O Ronaldo, o Messi, o Louis e a Annie – futebol, xadrez, arte ou publicidade

Doutrina

A 20 de novembro de 2022, teve início oficial um dos eventos mais importantes do planeta, denominado “Campeonato Mundial de Futebol FIFA de 2022”. Este Mundial, a que de tão conhecido e relevante basta chamar assim, tem vindo a ser alvo de polémicas de várias espécies, quase todas más. As suspeitas de corrupção e os atentados aos direitos humanos são as que mais se destacam.

No entanto, para além disso e da competição propriamente dita, surgem também outras coisas extraordinárias e no dia da inauguração acontece uma muito interessante. Fala-se muito de xadrez e contempla-se arte. Ou publicidade. Arte publicitária, que evidencia como são ténues as fronteiras em muitos campos. Sob um fundo absolutamente clássico, com uma perfeita quase ausência de cor, estão um baú sobre o qual assenta uma mala de mão, com padrão de quadrículas castanhas, nas quais estão dispostas peças de xadrez. Sentados, dois homens, um de cada lado, pousam na mala uma mão e, na outra mão, a cabeça, numa atitude absolutamente compenetrada e absorvida. Parece que abraçam suavemente o tabuleiro improvisado. Tudo é equilibrado, harmonioso. A luz, a sombra, a cor, as posições, as peças caídas e as peças em jogo, tudo concorre para a incrível obra de arte fotográfica de Annie Leibovitz, extraordinária artista que, entre muitos outros, fotografou a rainha Isabel II. Os homens são Lionel Messi e Cristiano Ronaldo, as malas são Louis Vuitton, marca criada em 1854, a jogada de xadrez é do terceiro jogo entre Magnus Carlsen e Hikaru Nakamura, no torneio da Noruega de 2017, que terminou num empate.

No Twitter, recentemente adquirido por Elon Musk, que rapidamente se pôs a despedir muitas pessoas, a marca de luxo publica que “Victory is a state of mind”, relembra que tem acompanhado os mais importantes eventos desportivos e explica que a fotografia celebra os dois mais talentosos jogadores de futebol da atualidade. Tudo verdade. Ganhar é um estado de espírito que, aliado a muito suor e trabalho pode levar à vitória, a Louis Vuitton é tão antiga e emblemática que acompanhou muitos desportistas e outros viajantes ilustres e ricos nas suas deslocações. A primeira classe do Titanic, por exemplo, estava carregada de bagagem assim acomodada. É usualmente aceite que Messi e Ronaldo são os melhores jogadores de futebol do mundo. Além de que Annie Leibovitz conseguiu mais uma assinalável proeza fotográfica. Nada foi deixado ao acaso, o mais ínfimo detalhe daquele improviso foi meticulosamente planeado. Até o xadrez. Podiam ter colocado aleatoriamente umas peças que ficassem bem em cima das quadriculas do padrão, para as quais jogadores de futebol estariam, em pose, a olhar, mas não. Deram-se ao trabalho de escolher um lance duma partida entre os melhores jogadores de xadrez do mundo e, ainda mais precisamente, uma que acaba num empate. Este detalhe, também ele, além da subtileza, evidencia um enorme respeito, tanto para com os jogadores de xadrez, como para com os jogadores de futebol retratados.

A publicação, a foto, a situação tornou-se viral nas redes sociais e, no Mundial de futebol, o xadrez ganhou lugar através de algo que  tudo indica ser uma excelente campanha publicitária.

Daqui dois pontos principais há a assinalar. O primeiro, é o fascínio que o xadrez ainda origina nas pessoas e, também, a capacidade que tem de fazer vender. Relembre-se como o mundo, em plena guerra fria, esteve suspenso de alguns jogos e desatou a comprar tabuleiros e peças e a jogar. Por exemplo, o filme “O Prodígio” mostra-o no Campeonato Mundial de Xadrez de 1972, em que o americano Bobby Fisher venceu o soviético Boris Spassky. Em final de 2020, a série “The Queen’s Gambit”, inflamou as audiências e fez disparar o consumo em várias áreas, naquilo que se poderá denominar “efeito Netflix”. Relembre-se, também, como foi impressionante quando o Deep Blue, uma máquina, venceu em 1997 Garry Kasparov, o campeão de xadrez da época. O xadrez tem associada a ideia de inteligência, de ponderação, de visão, de segurança, de precisão e muitas outras que o tornam adequado a simbolizar a superioridade humana, a qualidade individual de uma pessoa, a representar a ideal qualidade de um povo, de um país, da humanidade.

O segundo ponto a assinalar é a natureza esquiva e fluida da publicidade. Num duplo sentido. Por um lado, a sua clássica proximidade à arte. As sopas Campbell de Andy Warhol, não deixaram de ser sopas quando o artista resolveu fazer delas uma obra de arte, curiosamente, com a inicial oposição dos detentores da marca. A fotografia de Annie Leibovitz não deixa de ser uma manifestação artística por fazer publicidade.

No entanto, urge questionar, publicidade a quê? Sem dúvida, à marca das malas. Temos, no entanto, de admitir que cada um dos jogadores retratados são também publicitados. Embora já de si, pareçam possuir o toque de Midas, transformando em ouro tudo em que tocam, qualquer deles tem associado um fortíssimo merchandising e o reforço da divulgação da sua imagem vai certamente refletir-se em aumento de vendas. Ganham os próprios, ganham as empresas que produzem e vendem bens e serviços com o seu selo, ganham os clubes, os países e, certamente, muito mais gente que não nos ocorre. O próprio Mundial, certamente também ganha, sendo ainda mais divulgado. O Twitter e as redes sociais em que foto e publicação circulam, certamente ganham em visitas, que terão originado mais receitas em publicidade e outras. Este é o outro lado, do segundo ponto a assinalar. A publicidade tornou-se difusa, esquiva, fluída, indireta, de fronteiras muito pouco claras. A publicidade tradicional, ainda predominante na primeira década deste século, não só está a cair em desuso, como é acompanhada por novas formas que seriam muito difíceis de prever há algum tempo e que apresentam contornos pouco nítidos, que tornam difícil a sua qualificação e enquadramento jurídico. Salienta-se, pela relevância e amplitude que pode alcançar a “publicidade” nas redes sociais, quer através de algo que se torna viral, trazendo de repente para a ribalta marcas de bens ou serviços, quer através do trabalho dos influencers, mais sistemático, que vão apresentando, ou usando, ou comentando coisas, sítios que, por isso, vendem mais. Com o advento dos chatbots e o desenvolvimento do processamento de linguagem natural, também a publicidade pode passar a ser personalizada, sendo apresentada a cada pessoa que conversa com a máquina os produtos que procura, ou os que mais lhe podem interessar. Se juntarmos a realidade virtual, aumentada e mista, que temos vindo a abordar em posts recentes, acabamos por poder estar a ser avassalados, permanentemente, por comunicação que promove, com vista à sua comercialização, quaisquer bens ou serviços. Transformamo-nos em destinatários permanentes de publicidade, mais ou menos do mesmo modo como nos tornamos produtores e consumidores de dados pelo simples facto de existirmos e, principalmente, de usarmos um smartphone.

O Ronaldo, o Messi, o Louis e a Annie, fazem desporto, indústria, arte, história, promovem o futebol, o xadrez, as viagens, a moda, a fotografia, fazem publicidade, originam o aumento de vendas de coisas várias, geram tráfego nas redes sociais e na internet, alimentam a big data e a inteligência artificial, forçam os cânones do Direito, de todos os Direitos. Integram uma realidade cuja complexidade se adensa progressivamente, tornando difícil a sua análise e compreensão.

Vale-nos o Mundial que, nos relvados atafulhados de publicidade, nos vai manter fixos no jogo, algo à escala humana.

Finalmente, o novo Regulamento dos Serviços Digitais (Digital Services Act DSA)!

Legislação

A 27 de outubro de 2022, foi publicado no Jornal Oficial da União Europeia o muito aguardado Regulamento (UE) 2022/2065 dos Serviços Digitais (mais conhecido pelo nome inglês Digital Services Act DSA), aprovado a 19 de outubro no Conselho.

Apresentado há quase dois anos pela Comissão no Pacote dos Serviços Digitais (que inclui também o agora aprovado Regulamento (UE) 2022/1925 dos Mercados Digitais – Digital Markets Act DMA), o Regulamento dos Serviços Digitais atravessou um procedimento legislativo muito ativo: os 106 considerandos e 74 artigos da proposta inicial foram bastante trabalhados pelo Parlamento Europeu e o Conselho, resultando num total final de 156 considerandos e 93 artigos.

O Regulamento dos Serviços Digitais surge principalmente com o objetivo de atualizar o regime aplicável à responsabilidade dos prestadores de serviços digitais, anteriormente inserido nos artigos 12.º a 15.º da Diretiva do Comércio Eletrónico (2000/31/CE), agora revogados. Este regime de responsabilidade dos serviços intermediários pelo transporte e armazenamento de conteúdos ilegais, com quase 20 anos, carecia de atualização normativa, devido a todas as controvérsias relacionadas com a proliferação de conteúdos ilegais (violações de direitos de autor, promoção de terrorismo, pornografia infantil, entre outras) e tentativas de os moderar (erros dos algoritmos de sinalização e bloqueio, falsos positivos e negativos) que resultam por sua vez em restrições de direitos fundamentais de acesso à informação e liberdade de expressão, os chamados efeitos de silenciamento (“chilling effects”), que se tornaram evidentes com a omnipresença e dependência da sociedade atual nestes serviços.

O Regulamento acaba por não reinventar os principais princípios que regem a responsabilidade e o papel dos intermediários e a questão da moderação de conteúdos, focando-se antes na codificação e aprofundamento normativo de práticas que já constavam de intervenções junto dos principais stakeholders, sejam instrumentos de soft-law e self-regulation, nomeadamente a “Recomendação sobre medidas destinadas a combater eficazmente os conteúdos ilegais em linha”.

Assim, o Regulamento não altera substancialmente o regime de “safe harbour”, de isenção de responsabilidade dos prestadores de serviços de simples transporte e armazenagem temporária (“catching”) (arts. 4.º e 5.º), sendo que os serviços de alojamento virtual (novo termo para armazenagem em servidor “hosting”), recebe apenas algumas alterações cirúrgicas (em direito do consumo, abordada mais adiante). O princípio da proibição de obrigações gerais de vigilância mantém-se, sendo que é acrescentada a cláusula do “bom samaritano” (art. 7.º), que já existia no Content Decency Act CDA (a legislação americana de 1996 equivalente à antiga diretiva). Este permite aos prestadores de serviços manter a imunidade quando conduzem investigações próprias, voluntariamente e de boa-fé, destinadas a detetar, identificar e suprimir ou bloquear o acesso a conteúdos ilegais.

O papel das autoridades administrativas e judiciais é reforçado, com normas para a emissão de ordens de bloqueio e remoção de conteúdos. A figura dos sinalizadores de confiança (“trusted flaggers”) é também codificada (art. 22.º).

O Regulamento dos Serviços Digitais impõe severas medidas de controlo e auditoria de todos estes mecanismos, procurando reajustar o equilíbrio na relação entre utilizadores, plataformas e partes terceiras. Os direitos fundamentais de acesso à informação e liberdade de expressão estão refletidos nas diversas disposições do diploma.

Relação com o Direito do Consumo

O Regulamento dos Serviços Digitais não é um diploma de direito do consumo no sentido clássico do conceito. Na proposta original, a proteção de consumidores não surgia sequer indicada nos considerandos como um dos objetivos centrais do diploma, em especial a proteção económica, embora este pretendesse complementar a atuação das diretivas, com um foco nos direitos fundamentais. Este aspeto mudou com as recomendações e mudanças propostas pelo Parlamento Europeu, que referiu a necessidade de o diploma abordar as práticas desleais dos mercados em linha, assim como a articulação com normas de segurança de produtos e responsabilidade de plataforma.

Trata-se de um instrumento de regulação horizontal, que afeta uma série de áreas diferentes, incluindo os direitos de propriedade intelectual, os dados pessoais e a proteção dos consumidores. O regulamento não obsta à aplicação do acquis do direito do consumo europeu, como expressamente se indica no art. 1.º-4-f) e no considerando 10.

A definição de conteúdos ilegais, pertinente para as questões de moderação de conteúdos, inclui os conteúdos digitais que, independentemente da sua forma, violem ou estejam relacionados com violações de direito do consumo.

Os consumidores, enquanto utilizadores destes serviços, veem os seus direitos fundamentais de acesso à informação e à liberdade de expressão reforçados com mecanismos de reddress, para a contestação e recurso das decisões das plataformas na moderação de conteúdos, incluindo instrumentos de resolução de litígio.

O art. 6.º-3 inclui uma exceção expressa da exclusão de responsabilidade extremamente relevante para a proteção de consumidores: sempre que plataformas, que permitam a celebração de contratos à distância entre consumidores e comerciantes, apresentem o elemento específico de informação ou permitam, de qualquer outra forma, que a transação específica em causa induza um consumidor médio a acreditar que a informação, o produto ou o serviço objeto da transação é fornecido pela própria plataforma em linha ou por um destinatário do serviço que atue sob a sua autoridade ou controlo”. Os conceitos desta norma são desenvolvidos nos considerandos 23 e 24:

  • O considerando 23 salienta que este elemento da atuação sob autoridade ou controlo do prestador de um serviço de alojamento virtual, se verifica nos casos em que o fornecedor da plataforma em linha pode determinar o preço dos bens e serviços que são oferecidos pelos comerciantes nestes contratos à distância.
  • O considerando 24, por sua vez, aborda a questão das informações que induzam o consumidor médio a acreditar que os bens ou serviços objeto do contrato são fornecidos pela própria plataforma em linha ou por um comerciante que atue sob a sua autoridade ou controlo. O Regulamento indica como possíveis exemplos os casos em que a plataforma em linha não apresenta claramente a identidade do comerciante, se recusa a divulgar a identidade ou os dados de contacto do comerciante até após a celebração do contrato entre este e o consumidor ou comercializa o produto ou serviço em seu próprio nome, em vez de utilizar o nome do comerciante que irá fornecer esse produto ou serviço.

Será necessário, com base em todas as circunstâncias pertinentes e de forma objetiva, determinar se a apresentação é passível de induzir um consumidor médio a acreditar que a informação em causa foi prestada pela própria plataforma em linha ou por comerciantes que atuem sob a sua autoridade ou controlo. Consideramos que a utilização do conceito de consumidor médio nestes considerandos é infeliz, dado os problemas que este conceito tem levando na aplicabilidade da Diretiva 2005/29/CE, que regula as práticas comerciais desleais.

Os prestadores de serviços de intermediação em linha estão também proibidos de utilizar “dark patterns”, isto é, práticas que afetem e distorção os comportamentos dos consumidores, afetando a sua capacidade de realizar decisões autónomas, informadas e livres, graças a funcionalidades, nudges, à estrutura, design da plataforma e interface, com recurso ao tratamento de dados pessoais, considerando 67 e artigo 25.º. Estas práticas têm sido muito debatidas quanto à aplicabilidade da Diretiva 2005/29/CE das práticas comerciais desleais.

Neste sentido, o regulamento impõe ainda obrigações de transparência sobre os anúncios que são apresentados aos utilizadores, assim como os sistemas de recomendação, que apresentam sugestões ou rankings aos utilizadores, com base em decisões algorítmicas arts. 26.º e 27.º. As plataformas em linha devem informar adequadamente os consumidores sobre estas funcionalidades, os principais parâmetros e critérios utilizados, deixando que estes possam customizar, modificar estes sistemas, de acordo com preferências pessoais, 27.º-3.

De forma a assegurar a efetividade do direito do consumo europeu, os prestadores de mercados e plataformas em linha que permitam a celebração de contratos à distância a consumidores, são sujeitos a novas obrigações de due diligence, devendo aplicar os seus melhores esforços na recolha de todas as informações pré-contratuais e dados necessários, como os relacionados com a identidade dos profissionais, de forma a permitir a sua rastreabilidade art. 30.º, no âmbito das diretivas de consumo, nomeadamente a Diretiva 2011/83/EU, considerando 74.

O Regulamento inclui ainda uma série de medidas de forma a reforçar a atuação e cooperação entre entidades reguladoras independentes dos Estados-Membros (de forma a prevenir o fenómeno de bottleneck, causado pelo mecanismo one stop shop das ações por violação do RGPD[1]), assim como normas relacionadas com auditorias e supervisão das plataformas.


[1] Neste fenómeno, as Big Tech colocaram a suas sedes na Irlanda e no Luxemburgo, não só por questões de competitividade fiscal, mas também uma espécie de forum shopping regulatório, não no sentido das normas serem menos exigentes, mas devido à falta da sua efetividade, devido às entidades reguladores destes Estados não terem recursos para todas as queixas colocadas.

Campanhas publicitárias de Natal e o abuso da vulnerabilidade infantil

Doutrina

Com a aproximação das festas de fim de ano é também chegado o período das luzes alucinantes, das músicas cativantes, das cores chamativas e da exploração do lúdico infantil. Por consequência, é também chegado o momento das campanhas de Natal voltadas especificamente a estimular o consumo massivo de produtos e serviços, justamente no período em que muitas das famílias assistem em seus lares ao recebimento das tão esperadas bonificações financeiras de fim de ano.

Voltadas a atrair a atenção de todo e qualquer consumidor durante os meses de novembro e dezembro, as campanhas de promoção de vendas de Natal são difundidas de forma ainda mais assertiva e por vias cada vez mais expansivas para atingir um número maior de consumidores. Merece, entretanto, especial atenção a publicidade que, neste período, faz uso de um grande apelo psicológico voltando-se às crianças.

De repente, temos bonecas, carrinhos, computadores portáteis, roupas, sapatos, jogos e um infindável número de produtos a despontarem exponencialmente nas listas infantis para o “Papai Noel”, se revelando, curiosamente, logo a seguir a anúncios publicitários que apontam para a necessidade de compra.

Explorando o uso de ferramentas de captação da atenção por meio de estímulos auditivos e visuais, esta modalidade de publicidade explora o desenvolvimento psicológico e cognitivo das crianças, exigindo-lhes o processamento, para além de experiências sensoriais, das perceções relacionadas ao consumo. Não são apenas luzes a piscar e músicas a tocar para atrair crianças, mas também o acompanhamento do processo de formação da figura “criança-consumidora” que está envolvida neste trabalho publicitário.

De acordo com o trabalho desenvolvido por Mônica Almeida Alves, nomeadamente, Marketing infantil – um estudo sobre a influência da publicidade televisiva nas crianças, ainda em 2011, as crianças ultrapassam quatro fases no crescimento enquanto consumidoras, sendo a primeira relacionada à observação do espaço e conduta de compra normalmente realizada pelos pais. Já a fase a seguir, próxima aos 2 anos, envolve a capacidade de conexão entre publicidade por imagem e produtos expostos fisicamente no mercado. Na terceira fase, já próxima dos 4 anos, por sua vez, as crianças detêm, de forma mais clara, o conhecimento sobre a relação entre publicidade, produto e loja, passando a possuir uma lista de anseios que parte no desejo, mas só é levada a cabo com a aquisição do produto.

Por fim, já inseridas em uma quarta fase, as crianças passam a ser consumidoras, adquirindo diretamente elas próprias, ou já identificando claramente, por meio de pedidos direcionados aos pais, os produtos que poderiam vir a lhes satisfazer os anseios.

Acompanhando este processo de desenvolvimento, as agências publicitárias e empresas percebem o enorme potencial relacionado às crianças, sobretudo se visto sob uma perspetiva futura de que os “pequenos” de hoje, tornar-se-ão “grandes consumidores” dentro de alguns anos. Trata-se de uma fidelização a longo prazo voltada não somente a produtos infantis, mas à captação psicológica de potenciais consumidores.

Mais ainda, como fator agravante para este cenário, ressalta-se o fato de que para além dos meios televisivos, atualmente as crianças possuem como vício os programas emitidos também via streaming, na Internet e nas telas de seus computadores ou ainda de seus smartphones. Vale dizer, cada dia mais, as publicidades voltadas a jovens e crianças assentam-se na exploração do reconhecimento público e na definição da identidade almejada nesta fase da vida.

Ainda que a publicidade voltada aos jovens e crianças tenha elementos identificadores próprios, como o aludido uso de cores, sons e animações, não precisamos mais do que cinco minutos diante de um anúncio para perceber que algumas características comuns a toda a espécie de propaganda se repetem. Este é o caso especialmente notável do denominado “efeito priming”, que se trata de uma ação cerebral de reprocessamento de informações já contidas na memória sobre determinados produtos, marcas ou serviços e decorrente da constante repetição do estímulo publicitário em diferentes formatos e vias, provocando-nos emoções e sentimentos até mesmo nostálgicos.

Ferramentas psicológicas nesse sentido, obviamente, não reguladas em lei, são utilizadas de forma muito mais evidente nas propagandas de final de ano, justamente para estimular a fixação a longo prazo da marca ou produto. É como lembrar das músicas que nossas avós nos cantavam nas noites de Natal, mas desta vez com slogans de uma marca que nos pareçam engraçados ou ainda com o jingle de fim de ano em algum supermercado ou loja de mobiliários que, passados anos, nunca nos sairão da cabeça. E é este mesmo o propósito.

Ocorre, entretanto, que a nível legal, desde 2007, o Parlamento Europeu vem tratando de coordenar os Serviços de Comunicação Social e Audiovisual oferecidos pelos Estados-Membros, como se denota através da Directiva 2007/65/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de dezembro de 2007. Mais ainda o Código da Publicidade de Portugal, que vem a estabelecer diferentes tipos de regras relacionadas à publicidade, tem especial secção voltada às restrições ao conteúdo da publicidade com detido cuidado sobre o tema “menores”.

Através de seu Art.14º, o Código determina que a publicidade especialmente dirigida a menores deve ter sempre em conta a sua vulnerabilidade psicológica, abstendo-se de explorar suas fragilidades. Deverá ainda a propaganda abster-se de explorar a inexperiência e falta de maturidade típica do grupo destinatário. E, por fim, não poderá ainda explorar a confiança que as crianças e jovens venham a depositar em seus pais ou tutores, denotando, nomeadamente, que fica impedido o uso de ferramentas publicitárias que distorçam a confiança existente entre pais e filhos, na tentativa de persuasão em favor da aquisição de um produto ou serviço.

Indo ainda um pouco mais longe, vemos que o Art. 12°, e) do Regime das Práticas Comerciais Desleais, por sua vez, consagra como prática agressiva em qualquer circunstância “incluir em anúncio publicitário uma exortação directa às crianças no sentido de comprarem ou convencerem os pais ou outros adultos a comprar-lhes os bens ou serviços anunciados”.

Não sugerimos desligar a TV, retirar das crianças os aparelhos telefônicos, nem mesmo impedi-las de viver e associar tudo o que lhes será demonstrado e oferecido durante o processo de desenvolvimento, crescimento e sociabilização. Não! Mas para já, fica reforçada a necessidade de detida atenção na influência que a psicologia publicitária possa ter sobre os menores.

Publicidade a jogos e apostas − Rien ne va plus, les jeux sont faits

Legislação

De acordo com o relatório divulgado pelo Serviço de Regulação e Inspeção de Jogos (SRIJ), entre o primeiro trimestre de 2020 e o de 2021, verificaram-se 329,4 mil novos registos em jogos online, o que representa um aumento de 109%, sendo que 63,6% destes novos registos correspondem a jogadores com idade inferior a 35 anos.

Se o jogo online atrai, sobretudo, os mais jovens e qualificados, em matéria de jogos sociais, a preferência dos portugueses com habilitações e rendimentos mais baixos recai sobre outro jogo aparentemente inócuo − a raspadinha[1].

De resto, o estudo “Scratching the surface of a neglected threat: huge growth of Instant Lottery in Portugal”[2], lançado em 2020, revela que em Portugal se gastam mais de quatro milhões de euros por dia neste jogo, o que corresponde a um gasto médio por pessoa de 160 euros por ano, representando mais do dobro da média europeia.

Os autores do estudo em referência defendem que a raspadinha apresenta um conjunto de características que favorecem o estabelecimento de comportamento de jogo problemático ou patológico, como o preço baixo, a elevada acessibilidade e a rápida sensação de gratificação, praticamente instantânea. De resto, consideram que a publicidade, ao veicular a ideia de que neste jogo se pode ganhar muito com pouco, e a iliteracia sobre os riscos associados podem contribuir para potenciar o fenómeno.

Os dados são, por isso, preocupantes. O aumento generalizado do consumo de jogos, tendência acentuada durante a pandemia, fez disparar os riscos de prevalência de comportamentos aditivos. Neste contexto, a publicidade de jogos e apostas constitui apenas uma das frentes através das quais é possível atacar o problema, ainda que, na nossa perspetiva, deva ser acompanhada de outras medidas.

Em Espanha, no ano passado, foi publicado o Real Decreto 958/2020, de 3 de noviembre, de comunicaciones comerciales de las actividades de juego que fixa as condições para a publicidade, patrocínio, promoção ou qualquer outra forma de comunicação comercial por parte das entidades titulares de licenças para a realização de atividades de jogo incluídas no âmbito de aplicação da Ley 13/2011, de 27 de mayo, de regulación del juego, consagrando restrições bastante severas.

Com este regime, o horário permitido para divulgar anúncios de jogos na televisão, rádio e plataformas de vídeo passou a ser entre a 1h e as 5h da manhã.

De acordo com o diploma adotado na vizinha Espanha, no que concerne à publicidade nas redes sociais, os anunciantes devem segmentar o público-alvo das comunicações, de modo a que só possam ser enviadas a (i) pessoas que sigam as contas ou canais oficiais dos operadores de jogo em tais redes sociais, (ii) pessoas que tenham manifestado interesse ativo em atividades de jogo, desde que essas pessoas possam remover as preferências através de mecanismos permitidos pela rede social, e (iii) pessoas que se tenham registado num operador e façam parte da base de clientes existente.

Outras das medidas consagradas no regime que merece destaque consiste na proibição de atividades promocionais destinadas a atrair novos jogadores. Assim, as comunicações comerciais só podem ser dirigidas a clientes previamente registados nos sistemas dos operadores de jogo, isto é, que tenham uma conta aberta no operador de jogo relevante durante, pelo menos, 30 dias.

Já entre nós, a matéria da publicidade de jogos e apostas encontra-se regulada pelo art. 21.º do Código da Publicidade (CP), cuja redação é fruto da alteração operada pelo art. 3.º do Decreto-Lei n.º 66/2015, de 24 de abril, que aprova o Regime Jurídico dos Jogos e Apostas Online.

Ora, o art. 21.º-1 do CP determina que a publicidade de jogos e apostas deve ser efetuada de forma socialmente responsável, respeitando, nomeadamente, a proteção dos menores, bem como de outros grupos vulneráveis e de risco, privilegiando o aspeto lúdico da atividade dos jogos e apostas e não menosprezando os não jogadores, não apelando a aspetos que se prendam com a obtenção fácil de um ganho, não sugerindo sucesso, êxito social ou especiais aptidões por efeito do jogo, nem encorajando práticas excessivas de jogo ou aposta.

Para além desta norma genérica, o regime do art. 21.ºdo CP contempla regras vocacionadas essencialmente para a proteção dos menores, não estabelecendo, contudo, restrições quanto ao horário de emissão da publicidade a jogos e apostas.

Neste quadro, ainda em 2020, o Partido Comunista Português (PCP) apresentou o Projeto de Lei n.º 343/XIV/1.ª, com vista à introdução de restrições à publicidade nos jogos e apostas. Em concreto, propõe-se uma alteração ao art. 21.º do CP, proibindo a publicidade a jogos e apostas, em sítios e páginas na internet da responsabilidade de empresas e entidades com sede em Portugal, na televisão e na rádio e na imprensa escrita, entre as 7 horas e as 22 horas e 30 minutos.

Recentemente, já em 2021, foram apresentadas mais três iniciativas legislativas neste domínio.

Por via do Projeto de Lei n.º 919/XIV/2.ª, de 29 de julho de 2021, o Bloco de Esquerda (BE) também procura alterar o art. 21.º do CP, no sentido de proibir tout court a publicidade a lotarias instantâneas (raspadinhas) e, bem assim, proibir a publicidade a jogos e apostas, entre as 7 horas e as 22 horas e 30 minutos, independentemente do suporte utilizado para a sua difusão.

Nessa sede, propõe-se, ainda, que as comunicações comerciais e a publicidade de quaisquer eventos em que participem menores, designadamente atividades desportivas, culturais, recreativas ou outras, não possam exibir ou fazer qualquer menção, implícita ou explícita, a marca ou marcas de raspadinhas.

O Projeto de Lei n.º 951/XIV/3.ª, da autoria da Deputada não inscrita Cristina Rodrigues, apresentado a 24 de setembro de 2021, visa incluir uma advertência nos boletins dos jogos sociais quanto ao facto de serem passíveis de criar dependência, à semelhança do que já acontece com as embalagens de tabaco.

Em termos próximos aos da iniciativa do BE, também aqui se propõe que apenas seja possível publicitar este tipo de jogos depois das 22h30 minutos e até às 7 horas, assim como a revogação da norma do art. 21.º-7 do CP que exclui os jogos sociais do Estado da proibição de se fazer publicidade de jogos e apostas a menos de 250 metros em linha reta de escolas ou outras infraestruturas destinadas à frequência de menores.

Na mesma senda, através do Projeto de Lei  n.º 952/XIV/3.ª, de 24 de setembro de 2021, o Partido Pessoas-Animais-Natureza (PAN) também propõe, tal como hoje já sucede com as bebidas alcoólicas, a restrição de publicidade a jogos e apostas, na televisão e na rádio, entre as 7 horas e as 22 horas e 30 minutos.

Conforme resulta deste último projeto, as entidades promotoras de jogos e apostas devem passar a ter de disponibilizar um mecanismo que permita a autoexclusão dos respetivos destinatários ou potenciais destinatários, medida atinente a reforçar os direitos e a proteção das pessoas mais vulneráveis a comportamentos aditivos.

O PAN pretende, ainda, que a publicidade passe a ser obrigatoriamente acompanhada de uma advertência para os riscos do uso excessivo do jogo e das apostas, sob a forma de mensagem informativa, e que se clarifique que as limitações legais de publicidade aos jogos e apostas, que atualmente estão consagradas no CP, se aplicam também às raspadinhas.

Ainda que com algumas diferenças entre si, as quatro iniciativas legislativas apresentadas assentam na restrição do horário de emissão de publicidade de jogos, com o fito de contrariar o incremento da sua procura e mitigar os seus efeitos sociais adversos.

A este propósito, cumpre ressalvar que a solução já consta do Manual de Boas Práticas à Publicidade de Jogos e Apostas, aprovado pela Comissão de Jogos, na reunião de 24 de abril de 2020, pese embora seja um instrumento de soft law[3].

Durante a discussão conjunta na generalidade, a 2 de outubro de 2021, o Partido Socialista (PS) defendeu que são necessários “mais estudos sérios e aprofundados, que permitam fazer um diagnóstico exaustivo dos padrões de jogo e de apostas”, sendo que podem “fazer sentido outras alterações ao código da publicidade de âmbito muito mais alargado”. Nessa ocasião, também o Partido Social Democrata (PSD) apelou a que se faça “uma intervenção mais vasta na prevenção e uma aposta de reforço de meios na saúde mental”, considerando que os problemas relativos à adição a jogos e apostas “vão muito além da alteração do código da publicidade”.

Entretanto, as quatro iniciativas legislativas baixaram à Comissão de Economia, Inovação, Obras Públicas e Habitação, para discussão sem votação, por 60 dias, na sequência dos requerimentos apresentados pelos seus autores.

Em face da decisão do Senhor Presidente da República de dissolução da Assembleia da República e de marcação de eleições legislativas antecipadas para 30 de janeiro de 2022, parece que teremos de aguardar eventuais avanços, neste plano, porventura, na próxima legislatura. Por ora, em linguagem de croupier: rien ne va plus, les jeux sont faits.


[1] A raspadinha corresponde à lotaria instantânea, introduzida pelo Decreto-Lei n.º 314/94, de 23 de dezembro, que autorizou a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) a organizar e explorar, de modo exclusivo, este jogo, cujo Regulamento consta da Portaria n.º 552/2001, de 31 de maio.

[2] Daniela Vilaverde e Pedro Morgado, “Scratching the surface of a neglected threat: huge growth of Instant Lottery in Portugal”, in The Lancet, Volume 7, n.º 3, 2020.

[3] Cfr. Ponto 9 das Recomendações: “Na televisão e na rádio as comunicações comerciais e a publicidade a que se refere o presente artigo não deve ter lugar entre as 7 horas e as 22 horas e 30 minutos (…)”

O Conceito de Pagamento na Diretiva das Práticas Comerciais Desleais – Acórdão C-371/20 TJUE

Jurisprudência

O Tribunal de Justiça da União Europeia (doravante Tribunal ou TJUE) pronunciou-se recentemente sobre o processo C-371/20, um reenvio prejudicial sobre a interpretação do conceito de pagamento no ponto 11[1] do Anexo I da Diretiva 2005/29/CE de 11 de Maio de 2005, conhecida como a Diretiva das Práticas Comerciais Desleais.

O tema da extensão do conceito de contraprestação nos contratos de consumo para incluir outras contrapartidas que não sejam pecuniárias tem sido particularmente debatido e trabalhado no Direito do Consumo Europeu, em especial quanto à questão do tratamento de dados pessoais[2].

A jurisprudência sobre este tema ainda é escassa (neste blog já foi analisado um caso italiano). No processo C-371/20, a alegada contraprestação não foi o tratamento de dados pessoais de consumidores, mas o envio e permissão de utilização de conteúdos protegidos por direitos de propriedade intelectual a título gratuito.

Neste caso alemão, o Tribunal, seguindo de perto a opinião do Advogado-Geral Maciej Szpunar (AG), expandiu a sua interpretação do conceito de financiamento/pagamento, no contexto de uma prática comercial de inserção de promoções em conteúdos editoriais.

Segundo o TJUE, este conceito deve ser interpretado como abarcando qualquer contrapartida económica com valor patrimonial, independentemente da forma que esta assuma. No caso sub judice, a permissão de utilização de imagens protegidas por direitos de propriedade intelectual de forma gratuita constitui uma contrapartida com valor económico e, portanto, um pagamento pelas promoções.

Enquadramento Factual

Peek & Cloppenburg, uma sociedade comercial que se dedica à atividade de venda a retalho de vestuário, e a GRAZIA, uma revista de moda, realizaram uma parceira em 2011, para a organização de um evento, uma “noite de compras exclusivas” denominada “GRAZIA StyleNight by Peek&Cloppenburg”.

A revista GRAZIA publicou um artigo de dupla página sobre este evento, enquanto parte do conteúdo editorial da própria revista, sem identificação de este ter sido pago, isto é, do seu caráter publicitário. O artigo continha diversas imagens das lojas e produtos da “Peek & Cloppenburg”, que foram fornecidas por esta, com a autorização da sua utilização neste âmbito.

P&C Hambourg, uma sociedade concorrente de Peek&Cloppenburg, alegou que este incidente constitui uma prática comercial contrária à lei alemã que transpôs a Diretiva das Práticas Comerciais Desleais (UWG), ao constituir publicidade dissimulada paga nos conteúdos editorais da revista.

Ratio Decidendi

Uma das principais dificuldades do Bundesgerichtshof (Supremo Tribunal Federal Alemão) deveu-se à própria interpretação do elemento literal da norma de transposição e da Diretiva[3].

Na versão em alemão da Diretiva, o termo “bezahlt” é geralmente associado ao pagamento de somas monetárias, de forma semelhante à versão inglesa, que utiliza “paid for” ea versão espanhola “pagando”. No entanto, algumas das restantes versões linguísticas do diploma utilizam expressões de carácter mais neutral, quanto à natureza da contrapartida, nomeadamente as versões francesa “financer” e italiana “i costi di tale promozione siano stati sostenuti”.

Em português, a expressão utilizada na Diretiva é “tendo sido o próprio profissional a financiar essa promoção”. Embora semelhante à versão francesa, esta linguagem também poderia suscitar algumas dúvidas aos juristas portugueses.

Devido a estas discrepâncias no elemento literal, o TJUE (para. 36 e 37) e o AG (para. 46 e seguintes) avançaram para o elemento sistemático e teleológico, considerando assim o contexto e os objetivos prosseguidos pela Diretiva.

Dado que:

1. o objetivo principal deste diploma é garantir um elevado nível de proteção dos consumidores na União Europeia contra práticas comercias desleais;

2. as práticas enumeradas no Anexo I são sempre consideradas desleais independentemente das circunstâncias;

3. o objetivo da norma em assegurar a transparência na publicidade de produtos e serviços no domínio da imprensa escrita e outros meios de comunicaç3ão social;

4. restringir o conceito de pagamento apenas à transmissão de quantias pecuniárias não corresponderia à prática jornalística e publicitária e retiraria o efeito útil desta disposição;

5. vários estudos realizados pelo Parlamento Europeu sobre práticas de publicidade dissimulada e enganosa na Internet, nas redes sociais, fóruns, blogues, publicações de influencers, concluíram que estas são financiadas direta ou indiretamente por operadores económicos, devendo aplicar-se esta Diretiva;

6. restringir o conceito de pagamento teria inevitavelmente um efeito prejudicial na confiança dos consumidores, na neutralidade da imprensa e nas regras da concorrência.

O Tribunal concluiu que o conceito de pagamento deve aplicar-se sempre que o profissional conceder qualquer contrapartida económica, independentemente da sua forma e valor, seja em quantias monetárias, bens, serviços ou qualquer outra vantagem patrimonial pela realização da ação publicitária.

A disposição, a título gratuito, a favor da revista GRAZIA, de imagens protegidas por direitos de propriedade intelectual pode ser considerada pelo Bundesgerichtshof como um financiamento direto da publicação.

As conclusões deste acórdão têm implicações bastante interessantes para o Direito do Consumo Europeu.

Em primeiro lugar, revela a importância de considerar as diferentes versões linguísticas dos diplomas europeus, os problemas que podem surgir e o valor dos restantes elementos interpretativos, nomeadamente o sistemático e teleológico.

Em segundo, embora o caso em apreço apenas incida nos conteúdos editoriais, tanto o Tribunal e o Advogado-Geral demonstraram abertura à aplicação desta Diretiva às novas realidades do marketing digital, onde a publicidade oculta é endémica, especialmente quanto às práticas de muitos influencers, frequentemente direcionadas a menores.

Por fim, a expansão do conceito de pagamento a diferentes tipos de contraprestações económicas com valor patrimonial poderá ser um indicador de que este raciocínio também poderá ser considerado (e aplicado) pelo Tribunal noutras diretivas de Direito do Consumo Europeu.


[1] “11. Utilizar um conteúdo editado nos meios de comunicação social para promover um produto, tendo sido o próprio profissional a financiar essa promoção, sem que tal seja indicado claramente no conteúdo ou através de imagens ou sons que o consumidor possa identificar claramente (publi-reportagem). Esta disposição não prejudica a Directiva 89/552/CEE”

[2] A Diretiva (UE) 2019/770, dos contratos de fornecimento de conteúdos e serviços digitais (DCD) e a Diretiva (UE) 2019/2161, da Modernização do Direito do Consumo (MD) na sua alteração à Diretiva 2011/83/UE, já incluem o tratamento de dados pessoais fornecidos pelos consumidores (desde que não seja realizado para o cumprimento de requisitos legais ou no cumprimento das obrigações contratuais) no seu âmbito objetivo.

[3] Na jurisprudência do TJUE, nomeadamente o Acórdão C-512/12 4finance, a necessidade de aplicação uniforme dos atos legislativos da UE implica que estes diplomas não podem ser interpretados considerando apenas uma versão linguística isoladamente. É assim necessário considerar as várias versões linguísticas em conjunto na interpretação literal. Após este exercício é que se deve avançar para a interpretação sistemática e teleológica da norma (Acórdão C-281/12 Trento Sviluppo e Centrale Adriatica).

As chamadas telefónicas com os prefixos 760 e 761 nos concursos publicitários de programas televisivos

Doutrina

Em post anterior, dedicado a uma primeira análise crítica do recém-adotado Decreto-Lei n.º 59/2021, relevou-se positivamente o estabelecimento de um “regime autónomo e mais robusto, que visa garantir, finalmente, uma aplicação prática efetiva” da obrigação de que as linhas telefónicas disponibilizadas pelos profissionais sejam gratuitas ou correspondam a uma gama de numeração geográfica ou móvel (com os prefixos “2” ou “9”), para contacto do consumidor, no âmbito de uma relação jurídica de consumo.

Sem prejuízo, a questão da necessidade de regulação do preço das chamadas telefónicas, encarada como medida de tutela da posição dos consumidores, também se coloca com particular acuidade no que tange às chamadas por aqueles realizadas para inscrição (e eventual seleção e participação) em concursos publicitários de programas televisivos que recorrem à utilização de números de telefone com custos acrescidos, como sejam as linhas telefónicas das gamas 760 e 761 do Plano Nacional de Numeração da ANACOM, as quais identificam serviços de tarifa única em que o preço máximo por chamada é de, respetivamente, € 0,60 (mais IVA) e € 1,00 (mais IVA).

Neste domínio, como explanaremos de seguida, por força de práticas comerciais desleais (enganosas e agressivas), consumidores particularmente vulneráveis em razão da idade (igual ou superior a 65 anos) ou de situação de carência económica vêm a adotar reiteradas decisões de transação (no caso, decisões de participação em concursos publicitários mediante realização de várias chamadas telefónicas) que os levam ao depauperamento das finanças pessoais e, até, à colocação em situação (de risco) de sobre-endividamento.

A comunicação comercial a concurso publicitário difundida por um operador de televisão enquadra-se no âmbito da figura da autopromoção, prevista no art. 2.º-1-c) da Lei n.º 27/2007, de 30 de julho, na medida em que constitui a promoção de um serviço oferecido pelo próprio operador, integrado em programa de entretenimento pelo mesmo emitido, com vista à atribuição de prémios aos telespectadores, mediante a realização, por este, de chamadas telefónicas pagas, sendo que a receita das chamadas reverte, em parte, para o titular do serviço de programas televisivo.

Neste encalço, por estar em causa a divulgação de serviços próprios do operador televisivo, que atua no âmbito da sua atividade comercial (portanto, um profissional), dirigida a pessoas singulares que, embora com um interesse económico subjacente, intervêm na prática comercial do profissional, mediante o pagamento de um preço (custo fixo da chamada telefónica), com fins que não se incluem no âmbito da sua atividade comercial, industrial, artesanal ou profissional (isto é, consumidores), deve concluir-se que a promoção dos referidos concursos publicitários, inseridos em programas de TV, está subordinada à disciplina normativa do Decreto-Lei n.º 57/2008[1].

Isto posto, conquanto se reconheça que os concursos em causa geram uma receita significativa para a salvaguarda do equilíbrio financeiro das estações televisivas que as promovem, não pode deixar-se de acompanhar o entendimento do Serviço de Regulação e Inspeção de Jogos, organicamente integrado no Instituto do Turismo de Portugal, I.P., quando preconiza que, atendendo à regularidade dos concursos, aos montantes neles envolvidos e à “forte promoção e [a]o insistente e persistente apelo à participação dos telespectadores”, poder-se-á “justificar um eventual recurso à possibilidade conferida pelo n.º 3 do artigo 159.º do Decreto-Lei n.º 422/89, de 2 de dezembro, com a adoção de medidas convenientes à proteção dos consumidores e de medidas restritivas da exploração de concursos com as características mencionadas por parte dos canais de televisão”[2].

Na verdade, como resulta patente a partir do simples visionamento de qualquer dos programas de entretenimento de day-time dos operadores televisivos generalistas (em dias úteis e, em particular, ao fim-de-semana) e foi declarado, de forma assertiva e categórica, nas Deliberações 32/2016 (OUT-TV), 33/2016 (OUT-TV) e 34/2016 (OUT-TV) da Entidade Reguladora para a Comunicação Social, as promoções de concursos publicitários no decurso de tais programas consubstanciam práticas comerciais desleais porque: a) por um lado, são suscetíveis de induzirem em erro o telespectador sobre as características do concurso, levando-o a adotar uma decisão de transação (no caso, decisão de participar no concurso e os termos da sua participação) que, de outro modo, não tomaria, caso conhecesse, cabalmente, as reais características daquele; b) e, por outro lado, exercem uma influência indevida sobre o telespectador – acentuada pelo facto de o público-alvo destes programas ser composto, maioritariamente, por pessoas com idade ou superior a 65 anos ou que enfrentam algum infortúnio na sua vida pessoal e/ou profissional ou dos membros do seu agregado familiar –, sendo aptas a limitar de forma significativa a capacidade de decisão do mesmo, conduzindo-o a tomar decisão de transação que, não fosse a pressão psicológica exercida pelos apelos verbais dos apresentadores e pelas mensagens gráficas persistentes, não adotariam.

Quanto à asserção produzida em a), que reúne os pressupostos de que depende a prática de uma ação enganosa, nos termos do disposto nos arts. 6.º-b) e 7.º-1-b) do Decreto-Lei n.º 57/2008, ainda que, após a celebração do “Acordo de Autorregulação em Matéria de Concursos com Participação Telefónica” entre os operadores RTP, SIC e TVI se tenha começado a verificar que os apelos verbais dos apresentadores e as mensagens gráficas apresentadas no decurso dos programas contemplam referência à real natureza do prémio (cartão de débito VISA Electron pré-carregado e não dinheiro), constata-se que, não raras vezes, a promoção não é clara relativamente às pessoas que se podem habilitar ao prémio (apenas os maiores de 18 anos) nem às concretas utilizações que lhe podem ser conferidas (o cartão apenas pode ser utilizado para efetuar pagamentos de compras através de terminais da rede VISA, não sendo possível a sua transferência para outras contas, nem o seu levantamento em numerário).

Ademais, é criada a convicção no telespectador de que pode efetuar um número ilimitado de chamadas para se habilitar a ganhar o prémio em jogo (recorrendo ao adágio orelhudo “quantas mais vezes ligar, mais hipótese tem de ganhar”), o que não corresponde à verdade, pois cada participante apenas pode efetuar até 10 ou 6 chamadas diárias por concurso e por número de telefone de origem (consoante o número de destino pertença à gama de numeração 760 ou 761, limitação automática que, contudo (ressalvam os regulamentos destes concursos[3]), por razões técnicas, o sistema informático pode não lograr operar, caso em que a chamada seguinte será considerada uma inscrição válida e será cobrada a tarifa única, sem que, pasme-se, possa ser exigida dos promotores qualquer indemnização ou compensação). E, bem assim, é prometido o imediato envio do cartão de débito para a casa do vencedor do concurso, o que também, de facto, pode não suceder, visto que, de acordo com os regulamentos destes concursos, a entrega do prémio poderá ter lugar até 90 dias a contar da data da realização do sorteio que apura o candidato contemplado.

Acresce, ainda, o facto de ser omitida qualquer referência à existência de um intervalo temporal contado desde a data de emissão do cartão para a utilização do saldo nele creditado, sob pena de caducidade do direito à utilização do saldo remanescente (se o houver).

E não se diga que o conhecimento de algumas das características dos concursos acima destacadas resulta assegurada pela mera remissão para o regulamento aplicável. Não obstante se terem operado progressos louváveis, ao nível da informação gráfica exibida em cada período de apelo (feito pelos apresentadores), após a conclusão do “Acordo de Autorregulação” acima referido[4], entendo que subsiste uma desproporção manifesta entre o destaque conferido ao número de telefone a ligar e ao valor do prémio em jogo e as demais características relevantes do concurso, a qual não é, de todo em todo, mitigada pela disponibilização do regulamento do concurso em sítio da internet ou em página do teletexto, plataformas cujo acesso e consulta requerem capacidades que os targets dominantes dos programas de entretenimento de day-time, em muitos casos, não dispõem.

Uma derradeira consideração acerca da asserção produzida em a) para notar que, ao contrário do que estabelece o “Acordo de Autorregulação”, os operadores de televisão recorrem a suportes gráficos de comunicação com função primordialmente apelativa à participação nos concursos, como é o caso da colocação de relógio em countdown no canto superior direito do ecrã, mormente na parte final dos programas.

Já no que respeita à afirmação sob alínea b) acima, que congrega os requisitos necessários à configuração de uma prática comercial agressiva, nos termos dos arts. 6.º-b) e 11.º-1 e 2-a) do Decreto-Lei n.º 57/2008, reveste meridiana clareza que, em todos os programas de entretenimento de day-time se pratica um apelo insistente, com recurso a uma linguagem persuasiva (empregue por apresentadores que gozam de elevada notoriedade e, mesmo, credibilidade junto dos telespectadores), à inscrição nos concursos publicitários, sugerindo-se facilidade na realização da chamada (“é o preço de um café”) e na obtenção do prémio, incitando-se à realização de mais do que uma chamada e alimentando-se a expectativa de o consumidor conseguir, por aquela via, fazer face a todos os seus compromissos financeiros e realizar os seus sonhos de vida. Seja em espaços exclusivamente dedicados ao efeito, seja no decurso de espaços de entrevistas a convidados ou de momentos musicais, os apelos verbais surgem acompanhados por elementos gráficos, que estimulam, igualmente, à realização de chamadas, os quais permanecem no ecrã desde alguns segundos até vários minutos.

Neste particular, creio que a norma autorreguladora gizada pelos operadores de televisão não satisfaz, minimamente, as exigências de proteção dos consumidores vulneráveis, ao prever que “apenas serão permitidos, no máximo, 5 (cinco) períodos de apelo pelos apresentadores, com a duração total máxima de 12 minutos, por hora de programa” (art. 10.º). A quantificação do tempo de duração máxima dos períodos de apelo revela-se manifestamente excessiva, tanto mais porque é utilizada, até ao limite estipulado, no final dos programas de entretenimento, coincidentes com períodos de confeção e toma de refeições (almoço ou jantar) ou de regresso a casa de trabalhadores (após jornada de trabalho) e imediatamente anteriores a espaços de informação, logo, previsivelmente, de maior audiência. No limite, como alerta a Entidade Reguladora para a Comunicação Social, com a promoção persistente dos concursos nos programas de day-time, corre-se o risco de se desvirtuar a “linha editorial subjacente a um programa de entretenimento, comprometendo-se, deste modo, a identidade e integridade do mesmo”, a ponto de se inverter “toda a lógica do programa (…) anunciado, (…) transformando-o num conteúdo essencialmente promocional, onde o entretenimento e as variedades tendencialmente se convertem em mero pretexto para captar a atenção do espectador para a verdadeira mensagem que se quer passar: a da promoção do concurso e da persuasão à realização do maior número de chamadas telefónicas”, em contravenção com o disposto no art. 9.º-1-a) da Lei n.º 27/2007.

Por todo o exposto, merece o nosso aplauso a decisão de criação de um Grupo de Trabalho para a Revisão do Regime dos Concursos e Passatempos, vertida no Despacho n.º 1620/2021 do Secretário de Estado do Comércio, Serviços e Defesa do Consumidor – cujas conclusões ainda não são conhecidas (embora já devessem ter sido apresentadas até ao dia 15 de abril de 2021) –, consequente à Recomendação n.º 7/B/2020 da Senhora Provedora de Justiça, na qual, a par da necessidade de reforço da proteção dos consumidores mais vulneráveis, também se suscitam sérias dúvidas quanto à conformidade dos regulamentos dos concursos com o Decreto-Lei n.º 422/89, mormente os seus arts. 159.º e ss., por estar em causa uma modalidade afim dos jogos de fortuna ou azar. Muito sucintamente, conclui-se naquela Recomendação que o uso de números de tarifa especial majorada, como sejam os números com prefixo 760 e 761, viola o disposto no art. 161.º-2 do Decreto-Lei n.º 422/89, que proíbe dispêndio para o jogador que não seja o do custo normal de serviço público de telecomunicações (cfr. arts. 3.º-jj) e 86.º e ss. da Lei n.º 5/2004), assim como se sustenta que a utilização de cartões de débito como prémio colide com o preceito do art. 159.º-1-in fine, isto porque, como já referido pelo Serviço de Regulação e Inspeção de Jogos, “um cartão de débito não constitui uma coisa «com valor económico», mas um verdadeiro prémio em dinheiro, uma vez que o cartão de débito constitui uma forma de pagamento eletrónico que permite a dedução do valor de uma compra diretamente no cartão do titular e por representar um título indicativo de uma quantia monetária suscetível de ser movimentada a qualquer momento”.


[1] Neste sentido, o Considerando (82) da Diretiva 2010/13/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 10 de março de 2010, relativa à coordenação de certas disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados-Membros respeitantes à oferta de serviços de comunicação social audiovisual (Diretiva «Serviços de Comunicação Social Audiovisual»), que reza nos seguintes termos: “Para além das práticas reguladas pela presente diretiva, as práticas comerciais desleais, como as práticas enganosas e agressivas, que se verifiquem nos serviços de comunicação social audiovisual são reguladas pela Diretiva 2005/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, relativa às práticas comerciais desleais das empresas face aos consumidores no mercado interno”, que foi transposta para a ordem jurídica nacional por via do Decreto-Lei n.º 57/2008.

[2] Pronúncia reproduzida na Deliberação 99/2015 (OUT-TV) do Conselho Regulador da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (Concursos publicitários de participação telefónica nos serviços de programas televisivos generalistas RTP1, SIC e TVI)

[3] Ver, a título exemplificativo, os regulamentos dos concursos “Casa Feliz 2021 – 2.ª Edição” e “Camião da Sorte 2021”, promovidos pela SIC, e “Dois às 10 2021 – 2.ª Série” e “Somos Portugal – Junho/Julho 2021”, promovidos pela TVI.

[4] Previstos no art. 11.º do “Acordo de Autorregulação”, onde se prevê: a emissão de texto em oráculo – “O concurso publicitário x/x foi autorizado pela SGMAI. Prémio em [menção do prémio em espécie], não convertível em dinheiro. Antes de participar, consulte o regulamento em [sítio da internet] e no teletexto. Cada chamada tem o custo de € x + IVA. Idade mínima de participação: 18 anos. Limite máximo diário de x chamadas neste concurso, por número de telefone de origem. Participe no concurso de forma informada e responsável” –, o qual deve obrigatoriamente obedecer a um tamanho e um tipo de letra que torne possível a sua leitura pela generalidade dos espectadores, devendo a altura dos caracteres corresponder, no mínimo, a um terço da altura dos caracteres utilizados no oráculo para a divulgação do número de telefone usado para inscrição nos concursos; caso o oráculo seja divulgado em movimento (vulgo, ticker), deve o mesmo deslocar-se a uma velocidade que permita a sua leitura pela generalidade dos espectadores; deve ser divulgado, pelo menos 4 vezes por hora de programa, o sítio da internet e/ou a página de teletexto onde se encontra disponível o regulamento relativo ao concurso (observando-se, para tanto, as exigências formais de tamanho e tipo de letra e velocidade do oráculo anteriormente referidas); sempre que seja utilizado um grafismo para comunicação dos concursos, deve ser mencionada regularmente informação sobre a existência de regulamento aplicável ao concurso e a forma de acesso ao mesmo, bem como informação sobre valor e natureza do prémio (“em cartão”), sendo aplicáveis a tais grafismos os já referidos requisitos quanto ao tamanho e tipo de letra.

Do #NOFILTER ao #FILTERDROP: o esforço legislativo no combate à distorção digital da beleza

Doutrina

Tem circulado pela internet nos últimos dias a notícia de que fora sancionada no último dia 11, através do Decreto Legislativo 146 (2020-2021), a emenda à Lei de Marketing norueguesa, que “visa ajudar a reduzir a pressão corporal na sociedade devido às pessoas idealizadas na publicidade[1]. Após uma esmagadora votação de 72 votos a favor e 15 contra, a alteração legislativa passa a obrigar os influenciadores digitais a identificar as fotografias que tenham sido retocadas. As redes sociais visadas pela medida vão desde o Instagram, passando pelo Facebook, TikTok, Twitter e Snapchat.

Não é de hoje que o NOVA Consumer Lab tem trabalhado sobre a influência das redes sociais e das tecnologias sobre o comportamento social. Mais do que nunca, as redes sociais deixaram de ser meros instrumentos de compartilhamento de rotina e vida pessoal, com fotos de família, crianças e animais para ceder espaço ao lucro e à comercialização de produtos e serviços. Hoje, a regra é clara: curvas incríveis, padrões inigualáveis e um quase “conto de fadas da beleza”.

Por trás da perfeição dos corpos e lifestyle presentes nas mídias sociais, sob a égide da despretensiosa naturalidade, estão, entretanto, os patrocínios, parcerias, publicidades e, sobretudo, os inúmeros retoques às fotos e vídeos publicados por aqueles que ditam, para além de tendências, o novo ideal de vida e beleza.  Naomi Wolf, autora feminista e ativista dos direitos civis nos EUA, já em 1992 apontava o fato de o mito da beleza estar sempre prescrevendo comportamentos, não aparência[2]. Cada vez mais incomodados com os resultados sociais advindos dessa dita pressão estética, reguladores e legisladores pelo mundo estão a reagir à propaganda da perfeição aparente. Em fevereiro deste ano, logo após uma campanha que circulava dentro das próprias redes sociais (#filterdrop), a Advertising Standards Authority (ASA) – agência reguladora de propagandas do Reino Unido, aprovou uma legislação muito semelhante à norueguesa, e passou a determinar que os influenciadores digitais do país não fizessem mais uso de filtros “enganosos” em campanhas com produtos de beleza nas mídias.

Na França, desde 2017, vigora a determinação de obrigatoriedade da mensagem “photografie retouchée” para fotos que tenham sofrido qualquer tipo de alteração por programas digitais, demonstrando o esforço por tornar a mídia mais responsável em termos de publicidade.

Já na Noruega, a regra visa proibir que os influenciadores compartilhem imagens sem a devida sinalização de retoque e uso de filtros de beleza, os quais foram projetados para melhorar a aparência, incluídos como recursos comuns aos aplicativos de redes sociais atuais. Proposta pelo Ministério da Infância e da Família, a lei integra os esforços públicos de contenção da distorção de imagem no país, devendo ser seguida por todos influenciadores e celebridades que recebam pagamento para criação de anúncios nas redes com uso de técnicas de pré e pós-produção de imagem. O não cumprimento da lei pode implicar não somente em sanções pecuniárias, como também pena de prisão.

Acerca da construção de um ideal de beleza física e da influência das redes sociais sobre o bem-estar, uma pesquisa recente realizada pela Dove, e conduzida pela Edelman Data & Intelligence, com mulheres dos EUA, Reino Unido e Brasil, aponta que 84% das jovens com 13 anos já aplicaram filtro ou realizaram algum tipo de edição em suas fotos. Os dados divulgados pela pesquisa ainda tratam do fato de que mais da metade das mulheres se compara com as fotos publicadas na internet, além de temer publicar fotos de seu corpo em virtude dos padrões atualmente estabelecidos.

Em Portugal, a pesquisa aponta que 2 em cada 3 raparigas tentem mudar ou esconder pelo menos uma parte do corpo antes de publicarem uma fotografia sua, tal como a cara, o cabelo, a pele, a barriga ou o nariz, para removerem “imperfeições” e corresponderem a padrões de beleza irrealistas”.

As técnicas de produção que aprimoram ou alteram uma imagem com fins comerciais não são novidade no mundo da publicidade e exige atenção dos consumidores que, em razão dos retoques realizados, possam vir a ser enganados pelas alegações visuais exageradas ou, até mesmo, impossíveis de atingir. Em Portugal, o tema ainda não tem nenhum tipo de tratamento especial, embora vigore o Código da Publicidade e a Constituição da República Portuguesa estabeleça, no art. 60º, a proibição à publicidade considerada oculta, o que, em nossa visão, pode estar pressuposta em posts relacionados a produtos e serviços de estética, alimentação ou emagrecimento, por exemplo.

No mesmo sentido, a Entidade Reguladora da Saúde, em 2015, após a aprovação do Decreto-Lei n.º 238/20, tornou-se a entidade competente para a fiscalização em matéria de publicidade em saúde. A normativa é mais uma a prescrever a obrigatoriedade de clareza na publicidade, em seu art. 7.º, ainda que não trate especificamente da abordagem relacionada às redes sociais. 

Fato é que padrões de beleza sempre existiram e as características ideais variam ao longo da história. A despeito do esforço legislativo em favor do combate à distorção digital de corpos e da construção de padrões inatingíveis de beleza física, normalmente ocultos sob retoques e adaptações de imagem, é preciso notar que nem sempre o Direito terá as soluções para problemas cujas raízes são de cunho muito mais social, e psíquico, do que legal. Atualmente, até mesmo a mercantilização do movimento “body positive” pode impedir uma autêntica solução da questão que, historicamente, remonta ao uso de espartilhos, pílulas de arsênicos, maquiagens com chumbo e dietas absurdamente restritivas.

Ainda que os instrumentos regulamentares sejam necessários e possamos enxergá-los como meios hábeis a reduzir a pressão sobre a imagem física, é preciso compreender o espectro limitado dessas atuações e recordar que a idealização da beleza é muito mais profunda e complexa do que a utilização de filtros. Não podemos, não queremos e nem devemos nos reduzir a somente legislar o tema, quando é preciso discutir seriamente questões como representação, sexualização e objetificação do corpo como instrumento comercial, atentos ao fato de que redes sociais são mais do que redes de socialização, mas grandes empresas voltadas, sobretudo, ao lucro.


[1] Tradução da Decisão resumida da emenda legislativa à Lei de Marketing, 2009, da Noruega.

[2] WOOLF, N. O Mito da Beleza. Como as Imagens de Beleza são usadas contra as Mulheres. Tradução de Waldéa Barcellos. Rio de Janeiro. Ed. Rocco, 1992


Laranjas do Algarve e a relevância contratual da publicidade

Consumo em Ação

Por André Neves, Beatriz Pereira e Luís Cruz

Hipótese: Xavier viu um anúncio na televisão com a seguinte mensagem: “Laranjas do Algarve a € 0,70 o quilo. Só esta semana, no sítio de que mais gosta”. Entusiasmado, Xavier dirigiu-se ao supermercado, mas foi informado de que as laranjas do Algarve estavam agora a € 1,20 o quilo. O que pode Xavier fazer?

Resolução: O primeiro passo a dar na resolução de uma hipótese como esta é analisar se o anúncio constitui uma proposta contratual. Ora, não se levantam problemas a esse nível, na medida em que estamos perante uma declaração completa, precisa, firme e formalmente adequada[1]. Mais concretamente, uma vez que se trata de uma proposta que não tem destinatário ou destinatários determinados, podemos qualificá-la como sendo uma proposta ao público[2].

Esta modalidade de proposta contratual “coloca o [seu] emitente […] em situação de sujeição […], concedendo a cada um dos destinatários indeterminados o direito potestativo de concluir o contrato”[3] . Significa isto que, caso consideremos que a proposta não foi válida e eficazmente revogada pelo supermercado, está nas mãos de Xavier celebrar ou não o contrato por 0,70 euros o quilo.

Assim sendo, importa referir que a proposta ao público é eficazmente revogável quando é feita na forma da oferta ou em forma equivalente (art. 230.º-3 do Código Civil – CC), ainda que seja durante o período de duração da proposta fixado pelo proponente (art. 228.º-2)[4]. A questão é complexa, e partindo do pressuposto de que a eventual revogação da proposta opera por via de um anúncio similar àquele em que foi emitida (que passou na televisão durante o período entre o qual Xavier viu o primeiro anúncio e chegou ao supermercado), à primeira vista poderíamos ser levados a crer que houve efetivamente uma revogação da primeira proposta e uma nova proposta já com o preço de 1,20 euros o quilo. Contudo, entendemos que essa não é a melhor interpretação para esta situação em concreto.

Há um elemento de atração fundamental na publicidade, na medida em que o grande objetivo da empresa, quando emite um anúncio na televisão, é promover a aquisição ou estimular a procura[5], fazendo com que os consumidores se dirijam ao supermercado. Assim sendo, se Xavier se dirige ao supermercado depois de ter visto o anúncio, e porque viu o anúncio, parece-nos que não podemos considerar que neste caso tenha havido uma revogação da proposta contratual em relação a ele. Aliás, impedir esta revogação parece-nos uma forma adequada de “responsabilizar os lojistas” quanto à forma como indicam os preços.

O anúncio diz expressamente que as laranjas estão a 0,70 euros o quilo durante aquela semana. Xavier dirige-se ao supermercado para as comprar e só quando lá chega é que é informado que, entretanto, o preço aumentou. Numa interpretação do art. 230.º-3 do CC à luz dos princípios fundamentais orientadores do ordenamento jurídico, nomeadamente à luz da boa-fé (art. 9.º-1 da Lei de Defesa do Consumidor), parece-nos que é necessário “dar um tempo”, isto é, parece-nos que os consumidores que estejam a deslocar-se para a loja em virtude de terem visto o anúncio não podem ser abrangidos pela revogação operada por meio do segundo anúncio (que nem sequer temos a certeza se existiu).

Tendo em conta a razão de ser do art. 230.º-3, entendemos que só um anúncio que, em circunstâncias normais, permitisse a Xavier ter a perceção de que o preço havia aumentado antes de se ter deslocado ao supermercado, é que poderia configurar uma revogação da proposta “feita na forma da oferta ou em forma equivalente” em relação a si.

Se porventura não tiver existido nenhum anúncio posterior ao que configurou a proposta, ainda mais fortalecida se torna a nossa posição de que não há qualquer revogação que abranja Xavier. Pela teleologia dos argumentos já expostos, que a este caso também se aplica, a tentativa de revogação da proposta que havia sido operada por meio de um anúncio, tentativa essa feita já no supermercado, não pode abranger quem se dirige ao mesmo precisamente para comprar o produto anunciado e por conta de ter visto o tal anúncio. Não havendo qualquer revogação que abranja Xavier, este tem o direito potestativo de concluir o contrato por 0,70 euros o quilo, sendo que a sua aceitação dar-se-á no momento em que apresentar as laranjas na caixa, pois será nesse momento que manifestará de forma inequívoca a sua intenção de aceitar a proposta.


[1] Ac. do STJ, de 27 de outubro de 2011, Processo nº 2279/07.8TBOVR.C1.S1 (Oliveira Vasconcelos).

[2] Jorge Morais Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 7.ª edição, Almedina, 2020, p. 83.

[3] Carlos Ferreira de Almeida, Direito do Consumo, Almedina, 2005, p. 98.

[4] Admitimos que no caso em que é anunciado um período de duração de determinada proposta (“Só esta semana”) e essa proposta é revogada, poderemos estar perante uma prática comercial desleal, assim como admitimos a eventual possibilidade de, em tal caso, por via da articulação entre a norma geral e as normas especiais de direito do consumo, se considerar o prazo como vinculativo. Contudo, uma vez que neste caso conseguimos garantir a proteção do consumidor por uma outra via, a nosso ver mais clara, decidimos optar por essa outra via.

[5] Carlos Ferreira de Almeida, “Conceito de Publicidade”, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 349, 1985, pp. 115-134.

A Melhor Bolacha do Mundo

Consumo em Ação

Por Inês Alves, Joana Sousa e Mariana Soeiro

Hipótese: Belmira foi a um estabelecimento comercial e pediuuma bolacha que estava anunciada como sendo “a melhor bolacha do Mundo”. Não gostou e agora pretende saber se pode fazer alguma coisa. O que lhe diria?

Resolução: Este caso remete-nos para a matéria das práticas comerciais desleais, regulada pela Diretiva 2005/29/CE, transposta para o ordenamento jurídico português pelo Decreto-Lei n.º 57/2008.

Nos termos do art. 1.º-1, o diploma é “aplicável às práticas comerciais desleais das empresas nas relações com os consumidores, ocorridas antes, durante ou após uma transação comercial relativa a um bem ou serviço”. Nesta lógica, cumpre aferir se Belmira se afigura como uma consumidora, na aceção da noção presente no art. 3.º-a).

Os elementos inerentes ao conceito de consumidor (subjetivo, objetivo, teleológico e relacional estão todos verificados, uma vez que Belmira é uma pessoa singular, a quem foi fornecido um bem de consumo – “a melhor bolacha do Mundo” – para uso imediato e não profissional, tendo este bem sido facultado por um estabelecimento comercial, no âmbito da sua atividade profissional. Belmira é, portanto, consumidora na aceção do DL 57/2008.

A questão que se prende com o anúncio da bolacha é relativa à existência ou não de uma prática comercial desleal. Cumpre referir, a priori, que a prática comercial em causa não está presente em nenhuma das listas dos arts. 8.º e 12.º do DL, pelo que devemos analisar a cláusula geral do art. 5.º-1, que define prática comercial deslealcomo a prática “desconforme à diligência profissional, que distorça ou seja suscetível de distorcer de maneira substancial o comportamento económico do consumidor seu destinatário ou que afete este relativamente a certo bem ou serviço”. Daqui se retiram quatro requisitos: relação jurídica de consumo, prática comercial, prática desconforme com a diligência profissional e prática capaz ou suscetível de distorcer o comportamento económico do consumidor.

Como já constatámos acima, Belmira é consumidora, pelo que o primeiro critério está verificado. Seguidamente, da leitura do art. 3.º-d) conclui-se que o segundo requisito se verifica, porquanto houve uma ação com relação direta com o bem, isto é, um tipo determinado de bolachas foram anunciadas como as melhores do Mundo, constituindo uma prática comercial.

A verificação do terceiro requisito abre espaço a discussão: agiu o profissional de acordo com a diligência profissional?

Para resolvermos esta questão, urge que se analise a declaração negocial à luz da existência de dolus bonus, consagrado na Diretiva 2005/29/CE e no art. 253.º do Código Civil.

Não obstante a sua previsão nestes diplomas, há quem entenda que o instituto do dolus bonus não se aplica no Direito do Consumo[1] por se afigurar como uma contradição em relação ao princípio da lealdade e ao direito à informação, presentes na legislação especial de proteção dos consumidores e no art. 60.º da Constituição da República Portuguesa. A permissão de práticas que consistem em “fazer afirmações exageradas ou afirmações que não são destinadas a ser interpretadas literalmente” (art. 5.º-3 da Diretiva 2005/29/CE) ou em “sugestões ou artifícios usuais”, bem como a “dissimulação do erro” (art. 253.º-2 do Código Civil), seria, para quem defende esta posição, incompatível com os já referidos princípios aplicáveis a contratos de consumo, pelo que não deveria ser admitida. Em virtude disto, aquando da transposição da Diretiva 2005/29/CE para o ordenamento jurídico português, o referido instituto foi deliberadamente omitido, não constando do DL 57/2008.

Todavia, e apesar das críticas, a Diretiva em apreço é de harmonização máxima, pelo que não permite uma diminuição ou um aumento da proteção do consumidor, a não ser na medida em que essa possibilidade esteja expressamente prevista o que, pela análise do considerando 12, não se verifica. Por conseguinte, consideramos que, mediante uma interpretação do direito nacional conforme o direito europeu, devemos admitir o dolus bonus nos termos da legislação europeia.

O art. 5.º-3 da Diretiva prevê que “a prática publicitária comum e legítima que consiste em fazer afirmações exageradas ou afirmações que não são destinadas a ser interpretadas literalmente” seja permitida. Ora, in casu, é exatamente isto que se sucede: num primeiro ponto, importa realçar o pendor subjetivo da afirmação “melhor bolacha do Mundo”, visto que essa classificação depende de aceções “subjetivas e insuscetíveis de uma verificação objetiva, por padrões científicos ou comprováveis”[2]; em segundo lugar, a leitura do caso revela a ausência de qualquer certificado que comprove a afirmação; por fim, um consumidor médio, utilizando-se como marco de referência o consumidor “normalmente informado e razoavelmente atento e advertido” (considerando 18 da Diretiva 2005/29/CE), compreende que este anúncio contém uma expressão exagerada e desprovida de seriedade, como sucede com a Confeitaria “O Melhor Bolo de Chocolate do Mundo”, que é hoje uma marca registada, já espalhada pelo mundo, ou com os anúncios da Red Bull (“Red Bull dá-te Asas”), pelo que este anúncio, apesar de poder influenciar o comportamento de Belmira, não prejudica a sua aptidão para tomar uma decisão esclarecida.

Pelo exposto, podemos concluir que a declaração negocial estava isenta da intenção de enganar, constatando-se que o estabelecimento comercial agiu com diligência profissional, de acordo com a expectativa razoável de competência e cuidado de um profissional, baseada no princípio da boa-fé. Belmira não poderá exigir nada do estabelecimento comercial, uma vez que não estamos perante uma prática comercial desleal.


[1] Relativamente à noção presente no CC, Carlos Ferreira de Almeida considera-a uma permissão de “certas práticas de ludíbrio” e de “omissão de informação”, que deve ser inadmissível em contratos de consumo: Carlos Ferreira de Almeida, “Invalidades em Contratos de Consumo”, in De Legibus Revista de Direito, n.º 0, 2020, pp. 17 a 38, pp. 22 a 23.

[2] Jorge Pegado Liz, “Práticas Comerciais Proibidas”, in Estudos do Instituto de Direito do Consumo, Vol. IV, 2014, pp. 79 a 141, p. 107.

A iliteracia financeira enquanto vulnerabilidade dos consumidores

Doutrina

Nas últimas semanas, tem tido destaque o tema da iliteracia financeira explorada como oportunidade de negócio, em termos que podem não ser os mais favoráveis para o consumidor.

A prática de comercialização de cursos sobre a monetarização dos mercados financeiros, à semelhança da comercialização de dicas de investimento, com promessas de um enriquecimento rápido, tem-se vindo a verificar há já algum tempo, afetando em grande escala as camadas mais jovens.

No fundo, um dos elementos-chave destes modelos de negócio está nas fortes técnicas de persuasão empregues na divulgação de cursos ou mesmo dicas de investimento, que levam muitas vezes os jovens a acreditar que, ao pagarem o respetivo preço, terão uma espécie de acesso automático ao estilo de vida luxuoso, despreocupado e livre de responsabilidades que os influenciadores digitais responsáveis pela divulgação dos materiais ilustram nas suas redes.

Por um lado, quanto ao comportamento dos influenciadores digitais em geral, é certo que por vezes a publicidade desenvolvida através das redes sociais desrespeita em larga escala os princípios resultantes do Código da Publicidade.

Neste contexto, cabe relembrar que tais princípios serão de aplicar também no universo digital, devendo assim, a título de exemplo, toda a mensagem publicitária ser devidamente identificada enquanto tal, obrigação que decorre do princípio da identificabilidade.

Por outro lado, no âmbito das estratégias de divulgação utilizadas em sede das plataformas digitais frequentadas por utilizadores de todas as idades, importa mencionar o princípio da veracidade, conforme disposto no art. 10.º do Código da Publicidade, que impõe como regra que a publicidade respeite a verdade, não deformando os factos.

Por outro lado, a propósito da publicidade especificamente feita a cursos, dispõe ainda o Código da Publicidade, no seu art. 22.º, que a mensagem publicitária deve indicar a natureza dos cursos, bem como a expressão “sem reconhecimento oficial” sempre que este não tenha sido atribuído pelas entidades oficiais competentes.

Numa perspetiva de direito criminal, será pertinente referir os crimes de burla, burla qualificada e usura. Nesse sentido, cabe relembrar que, para que determinada conduta seja qualificável enquanto crime, é necessário que o agente cometa um facto típico, ilícito, culposo e punível.

De acordo com o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 663/98, de 25 de novembro de 1998, proferido no processo n.º 235/98, e relatado pelo Cons. Sousa e Brito, “a burla, a extorsão e a usura, caracterizam-se por o prejuízo ser causado pela própria vítima através da provocação ou exploração ilícitas pelo agente de um vício da vontade: o erro na burla, a coação na extorsão, a situação de necessidade na usura. (…) São necessárias circunstâncias adicionais que tornam socialmente tão grave a culpa do incumprimento que se torna necessária a intervenção do direito penal.”

Nomeadamente, no que ao crime de burla diz respeito (cf. art 217.º do Código Penal), trata-se de um crime semipúblico, pelo que o procedimento criminal depende de queixa. Ademais, em relação à conduta típica, são três os elementos a considerar: a intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo; que tal enriquecimento seja obtido por meio de erro ou engano sobre factos astuciosamente provocados pelo agente; e que tais factos provocados pelo agente determinem outrem à prática de atos que lhe causem, a si ou a terceiro, um prejuízo patrimonial. No fundo, para que o tipo de crime se preencha, será necessário que haja um nexo de causalidade forte entre o prejuízo patrimonial do ofendido e o enriquecimento do agente.

Por outro lado, provando-se que o agente pratica o crime de burla como modo de vida (não tendo para tal que se dedicar de forma exclusiva à prática do ato em questão, cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 16/06/2015 e relatado por Inácio Monteiro), ou mesmo que o agente, aquando da prática do ilícito, se aproveitou de situação de especial vulnerabilidade da vítima, nomeadamente em razão de idade, poderemos estar em face de um crime de burla qualificada, no âmbito do qual a moldura penal pode ir até aos oito anos. Neste caso, estamos perante um crime público, que como tal poderá ser investigado e submetido a julgamento pelo Ministério Público, mesmo sem ou contra a vontade do ofendido.

Ademais, cabe relembrar que o Código Penal prevê ainda o tipo de crime de usura, no seu art. 226.º, de acordo com o qual é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias, quem, com intenção de alcançar um benefício patrimonial, para si ou para outra pessoa, explorando situação de necessidade, anomalia psíquica, incapacidade, inépcia, inexperiência ou fraqueza de carácter do devedor, ou relação de dependência deste, prometa, sob qualquer forma, a seu favor ou a favor de outra pessoa, vantagem pecuniária que for, segundo as circunstancias do caso, manifestamente desproporcionada com a contraprestação. Neste caso, a intervenção do direito de ultima ratio deriva da necessidade de prevenção da exploração económica de um sujeito que se encontra numa situação de especial vulnerabilidade, sendo levado a acreditar pelo agente da prática do crime que será o negócio usurário que o levará a ultrapassar o seu estado de fragilidade.

Em suma, dúvidas não restam quanto ao facto de a iliteracia financeira ser uma questão bastante séria e capaz de influenciar em larga escala as decisões de contratar dos consumidores, especialmente nos casos em que estes não estão munidos de todas as informações necessárias para uma escolha informada.