defending American Companies and Innovators From Overseas Extortion and Unfair Fines and Penalties – The White House.

Neste memorando, a Administração Trump afirma que, se governos ou entidades reguladoras de outros Estados e blocos económicos aplicarem coimas, sanções, taxas ou outros tipos de penalizações discriminatórias, desproporcionadas ou destinadas a transferir fundos ou propriedade intelectual significativos sobre empresas americanas, a Administração irá aplicar tarifas e outras medidas retaliatórias em resposta.

Neste momento, estamos perante um confronto direto entre o “Brussels Effect” e o “Trump Effect”, e ainda não é clara qual vai ser a resposta europeia[6]. Por exemplo, será que as investigações em curso sobre X (antigo Twitter) por violações do Digital Services Act irão continuar? Não nos podemos esquecer de que, a nível nacional, as entidades reguladoras têm de ser independentes, enquanto, a nível europeu, a Comissão é um ator político.

Conclusões

2025 constitui o início de um novo ciclo, num número quase infindável de matérias e facetas.

Ainda não é inteiramente claro como vai ser a política europeia de Direito de Consumo este ano e no resto do mandato 2024-2029, mas já temos algumas pistas. A nova Comissão Europeia tem sido muito influenciada pelo Relatório Draghi e pela necessidade de desbloquear a competitividade europeia, com a redução/simplificação da carga regulatória. Até ao final do ano deverá ser publicado a 2030 Consumer Agenda, que, incluindo um “action plan for consumers in the Single Market”, deverá assim incluir mais indicações e planos para a proposta do Digital Fairness Act, que provavelmente ficará para 2026[7]. Em alternativa (mas muito menos provável) poderá ser parte do pacote legislativo “Digital”, embora o objetivo deste seja a simplificação da legislação digital.

Quanto à aplicabilidade extraterritorial dos diplomas europeus em regulação digital às Big Tech europeias, desde o Regulamento Geral de Proteção de Dados, o Digital Services Act, o Digital Markets Act e o AI Act, subsistem ainda dúvidas sobre como a União Europeia irá reagir:  o Brussels Effect irá vingar ou estas empresas escaparão impunes?

Fontes

Relatório Draghi The Draghi report on EU competitiveness

Digital Fairness Act Digital fairness – fitness check on EU consumer law

Briefings ao PE dos membros do conselho europarl.europa.eu/RegData/etudes/BRIE/2025/700896/IPOL_BRI(2025)700896_EN.pdf

Competitive compass EU Compass to regain competitiveness

Commission announces actions for safe and sustainable e-commerce imports Safe and sustainable e-commerce imports

Questions and answers on the E-commerce Communication Q&A on the E-commerce Communication

Commission work programme 2025 – European Commission

Defending American Companies and Innovators From Overseas Extortion and Unfair Fines and Penalties – The White House


[1] É necessário referir que ainda ficaram pendentes para 2025 alguns procedimentos legislativos que não ficaram concluídos no último ciclo, nomeadamente a Diretiva Green Claims, a nova Diretiva de Resolução Alternativa de Litígios, nova Diretiva dos Direitos dos Passageiros Aéreos  e, em segurança de produtos, o novo Regulamento de Segurança de Brinquedos.

[2] Foram aprovados em 2024 os seguintes diplomas: a Diretiva de capacitação dos consumidores para a transição ecológica, a nova Diretiva de Responsabilidade do Produtor, a Diretiva do Direito à Reparação, o Regulamento de descontinuação da plataforma europeia de resolução de litígios em linha (ODR), o Regulamento dos requisitos de conceção ecológica dos produtos sustentáveis, e claro, o Regulamento de Inteligência Artificial.

[3] Outras ONG, na área da proteção do ambiente, também apontaram críticas a certas propostas sobre industrialização.

[4] A investigação sobre a Temu partiu da queixa promovida por um consórcio liderado pela BEUC, na ação “Taming Temu”.

[5] Por exemplo, podemos dar destaque aos resultados do último sweep realizado pela Comissão e as autoridades nacionais, que detetaram que quase metade dos vendedores de bens em segunda mão não cumprem com as suas obrigações à luz do Direito do Consumo, publicados no início de março. Nearly half of second-hand online traders fail to correctly inform consumers of their return rights

[6] A BEUC já apelou a que a União Europeia não se deixe intimidar, que continue firme na defesa dos consumidores europeus.

[7] Segundo declarações recentes do Comissário McGrath, deverá haver uma consulta pública e a proposta será apresentada a meio de 2026 (no evento: The Future of Transatlantic Digital Collaboration with EU Commissioner Michael McGrath | CSIS Events transcrição das declarações: The Future of Transatlantic Digital Collaboration with EU Commissioner Michael McGrath

Direitos televisivos no futebol português: principais desafios e problemas para o consumidor

Doutrina

O futebol em Portugal é já, desde há muito tempo, uma das principais indústrias de entretenimento do nosso país, gerando receitas perto da casa dos 1000 milhões de euros por época e representando 0,26% do PIB nacional. Mais do que meros números, o futebol enquanto tal é, talvez, um dos pilares da cultura portuguesa e podemos até dizer que, de uma forma ou de outra, atinge todos os portugueses.

No entanto, ao analisarmos mais ao detalhe algumas das principais áreas onde o futebol chega, podemos identificar problemas ao nível do Direito do Consumo, nomeadamente na questão dos direitos televisivos para a transmissão do mesmo.

Sendo este um espetáculo que deve ser primordialmente voltado para o consumidor, parece-nos relevante debater estes problemas e acima de tudo, apresentar soluções que permitam não só dignificar o consumidor, como também fazer cumprir as normas da Concorrência e de Direito do Consumo, muitas vezes, postas em segundo plano neste âmbito.

Ao contrário do que sucede nas principais ligas europeias (Inglaterra, Espanha, Alemanha), a titularidade dos direitos televisivos em Portugal pertence aos clubes ou às sociedades desportivas (SAD’s ou SDUQ’s) participantes na competição. Assim, cada uma tem a liberdade de comercializar esses direitos a qualquer operador, sendo que o mais comum é ao canal Sport TV. Desde 2013, os jogos do Sport Lisboa e Benfica no Estádio da Luz são transmitidos através de um canal próprio, a Benfica TV.

Este modelo de comercialização é, no entanto, alvo de críticas, tendo mesmo levado a Autoridade da Concorrência (AdC) a emitir, em janeiro de 2019, uma recomendação ao Governo para que os direitos televisivos passassem a ser comercializados de forma centralizada, seguindo o “modelo europeu” em que estes são vendidos através de um leilão, possibilitando uma melhor regulamentação que, naturalmente, traz vantagens para o consumidor, permitindo maior concorrência ao nível dos canais desportivos e preços ajustados ao valor de mercado.

De tal modo é assim que, a 22 de março de 2021, foi publicado o Decreto-Lei n.º 22-B/2021, que, na sequência da recomendação da AdC, determina que, a partir da época desportiva 2028/29, os direitos televisivos passem a ser comercializados de forma centralizada. Temos esperança de que muitos dos problemas que iremos discutir de seguida sejam, então, plenamente resolvidos.

Em primeiro lugar, salientam-se os acordos celebrados entre vários clubes da Liga Portugal com os grupos NOS e MEO (Altice), nomeadamente por parte dos “três grandes” (Sporting, Benfica e Porto), que pelo número de adeptos são, sem dúvida, os que representam maior peso económico. Esses acordos incluem, entre outros direitos, os de transmissão televisiva.

Ora, na perspetiva da AdC, tanto a duração (pelo menos 10 épocas desportivas) como a abrangência (NOS e Altice têm cerca de 80% deste mercado) destes acordos suscita problemas ao nível da concorrência, pois torna-se mais difícil para outros concorrentes adquirir direitos de transmissão, limitando a entrada no mercado nacional de canais desportivos que, possivelmente, até refletiriam melhor as preferências dos consumidores.

Desde que estes acordos foram celebrados, não houve qualquer alteração na transmissão dos jogos da Liga Portugal, mesmo com a entrada de um novo concorrente no mercado, a DAZN Portugal. Estes continuam quase em exclusivo a ser transmitidos pela Sport TV (com a exceção da Benfica TV).

Assim, no âmbito destes acordos, poderemos estar perante um abuso de posição dominante por parte destes agentes económicos, o que é vedado pelo art. 11.º-1 da Lei da Concorrência (Lei 19/2012) e, naturalmente, afeta o previsto no arts. 3.º-e) e 9.º, n.º 1, da Lei de Defesa do Consumidor, que consagram o direito à proteção dos interesses económicos do consumidor. A falta de concorrência pode levar à prática de preços excessivos.

Em segundo lugar, cumpre ainda discutir de que forma a estrutura acionista da Sport TV pode não só limitar a concorrência, como também perpetuar políticas de alinhamento de preços, mantendo-os artificialmente elevados. Este é também um dos problemas identificados pela AdC na recomendação já referida neste artigo.

Sendo este canal detido de forma igualitária pelas três principais operadoras de televisão em Portugal, estas naturalmente terão interesse em que os jogos da Liga Portugal sejam transmitidos na Sport TV, pelo que poderemos assistir a políticas anticoncorrenciais, com a possibilidade de as operadoras dificultarem a entrada no mercado de canais desportivos concorrentes e ainda evitarem competir entre si pela aquisição dos direitos, podendo, desta forma, praticar políticas de alinhamento de preços.

Assim, poderemos estar a falar de uma prática comercial desleal, proibida pelo DL 57/2008, por parte das operadoras a atuar em Portugal, na medida em que parece haver uma distorção do comportamento económico do consumidor, violando o disposto no art. 5.º-1 do diploma. O consumidor não tem outra opção que não seja pagar valores excessivamente elevados para poder assistir aos conteúdos desportivos.

Além de compartilharem a estrutura acionista do principal canal desportivo português, as operadoras firmaram um acordo entre si que permite a partilha dos direitos de transmissão dos jogos adquiridos individualmente, ou seja, a NOS que celebrara um acordo com o Sporting e com o Benfica disponibilizou à MEO (Altice) os direitos, e o mesmo, de maneira inversa, em relação ao Porto.

Este acordo, a curto prazo, parece beneficiar os consumidores, na medida em que não precisam de trocar de operador para assistir a determinados jogos.

Porém, a longo prazo, surgem problemas, também identificados pela AdC, tais como, a redução da concorrência entre os operadores. Como os jogos são partilhados, não há qualquer incentivo para que um tente superar o outro, a possível inflação dos preços por não haver qualquer tipo de disputa real e ainda a dificuldade, mais uma vez, para a entrada de novos concorrentes no mercado, prejudicando os consumidores, pois há uma clara manutenção de preços acima do valor de mercado nos pacotes desportivos. Nesta situação, tanto estes acordos como a questão da estrutura acionista da Sport TV parecem ir contra o disposto no art. 9.º-1 da Lei da Concorrência, que proíbe acordos e práticas concertadas por parte de empresas, neste caso, das operadoras a atuar em Portugal.

Em suma, a falta de concorrência e os preços elevados podem ter consequências negativas, não só para os consumidores como também para as próprias operadoras e para a indústria do futebol, na medida em que aumenta o recurso dos consumidores a plataformas ilegais para assistir aos jogos. Este é, aliás, um problema atual, como demonstra um estudo do Instituto da Propriedade Intelectual da União Europeia (EUIPO), que revelou que, em junho de 2024, cerca de 17% dos portugueses acederam a conteúdos desportivos por meios ilegais, um número preocupante para um setor que pretende crescer e desenvolver-se.

Para evitar esta tendência e garantir um mercado mais equilibrado, é essencial reforçar a fiscalização sobre as operadoras e assegurar que os consumidores paguem valores justos pelo acesso aos conteúdos desportivos. A implementação do modelo centralizado em 2028/29 poderá constituir um passo positivo, mas, até lá, medidas regulatórias mais rigorosas e eficazes podem ajudar a mitigar os efeitos negativos do sistema atual.

Do Luxo ao Lixo ao Luxo: O Upcycling e seus Desafios para o Direito das Marcas

Doutrina

O upcycling tem vindo a ganhar destaque como uma nova filosofia de consumo e uma forma inovadora de expressão individual. Ao contrário da reciclagem tradicional, que envolve a transformação de resíduos em matéria-prima para a criação de novos produtos, o upcycling procura dar uma nova vida a bens já existentes, acrescentando valor e muitas vezes alterando radicalmente a sua estética ou funcionalidade. Embora frequentemente associado a um movimento criativo, o upcycling também pode ser uma atividade comercial, com cada vez mais designers individuais a especializarem-se nesta prática e a transformá-la em pequenos negócios.

No mundo da moda, essa tendência tem sido particularmente forte, atraindo grande atenção do público. Um exemplo é a designer mexicana Luisa Hurtado que transforma em bolsas os jeans das mais diversas marcas, tendo vídeos sobre esta arte que ultrapassam 34 milhões de visualizações. Esta nova abordagem à moda sustentável tem atraído cada vez mais consumidores, que veem no upcycling não apenas uma alternativa ecológica, mas também uma forma de adquirir peças únicas e exclusivas.

Do ponto de vista legal, um dos principais desafios do upcycling prende-se com o potencial conflito com os direitos das marcas originais. Muitas empresas argumentam que a reutilização dos seus produtos – sobretudo quando mantém seus elementos identificadores, como logotipos – constitui uma forma de free riding, ou seja, uma apropriação indevida do prestígio da marca para promover um novo produto sem que a empresa original tenha qualquer controlo sobre ele.

O problema central está na função essencial da marca: garantir a origem e a qualidade dos bens que coloca no mercado. Se, por exemplo, um criador independente reutiliza jeans da Levi’s para criar bolsas com este logo aparente, mas não há nos novos produtos um controlo de qualidade da marca Levi’s, estará o criador a enganar o consumidor sobre a origem daquele bem? As empresas podem afirmar que tais práticas induzem o consumidor a erradamente presumir que o novo produto tem a chancela da empresa, assim comprometendo a integridade da marca. Mas será que esta alegação se aplica a todos os casos?

Muitos dos designers que trabalham com upcycling não tentam esconder a transformação que realizam. Pelo contrário, fazem questão de documentar todo o processo, mostrando claramente que os produtos foram alterados e dando ênfase ao valor artístico e sustentável do upcycling. Além disso, muitos colocam a sua própria assinatura nos produtos, reforçando a ideia de que aquele bem é um item “upcycled” e não uma criação original da marca representada pelo logo que carrega. Em Portugal, a legislação já prevê a importância da comunicação clara ao consumidor no artigo 8.º da Lei de defesa dos Consumidores. Se comunicação do upcycling for suficientemente clara e inequívoca, ainda se pode falar em uma probabilidade de confusão por parte do consumidor? A resposta ainda não é clara, não existindo até o momento decisões dos Tribunais Portugueses ou do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) sobre o tema.

Apesar da incerteza jurídica, muitos académicos defendem que o upcycling não deve ser considerado uma violação dos direitos de propriedade intelectual (PI), seja dos direitos de autor ou do direito da marca. As suas análises são fundamentadas e consolidadas, sustentando que a PI não deve ser uma barreira à criatividade e, principalmente, às iniciativas que promovam a economia circular. O contexto regulatório europeu também aponta nessa direção. A Waste Framework Directive e a nova EU Strategy for Sustainable and Circular Textiles incentivam fortemente a reutilização de materiais e a redução de resíduos, alinhando-se com os princípios do upcycling. Talvez seja necessária uma interpretação também do direito das marcas de modo a não se tornar um obstáculo a estas práticas. É uma discussão que ainda está em aberto, mas é inegável que o upcycling representa um passo importante para um modelo de consumo mais sustentável. Desde que as práticas sejam transparentes e não induzam o consumidor em erro, o reaproveitamento criativo de materiais pode desempenhar um papel fundamental na economia circular, reduzindo desperdício e incentivando uma moda mais responsável.

Uma aldeia deslumbrante, um restaurante idílico e uma prática duvidosa

Doutrina

A história passa-se numa pequena aldeia medieval no centro de Portugal, uma aldeia deslumbrantemente preparada para receber todos os que a visitam. O cenário do restaurante é idílico, dentro das muralhas, com vista para o que outrora protegia o lugar dos invasores. O funcionário é simpático, sempre preocupado com o cliente, entretido, conversador na medida adequada. O ambiente é tranquilo e confortável.

No final da refeição, cumpridas as obrigações das partes, surge um pedido meio envergonhado, mas determinado e estruturado. Pode fazer uma crítica do restaurante na plataforma X, uma das mais famosas do mercado. Só se quiser, claro. E não custa nada. O papel plastificado apresentado ao cliente tem um código que é ativado com a simples aproximação do computador que todos trazemos nos nossos bolsos ou malas e que ainda continuamos a chamar telemóvel.

É certo que esta prática é recorrente, que este é apenas um exemplo especialmente significativo por surgir num contexto de certa forma inesperado. O cliente, que nunca ou raramente faz críticas ou comentários em plataformas online, sente, pela relação, curta, mas próxima, que estabeleceu com a pessoa que o atendeu, que não pode negar-se. Poder, se calhar, até pode, mas não consegue. Invocar os princípios num momento de relaxamento, de diversão, de descanso, é mais disruptivo do que colocar umas estrelas nuns espaços virtuais criados para o efeito. Ou fingir que coloca, se, entretanto, o funcionário se distrair um pouco. Até porque é preciso ainda fazer o login na plataforma, confirmar que se é humano, esperar.

Qual é o valor desta crítica? Não é espontânea, dificilmente será genuína, pensada, estruturada, feita por comparação com outros restaurantes, outras experiências. Isto porque é feita à pressa, sob pressão, imposta pelo momento, um momento tranquilo, relaxado. Vai ser enviesada, desde logo, por existir, mas também pela forma como foi feita. E vai influenciar, à sua escala, a decisão de outras pessoas. A crítica confunde-se hoje com a publicidade, não é feita por especialistas e, por isso, é subjetiva e motivada cada vez mais por outros fatores que não a qualidade – ou a sensação de qualidade de quem a faz.

A empatia será um dos fatores mais relevantes das críticas que são feitas por consumidores em plataformas online. Num restaurante, o atendimento, muito ligado com a empatia, será um aspeto importante, mas outros, como a qualidade dos ingredientes, a criatividade e originalidade dos pratos confecionados, a qualidade da confeção, a variedade, etc., são igualmente relevantes e tendem a não relevar.

Aquela crítica será também feita sob pressão, sem um pedido prévio do cliente, que é surpreendido num local em que não esperava sê-lo. O cliente pode estar preparado, num restaurante, para uma insistência educada e não exagerada no sentido de comer mais uma sobremesa ou de pedir uma segunda, ou terceira, garrafa de vinho. Não está, no entanto, preparado para ter de avaliar a experiência, para o mundo, assim que a refeição termina.

Trata-se de uma prática agressiva. Acresce que o cliente, por um lado, terá de fornecer dados a terceiros e, por outro lado, não beneficia de qualquer contrapartida. A existência de contrapartida não tornaria a prática lícita, uma vez que enviesaria ainda mais a crítica, mas teria, pelo menos, uma vantagem para o consumidor pela pressão a que é sujeito.

Anoitece na aldeia, a sua beleza torna-se ainda mais mágica ao olhar de quem passa, o processo digestivo segue o seu rumo e a internet tem mais uma crítica que não deveria ter, mais dados que não existiriam se não fosse tão importante para o negócio fomentar a criação. E assim continuamos a alimentar um sistema que tende a proporcionar menos momentos tranquilos e relaxados.

Preços Dinâmicos: Justiça de Mercado ou Prejuízo para o Consumidor?

Doutrina

A prática de preços dinâmicos, cada vez mais comum em setores como o entretenimento, onde bandas como os Oasis popularizaram a “venda” de bilhetes a preços flutuantes, tem gerado críticas e levantado preocupações sobre a sua transparência. Esta questão, identificada como uma ameaça à confiança dos consumidores, tem sido destacada pela Euroconsumers, organização dedicada à defesa dos direitos dos consumidores.

A estratégia de preços dinâmicos consiste na adaptação contínua dos valores cobrados por bens e serviços, ajustando-os de forma personalizada às circunstâncias do mercado. Este sistema utiliza tecnologia avançada, como algoritmos de inteligência artificial, para determinar preços com base em elementos como o comportamento dos consumidores, as tendências de compra em tempo real, a duração de campanhas promocionais ou até o perfil geográfico dos utilizadores. Durante a Black Friday, muitos consumidores deparam-se com variações inesperadas nos preços, frequentemente sem compreender os critérios aplicados pelos algoritmos que os determinam.

Por exemplo, os preços podem ser reduzidos em horários de menor procura, como durante a madrugada, para incentivar compras em momentos menos tradicionais. Por outro lado, em períodos de maior tráfego, como antes de eventos desportivos ou lançamentos de novos produtos, os valores podem subir. Empresas tecnológicas e plataformas digitais utilizam esta abordagem para maximizar a eficiência das vendas e reforçar a competitividade no mercado global.

Embora os preços dinâmicos possam beneficiar as empresas, permitindo-lhes adaptar-se rapidamente às flutuações do mercado e maximizar os seus lucros, este modelo tem levantado dúvidas no que diz respeito à transparência e à lealdade para os consumidores. A falta de clareza sobre os critérios que determinam os preços e a possibilidade de preços elevados em momentos de alta procura são algumas das questões que têm sido levantadas por organizações de defesa dos direitos dos consumidores.

O caso tornou-se conhecido em setembro, quando os bilhetes para os concertos da banda Oasis, na Irlanda e no Reino Unido, foram “vendidos” por preços que ultrapassaram os 400€, embora o valor inicial na Irlanda tivesse sido de 86€. A situação gerou desconforto entre os consumidores. Muitos só tomaram conhecimento do preço real após horas de espera em filas virtuais, enfrentando dificuldades para entender as variações de preço durante o processo. Os preços dinâmicos, geridos por algoritmos avançados, estão a transformar o mercado, mas também a levantar preocupações quanto aos seus impactos nos consumidores.

No âmbito do direito substantivo, a prática de preços dinâmicos é legal, ao abrigo da legislação de proteção dos consumidores da União Europeia.

Em 2021, a Comissão Europeia publicou uma orientação sobre a aplicação da Diretiva das Práticas Comerciais Desleais (transposta para a ordem jurídica portuguesa pelo Decreto-Lei n.º 57/2008), que menciona as condições sob as quais os comerciantes podem ajustar os preços de forma dinâmica (ponto 4.2.8). A Comissão destacou que, apesar da liberdade dos comerciantes em alterar os preços, é imprescindível que forneçam informações claras e acessíveis sobre o custo total do produto ou serviço, incluindo impostos e encargos adicionais. Esta transparência deve ser garantida especialmente quando o preço não pode ser definido com antecedência, devido às características variáveis do produto ou serviço.

Além disso, a Comissão alertou que práticas como o aumento de preços durante o processo de compra, sem conceder um tempo adequado para que o consumidor possa concluir a transação, podem ser consideradas desleais. Tais práticas prejudicam a capacidade do consumidor de tomar decisões informadas e podem distorcer o seu comportamento. Este tipo de abordagem pode ser classificado como uma violação das obrigações de boa-fé e diligência profissional previstas pela legislação europeia, afetando a confiança do consumidor no mercado.

A Diretiva dos Direitos dos Consumidores (transposta para o nosso ordenamento jurídico pelo Decreto-Lei n.º 24/2014) permite o uso de preços dinâmicos, desde que seja garantida total transparência para os consumidores. Estes devem conseguir ter acesso, antes de concluírem a transação, de forma clara e antecipada, às informações completas sobre o valor total a pagar, englobando todos os impostos e custos adicionais. O Artigo 6.º determina que deve ser apresentado o valor total do preço ou, caso isso não seja viável, os parâmetros utilizados para o seu cálculo. No caso de preços dinâmicos, as empresas devem comunicar de forma clara e antecipada as variações de preço e os parâmetros que influenciam essas mudanças. É essencial que tais práticas não induzam os consumidores em erro ou criem pressões indevidas, garantindo que possam tomar decisões informadas antes de concluir a transação.

Em suma, a prática de preços dinâmicos, embora legal e cada vez mais comum, exige maior atenção às questões de transparência e equidade para garantir a proteção dos consumidores. O equilíbrio entre a inovação empresarial e o respeito pelos direitos dos consumidores é essencial, especialmente em situações que podem influenciar o comportamento económico de forma indevida. Neste contexto, a questão poderá ser abordada nas novas medidas legislativas da União Europeia para reforçar a proteção do consumidor no ambiente digital, promovendo um mercado mais justo e transparente.

O Fenómeno “Black Friday”

Doutrina

A última sexta-feira de novembro tornou-se conhecida como “Black Friday”, um dia estrategicamente situado antes da época natalícia, em que os consumidores são bombardeados com e-mails, mensagens e alertas de várias lojas, anunciando horários de início, percentagens de desconto e uma enorme variedade de produtos disponíveis a preços reduzidos.

Se na ponta do iceberg os consumidores podem ver oportunidades de poupar algum dinheiro na compra dos presentes de Natal para a sua família e amigos, ou mesmo para os próprios; na parte inferior desse iceberg podemos ter vários problemas que nem sempre são evidentes como práticas comerciais desleais, erros na apresentação de preços, marketing direto agressivo, problemas de sustentabilidade e direitos humanos.

Infelizmente, com o aquecimento global e descongelamento dos glaciares, a subida dos níveis do mar pode gerar o desgelo acelerado da parte submersa dos icebergs, o que, por sua vez, pode provocar o colapso de grandes massas de gelo superficiais, afetando os ecossistemas marinhos e contribuindo para impactos potencialmente devastadores para as zonas costeiras e para a fauna local. Paralelamente, na nossa metáfora podemos interpretar a subida dos níveis do mar como o aumento da consciencialização sobre os problemas reais que, muitas vezes, permanecem ocultos, quer por estarem submersos, quer por a nossa atenção ser repetitivamente desviada para montras e e-mails promocionais. Assim, versemo-nos sobre questões importantes que podem e devem, eventualmente, “vir à tona”.

Uma das principais questões que surgem no contexto da Black Friday são as práticas comerciais desleais, que podem comprometer os direitos dos consumidores e prejudicar a sua confiança nas ofertas. De acordo com o Decreto-Lei n.º 57/2008, de 26 de março, que regula as referidas práticas comerciais, um exemplo comum é a falsa redução de preços, em que os profissionais aumentam artificialmente o preço de um produto antes da Black Friday para, depois, oferecer um “desconto” que, na realidade, é fictício e não representa uma verdadeira vantagem comercial para os consumidores.

Outra prática frequente é a falsa urgência, em que os profissionais criam uma sensação de escassez, como por exemplo, anunciando que as promoções são válidas apenas por um período reduzido, ou que as quantidades de um determinado produto são limitadas, mesmo que isso não corresponda verdade. Essa tática leva os consumidores a tomarem decisões de compra apressadas, sem a oportunidade de avaliar adequadamente os produtos ou compará-los com outras ofertas disponíveis no mercado.

Estes tipos de comportamento são considerados desleais, nomeadamente, por explorarem a pressão emocional e a falta de tempo dos consumidores para avaliarem concientemente as ofertas comerciais que lhes são apresentadas, ao invés de proporcionar uma experiência de compra justa e transparente.

Durante a Black Friday, uma prática recorrente é o marketing direto agressivo, que leva os consumidores a serem incessantemente bombardeados com ofertas, seja por e-mail, mensagens de texto ou notificações nas redes sociais. A pressão constante para aproveitar os descontos pode comprometer o direito do consumidor de tomar decisões bem-informadas, violando assim o princípio da boa-fé contratual.

Ainda no mesmo contexto, surge também uma preocupação crescente com as questões de sustentabilidade e direitos humanos. Muitos profissionais, ao promoverem grandes descontos, não garantem que os produtos oferecidos sejam fabricados de forma ética e sustentável, podendo até envolver condições de trabalho precárias em países em desenvolvimento. O artigo 8.º da Lei n.º 24/96, de 31 de julho (Lei de Defesa do Consumidor) tem como objetivo garantir aos consumidores o direito de informação acerca das características principais dos bens que lhes são apresentados, incluindo a sua origem, para que estes mesmos consumidores possam tomar uma decisão de compra mais informada, com a devida consciência dos impactos ambientais e sociais negativos que podem estar na origem da produção de certos produtos.

Além disso, a Diretiva (UE) 2024/825 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 28 de fevereiro de 2024, respeitante à capacitação dos consumidores para a transição ecológica através de uma melhor proteção contra práticas desleais e melhor informação, incentiva práticas de consumo que respeitem o meio ambiente e os direitos dos trabalhadores. Os profissionais devem ser transparentes quanto à origem dos seus produtos e às condições de fabrico, sendo reforçada a necessidade de durabilidade dos produtos. São ainda proibidas alegações ambientais sobre o desempenho futuro dos produtos, a menos que estejam acompanhadas de compromissos claros, objetivos, publicamente acessíveis e verificáveis, assim como publicidade que sugira benefícios para os consumidores que são manifestamente irrelevantes.

Por fim, e antes que chegue a “Cyber Monday”, é importante refletirmos sobre as consequências destas práticas comerciais, que, embora possam ser vantajosas num primeiro momento, muitas vezes escondem problemas significativos que afetam tanto os consumidores, quanto o nosso meio ambiente. Dessa forma, é fundamental que os consumidores se tornem mais conscientes e críticos das ofertas que recebem, questionando a transparência dos profissionais e prioritizando decisões mais esclarecidas.

Como disse o filósofo Henry David Thoreau, em 1854 no seu livro Walden, “um homem é rico na proporção do número de coisas que pode permitir-se deixar de lado”, pois ao adotar uma abordagem mais simples e consciente, podemos concentrar-nos no que realmente importa, evitando a armadilha do consumo excessivo e das falsas promessas que, frequentemente, encobrem a verdadeira natureza de muitas ofertas comerciais.

Web scraping e o RGPD: Como garantir uma recolha lícita de dados pessoais

Doutrina

A raspagem da web (“web scraping”) é uma prática que permite aos programadores de inteligência artificial (“IA”) recolher grandes quantidades de dados para treinar os seus modelos. Este processo automatiza a recolha de dados, através de pedidos de acesso (GET requests) feitos a Localizadores Uniformes de Recursos (Uniform Resource Locators, ou “URLs”) específicos. O web scraping é frequentemente emparelhado com ferramentas de web crawling que atualizam dinamicamente as listas de URLs a serem processados, expandindo ainda mais o âmbito da recolha de dados.

No desenvolvimento da IA, o web scraping desempenha um papel vital. A eficácia dos modelos de IA depende frequentemente da qualidade, quantidade e diversidade dos dados com que são treinados. Ao facilitar a recolha rápida e em grande escala de dados, o web scraping fornece a matéria-prima para treinar estes modelos. Contudo, a recolha de dados – que na maioria dos casos irá incluir dados pessoais – através de web scraping suscita preocupações em termos de proteção de dados. Os princípios fundamentais do Regulamento Geral de Proteção de Dados (“RGPD”) – como a minimização, transparência e licitude – opõem-se geralmente a esta forma de recolha de dados pessoais em massa. Em particular, o princípio da licitude exige que todo o tratamento de dados seja feito com base numa das bases legais consagradas no RGPD. Dada a falta de contacto direto com o titular de dados, a quantidade de dados pessoais potencialmente recolhida e o caráter ‘silencioso’ da prática, a utilização destas ferramentas tem sido considerada como contrária ao RGPD por falta de uma base legal aplicável.

Mas será mesmo assim? Será que nenhuma das bases legais do RGPD permite, em situação alguma, a utilização desta ferramenta de recolha de dados?

Artigos 6.º e 9.º do RGPD

O tratamento de dados pessoais é proibido, exceto se justificado por uma base legal constante dos arts. 6.º e 9.º do RGPD, se aplicável. O art. 6.º aplica-se a todo o tratamento de dados pessoais, enquanto o art. 9.º regula a utilização de categorias especiais de dados, como dados que revelem origem racial, opiniões religiosas, orientação sexual ou dados relativos à saúde, que exigem salvaguardas mais rigorosas.

Assim, para que o web scraping seja permitido, pelo menos uma das bases constantes dos arts. 6.º e 9.º – se necessário – deve ser aplicável. Dadas as características deste método de recolha de dados, vemos que as possibilidades estão limitadas aos interesses legítimos consagrados no art. 6.º(1)(f).

Começando pelo art. 6.º, a maioria das bases deve ser excluída, uma vez que a recolha de dados não tem, normalmente, uma interação direta com o titular de dados nem prossegue um interesse protegido pelo RGPD:

Consentimento: o web scraping geralmente não permite cumprir os requisitos para um consentimento válido, uma vez que não é informado (p. ex. os titulares de dados não sabem quem está a raspar os seus dados ou como serão utilizados), não é específico (p. ex., tornar dados pessoais acessíveis ao público não implica o consentimento para a raspagem) e não é inequívoco (p. ex., colocar os dados em linha não equivale a uma autorização explícita para a raspagem).

Execução de um contrato: O web scraping não envolve um contrato com a pessoa em causa, o que torna esta base jurídica inaplicável.

Obrigação legal ou interesse público: Estas bases exigem uma obrigação legal ou um interesse público definido por lei. Uma vez que a raspagem da Web não é legalmente exigida nem legalmente protegida, estas bases não se aplicam.

Interesses vitais: Esta base aplica-se apenas em casos de ameaças imediatas à vida ou à segurança física, que são improváveis em contextos de recolha de dados da internet. Muito embora se possa conceber a utilização de um sistema de IA para proteger os interesses vitais do titular de dados (p. ex. num contexto hospitalar), o mesmo não se aplica ao treino do modelo com base em dados pessoais recolhidos da internet.

Assim, e por exclusão de partes, a única base legal potencialmente aplicável será a relativa a interesses legítimos. Para tal, é necessário demonstrar que o tratamento de dados é necessário ao interesse prosseguido e que não se sobrepõe aos direitos e interesses dos titulares dos dados. No entanto, alcançar este equilíbrio é complexo e depende do caso concreto.

Quando a recolha de dados envolve categorias especiais de dados, aplicam-se condições mais rigorosas nos termos do art. 9.º. Dado o caráter particularmente intrusivo do tratamento destes dados pessoais e o nível de proteção consagrado pelo RGPD, nenhuma das exceções do art. 9.º(2) permite a raspagem de categorias especiais de dados:

Consentimento: o consentimento explícito exigido pelo art. 9.º é mais exigente do que o consentimento previsto no art. 6.º. Este facto torna-o impraticável para a maioria dos cenários de recolha de categorias especiais de dados da internet.

Dados pessoais manifestamente tornados públicos: esta exceção aplica-se se o titular de dados tiver intencionalmente tornado os seus dados pessoais públicos. No entanto, a sua aplicação ao web scraping apresenta dois desafios: demonstração de intencionalidade – os responsáveis pelo tratamento devem demonstrar que os dados pessoais foram deliberadamente partilhados pelo titular de dados com o objetivo de serem publicamente acessíveis – e a aplicação concomitante de uma das bases do art. 6.º, que vimos ser limitada a interesses legítimos.

As outras exceções: a maioria das exceções ao abrigo do art 9.º(2) protegem interesses que não incluem o web scraping para fins de treino de IA. Mesmo que a utilização de um sistema de IA possa ser enquadrada nas situações aí previstas (p. ex., dispositivos usados para diagnóstico médico), a própria recolha de dados para treinar o modelo não será, ou só raramente será, considerada necessária.

Assim sendo, na maioria dos casos, a recolha de categorias especiais de dados por via de web scraping para treinar modelos de IA não será permitida à luz do RGPD, por falta de uma base legal aplicável.

Interesses legítimos e web scraping

Nestes termos, vemos que a única hipótese para um tratamento de dados lícito no contexto de web scraping dependerá da aplicação do art. 6.º(1)(f) do RGPD. Contudo, a sua aplicação depende da passagem por três testes: os responsáveis pelo tratamento devem demonstrar que (i) o interesse prosseguido é legítimo, (ii) o tratamento de dados pessoais é necessário e (iii) não infringe desproporcionadamente os direitos, liberdades e interesses dos titulares de dados. A falha em qualquer uma destas fases fará com que o web scraping não se possa basear em interesses legítimos sendo, portanto, ilícito.

Identificação de um interesse legítimo

Primeiro, os responsáveis pelo tratamento devem definir um interesse específico a ser prosseguido pelo web scraping. O RGPD não fornece uma lista exaustiva de interesses legítimos, pelo que, no caso concreto, devem estar relacionados com necessidades legítimas de dados durante o ciclo de vida do modelo de IA.

Por exemplo, o treino de modelos de IA requer conjuntos de dados diversos de modo a garantir resultados de qualidade. Se a recolha de dados pessoais publicados na Internet permitir obter este conjunto diversificado de dados pessoais, então o responsável pelo tratamento poderá ter um interesse legítimo na recolha dos mesmos.

Contudo, existem limitações na escolha do interesse. Se o modelo em causa que se pretende treinar for proibido – p. ex. ao abrigo de outros Regulamentos da UE, como o Regulamento da IA – então o interesse não pode ser legítimo por ser ilícito. De igual forma, a raspagem de dados publicados na internet de forma claramente ilícita – e.g. websites de piratagem – padecem da mesma falha, na medida em que o acesso a esses dados é igualmente ilícito.

Sendo possível encontrar um interesse que seja legítimo para o web scraping durante o ciclo de vida do modelo de IA, então o primeiro teste está ultrapassado, podendo passar-se para o seguinte.

Necessidade do tratamento de dados

O teste de necessidade é o segundo passo para determinar se os interesses legítimos podem justificar a raspagem da Web. Aqui, o responsável pelo tratamento deve demonstrar:

Que não existem alternativas menos intrusivas: a recolha de dados da internet só deve ser efetuada se não existirem outros métodos que permitam atingir o mesmo objetivo.

Que o escopo da raspagem se limita ao necessário: a não existirem alternativas, que os dados recolhidos devem ser limitados ao estritamente necessário para o objetivo identificado.

Assim, numa primeira fase, os responsáveis pelo tratamento devem avaliar outros métodos para a prossecução do interesse em causa e verificar se permitem alcançar os objetivos determinados. Isto passará primeiramente por verificar se dados pessoais são necessários ou se, alternativamente, é possível alcançar o mesmo objetivo com, p. ex., dados anonimizados ou sintéticos.

Se os dados pessoais foram necessários, então uma segunda fase passará por avaliar outros métodos de recolha que permitam alcançar os mesmos fins. Por exemplo, os responsáveis pelo tratamento devem avaliar se os dados pessoais necessários podem ser obtidos sem raspagem. Se a raspagem da Web for considerada necessária por falta de métodos alternativos, o responsável pelo tratamento deve tomar medidas adicionais para garantir a estrita necessidade dos dados pessoais recolhidos. Por exemplo:

Minimização de dados: Deve definir as categorias de dados pessoais necessários e limitar a recolha de dados a essas categorias. Deve, também, limitar a conjugação de web scraping com web crawling de modo a evitar uma recolha excessiva e indiscriminada de dados pessoais. A utilizar as ferramentas em conjunto, deverá filtrar os dados pessoais obtidos e eliminar aqueles que não são necessários.

Exatidão: Validar regularmente a qualidade e a estrutura dos dados extraídos.

Limitação do armazenamento: Estabelecer períodos de retenção claros e eliminar ou tornar anónimos os dados que já não são necessários. De igual forma, deve minimizar as possibilidades de os dados pessoais serem extraídos com a utilização do modelo final.

Proporcionalidade

Sendo o web scraping necessário ao interesse prosseguido, o passo final para a aplicação do art. 6.º(1)(f) envolve a ponderação dos interesses do responsável pelo tratamento com os direitos, liberdades e interesses dos titulares dos dados. Para tal, é necessário avaliar a natureza do tratamento, o seu âmbito e o seu impacto nos indivíduos, especialmente em grupos vulneráveis como crianças.

Nestes termos, a raspagem da Web coloca dois desafios principais a este equilíbrio:

Dados sensíveis e pessoas vulneráveis: a recolha de dados particularmente sensíveis (p. ex. dados de localização ou financeiros e categorias especiais de dados) ou de dados de indivíduos vulneráveis (p. ex. menores) faz pender a balança para a desproporcionalidade do tratamento de dados. Por isso, a raspagem destes dados pessoais, relativos a estas categorias de titulares de dados, dificilmente passará o crivo da proporcionalidade, devendo ser excluída.

Falta de transparência: A raspagem da Web ocorre frequentemente sem o conhecimento dos titulares dos dados, que podem não ter conhecimento do que foi recolhido, de onde ou para que fim. Esta falta de transparência e frustração das expectativas do titular de dados faz igualmente pender a balança a favor dos interesses do titular de dados.

Para mitigar estas limitações, os responsáveis pelo tratamento devem garantir a segurança dos dados recolhidos de modo a diminuir possíveis riscos derivados do tratamento de dados e, na medida do possível, garantir que os titulares de dados são informados do tratamento.

Assim, em termos de integridade e a confidencialidade, as medidas a adotar dependerão do caso e dos riscos que o treino do modelo de IA pode levantar. De forma geral, os responsáveis pelo tratamento devem:

Avaliar os níveis de risco associados ao web scraping e ao ciclo de vida do modelo de IA, tendo em conta as fontes dos dados, as ferramentas utilizadas para os extrair e para treinar o modelo e a utilização prevista do sistema de IA.

Implementar salvaguardas como encriptação, compartimentação de dados e monitorização contínua para evitar divulgações e acessos não autorizados.

Restringir o acesso às bases de dados, manter registos de acesso e supervisionar a partilha de dados.

Mitigar a possibilidade de o modelo e/ou sistema final fornecer os dados pessoais como output.

Treinar o seu pessoal para identificar e gerir eficazmente os riscos de segurança.

No que toca à necessidade de transparência, embora o RGPD exija que os titulares de dados sejam informados sobre a recolha dos seus dados pessoais (arts. 13.º e 14.º), a raspagem da Web apresenta desafios a esta prestação de informação devido à dificuldade de identificar e notificar o grande número de titulares de dados potencialmente afetados. Neste sentido, o RGPD não exige a notificação individual do titular de dados quando esta implica um esforço desproporcional ao responsável pelo tratamento (art. 14.º(5)(b)). Fatores como a idade dos dados, a sua pseudonimização e a disponibilidade de detalhes de contacto influenciam esta avaliação.

Contudo, mesmo quando o responsável pelo tratamento está isento desta notificação individual, este deve tornar a informação acessível ao público, explicando de forma clara o escopo e finalidade da recolha. Tal passará, por exemplo, pela inclusão dos URLs dos sítios Web extraídos e resumos do conteúdo dos dados de treino. Os responsáveis pelo tratamento devem também cumprir as obrigações de transparência nos termos do artigo 53.º do Regulamento da IA, quando aplicável.

Uma abordagem estratificada ao fornecimento de informações – destacando os pontos-chave logo à partida e oferecendo explicações detalhadas em patamares inferiores – garante a clareza da informação fornecida, equilibrando os seus direitos com os interesses legítimos do responsável pelo tratamento. Nestes termos, embora seja claro que o web scraping não pode ser visto como uma ferramenta a utilizar sem considerações suplementares, a sua exclusão em absoluto também não parece ser clara à luz do princípio da licitude do RGPD. Tudo dependerá do caso concreto e das medidas adotadas pelo responsável pelo tratamento de modo a garantir a necessidade e proporcionalidade dos dados pessoais recolhidos na prossecução do seu interesse legítimo.

Crianças-consumidoras também «votam com o dinheiro» dos pais

Doutrina

O Comentário Geral n.º 26 à Convenção sobre os Direitos da Criança, recentemente publicado pelo Comité dos Direitos da Criança das Nações Unidas, introduz uma perspetiva inovadora em relação ao direito da criança a um ambiente seguro e sustentável. Esta abordagem, ao entrelaçar o conceito de consumo com os direitos ambientais, impõe ao Estado e às entidades privadas a responsabilidade de protegerem as crianças[1], não apenas como beneficiárias passivas do consumo, mas como agentes com um papel próprio nas decisões e práticas de consumo que afetam o ambiente e a sua qualidade de vida futura.

A expressão «votar com o dinheiro» é frequentemente utilizada para ilustrar o poder dos consumidores na direção do mercado. No simples ato de optar, escolhendo comprar determinado bem ou contratar determinado serviço, o consumidor não está apenas a adquirir algo para sua satisfação pessoal, mas também a demonstrar as suas preferências em relação a valores como a qualidade, a ética e a sustentabilidade. Ocorre também, por vezes, estar apenas a transmitir qualquer outra mensagem nada relacionada com estes valores (como, por exemplo, que prefere bege a bordeaux), embora, nesse caso, em princípio, já não se deva assumir que se trata de uma motivação política. Neste sentido, algumas decisões de compra tornam-se uma forma de expressão política, onde os consumidores «votam» nas práticas que consideram mais alinhadas com os seus princípios. O conceito tem vindo a ser cada vez mais relevante, à medida que o consumo consciente e responsável ganha terreno, com os consumidores a optarem por empresas e bens que se destacam pela sua responsabilidade social e ambiental.

Este fenómeno, embora habitualmente reconhecido no contexto dos adultos, também pode ser aplicado às crianças, cuja influência nas decisões de compra do agregado familiar é crescente. De forma indireta, as crianças «votam» com o dinheiro dos pais, ao pressioná-los a adquirir bens específicos, como brinquedos e alimentos. Em boa verdade, esta parece ser a sua única remota hipótese de «votar» antes dos 18 anos de idade, pelo menos em Portugal.

Este poder de influência das crianças pode ter um impacto significativo nos padrões de consumo familiar, moldando não apenas os hábitos de compra, mas também a orientação para práticas mais sustentáveis. O Comentário Geral n.º 26 sublinha precisamente este ponto, ao destacar a importância de capacitar as crianças para se tornarem consumidoras informadas e responsáveis, capazes de influenciar, com as suas escolhas, um futuro mais sustentável e alinhado com os princípios da justiça social e ambiental.

O Comentário reconhece que a criança tem influência direta nos padrões de consumo do agregado familiar, muitas vezes determinando, ainda que de forma indireta, as escolhas dos cuidadores e do mercado. Esta influência, quando exercida num contexto informado e sustentável, pode moldar práticas de consumo orientadas para a sustentabilidade. O Comentário alerta, assim, para a importância de assegurar o direito da criança a receber «informações ambientais exatas e fiáveis» (parágrafo 33), fundamental para o seu desenvolvimento como consumidora consciente, internalizando práticas de consumo sustentável.

O direito ao consumo informado e sustentável articula-se aqui com o direito à educação, definido como essencial para a aquisição de competências que capacitem a criança a tomar decisões informadas e ambientalmente responsáveis. O parágrafo 53 do Comentário estabelece que a educação deve proporcionar às crianças «competências necessárias para enfrentar os desafios ambientais esperados nas suas vidas», promovendo a reflexão crítica sobre o consumo, a resolução de problemas ambientais e a adoção de estilos de vida que respeitem a sustentabilidade. Esta visão remete-nos para o conceito de «evolução das capacidades» da criança, reconhecido na Convenção, sublinhando a importância de ajustar as estratégias educativas e normativas à maturidade progressiva das crianças enquanto sujeitos de direitos. Ao promover a sua capacitação no consumo, o Comité estabelece uma ligação entre a formação do consumidor consciente e a proteção do ambiente, criando uma base para o exercício de um consumo informado que respeita as capacidades evolutivas da criança, enquanto princípio habilitador do processo de aquisição gradual de competências, compreensão e autonomia[2].

Um dos aspetos mais relevantes do Comentário no âmbito do consumo prende-se com a regulação da publicidade direcionada às crianças. O parágrafo 81, ao abordar o conceito de greenwashing, destaca a necessidade de as normas de publicidade e comercialização serem aplicadas de forma a prevenir práticas que possam induzir em erro as crianças, apresentando bens ou práticas empresariais como sustentáveis quando, na realidade, não o são. Este ponto convoca desafios jurídicos significativos, pois revela que, para proteger a criança enquanto consumidora, é indispensável o desenvolvimento de um quadro regulatório robusto, que imponha às empresas obrigações concretas de transparência. A prevenção do greenwashing é, assim, um imperativo para evitar a manipulação do consumidor infantil, que, devido à sua vulnerabilidade e capacidade cognitiva em formação, é especialmente suscetível a práticas comerciais enganosas.

Neste sentido, o Comentário opera uma transformação no modo como o direito do consumo pode e deve enquadrar o papel da criança: não apenas como destinatária de bens e serviços, mas como cidadã de direitos e responsabilidades no seio de um sistema que deve promover o consumo sustentável e a proteção do ambiente. Esta nova abordagem impõe ao direito do consumo a obrigação de não só proteger a criança contra práticas comerciais desleais, mas também de assegurar que a informação e as práticas comerciais estejam alinhadas com os princípios de transparência e sustentabilidade. A criança é, assim, promovida a um papel ativo no direito do consumo, alinhando o seu estatuto jurídico com a exigência crescente de um consumo responsável e ecologicamente consciente, (também) na defesa do seu superior interesse.


[1] Nos termos do artigo 1.º da Convenção sobre os Direitos da Criança, “criança é todo o ser humano menor de dezoito anos, salvo se, nos termos da lei que lhe for aplicável, atingir a maioridade mais cedo”. Nos termos do artigo 122.º do Código Civil, “é menor quem não tiver ainda completado dezoito anos de idade”.

[2] Comentário Geral n.º 7 (2005), parágrafo 17; e Comentário Geral n.º 20 (2016), parágrafos 18 e 20.

A essencialidade da “lei dos seis meses”

Doutrina

Todos os meses, a certeza de despesas associadas ao consumo de água, energia elétrica e gás natural acompanha a maioria das famílias portuguesas. Reconhecendo o interesse que informação relativa a estes consumos suscita nos seus telespectadores, a rubrica Contas-Poupança do Jornal da Noite (SIC) divulgou, no passado dia 2 de outubro, uma breve reportagem centrada na Lei n.º 23/96, de 26 de julho, apelidando-a de “lei dos seis meses”.

Esta é, em rigor, a Lei dos Serviços Públicos Essenciais. Não pode ignorar-se que o jornalismo procure simplificar linguagem a fim de mais facilmente divulgar informação e, assim, aumentar níveis de audiência. Contudo, ao fazê-lo é expectável que a mais irrelevante das imprecisões não escape ao atento seguidor do Direito do Consumo. É sob essa perspetiva que este texto é escrito.

Pensada com o objetivo de criar no ordenamento jurídico mecanismos destinados a proteger o utente de serviços públicos essenciais, a Lei dos Serviços Públicos Essenciais condensa, em 16 artigos, um regime relevante sobretudo para prestações de serviços continuados e duradouros, como acontece com os serviços de água, energia elétrica e gás natural, mas também com o serviço de comunicações eletrónicas, o serviço postal e o serviço de transporte de passageiros.

Ora, o conceito de utente a que este diploma recorre abrange qualquer pessoa a quem seja prestado um serviço público essencial, isto é, abrange pessoas singulares mas também pessoas coletivas públicas e privadas. Além disso, consideram-se serviços públicos essenciais todos os que, taxativamente, o n.º 2 do art. 1.º da referida Lei elenca. A este respeito, deve notar-se que esta lista tem sido alargada ao longo dos anos.

Regressando ao motivo pelo qual esta lei foi apelidada de “lei dos seis meses”, cumpre olhar para o n.º 1 do seu art. 10.º, de acordo com o qual o direito ao recebimento do preço do serviço prestado prescreve no prazo de seis meses após a sua prestação. Quer isto dizer que, caso o prestador de serviços não inicie um processo judicial ou apresente um requerimento de injunção no que respeita a um consumo relativo a um período de faturação com mais de 6 meses de anterioridade, o consumidor pode invocar a prescrição para se opor ao pagamento desses mesmos serviços.

Aqui chegados, deve admitir-se a hipótese de litígio entre utente e prestador de serviços. De acordo com o art. 15.º deste diploma, o utente pode exercer o seu direito potestativo à arbitragem, o que não acontece com o prestador de serviços. Só o utente pode impor ao prestador de serviços a arbitragem – e não vice-versa. Esta possibilidade evidencia uma das mais célebres características do Direito do Consumo: a proteção do consumidor (ou utente) face a um profissional (ou prestador de serviços).

Pese embora a sua parca difusão, a verdade é que a Lei dos Serviços Públicos Essenciais concede a todos os utentes direitos bastante importantes, tornando-a verdadeiramente essencial no amplo leque de normas que integram o Direito do Consumo.

Gorjeta incluída na conta

Doutrina

Nos últimos anos, tem-se generalizado em alguns restaurantes, em especial os de gama mais alta, uma prática que consiste em incluir na conta um valor relativo a gorjeta, sendo em regra apresentados dois preços, um sem gorjeta e o outro com esta incluída. A percentagem é variável, situando-se em torno de 5% a 10%.

Esta prática parece-me contrária ao Direito português vigente, pelo menos nos casos em que se trate de uma relação de consumo, ou seja, o cliente não esteja a agir na qualidade de profissional na relação com o restaurante.

A análise que se segue tem como base os princípios do Direito do Consumo e a sua aplicação a esta situação concreta.

As principais questões colocam-se ao nível da transparência e da lealdade. No entanto, antes de entrar na sua análise, importa perceber as razões que estão subjacentes a esta prática.

Trata-se de uma forma de aumentar o valor pago pelo cliente, que tem como destinatários os trabalhadores dos restaurantes. Ou seja, está em causa uma prática que visa aumentar a parte variável da remuneração dos trabalhadores, relativa às gratificações dadas pelos clientes. A sua inclusão na conta poderá ter a vantagem de ser mais claro, do ponto de vista da tributação, qual o rendimento relevante. Haverá, portanto, um interesse geral subjacente a esta prática, ainda que indiretamente considerado.

Do ponto de vista do Direito do Consumo, a prática é, no entanto, muito problemática.

Desde logo, levanta problemas de transparência.

Com efeito, o consumidor não tem conhecimento, quando lhe é apresentado o menu, que, ao valor da comida e das bebidas, será aplicada, no final, uma percentagem variável, não obrigatório, na conta. Tipicamente, não é afixado qualquer cartaz com essa informação no restaurante, não constando igualmente da ementa a referência a essa percentagem nem a circunstância de esta ser posteriormente apresentada com a conta. Assim, quando está a fazer as contas quanto ao que irá gastar, o consumidor não inclui esse montante na operação.

O preço é um elemento essencial da decisão de contratar do consumidor e deve ser obrigatoriamente incluído antes de este avançar para a decisão de transação. Tal é exigido pelo art. 1.º do DL 138/90 (regime da indicação de preços), aplicável aos serviços por via do art. 10.º do mesmo diploma. Também o art. 8.º-1-c) da Lei de Defesa do Consumidor e o art. 10.º-c) do DL 57/2008 (práticas comerciais desleais) impõem a indicação do preço, incluindo taxas e impostos, e, acrescento eu, qualquer outro valor que possa ser acrescentado ao consumidor.

A indicação do preço deve incluir, parece-me, por questões de transparência, valores facultativos eventualmente apresentados ao consumidor em momento posterior. A situação é ainda mais problemática se tivermos em conta que a percentagem é variável. Em alguns restaurantes são 5%, noutras 7%, noutras 10%, por exemplo.

Acresce ao que já foi referido, em termos de transparência, o modo como a gorjeta é apresentada e a relação entre este valor e o valor total constante da conta. Muitas vezes é apresentado o valor total, sem gorjeta, em tamanho mais pequeno do que o valor total, acrescido da gorjeta, apresentado numa linha abaixo. Ou seja, o total apresentado num tamanho maior e no final é o valor com a gorjeta. Muitos consumidores leem apenas esse valor total, julgando ser esse o valor a pagar. Tal é ainda mais problemático se se tratar de um consumidor estrangeiro, que pode não saber ler em português e, por isso, não conseguir entender que o valor da gorjeta é facultativo e não tem de ser pago. Embora o problema de transparência não se circunscreva a consumidores que não leiam português, atinge estes de modo ainda mais significativo.

A não inclusão imediata da informação enviesa a decisão de contratar livre e esclarecida do consumidor. Este acaba por ser surpreendido, mais à frente, já depois de se ter vinculado irreversivelmente. Nesse momento, terá apenas uma de duas opções: (i) confrontar o empregado que o serviu com a sua decisão de não pagar o valor da gorjeta indicado; (ii) pagar esse valor. Para muitos consumidores, a primeira decisão é muito difícil de tomar.

Isto leva-nos para o segundo – e mais grave – problema associado a esta prática: a deslealdade.

Em relações de consumo, o comportamento do profissional deve ser especialmente norteado pela honestidade e pela proteção dos interesses económicos dos consumidores (v. art. 60.º da Constituição da República Portuguesa).

O já referido DL 57/2008 proíbe as práticas comerciais desleais. Temos, desde logo, a cláusula geral (art. 5.º), segundo a qual é desleal a prática desconforme à diligência profissional que leve o consumidor a tomar uma decisão de transação diferente da que tomaria se não fosse confrontado com a prática em causa.

A prática de incluir a gorjeta na conta, ainda que facultativa, parece ser contrária à diligência profissional – definida no art. 3.º-h) –, pois não corresponde à prática mais comum e honesta de mercado nem está de acordo coma boa-fé, em especial porque surpreende o consumidor, que fica numa situação de certa forma limitada, com a dupla opção referida anteriormente neste texto. É igualmente indiscutível que o comportamento do consumidor seria, em princípio, outro se soubesse que seria apresentada uma conta com a indicação de um valor adicional a pagar, ainda que este seja facultativo.

As práticas desleais distinguem-se entre práticas enganosas e agressivas.

Neste caso, parece-me que estamos perante uma prática agressiva. Nos termos do art. 11.º do DL 57/2008, há uma prática agressiva nos casos em que a liberdade do consumidor é afetada por assédio, coação ou influência indevida.

No caso em análise, não estaremos perante uma situação de coação, pois, pelo menos em regra, o consumidor não é forçado, física ou psicologicamente, a pagar a gorjeta. Em certos casos, podemos conceber que o empregado faça alguma pressão adicional, inadmissível, no sentido de informar o cliente que a sua remuneração depende em grande medida das gorjetas pagas pelos clientes. Nestes casos, poderemos estar perante situações de coação.

Parece-me que estaremos, no entanto, na generalidade dos casos, perante uma situação de influência indevida, conceito definido no art. 3.º-j).

Com efeito, o profissional utiliza uma posição de poder, que consiste na circunstância de ter servido o consumidor, estar no final da refeição, num momento em que o consumidor tem o dever de pagar, ficando por isso limitado, ainda que não fisicamente. Se não quiser pagar esse valor, o consumidor terá de o dizer ao empregado, a pessoa que o serviu e que irá receber, diretamente, esse valor. Um consumidor médio, com um nível de conhecimento e um perfil psicológico normal, tem dificuldade em confrontar a pessoa com quem interagiu com essa decisão. E isso é aproveitado pelo profissional por via dessa prática. Há, portanto, uma influência indevida sobre o consumidor, que o leva a tomar uma decisão de transação diferente da que tomaria, dando uma gorjeta que não daria ou dando uma gorjeta de valor superior àquela que daria (até tendo em conta o que é habitual no nosso país). Em Portugal, é relativamente comum não ser dado qualquer valor de gorjeta ou ser dado um valor relativamente baixo, arredondando-se o valor total à unidade de euro mais próxima ou um valor fixo em euros (um, dois ou cinco euros, por exemplo, consoante o valor total).

A prática em análise visa, claramente, aumentar o valor pago em gorjeta. E, como vimos, esse aumento resulta de uma influência indevida eficaz, pouco transparente, sendo, por isso, a prática desleal. O profissional tem uma forma muito mais transparente e leal de resolver o problema que o leva a adotar esta prática, que consiste em aplicar essa percentagem a cada um dos produtos que comercializa. Nesse caso, os preços serão maiores, mas o consumidor pode decidir de modo livre e esclarecido.