Boas influências: As Regras da Publicidade nas Redes Sociais e os Influencers

Doutrina

Nos últimos anos, o marketing de influência tem vindo a consolidar-se como uma peça central do comércio eletrónico e da publicidade moderna. A Direção-Geral do Consumidor (DGC), no seu Guia informativo “A Publicidade e o Marketing de Influência”, define o marketing de influência como a “estratégia de divulgação de marcas, produtos ou serviços que utiliza a popularidade, credibilidade e o alcance de influenciadores para, em seu nome ou por sua conta, comunicar de forma mais próxima e personalizada com o público alvo”.

A popularização de criadores de conteúdo nas redes sociais, os chamados influencers ou influenciadores digitais, demonstrou a grande influência sobre hábitos, gostos e decisões de consumo que estes exercem, principalmente entre públicos jovens. Neste sentido, também no Guia, a DGC define influenciadores como a “pessoa ou personagem no meio digital que possui o potencial de influenciar os outros, através da produção e divulgação de conteúdo nas redes sociais, incentivando ou influenciando o consumo de bens e serviços, o estilo ou as preferências do seus seguidores em relação ao que promove ou recomenda”. 

Esta nova forma de comunicação direta com o consumidor e a elevada afluência nas redes sociais leva a que os profissionais cada vez mais recorram a influenciadorespara reforçar as suas estratégias de marketing. O estudo “Consumer Sentiment Survey 2025”, da Boston Consulting Group, indicou que o uso das redes sociais continua a crescer entre a população em 2025. 57% dos portugueses passou mais de uma hora por dia nas redes sociais, enquanto, entre os jovens adultos (18-34 anos), um em cada quatro utilizou estas plataformas mais de três horas diárias. Outro estudo da Brinfer, Top Brands 2025, demonstrou que 48,6% dos utilizadores usam as redes sociais para pesquisar informações sobre produtos e que, numa escala de 1 a 10, os fãs atribuem um valor médio de 7.2 à influência que seguir marcas nas redes sociais tem nas suas decisões de compras. Estes estudos comprovam a crescente tendência da utilização das redes sociais e a suscetibilidade dos consumidores a serem expostos a publicidade nestes meios e a serem influenciados pelos mesmos.

Os fatores enunciados refletem-se no crescente investimento no marketing de influência. A nível internacional, segundo um estudo do The Statistics Portal – Statista, o tamanho deste mercado mais do que triplicou desde 2020 e estima-se que no final de 2025 atinja um recorde de cerca de 33 mil milhões de dólares americanos, o que comprova a tendência crescente deste mercado. A nível nacional, o estudo da Brinfer indica que o valor do investimento anual em marketing de influência, apenas no Instagram, cresceu de 59,5 milhões de euros em 2024 para 63 milhões em 2025.

A par da relevância crescente deste mercado, é essencial garantir uma prática responsável. A utilização de conteúdo patrocinado sem a devida transparência suscita preocupações quanto ao direito à informação, à proteção do consumidor e à lealdade comercial. Torna-se, por isso, pertinente proceder ao enquadramento legal do Direito Português.

A Constituição da República Portuguesa, no artigo 60.º, n.º 2, proíbe todas as formas de publicidade oculta, indireta ou dolosa. Neste âmbito, o Código da Publicidade, nomeadamente no artigo 6º, estabelece que a publicidade deve reger-se pelos princípios da licitude, identificabilidade, veracidade e respeito pelos direitos do consumidor. 

O princípio da licitude, consagrado no artigo 7º, determina que é proibida a “publicidade que ofenda os valores, princípios e instituições fundamentais constitucionalmente consagrados”, enunciando ainda diretrizes essenciais.

Já o artigo 8º, que enuncia o princípio da identificabilidade, consagra que a publicidade tem de ser clara e inequivocamente identificada como tal, seja qual for o meio de difusão utilizado. Deste modo, de acordo com o Guia da DGC, no âmbito de uma relação comercial entre o influenciador e a marca, é proibido alegar falsamente ou dar a impressão de que não se está a agir para fins comerciais ou profissionais, ou ainda, apresentar-se falsamente como consumidor, sob pena de ser responsabilizado pela infração.

Consequentemente, o artigo 9º proíbe a publicidade oculta, vedando o uso de imagens subliminares ou outros meios dissimuladores que explorem a possibilidade de transmitir publicidade sem que os destinatários se apercebam da sua natureza. O n.º 3 do artigo clarifica que “subliminar” corresponde a qualquer publicidade capaz de provocar perceções sensoriais sem que o seu destinatário tome consciência.

Importa destacar também o princípio da veracidade (artigo 10º), segundo o qual a publicidade deve ser verdadeira, sem deformar os factos relacionados com os produtos ou serviços promovidos. O artigo 11º reforça esta regra ao proibir toda a publicidade que seja enganosa nos termos do DL n.º 57/2008, de 26 de março, que trata do regime aplicável às práticas comerciais desleais das empresas nas relações com os consumidores. O artigo 7º deste Decreto-Lei determina que é enganosa a prática comercial que contenha informações falsas ou que, sendo factualmente corretas, induzam o consumidor em erro ou que o levem a tomar uma decisão de transação que não teria feito sendo devidamente informado. 

Neste sentido, a DGC sublinha no seu Guia que os influenciadores devem divulgar os conteúdos comerciais de forma clara, transparente e responsável, assegurando uma relação de confiança entre consumidor, influenciador e marca. 

De modo mais geral, o artigo 12º do Código da Publicidade proíbe a publicidade que atente contra os direitos do consumidor, que segundo o Guia da DGC abrange vários direitos, nomeadamente o direito à qualidade dos bens e serviços; à proteção da saúde e da segurança física; à formação e à educação para o consumo; à informação para o consumo; à proteção dos interesses económicos; à prevenção e à reparação dos danos patrimoniais que resultem da ofensa de interesses ou direitos individuais homogéneos, coletivos ou difusos; à proteção jurídica e a uma justiça acessível e pronta; e à participação, por via representativa, na definição legal ou administrativa dos seus direitos e interesses. Todos estes direitos têm de ser respeitados no âmbito do marketing de influência, bem como em qualquer tipo de publicidade.

Por fim, importa mencionar o artigo 15º, que regula a publicidade testemunhal, na qual se insere o tipo de publicidade denominada comummente por review. Este tipo de publicidade tornou-se particularmente popular, especialmente quando os influenciadores partilham a sua experiência com determinado produto ou serviço. Segundo o artigo mencionado, esta publicidade deve integrar depoimentos personalizados, genuínos e comprováveis, ligados à experiência do depoente ou de quem ele represente.

No que respeita à responsabilidade civil, o artigo 30º do Código da Publicidade determina que respondem civil e solidariamente pelos prejuízos causados a terceiros pela difusão de mensagens publicitárias ilícitas: os anunciantes, os profissionais, as agências de publicidade e quaisquer outras entidades que exerçam a atividade publicitária e ainda os titulares dos suportes publicitários utilizados ou os respetivos concessionários. No nº 2 do artigo excecionam-se desta responsabilidade os anunciantes que provem não ter tido conhecimento prévio da mensagem publicitária veiculada.

Abordando ainda o regime sancionatório aplicável em caso de violação destas regras, este é um fator de risco que pode ser desconhecido pelos influenciadores e outros anunciantes que usam os meios digitais para publicitar conteúdo comercial. O artigo 34º do Código da Publicidade estabelece que, pelas infrações à maioria das disposições do Código, poderão ser aplicadas coimas de 1750 a 3750 euros ou de 3500 a 45 mil euros, caso o infrator seja pessoa singular ou coletiva. O nº 2 do artigo indica ainda que a negligência é sempre punível nos termos gerais. Finalmente, o artigo 35º aborda a responsabilidade pela contraordenação, estabelecendo que poderão ser responsabilizados todos os intervenientes na emissão da mensagem publicitária.

Importa notar que o regime sancionatório em Portugal pune de forma bastante leve quando comparado com outros países da União Europeia, como por exemplo em França. A Lei francesa nº 2023-451, que regula a publicidade feita por influenciadores nas redes sociais, prevê no artigo 5º uma pena de dois anos de prisão e multa de 300.000 euros pela publicidade não devidamente identificada.

Encerrado o enquadramento legal, importa analisar com maior atenção o já mencionado Guia informativo “A Publicidade e o Marketing de Influência”, cuja versão atualizada foi publicada em novembro pela DGC. O documento pretende sensibilizar todos os intervenientes para o cumprimento da lei em matéria de publicidade e para boas práticas na comunicação comercial digital. A nova atualização reforça o guia com novos temas e orientações, de modo a acompanhar a evolução das redes sociais e o crescente investimento das marcas nesse tipo de comunicação comercial.

Esta nova versão aprofunda matérias como as restrições previstas no Código da Publicidade, inclui novos tópicos e incorpora também algumas das restrições previstas no regime das práticas comerciais desleais. Importa referir que, nesta versão, as recomendações que dizem respeito às melhores práticas para identificar os conteúdos comerciais como publicidade, passam a refletir o alinhamento com os 5 Princípios Fundamentais das autoridades europeias de fiscalização da proteção do consumidor.

O Guia identifica três indicadores-chave para determinar se um influenciador está sujeito às regras da publicidade: (i) o conteúdo gerado nas redes sociais inclui a promoção de marcas ou produtos; (ii) recebimento de alguma forma de contrapartida, como pagamento monetário, serviços, bens ou experiências em troca de publicações de modo a comercializar bens ou serviços, direta ou indiretamente; e por fim, (iii) o influenciador atua no âmbito de uma atividade profissional ou em nome e por conta de um profissional, mesmo que não de forma exclusiva. Concluindo, ao existir uma relação comercial na promoção de bens e serviços, as regras aplicáveis à publicidade devem ser cumpridas por todos os intervenientes na cadeia de produção publicitária, incluindo os influenciadores.

Deste modo, verificando-se uma relação comercial, o influenciador tem o dever de identificar as publicações como publicidade, seguindo o princípio da identificabilidade, bem como qualquer norma legal aplicável. De acordo com a DGC, deve ser utilizado no início das publicações, as indicações #PUB, #PUBLICIDADE ou #ANÚNCIO PUBLICITÁRIO, adaptando à plataforma em causa. Se existir outro tipo de benefícios, deve haver lugar a uma identificação cumulativa de #PATROCÍNIO ou #PATROCINADO. Também poderá haver uma identificação complementar na língua inglesa: #ADVERTISEMENT ou #ADVERTISING e #SPONSORSHIP ou #SPONSORED, acompanhada pelas identificações em português. O influenciador deve também recorrer às ferramentas de publicação de anúncios que algumas plataformas já oferecem, como etiquetas que indicam conteúdo patrocinado.

O Guia da DGC refere ainda algumas más práticas na identificação das publicações, como inserir as hashtags referidas apenas no meio ou no final da publicação, porque não permite uma identificação imediata e adequada da comunicação comercial. Outro exemplo de má prática é a identificação da publicidade em partes da publicação apenas acessíveis ao carregar num link ou na opção “saiba mais”. 

Tendo em conta as normas legais mencionadas, bem como boas práticas no âmbito do marketing de influência, será que em Portugal estas são cumpridas? Para responder a esta questão importa proceder à análise de ações de fiscalização dos últimos três anos realizadas pela DGC.

Analisando a ação de fiscalização de final de 2023/início de 2024, a DGC fiscalizou 366 mensagens, de 20 influenciadores, na rede social Instagram, relativas a 137 empresas, de modo a verificar o cumprimento da legislação acerca da identificação clara e inequívoca da relação comercial entre o influenciador e a marca/empresa. Registou-se que 28% das mensagens (102 de 366) não identificavam a relação comercial entre influenciador e empresa, abrangendo 55% das empresas (76 de 137) em que não existia identificação. Contudo, alguns influenciadores cumpriam as normas aplicáveis numas mensagens e noutras não. No seguimento da fiscalização foram instaurados os devidos processos de contraordenação contra os influenciadores bem como contra as marcas/empresas que foram publicitadas sem a devida identificação.

A seguinte ação de fiscalização realizada pela DGC, em outubro de 2024, incidiu sobre a publicidade divulgada por influenciadores portugueses também na rede social Instagram. Na ação foram analisadas 457 mensagens publicitárias, relativas a 67 empresas, em formato de publicações e vídeos (stories), divulgadas por 30 influenciadores. Verificou-se uma taxa de cumprimento das normas aplicáveis de 82% pelas empresas (55 de 67 total) e de 66% pelos influenciadores com 10 mensagens publicitárias com infração (2% do total de 457). Relativamente aos casos de infração registados, estes tiveram origem na falta de identificação clara de conteúdos comerciais, designadamente a ausência da referência #Pub no início das publicações. A DGC realizou uma comparação com os últimos dados de fiscalização e registou uma melhoria significativa da taxa de cumprimento dos influenciadores (de 5% para 66%) e dos operadores económicos (de 50% para 82%).

Dando seguimento a esta monitorização, foi também realizada uma ação de fiscalização pela DGC em outubro de 2025, publicada em novembro, relativa à publicidade divulgada por influenciadores digitais portugueses, através das suas contas nas plataformas Instagram e TikTok. No decorrer da ação foram analisados 417 conteúdos comerciais de 10 influenciadores digitais referentes a 43 marcas. Registou-se uma taxa de cumprimento da legislação por parte destes influenciadores de 90% (9 de 10), sendo que 99% dos conteúdos comerciais verificados estavam identificados como publicidade. Contudo, foram detetados indícios de violação do Princípio da Identificabilidade do Código da Publicidade por um influenciador digital, pela falta da menção a #Pub.

Com base nestes resultados, é possível observar que houve uma melhoria significativa nos últimos dois anos da tendência de cumprimento da legislação aplicável à publicidade, com 90% de taxa de cumprimento da legislação pelos influenciadores, face a 66% em 2024 e a 5% em 2023/início de 2024. Este panorama permite fazer um balanço bastante positivo para o marketing de influência, porém seria importante alargar a amostra destas fiscalizações. A DGC tem-se comprometido a continuar estas ações de fiscalizações e monitorização de modo a contribuir para esta tendência de crescimento de cumprimento das normas, investindo nos seus eixos complementares à fiscalização: prevenção e capacitação.

Por outro lado, para uma análise a nível europeu, importa notar o relatório de 2024 da Comissão Europeia sobre o cumprimento de legislação europeia por influenciadores, principalmente a Diretiva 2005/29/CE, relativa a Práticas Comerciais Desleais.

No relatório de fevereiro de 2024, a Comissão Europeia investigou 576 influenciadores em várias plataformas de redes sociais, nomeadamente Instagram, Tiktok, Youtube, Facebook, X, Snapchat e Twitch, num estudo no qual participaram 22 países da União Europeia e também a Noruega e Islândia. Verificou-se que 97% das publicações dos influenciadores monitorizados continham conteúdo comercial, mas apenas 20% indicavam sistematicamente que o conteúdo era publicitário. Registou-se também que apenas 40% dos influenciadores analisados apresentavam a identificação publicitária durante a totalidade da comunicação e que 34% tinham essa identificação disponível sem serem necessários passos adicionais, como o “ver mais” ou “scroll down”. Ainda quanto à identificação, 38% dos influenciadores não utilizaram a etiqueta de publicidade da plataforma Instagram e, em alguns casos, optaram por utilizar expressões diferentes como “colaboração” (16%), “parceria” (15%) ou um agradecimento genérico à marca (11%). Na sequência deste relatório, 358 influenciadores foram demarcados para investigação adicional e terão sido contactados pelas autoridades nacionais.

Ainda no panorama europeu, importa mencionar que, em 2023, a Comissão Europeia lançou o Influencer Legal Hub, que disponibiliza informação prática para o cumprimento da legislação da União Europeia por parte dos influenciadores digitais.

Em síntese, a crescente relevância do marketing de influência transformou a dinâmica da comunicação comercial, ampliando tanto as oportunidades para marcas e criadores de conteúdo como os riscos para os consumidores. 

As ações de fiscalização da DGC demonstram uma evolução muito positiva, possivelmente revelando maior consciencialização dos influenciadores e das empresas que recorrem a este tipo de comunicação. Contudo, os dados à escala europeia, talvez devido ao tamanho elevado da amostra comparada utilizada, mostram que persistem lacunas no cumprimento das normas, o que reforça a necessidade de cooperação transnacional, de contínua formação dos intervenientes e de mecanismos de fiscalização para promover uma tendência de cumprimento.

Apesar dos progressos alcançados, o desafio mantém-se em assegurar que o marketing de influência se desenvolve de forma ética, responsável e plenamente alinhada com os princípios da transparência e da proteção do consumidor. Num contexto em que a fronteira entre conteúdo pessoal e promoção comercial é por vezes ténue, cabe a influenciadores, marcas e plataformas assumir um compromisso ativo com práticas claras e legais, contribuindo para um ambiente digital mais seguro, informado e confiável para todos.

Entre a Estratégia Comercial e a Legalidade: o Caso das Práticas Diferenciadas na Restauração

Doutrina

A restauração, desde sempre, desempenhou um papel relevante no quotidiano social das comunidades locais. No entanto, com a crescente exposição de turismo em Portugal, sobretudo nos centros históricos das cidades, são cada vez mais frequentes as práticas divergentes de preços nos estabelecimentos de restauração. O mercado da restauração tem-se tornado cada vez mais competitivo e dinâmico, levando os estabelecimentos a recorrerem a estratégias que procuram maximizar as receitas de forma eficiente, atendendo às circunstâncias individuais do seu público-alvo.

A questão é certamente relevante, pois a estratégia de divergência dos valores cobrados por bens e serviços consiste em ajustá-los de forma personalizada às circunstâncias, ao tipo e às escolhas do consumidor, o que pode levantar questões quanto à sua conformidade com os deveres de transparência e lealdade. Por exemplo, o facto de alguém ser, ou não, turista pode ditar o preço da sua refeição?

A alínea t) do art. 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2015, de 16 de janeiro, define o estabelecimento de restauração como aquele que presta serviços de alimentação e de bebidas, dentro ou fora do respetivo espaço, mediante uma determinada remuneração. Neste conceito incluem-se várias denominações que nos são familiares, como os restaurantes, as pastelarias, os cafés, entre outros.

As práticas diferenciadas de preços nestes estabelecimentos consistem, de forma geral, na atribuição de valores distintos aos bens e serviços, da maneira que considerem mais adequada. Embora estas práticas se enquadrem no âmbito do princípio da autonomia privada, existem certamente casos que configuram situações que ameaçam a confiança dos consumidores.

São frequentes as notícias que relatam que, para o mesmo bem, um turista tende a pagar um preço bastante superior em comparação com um cidadão português, ora porque os estabelecimentos comunicam oralmente um preço inferior, ora porque, nalguns casos, são apresentados menus com valores mais baixos do que os preços oficiais.

A adoção deste tipo de práticas comerciais predomina em zonas de elevado turismo, cuja procura tende a ser superior, resultando numa inflação de preços significativa devido ao elevado poder de compra dos turistas. Não obstante, de modo a equilibrar o mercado a que estes estabelecimentos se dirigem e a manter a sua atratividade, procura-se salvaguardar a sustentabilidade do modelo de negócio junto das populações locais, cujo poder de compra é bastante inferior ao dos turistas. O objetivo, numa perspetiva puramente económica, é maximizar a receita através da adequação da oferta ao tipo de consumidor.

Os preços de bens e serviços nos estabelecimentos de restauração não estão sujeitos a um regime de preços fixos, existindo, neste sentido, liberdade contratual por parte dos estabelecimentos. Mais, o art. 61.º da Constituição da República Portuguesa consagra que todos têm direito à iniciativa económica privada. Contudo, tal não implica que estes estabelecimentos possam aplicar preços dinâmicos ou diferenciados. Pelo contrário, exige-se que apresentem os preços de forma prévia, clara e determinada, de tal modo a que o consumidor não seja surpreendido por um valor superior àquele que é praticado dentro do estabelecimento.

Acresce que o art. 13.º da Constituição consagra o princípio da igualdade, que proíbe qualquer forma de discriminação injustificada, ou seja, para que um tratamento diferenciado seja legalmente admissível, é necessário que exista um fundamento objetivo e razoável.

Por outras palavras, nos casos de práticas diferenciadas entre portugueses e turistas, são ilegais todas as práticas que discriminam estes últimos em função da sua nacionalidade, por se traduzirem meramente na fixação de preços distintos para o mesmo bem ou serviço sem um fundamento razoável que não seja meramente comercial. Tal justifica-se pelo simples facto de que uma justificação puramente comercial, nomeadamente a maximização do lucro junto de um grupo específico com maior poder de compra, não é admissível nem suficiente para sustentar, de um ponto vista legal, a diferenciação de tratamentos.

Contudo, em bom rigor, a pessoa não é discriminada por ser turista, mas por parecer turista, podendo um português ser igualmente turista consoante a sua localidade de residência. Aliás, um tema particularmente pertinente nos dias de hoje é o facto de a sociedade portuguesa ser tradicionalmente multicultural.

Se a forma de diferenciação assenta no critério da nacionalidade, estamos perante uma discriminação que objetivamente viola o princípio da igualdade, sem possibilidade de justificação com fundamento razoável. Do mesmo modo, se a prática discrimina turistas, sejam eles portugueses ou estrangeiros, por serem vistos como uma parte mais vulnerável na relação negocial, tal prática continua a ser contrária à lei por violar o princípio da igualdade, assim como os direitos dos consumidores por não proteger os interesses económicos destes últimos, conforme resulta do preceituado no art. 60.º, n.º 1, da Constituição. Quanto à discriminação nos casos em que um português é confundido com um turista, trata-se de uma situação complexa que se baseia em indicadores puramente subjetivos, como a linguagem, os traços faciais, a cor e tonalidade da pele, o vestuário ou determinados comportamentos, entre outros fatores, que podem sugerir uma outra nacionalidade. Porém, sendo uma diferenciação que não possui uma justificação objetiva e visa o mesmo resultado discriminatório, isto é, o de cobrar mais a turistas estrangeiros, a prática continua a ser contrária à lei sob a égide do art. 13.º da Constituição.

Deste modo, independentemente de estarmos perante uma prática diferenciada dirigida a um português, a um turista estrangeiro ou a um português que se parece mais com um turista, o foco deve residir na intenção subjacente à prática diferenciada, sendo efetivamente a intenção de tratar alguém de forma distinta com base na perceção de uma nacionalidade diferente que serve como base da diferenciação.

Do exposto, resulta que qualquer tratamento diferenciado de preços entre portugueses e estrangeiros, fundado na nacionalidade destes últimos, constitui uma prática ilícita.

Todavia, nem todas as práticas diferenciadas são necessariamente contrárias à lei, podendo existir certas práticas que se encontrem em conformidade, atendendo a determinadas circunstâncias e desde que determinados requisitos sejam verificados. É o caso, por exemplo, dos preços diferenciados em função da hora do dia e do local frequentado.

Ora, nestas circunstâncias, não se verifica qualquer impedimento, desde que se cumpram os requisitos relativos à forma e à obrigatoriedade da indicação dos preços dos bens, nos termos do Decreto-Lei n.º 138/90, de 26 de abril, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 162/99, de 13 de maio. Assim sendo, é permitida a prática diferenciada desde que o estabelecimento, de forma prévia, afixe a lista de preços de modo visível, inequívoco e legível, através de listas, letreiros e etiquetas, disponibilizando ao consumidor todas as informações necessárias, incluindo as condições de prestação de bens e serviços. De realçar que o preçário afixado deve ser redigido pelo menos em português e estar visível tanto junto à entrada do estabelecimento como no seu interior, contendo todas as informações sobre os preços praticados, incluindo taxas, impostos e outros encargos, em conformidade com o disposto no art. 135.º do Decreto-Lei n.º 10/2015. Porém, a simples indicação de que, a partir de determinado momento, os preços mudam automaticamente não é suficiente.

A Diretiva 2005/29/CE, de 11 de maio, transposta para o nosso ordenamento jurídico pelo Decreto-Lei n.º 57/2008, de 26 de março, determina que a omissão da indicação do preço a pagar, ou o facto de o preço transmitido não contemplar os impostos aplicáveis, consubstancia uma prática comercial desleal. Tal prática enquadra-se numa omissão enganosa, nos termos da alínea a) do n.º 1 do art. 9.º do referido diploma, na medida em que a omissão da informação relativa ao preço do bem induz o consumidor médio a tomar uma decisão de transação que, em princípio, não teria tomado de outro modo.

O mesmo se aplica aos casos em que, apesar de a informação estar correta, esta ser enganosa devido à forma de apresentação, sendo suscetível de induzir o consumidor em erro, conforme o preceituado na alínea b) do artigo citado. São os típicos casos em que a informação, apesar de fornecida, é ambígua, intempestiva, ou transmitida sob pressões indevidas. Por outras palavras, a informação é apresentada de modo a impedir que o consumidor perceba plenamente, não permitindo uma decisão negocial livre e esclarecida.

Destarte, desde que os deveres de informação aos consumidores estejam salvaguardados, são permitidas as práticas diferenciadas de preços com base em elementos objetivos, não discriminatórios, como, a título de exemplo, em função do consumo na esplanada ou das promoções durante a happy hour, cuja afluência tende a ser maior. Tal prática serve para proteger o consumidor, permitindo-lhe conhecer previamente o valor a pagar pelo respetivo bem ou serviço, de maneira a não ser enganado.

Em última análise, o ordenamento jurídico português não permite, em circunstância alguma, práticas diferenciadas que se baseiem em critérios arbitrários, configurando uma prática discriminatória independentemente do seu tipo e que colide com princípios constitucionais. Contudo, face ao exposto, nem toda a diferenciação de preços é contrária à lei, desde que os estabelecimentos de restauração adotem uma postura adequada, através de práticas conformes com a boa-fé e os deveres de transparência e lealdade perante os consumidores, assegurando de forma clara, completa e objetiva a informação relativa aos preços praticados.

A Revisão da Diretiva RAL: Modernização da Resolução Alternativa de Litígios na Era Digital

Doutrina

Ao longo dos últimos anos, os consumidores europeus têm cada vez mais recorrido aos mercados digitais, o que se repercutiu num aumento significativo de litígios de consumo, evidenciando as limitações nos mecanismos tradicionais de resolução de conflitos. Ora, a União Europeia tem reconhecido a necessidade de modernizar e simplificar as regras respeitantes aos litígios extrajudiciais, adaptando-as aos desafios dos mercados digitais. Atendendo aos benefícios inerentes aos meios de Resolução Alternativa de Litígios, a Comissão Europeia propôs, em 17 de outubro de 2023, em conjunto com um relatório de aplicação dos diplomas, não só a alteração da Diretiva RAL, documento analisado aqui no blog, como o fim da Plataforma ODR (entretanto já concretizada) e a sua substituição por uma nova ferramenta digital.

A Diretiva revista, aprovada pelo Conselho em 17 de novembro de 2025, visa tornar o quadro de RAL mais adequado aos mercados digitais, reforçar a utilização destes meios em litígios transfronteiriços.

De facto, esta revisão abrange o âmbito material e geográfico de aplicação da diretiva. Em primeiro lugar, no que respeita ao âmbito material, a diretiva é aplicável a litígios contratuais decorrentes da venda de bens ou prestação de serviços, o que inclui os serviços digitais, e reforça os direitos dos consumidores no âmbito pré-contratual. No que respeita ao âmbito geográfico, a diretiva é agora também aplicável a litígios emergentes a relações com comerciantes estabelecidos num país terceiro que direcionem as suas atividades para um Estado-Membro.

Esta diretiva procura, essencialmente, melhorar a eficiência e transparência dos procedimentos de RAL, tendo, para isso, introduzido novos requisitos processuais, que visam assegurar uma maior celeridade e transparência.

Neste sentido, os comerciantes, quando contactados por uma entidade de RAL, devem agora  comunicar em 20 dias ( ou 30 dias, em casos excecionais ou de maior complexidade )se pretendem participar no processo. Findo esse prazo, caso não seja obtida nenhuma resposta, presume-se a recusa do comerciante e, consequente, deverá proceder-se ao  encerramento do caso, informando-se o consumidor. Note-se que esta obrigação não é aplicável quando: (i) a participação do comerciante é imposta por lei (como sucede, em geral, em Portugal, nos conflitos com valor até 5.000,00€); (ii) os resultados da RAL podem ser alcançados com ou sem o seu consentimento; (iii) o comerciante se vinculou contratualmente à utilização de entidades de RAL.

A diretiva contempla ainda a possibilidade de utilização de inteligência artificial nos procedimentos de RAL,  impondo-se que as partes sejam informadas sobre a utilização destes meios no processo de tomada da decisão. Não obstante, as partes têm sempre o direito de solicitar que o resultado seja revisto por uma pessoa pertencente à entidade de RAL.

Ademais, de forma a garantir uma maior eficiência, a diretiva tornou também possível, em alguns casos, o bundling, isto é, o agrupamento de casos similares contra o mesmo comerciante.

A necessidade de modernização e simplificação levou também à substituição da Plataforma ODR por uma nova ferramenta digital, dada a fraca adesão a esta plataforma –  tratava, em média, apenas 200 casos por ano na UE. Esta nova plataforma, que deverá estar operacional no prazo previsto no ato legislativo final, fornecerá informações gerais ao consumidor sobre a resolução de litígios, ligações para as páginas das entidades de RAL e pontos de contacto, incluindo uma função de tradução automática. O principal objetivo será fornecer informações aos consumidores, incluindo sobre a utilização da RAL em contexto transfronteiriço, simplificando o acesso a esses meios.

A diretiva atualizada representa uma evolução do sistema, passando da utilização de um mecanismo focado principalmente em transações tradicionais (Diretiva 2013/11/UE), para um mecanismo otimizado para a era digital, capaz de lidar com a complexidade do comércio eletrónico, a proliferação de serviços digitais e as disputas transfronteiriças.

Os próximos passos para a adoção e incorporação da nova diretiva e respetivo regulamento passam agora pela sua aprovação em sessão de plenário do Parlamento Europeu, seguindo-se a sua publicação e, finalmente, a transposição para o direito nacional.

Trata-se de um passo extremamente importante, que visa modernizar e simplificar o quadro legal existente, abordando os atuais problemas sistémicos sentidos em muitos países da União Europeia, nomeadamente a baixa adesão, a fraca eficiência, bem como a falta de cobertura digital e transfronteiriça, colocando entraves ao acesso destes procedimentos de resolução de litígios, que se querem fáceis, de alta qualidade, rápidos e economicamente acessíveis. No que diz respeito a Portugal, país em que a RAL de consumo é bastante eficaz, importa, no essencial, que as novas regras potenciem o sistema, tornando-o ainda melhor.

COOKIES: ACEITES OU INEVITÁVEIS?

Doutrina

A maioria da população mundial dir-nos-á que uma cookie é sempre inevitável. Contudo, quando falamos em cookies digitais em contexto de proteção e tratamento de dados pessoais, a confusão entra em cena.

Chama-se cookie a um pequeno ficheiro descarregado por determinados websites para o dispositivo do utilizador, de forma a acompanhar e registar as preferências e o comportamento do mesmo enquanto navega naquele domínio. Comummente, estes são conhecidos como mais um botão ‘aceitar’ em que toda a gente carrega sem saber do que se trata.

Com o crescimento do comércio online, importa, cada vez mais, olhar para a forma como a nossa privacidade digital e os nossos dados pessoais são tratados, não só enquanto utilizadores digitais, mas também enquanto consumidores. Tal é de elevada relevância porque o preço a pagar por uma t-shirt à venda numa loja online não pode ser 29,99€ e, já agora, a sua palavra-passe das finanças.

Legitimamente, os dados pessoais de uma pessoa apenas podem ser tratados mediante:

1. O seu expresso e inequívoco consentimento (artigo 6.º-1-a) RGPD);

2. A sua necessidade para a execução de um contrato de que a pessoa titular seja parte (artigo 6.º-1-b) RGPD);

3. A sua necessidade para a defesa dos seus interesses vitais (artigo 6.º-1-d) RGPD) e;

4. Outras situações que legitimem esse tratamento, mas que não são tão interessantes para este tema.

Retirando-se, à partida, a necessidade de executar um tal contrato que, a este ponto, ainda não existe (discussão reconhecidamente complexa), ou a defesa de interesses vitais do consumidor (até porque a preferência por determinadas cores de meias de concreto consumidor não são de lá grande vitalidade), só nos resta ponderar se a aprovação dada ao carregar no botão “aceitar” é efetivamente um consentimento livre e informado ou se é uma aposta na típica e generalizada passividade dos consumidores-utilizadores.

É de conhecimento geral que vivemos num mundo onde ninguém lê “termos e condições”, “termos de privacidade” ou até bulas de medicamentos sujeitos a prescrição médica. Estes são tantos e tão extensos que, ao longo dos últimos anos, foram-se tornando numa verdade absoluta das nossas vidas. Por conseguinte, é difícil encontrar quem não sinta fadiga pela simples menção aos documentos acima descritos.

Aproveitando-se de tal fator, dir-se-á ser muito fácil que certos e determinados websites obtenham, indiscriminadamente, consentimento por parte dos consumidores, para um qualquer tratamento dos seus dados. Podemos até falar de “dark patterns” (em tradução direta, padrões obscuros), no sentido em que, não bastando a “fadiga do consentimento”, por vezes, são-nos ainda apresentadas janelas de “aceitação” desenhadas especificamente para que esse consentimento seja ainda mais facilmente obtido.

A utilização de determinadas cores que transmitem positividade, como é o caso do verde de “aceitar”, a propositada e desmedida extensão dos “termos” a ler ou cookies a escolher, e a, por ventura, dificuldade em navegar o website sem antes aceitar os mesmos, são exemplos de mecanismos de manipulação do utilizador digital que muito se observam hoje em dia, sendo ainda mais gravoso que, por vezes, estas escolhas são implementadas de forma propositada e intencional por parte do profissional ou desenvolvedor.

Além do mais, o desenvolvimento tecnológico e o surgimento da era do comércio digital, são acontecimentos muito recentes, pelo que, por exemplo, gerações que lhes antecederam, sofrem, em grande parte, daquilo a que se chama “assimetrias informacionais” ou até de uma certa “vulnerabilidade digital”, algo extensível a diversos grupos de pessoas e cuja exploração demonstra uma ainda maior gravidade das escolhas do desenvolvedor digital.

Esta é uma temática que abrange todas as áreas do quotidiano atual, mas é de especial importância no âmbito do Direito do Consumo, uma vez que, com o exponencial crescimento das compras e vendas online (ou apoiadas em serviços digitais), deparamo-nos com a especial vulnerabilidade dos dados bancários e financeiros do titular.

Cabe-nos questionar o atual paradigma. Se toda a lei que lhes seja pertinente tem como fundamento a proteção do consumidor, do titular ou do utilizador, como é que se concebe que este consentimento de que falamos e a sua vitalidade para o tratamento dos dados pessoais tenha sido cristalizado numa espécie de indiferença ou cegueira sociológica?

No que concerne ao consumidor e ao mundo do Direito do Consumo, existem diversos perigos emergentes do tratamento “consentido sem real consentimento” de dados pessoais para além da mera violação da privacidade e do aproveitamento do seu valor económico-comercial. Desde logo:

1. A formação de perfis comportamentais (o chamado profiling) que podem levar às restantes consequências ou a outras mais gravosas;

2. A redução da autodeterminação e do controlo informacional, fazendo com que os consumidores percam o real controlo dos seus dados pessoais e dos caminhos (legítimos ou não) que estes percorrem;

3. A criação e difusão de publicidade direcionada e indesejada;

4. O aproveitamento da acumulação de dados pessoais como plataforma de crescimento económico-empresarial insustentável e desigual (ao introduzir externalidades negativas no funcionamento do mercado), o que, entre outras, prejudica as pequenas empresas que dependem de consentimentos legítimos, e;

5. Tantos outros casos que se verificam no dia a dia de qualquer utilizador digital.

Que não se pense que estas temáticas são inevitáveis, nem da parte do legislador, nem da parte do utilizador-consumidor. Diversas soluções cumulativas foram e são discutidas a todo o momento.

Em primeiro lugar, regulamentação pertinente deverá ser debatida e adotada no sentido de estabelecer regras de “design ético” para janelas de confirmação de consentimento que não condicionem o consumidor, ainda que inconscientemente, a aceitar determinado tratamento de dados pessoais ou cookies. Na mesma nota, dever-se-á adotar uma premissa de “privacidade por padrão” (“privacy by default”) na criação e disponibilização de websites. Isto significaria que, à partida, qualquer website teria como predefinição a total privacidade e anonimato dos seus utilizadores, que, só e apenas se quisessem, poderiam subscrever e aceitar distinta política de privacidade quando assim o entendessem (procurando, por exemplo, uma experiência mais personalizada ou completa, sendo que aquela oferecida por padrão, nunca poderia carecer de funcionalidades essenciais).

Por outro lado, deve haver um maior “investimento”, tanto da parte dos consumidores, como das autoridades competentes (como por exemplo, a CNPD e a EDPB), respetivamente, no desenvolvimento de uma melhor literacia digital e de melhores esforços de supervisão e fiscalização do cumprimento das regras de proteção de dados e de consumo digital de acordo com princípios éticos, de justiça e, sobretudo, de privacidade.

Recentemente (mais concretamente, no dia 19 de novembro de 2025) foi publicada a proposta do Digital Omnibus, um pacote legislativo europeu que, entre diversas alterações e adições relevantes, pretende modernizar as regras referentes aos cookies, melhorando a experiência do utilizador digital. Esta proposta almeja reduzir o número de vezes em que janelas pop up são apresentadas ao utilizador, permitindo que este apresente o seu consentimento e preferências de escolha de cookies, guardando-os nas definições gerais dos seus browsers e sistemas operativos.

Esta proposta representa uma iniciativa refrescante, ainda que relativamente tímida, para a simplificação e melhoria do tratamento de dados proveniente de cookies. Não sendo propriamente uma “privacidade por padrão”, é uma “escolha padrão” que permitirá combater a “fadiga do consentimento” e, por conseguinte, aumentar a disponibilidade do utilizador para atender mais facilmente ao modo como são tratados os seus dados e à forma como é gerida a sua privacidade digital.

No mesmo sentido e (curiosamente) no mesmo dia de publicação da proposta Digital Omnibus, foi ainda publicada a 2030 Consumer Agenda que, entre outras temáticas, pretende promover a proteção do consumidor digital. Através do Digital Fairness Act (a ser proposto em 2026), a Comissão Europeia pretende combater práticas como os já referidos “dark patterns” e, entre outras, a personalização abusiva baseada em vulnerabilidades dos utilizadores (algo bastante relevante quando discutimos cookies que exploram padrões de comportamento e preferências aparentes dos utilizadores). Esta é uma notícia bastante agradável no que toca à segurança e privacidade digital, especialmente no que concerne a grupos de maior vulnerabilidade, tais como as crianças.

Os cookies digitais são, atualmente, mais inevitáveis do que propriamente escolhidos ou consentidos. A sociedade encontra-se condicionada por si mesma no que toca à aceitação passiva do tratamento dos seus dados pessoais, parecendo não atender à elevada importância que estes têm, não só ao nível da privacidade individual, mas também do seu real valor económico. É, portanto, de suma importância que continuemos a explorar e a debater soluções para que o Direito do Consumo, especialmente na sua vertente digital, evolua a fim de garantir escolhas verdadeiramente livres e informadas, integrando no seu domínio a proteção de dados e seus relevantes diplomas como uma nova dimensão essencial do consumidor digital.

Greenwashing y fast fashion: la sanción a SHEIN por evoluSHEIN

Doutrina

Por Camilo Duarte M [1].

Actualmente, el derecho del consumo se enfrenta a desafíos tales como la publicidad alusiva a atributos medioambientales de los productos o la tutela colectiva de los intereses de los consumidores, y fuera del derecho del consumo, pero cercanos a éste, el fast fashion.

El propósito del presente escrito es revelar una reciente estrategia de mercadeo, que se muestra de manera atractiva a los consumidores, pero que a la luz del derecho del consumo es una práctica desleal cuya finalidad es inducir a los consumidores a engaño, error o confusión respecto de las características de un producto, toda vez que aquellas son anunciadas a través de afirmaciones falsas y aparentemente consideradas con el medio ambiente. Dicha practica es conocida como Greenwashing.  

En el escenario europeo, el pasado 29 de julio de 2025 la Autorità Garante della Concorrenza e del Mercato sancionó con un millón de euros a Infinite Styles Services Co. Ltd, sociedad quien gestiona en Europa los sitios de compraventa de los productos SHEIN (conocida por ser una minorista de moda rápida). La mencionada autoridad mencionó en su decisión que SHEIN dio a conocer su propio proyecto de sostenibilidad ambiental denominado “evoluSHEIN.

Dentro de este proyecto, la misma autoridad identificó que se lanzó la iniciativa pretendidamente de bajo impacto ambiental y reconocible como “evoluSHEIN by Design”. Sin embargo, se determinó, entre otros, que la información sobre la sostenibilidad de las prendas en esta iniciativa era confusa y vaga respecto de la cantidad de materiales de origen responsable/ecosostenibles utilizados para fabricar cada prenda.

De esta manera, es plausible que una de las autoridades europeas en ejercicio de sus facultades, imponga una sanción disuasiva y significativa a una empresa de moda rápida por desplegar un mensaje publicitario contenido de información dudosa, de tal suerte que, los consumidores pudieron tomar su decisión de consumo convencidos de que los productos que estaban adquiriendo en línea tenían una cantidad de materiales de origen responsable/ecosostenibles que no era cierta. En la Unión Europea, cabe mencionar también, en este ámbito, la propuesta de Directiva sobre alegaciones ecológicas.

Aún se critique la facultad sancionatoria, no se puede negar que previene la comisión de conductas que pueden afectar los derechos de los consumidores y promueve el cumplimiento de la normativa en materia de protección al consumidor independiente del país del que se trate. Además, sigue siendo una manera de hacer frente nuevas prácticas comerciales desleales como la revelada en este texto y permitir que los consumidores de manera libre compren productos cuyas características se anuncien como amables con el medio ambiente y realmente lo sean.


[1] Abogado de la Facultad de Derecho de la Pontificia Universidad Javeriana (Colombia). Especialista en Derecho Comercial de la misma Universidad. Especialista en Economía de la Facultad de Ciencia Económicas y Administrativa de la Pontifica Universidad Javeriana. Magíster en Derecho de Consumo y Comercio Electrónico -en curso- por la Universidad Autónoma (Chile). Curso de Pós-Graduação em Direito dos Contratos e do Consumo de la Universidad de Coimbra (Portugal). Diplomado en Compliance de Consumo de la Universidad del Rosario (Colombia). Curso de Marketing Legal de la Universidad Austral (Argetina). Participante de la escuela de verano 2025 “Consumer and Market Law in the European Circular Economy” de la Universidad de Údine (Italia). Consumerista®

Comentário à Agenda do Consumidor 2030

Doutrina

No dia 19 de novembro, a Comissão Europeia apresentou a Agenda do Consumidor 2030, um plano estratégico para os próximos cinco anos, que visa reforçar a proteção dos consumidores, promover a competitividade e apoiar o crescimento sustentável no mercado único. Apesar da relevância do tema, esta Agenda suscita algumas questões quanto à sua ambição e orientação estratégica.

Uma Agenda pouco ambiciosa?

À primeira vista, a Agenda não parece particularmente ousada. Não são propostas reformas estruturais significativas ou novos paradigmas regulatórios, optando-se por uma abordagem centrada na revisão e adaptação de legislação existente. O foco está na simplificação das regras e na redução dos encargos administrativos para as empresas, mais do que na criação de um quadro normativo inovador.

Esta opção reflete uma tendência recente do Direito Europeu do Consumo: uma regulação mais pormenorizada, com normas específicas para setores ou práticas concretas, em detrimento de instrumentos gerais e abrangentes.

Competitividade como objetivo central

Outro ponto que merece destaque é a orientação da Agenda para a competitividade das empresas europeias. O documento sublinha repetidamente a necessidade de simplificar normas e reduzir encargos administrativos, de modo a criar um ambiente “claro, justo e previsível” para as empresas. Esta prioridade está alinhada com a lógica da Bússola para a Competitividade e com a estratégia para completar o mercado único.

A ideia é que regras mais simples e a sua aplicação mais eficaz permitam às empresas reduzir os custos de conformidade e aproveitar melhor as oportunidades do mercado interno. A eficácia da legislação europeia em matéria de consumo constitui, assim, também um objetivo da Comissão Europeia.

Proteção dos consumidores vulneráveis e sustentabilidade

Apesar desta orientação geral a favor da competitividade, a Agenda mantém as preocupações mais recentes da política de consumo:

– Proteção dos consumidores mais vulneráveis, com referência expressa e abrangente aos menores;

– Lealdade em ambientes digitais, com destaque para medidas contra a manipulação algorítmica e a publicidade enganosa;

– Consumo sustentável, nomeadamente no que se refere a ecodesign para produtos sustentáveis, direito à reparação e transição verde, com o objetivo de promover produtos duradouros, reparáveis e com menor impacto ambiental.

Estas ações respondem a desafios sociais e ambientais muito relevantes.

Calendário das principais propostas legislativas e iniciativas

Segundo o que aparece indicado na Agenda, podemos prever, para já, seis propostas legislativas neste período, todas em 2026 (v. o Commission Work Programme 2026 para um cronograma mais preciso):

– Regulamentos sobre serviços multimodais de mobilidade digital e reserva e emissão de bilhetes digitais e revisão do Regulamento sobre os direitos dos passageiros ferroviários (1.º trimestre de 2026).

– European Product Act (3.º trimester de 2026).

– Digital Fairness Act (4.º trimestre de 2026).

– Revisão do Regulamento (UE) 2017/2394, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2017, relativo à cooperação entre as autoridades nacionais responsáveis pela aplicação da legislação de proteção dos consumidores (4.º trimestre de 2026).

Admite-se que, de outras iniciativas previstas na Agenda, possa resultar a adoção de mais propostas, tendo em conta os resultados da avaliação feita pela Comissão Europeia.

Outras iniciativas previstas mais palpáveis previstas no diploma são o lançamento da:

– Carteira Europeia de Identidade Digital (4.º trimestre de 2026).

– Lançamento da Plataforma Europeia em Linha para Reparação, prevista no artigo 7.º da Diretiva (UE) 2024/1799, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de junho de 2024, relativa a regras comuns para promover a reparação de bens (2028)

Conclusão

A Agenda do Consumidor 2030 confirma a tendência europeia para uma regulação detalhada e setorial, com foco na simplificação e na competitividade das empresas. Embora inclua medidas relevantes para a proteção dos consumidores vulneráveis e para a promoção da sustentabilidade, falta-lhe uma abordagem mais integrada e ambiciosa que responda aos desafios globais do consumo no século XXI. Estou a pensar, por exemplo, na responsabilidade por decisões automatizadas ou na proteção contra a manipulação algorítmica em larga escala, na globalização das cadeias de fornecimento, incluindo a necessidade de due diligence no que respeita a práticas sustentáveis com origem fora da União Europeia, nos efeitos do consumo excessivo na crise climática ou no descontrolo da exploração comercial (e não só) dos dados pessoais dos cidadãos europeus. Para os juristas e os académicos, este documento é um sinal claro da evolução do Direito do Consumo Europeu: menos grandes princípios, mais micro-regulação.

O que LLM sabem sobre nós: memorização de dados e o RGPD

Doutrina

Por Beatriz Gonçalves Russell e Francisco Arga e Lima

Com o crescimento exponencial da Inteligência Artificial (“IA”) generativa, e, em especial, de Large Language Models (ou “LLMs”), levantam-se questões sobre a sua compatibilidade com os padrões regulamentares aplicáveis, nomeadamente no domínio da proteção de dados. Neste contexto, uma das principais preocupações prende-se com a dependência dos LLMs na ingestão de vastas quantidades de informação para o seu desenvolvimento, e a preocupação inerente em compreender se estes retêm os dados (pessoais) ingeridos durante o seu treino.

Treino dos LLMs

De modo a saber se há uma efetiva retenção de dados, é necessário compreender a forma como LLMs são, em geral, treinados. Uma das primeiras fases deste processo é a conversão de texto em tokens, ou seja, representações numéricas de elementos normalmente menores que palavras, mas maiores que letras isoladas, que o modelo possa processar, criando-se, assim, um vocabulário interpretável pelo algoritmo, embora não diretamente interpretável pelo indivíduo. Após esta conversão, o modelo é treinado, criando-se embeddings, ou seja, vetores que representam as relações contextuais entre tokens, estatisticamente abstraídas do treino, permitindo ao modelo distinguir o significado de, por exemplo, um banco enquanto instituição financeira e enquanto mobiliário doméstico.

À primeira vista, esta abstração parece levar à conclusão de que, caso haja treino com dados pessoais, os dados perdem a sua ligação com titulares de dados, uma vez que os modelos deixam de conter informação associável a indivíduos identificáveis. Assim sendo, os tokens e embeddings seriam considerados meros padrões linguísticos, desprovidos de ligação a pessoas concretas, de modo que não estariam abrangidos pelo escopo da definição de dados pessoais, prevista no Regulamento Geral de Proteção de Dados (“RGPD”).

Contudo, esta linha de raciocínio baseia-se numa compreensão incompleta acerca do funcionamento técnico do treino destes modelos.

A realidade técnica de retenção de informação

Embora a transformação de texto em tokens abstraia o conteúdo original, a informação subjacente não se perde totalmente. Por um lado, a tokenização moderna — como a byte-pair encoding — é frequentemente lossless, permitindo que os números codificados sejam reconvertidos em texto sem perda de informação substancial. Por outras palavras, mesmo que os dados sejam convertidos em números, isso não elimina necessariamente a possibilidade de identificação de titulares dos dados.

Além disso, os embeddings capturam o significado contextual e as relações entre palavras, espelhando os padrões e estruturas estatísticos abstraídos do treino, algo que poderá levar à memorização de dados. Para entender como isso pode ocorrer, é importante distinguir dois fenómenos que ocorrem durante o treino destes modelos:

1. Codificação (“Encoding”): Processo de abstração de padrões e relações estatísticas dos dados de treino em representações numéricas úteis, descartando detalhes menos significativos.

2. Memorização (“Memorization”): Ocorre quando partes específicas dos dados de treino são retidas quase na integralidade, permitindo a sua potencial reprodução.

Ora, a memorização difere da simples aprendizagem de padrões abstratos que ocorre na codificação, uma vez que leva à retenção de detalhes de dados de treino quase exatos das fontes. Isto pode dever-se a diferentes fatores, como a multiplicação dos dados de treino nos datasets utilizados, o que pode enviesar a sua relevância estatística. Por outras palavras, surgindo com maior frequência uma determinada sequência de tokens, o modelo irá adaptar o peso dessas relações de modo a reforçar essa sequência no seu output. Por isso, mais do que abstrair padrões, haverá uma retenção de sequências específicas de dados que poderão ser pessoais.

De qualquer forma, para que as informações incorporadas nos LLMs sejam consideradas dados pessoais, as mesmas devem, contudo, ser acessíveis. A este respeito, o nosso ponto de partida será o facto que, em regra, os dados estão dispersos pelos inúmeros parâmetros dos modelos e não estão armazenados como unidades discretas ou legíveis por humanos, ao contrário do que sucede, por exemplo, com um ficheiro .pdf. No entanto, há que se notar que a ausência da suscetibilidade de interpretação direta não é impeditiva de que a informação seja considerada dado pessoal: o que nos diz o art. 4.º, n. º1 do RGPD, é que qualquer informação relativa a uma pessoa identificada ou identificável é considerada dado pessoal, mesmo que careça de meios complementares para ser legível por humanos.

Por isso, se um modelo for capaz de reproduzir dados sobre uma pessoa, contidos nos datasets de treino, essa informação continua a ser pessoal, ainda que esteja codificada no modelo sob a forma de vetores numéricos. Desta forma, e pese embora a dispersão da informação pelos parâmetros torne a inspeção direta extremamente onerosa, entende-se que a acessibilidade pode ser feita através de meios indiretos, em particular prompting e ataques direcionados, onde essa memorização é confirmada por via do output consistente de informação contida nos datasets de treino.

Importa também perceber que a memorização não é uma falha de treino ou funcionamento destes modelos, mas sim uma característica inerente dos mesmos. Isto percebe-se facilmente quando constatamos que estes precisam de “memorizar” estruturas de palavras e regras gramaticais de modo a poderem criar construções frásicas corretas. Nesse sentido, a memorização é necessária, atendendo às finalidades destes modelos. Contudo, pode também revelar-se problemática, na medida em que essa capacidade pode conduzir à retenção – e posteriormente divulgação – de dados pessoais.

Assim, o erro está em assumir que a ausência de dados pessoais é garantida apenas pelo facto de tokens e parâmetros serem valores numéricos. Na verdade, é possível que esses números e relações estatísticas levem à retenção de dados (pessoais) contidos nos datasets de treino no próprio modelo.

Por isso, é possível tirar duas conclusões relevantes para a discussão sobre se LLMs memorizam dados pessoais. Em primeiro lugar, a memorização de dados de treino é uma característica essencial e não um bug dos LLMs. Isto significa que os desenvolvedores de LLMs são responsáveis não só pelo tratamento de dados na fase de treino, mas também pelo potencial armazenamento de dados pessoais no modelo, para assegurar a sua compatibilidade com o RGPD. Em segundo lugar, e não obstante a natureza black box dos LLMs conceder alguma margem para argumentar pela impossibilidade de acessibilidade aos dados eventualmente armazenados, a evolução tecnológica pode, no futuro, permitir que a informação armazenada seja reconstruída por meios que hoje desconhecemos, sendo uma questão de tempo até que os mecanismos atuais de mitigação se revelem insuficientes. Até lá, a possibilidade de extração destes dados por via de i.e. prompting é algo que confirma esta retenção, pelo que caberá também aos desenvolvedores destas tecnologias mitigarem tanto a retenção, como a possibilidade da sua extração.

Novo Regulamento da Portabilidade: afinal, qual é a verdadeira novidade?

Doutrina

Nas últimas semanas têm sido várias as notícias sobre a entrada em vigor do novo regulamento da portabilidade. Entre as novidades destacadas pela comunicação social, sobressai a ideia de que as operadoras de telecomunicações passam agora a estar proibidas de cobrar pela portabilidade dos números de telemóvel. Mas será mesmo essa a novidade?

A Lei n.º 16/2022, de 16 de Agosto (Lei das Comunicações Eletrónicas – LCE), reconhece, há muito, queo utilizador dos serviços de comunicações eletrónicas tem o direito à portabilidade dos números – artigo 113.º n.º 1, alínea r) da LCE – sendo-lhe garantida a manutenção do seu número, no âmbito do mesmo serviço, independentemente da empresa que oferece os serviços (n.º 1 do artigo 141.º da LCE), quer se trate de (a) números geográficos, associados a  um local/área geográfica específica; ou de (b) de números não geográficos, em todo o território nacional, incluindo os números móveis (telemóveis), nómadas, de chamadas gratuitas e de tarifa majorada (cfr. alíneas w) e x) do artigo 3.º da LCE)

A portabilidade, introduzida nas redes fixas a 30 de Junho de 2001 e nas redes móveis a 1 de Janeiro de 2002, vem, desde então, sendo entendia como “a funcionalidade através da qual os assinantes dos serviços telefónicos acessíveis ao público que o solicitem podem manter o seu número ou números, no âmbito do mesmo serviço, independentemente da empresa que o oferece, no caso de números geográficos num determinado local, e, no caso dos restantes números, em todo o território nacional” [1]. A terminologia “assinantes dos serviços telefónicos” (Regulamento n.º 58/2005, de 18 de agosto) foi depois substituída por “assinantes de serviços de comunicações eletrónicas acessíveis ao público” (Regulamento n.º257/2018, de 8 de maio) e hoje por “utilizadores finais titulares de contratos associados a números incluídos no PNN” (Regulamento n.º 38/2025, de 9 de janeiro).

No fundo, falamos da possibilidade de mudar de operadora sem o transtorno de ter de, obrigatoriamente, mudar de número.

Se, há duas décadas, esta funcionalidade era sobretudo conveniente, hoje tornou-se indispensável. Pense-se no número de serviços e contas, incluindo mecanismos essenciais de identidade e autenticação digital, que temos atualmente associados ao nosso número de telemóvel – como a Chave Móvel Digital (ID.GOV), os acessos bancários, as validações de e-mail e serviços públicos online, por exemplo. A possibilidade de manter o nosso número de telemóvel em caso de mudança de operador chega a ser, a nosso ver, uma questão de identidade digital. Ao mesmo tempo, o mercado atual oferece-nos uma tão vasta panóplia de operadores e modelos contratuais que, por si só, justificam a existência de um modelo facilitador (e gratuito) da decisão de mudar, ou não, de operador.

O primeiro Regulamento da Portabilidade (RP), o Regulamento n.º 58/2005, de 18 de agosto, foi aprovado a 22 de julho de 2005 pela ANACOM (à data ICP-ANACOM) e publicado em Diário da República a 18/08/2005. No seu preâmbulo, afirmou-se como objetivo primordial estabelecer “os princípios e regras aplicáveis à portabilidade nas redes telefónicas públicas”, tendo em conta a “experiência colhida da implementação da portabilidade desde o seu início.”

O Regulamento n.º 58/2005, de 18 de agosto, foi, entretanto, alterado pelos Regulamentos n.º 87/2009, de 18 de fevereiro, n.º 302/2009, de 16 de julho, e n.º 114/2012, de 13 de março, e, mais recentemente, pelo Regulamento n.º 257/2018, de 8 de maio. [2]

O Regulamento n.º 257/2018, de 8 de maio, introduziu novos e importantes conceitos, como o “Código de validação da portabilidade” – identificador que permite ao prestador doador ou detentor identificar univocamente o assinante e o(s) seu(s) número(s) para efeitos de portabilidade – e alargou o horário de utilização da «Janela de Portabilidade» [3]. Veio ainda reiterar a irrenunciabilidade do direito do utilizador a manter o número ao mudar de prestador e proibiu a privação do acesso à portabilidade por questões contratuais e abusivas. Ademais, de uma maneira geral, no que diz respeito à tramitação do processo de portabilidade, passou a exigir-se às empresas, de forma clara e expressa, uma postura colaborativa e de boa-fé, com vista à celeridade do processo. Nesse sentido, dispõe ainda o artigo 141.º, n. º 3, da LCE que“as empresas não podem atrasar nem cometer abusos nos processos de portabilidade”.

A título exemplificativo, o artigo 6.º, n.º 2, impunha que, perante uma denúncia associada a um pedido de portabilidade, o PD (Prestador de Origem/ Prestador Detentor) tivesse a obrigação de informar “de forma isenta o assinante de que essa denúncia deve ser apresentada junto do PR [Prestador Recetor].”

Foi a redação dada pelo Regulamento n.º 257/2018, de 8 de maio, que vigorou nos últimos cerca de 7 anos, e até 10/10/2025, data em que foi substituído pelo Regulamento n.º 38/2025, de 9 de janeiro. Este “novo” Regulamento da Portabilidade foi publicado no Diário da República no dia 9 de janeiro de 2025 e procedeu à revogação do Regulamento n.º 58/2005, de 18 de agosto (artigo 34.º, n.º 1), estabelecendo, no entanto, uma vacatio legis de 10 meses “após a sua publicação no Diário da República” (artigo 35.º, n.º 1).  Tal facto prende-se com a necessidade de proporcionar às empresas/operadoras o tempo necessário para a implementação das novas medidas técnicas e alterações processuais e em sistemas.

O “novo” Regulamento mantém como objetivo primordial assegurar a efetividade da portabilidade, mas introduz regras destinadas a assegurar maior eficácia, celeridade e uniformização de procedimentos. Como refere o próprio preâmbulo, foram mantidas a “maioria das disposições do Regulamento n.º 58/2005, de 18 de agosto, com as várias alterações que lhe foram sendo introduzidas, (…) que, sendo compatíveis com a LCE, continuam a ser necessárias e adequadas para garantir que a portabilidade de números entre as empresas ocorra de forma eficaz, assegurando a continuidade da prestação do serviço aos utilizadores finais (…)”.

Mas a grande novidade desta nova regulamentação não consiste, a nosso ver, na proibição de as operadoras de telecomunicações cobrarem pela portabilidade de números de telemóvel.

O artigo 6.º, n.º 3, do revogado Regulamento da Portabilidade já proibia o Prestador Detentor de “exigir ao seu assinante qualquer pagamento pela portabilidade do número”. Paralelamente, estabelecia-se a obrigação de o Prestador de Origem, mediante solicitação do assinante, fornecer imediatamente e em suporte durável o Código de Validação da Portabilidade (CVP) — elemento indispensável ao pedido eletrónico de portabilidade — não podendo a existência de eventuais dívidas constituir fundamento de oposição à portabilidade (artigos 12.º-A, n.º 8, e 13.º, n.º 7, do revogado Regulamento da Portabilidade). Significa isto que a portabilidade deveria já ser assegurada mesmo que existisse um contrato de fidelização ativo ou dívidas ao operador antigo, o que em qualquer caso não significava que eventuais dívidas fossem “esquecidas”. As contas a acertar com o operador antigo continuavam em aberto.

Estas disposições encontram hoje correspondência nos artigos 5.º, n.º 9, 12.º, n.º 11, e 15.º, n.º 4, respetivamente, do “novo” Regulamento. O que o “novo” Regulamento nos traz é um reforço ao princípio da gratuitidade da portabilidade, extensível a todas as empresas envolvidas no processo de portabilidade, e ainda a clarificação de que a proibição de exigir qualquer pagamento pela portabilidade do número abrange todos e quaisquer custos diretos relativos à portabilidade do número, nomeadamente taxas ou quaisquer encargos.

Efetivamente, enquanto o antigo artigo 6.º, n.º 3, limitava a proibição de exigir pagamento apenas ao Prestador Detentor/Doador, o novo Regulamento alarga expressamente esta proibição. O novo artigo 5.º, n.º 9, determina que:

As empresas não podem cobrar aos utilizadores finais titulares do contrato associado ao número encargos diretos relativos à portabilidade do número.”

Destaca-se ainda que, no caso de portabilidade de números afetos a serviços pré-pagos, o PD é obrigado a reembolsar ao utilizador qualquer crédito remanescente respeitante ao número portado, podendo cobrar um encargo máximo de 1 euro por operação, com reembolso a ser feito em até 10 dias úteis – cfr. artigos 6.º, n.º 2, e 24.º do novo Regulamento.  Neste cenário, e apenas caso esteja previsto no contrato, admite-se que o reembolso tenha encargos para o utilizador, cujo valor deverá ser “proporcionado e baseado nos custos efetivamente suportados pela empresa que realiza o reembolso” – cfr. artigo 24.º, n.ºs 1 e n.º 2 do Regulamento da Portabilidade e artigo 140.º, n.ºs 9 e 10 da Lei das Comunicações Eletrónicas.

Destaca-se aqui outras alterações significativas:

1. A obrigação de o novo operador garantir que a portabilidade e ativação do número ocorre na data acordada com o utilizador, ou até um dia útil após essa data (exceto quando for necessária instalação, caso em que será até um dia útil após instalação, ou dois dias úteis caso a instalação ocorra após as 17h) – cfr. Art. 11.º, n.os 7 e 8.

2. O utilizador final mantém o direito de portar o seu número (ainda que inativado) para outra empresa durante 3 meses após a cessação do contrato com o PD, salvo renúncia expressa no momento da desativação – o chamado “Tempo de Quarentena” (cfr. artigos 2.º, n.º 2, alínea ff), 3.º, n.º 2, alínea c), a contrario, e 19.º, n.º 1.

3. Mantém-se e aprofunda-se o regime de compensações por atraso ou falha na portabilidade e introduzem-se compensações adicionais em caso de incumprimento:

a) 10,00€ (dez euros) por incumprimento de intervenções físicas agendadas que obriguem à remarcação – Cfr. art. 29.º, n.º 3;

b) 3,00€ (três euros) por cada dia completo de atraso na portabilidade – cfr. art. 29.º, n. º 2, al. a);

c) 23,00€ (vinte e três euros) por cada dia de interrupção do serviço, até ao máximo de 5.750,00€ (cinco mil setecentos e cinquenta euros) por pedido de portabilidade – cfr. art. 29.º, n.º 2, al. b);

d) 23,00€ (vinte e três euros) por cada dia em que um número se mantenha indevidamente portado, em caso de portabilidade indevida, até ao máximo de 5.750,00€ (cinco mil setecentos e cinquenta euros) por pedido de portabilidade – cfr. art. 29.º, n.º 1, al. d).

[1] Preâmbulo do Regulamento n.º 58/2005, de 18 de agosto

[2] Este último, objeto de alteração pelo Regulamento n.º 85/2019, publicado a 21 de janeiro, que procedeu à alteração do artigo 6.º, n.º 1, alínea b), referente à entrada em vigor das disposições previstas no artigo 2.º, do n.º 8 do artigo 7.º e dos artigos 8.º, 9.º, 12.º, 12.º-A, 13.º, 14.º, 17.º, 18.º e 23.º-A, cuja previsão passou a determinar “que entram em vigor no dia 11 de maio de 2019”, ao invés de 9 meses após a sua publicação.

[3] O horário da «Janela de Portabilidade» refere-se ao período de três horas consecutivas, durante o qual ocorre a portabilidade ou alteração de NRN (Network Routing Number)  – Os NRN “são números usados como prefixos que, antepostos aos números portados, permitem identificar e reencaminhar as  chamadas para a rede do prestador para onde os números foram portados.

Codificar ou Não Codificar: Eis a Questão

Doutrina

Por Ana Xavier Soares, Bárbara Ferreira Alves, Graça Saúde, Diana Silva Cruz, Eveline Rodrigues de Areia, Felipe Caires, Filipa Farinha Santos, Filipa Osório Dias, Joana de Almeida, Jorge Morais Carvalho, Maria João Carapinha, Maria Clara Bauly, Mariana Brighton, Nuno Matias Gaspar, Rita Gomes Moreira, Sílvia Afonso e Vera Teodoro

No dia 11 de setembro, teve início a Pós-Graduação em Direito do Consumo, organizada pela NOVA School of Law Executive Education. Os participantes foram desafiados, desde logo, a indicar as vantagens e as desvantagens da dispersão da legislação de consumo em Portugal. Neste texto, reflete-se sobre esta questão, revelando uma análise rica e equilibrada[1].

A dispersão da legislação de consumo em Portugal tem sido objeto de debate académico e político há décadas. Em 2006, na sequência do trabalho de uma Comissão liderada por António Pinto Monteiro, chegou a ser apresentado um Anteprojeto de Código do Consumidor, que não teve seguimento, mas que reacendeu a discussão sobre os méritos e os limites da codificação nesta área. Hoje, essa questão continua atual: será preferível manter uma abordagem dispersa, com diplomas setoriais e especializados, ou avançar para uma codificação que sistematize e torne mais acessível o Direito do Consumo?

Este dilema foi explorado pelos/as estudantes da Pós-Graduação em Direito do Consumo da NOVA School of Law, que responderam ao desafio de identificar as vantagens e desvantagens da dispersão legislativa. As suas reflexões revelam uma análise profunda e ponderada, que aqui se sintetiza.

A dispersão permite uma regulação especializada, ajustada às especificidades de cada setor económico. Áreas como as telecomunicações, os transportes ou os serviços digitais beneficiam de normas técnicas mais detalhadas, preparadas por especialistas na matéria, que dificilmente caberiam num código único. Esta especialização favorece uma proteção mais eficaz dos consumidores em contextos específicos.

Outro argumento apresentado no sentido da dispersão é a flexibilidade. A existência de diplomas avulsos facilita alterações legislativas pontuais, sem necessidade de rever um corpo normativo extenso. Esta agilidade é particularmente relevante num mercado em constante transformação, marcado pela inovação tecnológica e pela evolução resultante das diretivas europeias.

Destaca-se ainda que a dispersão pode estimular a criatividade jurídica, permitindo interpretações jurisprudenciais adaptadas ao contexto social e económico do momento.

Em sentido contrário, a dispersão acarreta dificuldades de acesso ao direito, sobretudo para os consumidores sem formação jurídica, mas também para pequenas empresas. A fragmentação normativa torna mais complexa a identificação das regras aplicáveis, comprometendo a clareza, a simplicidade e a transparência do sistema jurídico.

A multiplicidade de diplomas pode gerar insegurança jurídica, com riscos de regimes contraditórios e interpretações divergentes ou da existência de lacunas. A ausência de versões consolidadas agrava esta dificuldade, dificultando a consulta e a compreensão das normas.

Além disso, a dispersão pode comprometer o princípio da igualdade, ao tratar de forma desigual situações semelhantes reguladas por diplomas distintos. E exige uma maior dependência de entidades de apoio ao consumidor, o que pode limitar a autonomia informada dos cidadãos consumidores.

Esta reflexão recupera o debate sobre a codificação do Direito do Consumo. Embora a dispersão tenha algumas vantagens, reconhece-se que a existência de um Código do Consumo poderia facilitar o conhecimento das normas, promover a segurança jurídica e aproximar o direito dos cidadãos.

A codificação não teria de ser rígida ou exaustiva. Poderia coexistir com diplomas complementares, permitindo um equilíbrio entre sistematização e especialização, entre acessibilidade e adaptabilidade.

Em suma, a análise mostra que não há respostas simples, mas há caminhos possíveis. A solução poderá passar por uma codificação inteligente, que preserve a flexibilidade e a especialização setorial, sem sacrificar a clareza e a acessibilidade do Direito do Consumo. Um desafio que merece ser debatido e enfrentado com seriedade e visão de futuro.


[1] Tratando-se de um texto coletivo, é possível que alguma ideia não corresponda à perspetiva de todos os autores.

Patas nas asas: oximoros sem lei? Viajar de avião com animal de companhia

Doutrina

Viajar de avião com um animal de companhia é uma realidade cada vez mais comum para os consumidores europeus. Além da percentagem de agregados familiares com animais de companhias superar já os 50% em Portugal, várias razões motivam a necessidade de os transportar de avião, entre elas viagens lúdicas que incluem o animal nas férias, emigração, participação em concursos internacionais e/ou necessidade de viajar com um cão de assistência (nomeadamente, cães-guias, cães-ouvintes ou cães de serviço).

No entanto, o enquadramento jurídico desta realidade é acinzentado, ou não estivéssemos nós no meio das nuvens. Afinal, quando um consumidor adquire uma passagem aérea e paga adicionalmente para transportar o seu animal de companhia, o que está, no fim de contas, a contratar?

O transporte aéreo de animais de companhia situa-se num cruzamento peculiar entre o direito do consumo e o «direito animal», este último sem autonomia científica em Portugal. No plano jurídico europeu, o Regulamento (UE) n.º 576/2013 trata da movimentação não comercial de animais de companhia entre Estados-Membros ou a partir de um país terceiro, definindo requisitos sanitários e documentais obrigatórios para que o animal possa viajar, como, por exemplo, entre outros, a exigência de o animal ser portador de passaporte, de estar vacinado contra a raiva e de lhe ter sido implantado um microchip de registo. Este regime é o mais detalhado que o consumidor irá encontrar quando necessitar de saber as regras que lhe são aplicáveis se quiser transportar o seu animal de estimação via aérea, mas ainda assim ficará com muitas dúvidas. Não encontrará, por exemplo, regulamentação sobre o transporte do seu animal na cabine do avião – portanto, o que quer que seja que a companhia aérea decida quanto a esse aspeto, se não é proibido, pode-se fazer.

No plano jurídico português, o Decreto-Lei n.º 276/2001, que transpõe a Convenção Europeia para a Proteção dos Animais de Companhia, não é eloquente para o caso. Consagra princípios gerais tendentes à garantia de que o bem-estar do animal não é comprometido em diferentes situações do quotidiano, nomeadamente, mas não só, durante o transporte, mas não esclarece mais. Em boa verdade, se excluirmos o caso excecional de viajar de avião com animais de assistência (Regulamento n.º 1107/2006), não existem ainda disposições específicas ou um regime jurídico que trate o transporte aéreo de animais de companhia. Para variar, o consumidor lidará com o nevoeiro. Na prática, as cláusulas são ditadas pelas políticas comerciais de cada companhia aérea, frequentemente distintas umas das outras. Assim, algumas permitem o transporte de animais de pequeno porte na cabine (estabelecendo limitações arbitrárias de peso ou espécie), outras remetem todos os animais obrigatoriamente para o porão, e outras, ainda, simplesmente não admitem o transporte de quaisquer animais.

Este quadro comercial fragmentário – e sem enquadramento jurídico direto – tem consequências relevantes. Em primeiro lugar, a informação prestada ao consumidor é muitas vezes insuficiente ou equívoca: nas companhias aéreas que permitem o transporte, não é claro em que condições o animal será transportado, nem qual a extensão da responsabilidade da transportadora em caso de incidente. Em segundo lugar, verifica-se uma prática generalizada que merece escrutínio: as transportadoras aéreas cobram preços suplementares, por vezes elevados (não raras vezes superior ao preço do bilhete do próprio passageiro), pelo transporte do animal, mas não asseguram um espaço efetivamente apropriado para esse transporte. Por exemplo, quando o animal viaja na cabine, o passageiro-tutor é frequentemente instruído a colocar a caixa transportadora aos seus pés, num espaço exíguo para ambos, o que compromete tanto o conforto do animal como a comodidade do próprio passageiro. Trata-se de um serviço adicional pago que dificilmente cumpre os princípios da adequação e da transparência contratual impostos pelo direito do consumo. A prestação de um serviço oneroso sem a correspondente qualidade pode configurar uma prática comercial desleal nos termos do Decreto-Lei n.º 57/2008, por induzir o consumidor em erro quanto às condições reais do transporte, e, no limite, a violação de deveres de lealdade e boa-fé, já que o consumidor, apesar de pagar por um serviço extra, fica numa posição pior do que aquela em que estaria se não tivesse pagado por esse serviço. O mínimo exigível sempre seria a disponibilização do assento contíguo. Mal comparado, veja-se que, quando um passageiro viaja com uma criança até aos 2 anos (e, por isso, viaja no colo do adulto obrigatoriamente), geralmente o serviço é gratuito, já que, na prática, apenas é utilizado um assento.

Questão diversa, ainda que conexa, é o transporte de animais de companhia no porão do avião, que comporta riscos para a vida do animal. O debate em torno do Projeto de Lei n.º 211/XVI/1.ª ilustra o problema. O diploma pretende proibir o transporte de animais de companhia no porão das aeronaves e garantir o transporte em cabine em condições dignas. Ainda que a proposta não tenha sido ainda vertida em lei, representa um passo relevante no sentido de reconhecer que o bem-estar animal não é um mero detalhe operacional, mas um elemento essencial da qualidade do serviço prestado.

Neste domínio, a experiência italiana merece destaque. No ano corrente, a autoridade nacional de aviação civil (ENAC) introduziu novas diretrizes que permitem que cães de médio e grande porte (até 25 kg) viajem na cabine, junto dos seus tutores, observadas as regras de segurança e em condições controladas a bordo. É a primeira medida deste tipo na Europa e constitui um exemplo de integração da proteção do bem-estar animal. A decisão italiana reconhece que o consumidor contemporâneo não é apenas um passageiro que leva uma mala, mas alguém que confia a um prestador de serviços algo que considera parte da sua esfera familiar, evitando, sempre que possível, a sua remessa para o porão e os riscos acrescidos para a saúde do animal.

Em contracorrente ao que parecia vir sendo o encaminhamento social da questão, o Tribunal de Justiça da União Europeia, em interpretação da Convenção de Montreal num caso concreto, pronunciou-se muito recentemente no sentido de que os animais transportados em avião são, para efeitos de responsabilidade, equiparados a «bagagem», uma qualificação que levanta sérias questões por subvalorizar o caráter senciente do animal, ignorar a dignidade valorativa do animal para o passageiro e por reduzir o transporte daquele a uma dimensão patrimonial.

O estatuto jurídico dos animais sempre foi causa de celeuma. Primordialmente considerados «coisas» pelo Código Civil, têm agora, em Portugal, estatuto próprio. Tal não é também suficiente para acautelar parte dos problemas que se colocam aos consumidores que viajam com os seus animais de companhia. Além das cláusulas contratuais gerais, essencialmente discricionárias, que são impostas aos passageiros pelas companhias aéreas, não reconhecer que o animal não é uma bagagem tem consequências práticas, por exemplo, em caso de atraso de voo (sobretudo numa Europa ainda pouco equipada ao nível de instalações sanitárias para animais dentro dos aeroportos).

Do ponto de vista do direito do consumo, o desafio é claro: garantir que as práticas comerciais das companhias aéreas são compatíveis com os princípios de transparência, lealdade e proporcionalidade. Cobrar um valor significativo pelo transporte de um animal sem garantir condições mínimas de conforto e segurança é incompatível com o princípio da boa-fé e com a legítima expectativa do consumidor. A harmonização europeia nesta matéria é, por isso, necessária.