O Ronaldo, o Messi, o Louis e a Annie – futebol, xadrez, arte ou publicidade

Doutrina

A 20 de novembro de 2022, teve início oficial um dos eventos mais importantes do planeta, denominado “Campeonato Mundial de Futebol FIFA de 2022”. Este Mundial, a que de tão conhecido e relevante basta chamar assim, tem vindo a ser alvo de polémicas de várias espécies, quase todas más. As suspeitas de corrupção e os atentados aos direitos humanos são as que mais se destacam.

No entanto, para além disso e da competição propriamente dita, surgem também outras coisas extraordinárias e no dia da inauguração acontece uma muito interessante. Fala-se muito de xadrez e contempla-se arte. Ou publicidade. Arte publicitária, que evidencia como são ténues as fronteiras em muitos campos. Sob um fundo absolutamente clássico, com uma perfeita quase ausência de cor, estão um baú sobre o qual assenta uma mala de mão, com padrão de quadrículas castanhas, nas quais estão dispostas peças de xadrez. Sentados, dois homens, um de cada lado, pousam na mala uma mão e, na outra mão, a cabeça, numa atitude absolutamente compenetrada e absorvida. Parece que abraçam suavemente o tabuleiro improvisado. Tudo é equilibrado, harmonioso. A luz, a sombra, a cor, as posições, as peças caídas e as peças em jogo, tudo concorre para a incrível obra de arte fotográfica de Annie Leibovitz, extraordinária artista que, entre muitos outros, fotografou a rainha Isabel II. Os homens são Lionel Messi e Cristiano Ronaldo, as malas são Louis Vuitton, marca criada em 1854, a jogada de xadrez é do terceiro jogo entre Magnus Carlsen e Hikaru Nakamura, no torneio da Noruega de 2017, que terminou num empate.

No Twitter, recentemente adquirido por Elon Musk, que rapidamente se pôs a despedir muitas pessoas, a marca de luxo publica que “Victory is a state of mind”, relembra que tem acompanhado os mais importantes eventos desportivos e explica que a fotografia celebra os dois mais talentosos jogadores de futebol da atualidade. Tudo verdade. Ganhar é um estado de espírito que, aliado a muito suor e trabalho pode levar à vitória, a Louis Vuitton é tão antiga e emblemática que acompanhou muitos desportistas e outros viajantes ilustres e ricos nas suas deslocações. A primeira classe do Titanic, por exemplo, estava carregada de bagagem assim acomodada. É usualmente aceite que Messi e Ronaldo são os melhores jogadores de futebol do mundo. Além de que Annie Leibovitz conseguiu mais uma assinalável proeza fotográfica. Nada foi deixado ao acaso, o mais ínfimo detalhe daquele improviso foi meticulosamente planeado. Até o xadrez. Podiam ter colocado aleatoriamente umas peças que ficassem bem em cima das quadriculas do padrão, para as quais jogadores de futebol estariam, em pose, a olhar, mas não. Deram-se ao trabalho de escolher um lance duma partida entre os melhores jogadores de xadrez do mundo e, ainda mais precisamente, uma que acaba num empate. Este detalhe, também ele, além da subtileza, evidencia um enorme respeito, tanto para com os jogadores de xadrez, como para com os jogadores de futebol retratados.

A publicação, a foto, a situação tornou-se viral nas redes sociais e, no Mundial de futebol, o xadrez ganhou lugar através de algo que  tudo indica ser uma excelente campanha publicitária.

Daqui dois pontos principais há a assinalar. O primeiro, é o fascínio que o xadrez ainda origina nas pessoas e, também, a capacidade que tem de fazer vender. Relembre-se como o mundo, em plena guerra fria, esteve suspenso de alguns jogos e desatou a comprar tabuleiros e peças e a jogar. Por exemplo, o filme “O Prodígio” mostra-o no Campeonato Mundial de Xadrez de 1972, em que o americano Bobby Fisher venceu o soviético Boris Spassky. Em final de 2020, a série “The Queen’s Gambit”, inflamou as audiências e fez disparar o consumo em várias áreas, naquilo que se poderá denominar “efeito Netflix”. Relembre-se, também, como foi impressionante quando o Deep Blue, uma máquina, venceu em 1997 Garry Kasparov, o campeão de xadrez da época. O xadrez tem associada a ideia de inteligência, de ponderação, de visão, de segurança, de precisão e muitas outras que o tornam adequado a simbolizar a superioridade humana, a qualidade individual de uma pessoa, a representar a ideal qualidade de um povo, de um país, da humanidade.

O segundo ponto a assinalar é a natureza esquiva e fluida da publicidade. Num duplo sentido. Por um lado, a sua clássica proximidade à arte. As sopas Campbell de Andy Warhol, não deixaram de ser sopas quando o artista resolveu fazer delas uma obra de arte, curiosamente, com a inicial oposição dos detentores da marca. A fotografia de Annie Leibovitz não deixa de ser uma manifestação artística por fazer publicidade.

No entanto, urge questionar, publicidade a quê? Sem dúvida, à marca das malas. Temos, no entanto, de admitir que cada um dos jogadores retratados são também publicitados. Embora já de si, pareçam possuir o toque de Midas, transformando em ouro tudo em que tocam, qualquer deles tem associado um fortíssimo merchandising e o reforço da divulgação da sua imagem vai certamente refletir-se em aumento de vendas. Ganham os próprios, ganham as empresas que produzem e vendem bens e serviços com o seu selo, ganham os clubes, os países e, certamente, muito mais gente que não nos ocorre. O próprio Mundial, certamente também ganha, sendo ainda mais divulgado. O Twitter e as redes sociais em que foto e publicação circulam, certamente ganham em visitas, que terão originado mais receitas em publicidade e outras. Este é o outro lado, do segundo ponto a assinalar. A publicidade tornou-se difusa, esquiva, fluída, indireta, de fronteiras muito pouco claras. A publicidade tradicional, ainda predominante na primeira década deste século, não só está a cair em desuso, como é acompanhada por novas formas que seriam muito difíceis de prever há algum tempo e que apresentam contornos pouco nítidos, que tornam difícil a sua qualificação e enquadramento jurídico. Salienta-se, pela relevância e amplitude que pode alcançar a “publicidade” nas redes sociais, quer através de algo que se torna viral, trazendo de repente para a ribalta marcas de bens ou serviços, quer através do trabalho dos influencers, mais sistemático, que vão apresentando, ou usando, ou comentando coisas, sítios que, por isso, vendem mais. Com o advento dos chatbots e o desenvolvimento do processamento de linguagem natural, também a publicidade pode passar a ser personalizada, sendo apresentada a cada pessoa que conversa com a máquina os produtos que procura, ou os que mais lhe podem interessar. Se juntarmos a realidade virtual, aumentada e mista, que temos vindo a abordar em posts recentes, acabamos por poder estar a ser avassalados, permanentemente, por comunicação que promove, com vista à sua comercialização, quaisquer bens ou serviços. Transformamo-nos em destinatários permanentes de publicidade, mais ou menos do mesmo modo como nos tornamos produtores e consumidores de dados pelo simples facto de existirmos e, principalmente, de usarmos um smartphone.

O Ronaldo, o Messi, o Louis e a Annie, fazem desporto, indústria, arte, história, promovem o futebol, o xadrez, as viagens, a moda, a fotografia, fazem publicidade, originam o aumento de vendas de coisas várias, geram tráfego nas redes sociais e na internet, alimentam a big data e a inteligência artificial, forçam os cânones do Direito, de todos os Direitos. Integram uma realidade cuja complexidade se adensa progressivamente, tornando difícil a sua análise e compreensão.

Vale-nos o Mundial que, nos relvados atafulhados de publicidade, nos vai manter fixos no jogo, algo à escala humana.

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