O futuro dos carregadores na U.E. – A proposta de alteração da Diretiva 2014/53/EU

Doutrina

A proposta de Diretiva, do Parlamento Europeu e do Conselho, que altera a Diretiva 2014/53/EU, promete ser um diploma relevante para o dia-a-dia dos consumidores. Desde logo, deixará de ser necessário dedicar uma gaveta para os diferentes carregadores, adaptadores e cabos com diferentes entradas. Mas, sobretudo, o destaque está no impacto ambiental que a medida acarreta. De acordo com a informação disponibilizada, só em 2018, os dispositivos de carregamento foram responsáveis por cerca de 11 mil toneladas de resíduos de equipamentos elétricos e eletrónicos, ditando que existisse, por parte da União Europeia, uma intervenção para dar resposta a este problema.

O desenvolvimento da proposta de diretiva

O processo de desenvolvimento da proposta em apreço teve o seu início em 2019, com um estudo de avaliação de impacto sobre carregadores de dispositivos portáteis. Este estudo concluiu que, para alcançar os objetivos ambientais propostos, seria necessário complementar a adoção de um carregador comum com a venda de carregadores em separado (unbundling).
Em 2020, foram comissionados dois estudos relativos ao tema: uma avaliação de impacto sobre o unbundling de carregadores e um estudo de suporte técnico sobre o carregamento sem fios (wireless charging).
Com esta base, a Comissão propôs, a 23 de setembro de 2021, a alteração da Diretiva 2014/53/EU relativa à harmonização da legislação dos Estados-Membros respeitante à disponibilização de equipamentos de rádio no mercado. Resumidamente, esta proposta contempla:

que a regra seja a não inclusão de carregadores com a aquisição de um novo equipamento de rádio;
o USB-C como o carregador comum entre telemóveis, altifalantes, câmaras digitais, tablets e outros equipamentos de rádio e respetivos acessórios;
mais informação para os consumidores sobre as características dos carregadores, se suportam fast charging, e quais os requisitos necessários para carregar um determinado dispositivo.

Recentemente, a 21 de janeiro de 2022, a proposta sofreu algumas alterações no Conselho da União Europeia, com destaque para o reforço do direito à informação e procedimentos a adotar face a futuras soluções de carregamento.

As críticas à proposta

Com o desenvolvimento da proposta, naturalmente, surgiram objeções, em particular dos agentes de mercado mais condicionados. A Apple, a principal afetada por esta alteração, considera que a proposta “sufoca a inovação”, em vez de a promover, indicando que uma solução comum pode ser prejudicial para os consumidores. A oposição da Apple é, por sua vez, alvo de frequente escrutínio por parte dos consumidores, visto que a Apple tem vindo a integrar, por iniciativa própria, o USB-C nos seus portáteis e tablets, mantendo o Lightning apenasnos seus telemóveis. Deste modo, dentro do próprio ecossistema desta empresa, podemos verificar inconsistência nas opções de carregamento.
A propósito da inovação, o já mencionado estudo de avaliação de impacto, de 2019, nas observações finais, indica que qualquer solução ao problema envolve trade-offs. Como exemplo, o estudo denota que implementar um conector comum nos dispositivos pode implicar efeitos negativos na inovação, ao reduzir os incentivos para as empresas investirem na pesquisa e desenvolvimento de tecnologia de carregamento. Não obstante, o mesmo estudo dispensa estes receios, referindo que “as consequências destas restrições parecem mais significativas em teoria do que na prática, atendendo à forma como o mercado está a evoluir presentemente, e ao interesse das empresas em garantir interoperabilidade”[1].

O unbundling

A grande novidade em relação ao texto normativo prévio prende-se com a introdução do art. 3.º-A à Diretiva 2014/53/EU, que prevê que, caso um operador económico ofereça aos consumidores e outros utilizadores finais a possibilidade de adquirir equipamentos de rádio em conjunto com um dispositivo de carregamento, é igualmente oferecida a possibilidade de adquirir o equipamento de rádio sem qualquer dispositivo de carregamento. Assim, os consumidores que já têm carregadores USB-C em casa, podem optar por adquirir apenas o equipamento de rádio, o que poderá trazer vantagens no que concerne ao preço final do produto e reduzir a sua pegada ecológica.

Direito à informação e rotulagem

Como consequência da implementação da regra anterior, acresce a responsabilidade em matéria de direito à informação. Se não incluir o carregador, e conforme à nova redação do art. 10.º, n.º 8, o dispositivo de rádio deve conter informação sobre as capacidades de carregamento e sobre qual o respetivo dispositivo de carregamento compatível. O mesmo artigo versa, no primeiro parágrafo, sobre a necessidade de incluir, de forma clara e percetível, uma descrição dos acessórios, componentes e software, que permitam o normal funcionamento do equipamento de rádio.

Relembrando a intervenção do Conselho da U.E., a recente alteração à proposta contempla neutralidade linguística nos elementos visuais de rotulagem, como pode ser visível nos pictogramas presentes nas partes III e IV do anexo.
Conforme à Parte III do anexo, para o consumidor identificar se o carregador vem incluído com o seu equipamento de rádio, deverá verificar na embalagem se, ao lado direito do símbolo do adaptador de corrente, está uma caixa com uma checkmark a verde. Na ausência desta sinalização, e estando a caixa em branco, o consumidor fica advertido de que o carregador não está incluído.
Na minha perspetiva, esta opção de pictograma poderá não ser suficientemente clara para muitos consumidores. O recurso à omissão de um símbolo, para efeitos da identificação da ausência de um bem, poderá ser um mecanismo de menor eficácia, quando comparado com o uso de um símbolo de negação (Ex: uma cruz por cima do símbolo do adaptador de corrente, ou outra sinalização semelhante).
Em relação à etiqueta presente na parte IV do anexo, esta servirá para que o consumidor consiga identificar os requisitos de energia para carregamento normal e carregamento rápido.
A etiqueta poderá conter “USB PD”[2] se um determinado dispositivo de rádio contemplar este protocolo de carregamento.

Sobre o futuro

Outras soluções de carregamento, como o wireless charging, são tratadas pela proposta de alteração da Diretiva. Sobre este ponto, os considerandos 9 e 13 apresentam uma visão de futuro, a propósito da matéria em apreço, ao indicarem a necessidade de adaptação consoante o progresso tecnológico e os desenvolvimentos do mercado. A incerteza sobre se a interoperabilidade poderá ser contornada através do wireless charging, é antecipada com a adição do n.º 4 ao atual art. 3 da Diretiva. Este número confere a flexibilidade necessária para a União Europeia poder aquedar a Diretiva “à luz do progresso técnico”, habilitando a Comissão a adotar atos delegados com vista à “alteração, aditamento ou supressão de categorias ou classes de equipamentos de rádio” e de “especificações técnicas, incluindo referências e descrições, relativas aos recetores de carregamento e aos protocolos de comunicação de carregamento, para cada categoria ou classe de equipamento de rádio em causa”. Nestes termos, quando for necessário proceder à revisão dos standards e a adequar as classes de equipamentos, a transição tenderá a ser menos morosa por existir uma moldura capaz se adaptar aos tempos.


[1] Tradução de minha autoria. Texto original: “the implications of these constraints seem more significant in theory than in practice, in view of the way the market is evolving at present, and companies’ own interest in ensuring interoperability”. Impact Assessment Study on Common Chargers of Portable Devices, página 143, disponível em: https://op.europa.eu/en/web/eu-law-and-publications/publication-detail/-/publication/c6fadfea-4641-11ea-b81b-01aa75ed71a1

[2] O USB PD é um protocolo que permite maiores velocidades de carregamento, ajustar a voltagem, otimizar a gestão de energia entre múltiplos acessórios, entre outras vantagens técnicas.

Sabia que se comprou uma bicicleta pode beneficiar de um incentivo?

Legislação

Por forma a acelerar a adoção de meios de transporte com menor impacto ambiental, foi criado em 2017, com o apoio do Fundo Ambiental, o “Incentivo pela Introdução no Consumo de Veículos de Baixas Emissões”.
Este incentivo consiste na atribuição, a pessoas singulares ou coletivas, de um determinado montante, consoante o tipo de veiculo de baixa emissão[1], com vista à promoção da mobilidade sustentável e à prossecução do objetivo da “neutralidade carbónica até 2050”[2].
Com exceção do ano de 2021, o valor global do incentivo tem vindo sempre a aumentar, o que é revelador de coerência para com os objetivos ambientais estabelecidos.
Partindo dos 2.300.000€ no seu ano de introdução, o valor da dotação global cresceu, em 2018, para 2.650.000€, atingiu os 3.000.000€ no ano subsequente e, em 2020, fixou-se nos 4.000.000€, valor que permaneceu inalterado em 2021.

Considerando que existe um interesse crescente, por parte dos consumidores, em adquirir veículos ambientalmente sustentáveis, é importante que estes conheçam o incentivo e estejam devidamente informados em relação ao que dispõe o respetivo regulamento.
Presente no Despacho n.º 2535/2021, de 5 de março de 2021, o regulamento em vigor descreve, entre outros pontos, quais os veículos abrangidos pelo incentivo, os beneficiários elegíveis, o modo de apresentação do pedido e os documentos a apresentar.
Sobre os veículos abrangidos, o regulamento estabelece as seguintes tipologias:

               Tipologia 1 – Veículos ligeiros de passageiros (categoria M1)
               Tipologia 2 – Veículos ligeiros de mercadorias (categoria N1)
               Tipologia 3 – Bicicletas de carga, com ou sem assistência elétrica
               Tipologia 4 – Bicicletas citadinas, motociclos de duas rodas e ciclomotores elétricos
               Tipologia 5 – Bicicletas citadinas convencionais

Em relação às bicicletas, que são o foco do presente artigo, devemos atender às últimas três tipologias.
Sobre a tipologia 3, o incentivo aplica-se, de acordo com o ponto 1.3.2 do anexo, a “qualquer bicicleta de carga, com ou sem assistência elétrica, construída especificamente para o transporte de carga ou com reboque destinado a esse fim”.
Da conjugação do ponto 1.3.1 com o 1.3.3 do anexo, verificamos que o incentivo se aplica a 300 unidades (no nosso caso, bicicletas), “de acordo com a data e hora da submissão do pedido de incentivo”, e que o montante para cada unidade será de 50% do valor de aquisição do veículo, até ao limite máximo de 1.000€, para as bicicletas de carga com assistência elétrica, ou de 500€, para bicicletas de carga sem assistência elétrica.
A tipologia 4 compreende, entre outros veículos, “qualquer bicicleta com assistência elétrica, destinada a uso citadino, não incluindo bicicletas destinadas a uso desportivo”. O incentivo abrange 1857 unidades, com um montante correspondente a 50% do valor de aquisição do veículo, até ao limite de 350€.
A tipologia 5, que diz respeito a bicicletas convencionais, “sem assistência elétrica, destinada[s] a uso citadino, não incluindo bicicletas destinadas a uso desportivo”, prevê um incentivo para 500 unidades e contempla um incentivo de 20% do valor de aquisição, até ao limite máximo de 100€.

De realçar que, independentemente da categoria, apenas será atribuída uma unidade de incentivo por pessoa singular.
Exige-se ainda que o veículo objeto do apoio tenha sido adquirido entre 1 de janeiro de 2021 e 30 de novembro de 2021, data limite para a submissão de candidaturas.
O candidato cujo veículo esteja conforme com os requisitos deve preencher o formulário presente no website do Fundo Ambiental, seguindo as instruções e apresentando os documentos necessários para a atribuição do incentivo[3].
Uma vez inscrito, o candidato ou vê efetuado o reconhecimento do direito ao incentivo ou, caso esteja esgotado o montante para a tipologia em questão, é notificado que o seu pedido se encontra em lista de espera.
Visando garantir que a totalidade das verbas são distribuídas, o regulamento contempla situações que podem beneficiar candidatos que se encontrem em lista de espera:

• Se uma das tipologias não esgotar o montante que lhe foi designado, o ponto 6.2 postula que “serão atribuídos mais incentivos dentro dessa categoria até esgotar o montante”. Por outras palavras, será aumentado o número de bicicletas que beneficiam do incentivo se, após a entrega do número previsto de unidades, sobrarem verbas nessa categoria. Caso seja selecionado, o beneficiário será notificado por correio eletrónico;

• Se não tiver sido atribuído o número máximo de unidades de incentivo a alguma das tipologias, o valor restante destina-se aos candidatos que estão na lista de espera das outras tipologias. Nesta hipótese, a atribuição do valor remanescente não é aferida pela ordem de chegada dos candidatos, mas antes determinada pela norma presente no ponto 6.7, que revela uma hierarquia entre as listas de espera das diferentes tipologias. Esta regra sequencial é aplicável, nos mesmos termos, às situações em que existe um pedido indeferido (pontos 6.6 e 7.3 do anexo).

Aos beneficiários é imposta a obrigação de “após a receção do incentivo, manter[em] a posse do veículo por um período não inferior a 24 meses a contar da data de aquisição” (ponto 9.1 do anexo). Para além da referida obrigação, encontra-se vedada a exportação dos veículos que beneficiam do incentivo, pois “o principal objetivo do programa [é] a introdução no território nacional de veículos ambientalmente mais favoráveis” (ponto 9.2 do anexo).

Tendo em vista o interesse dos consumidores, e para evitar que, ao adquirirem uma bicicleta, sejam induzidos em erro em relação às condições do regulamento, é importante que fiquem assentes os seguintes pontos:

1) O regulamento não confere “direito absoluto” à comparticipação. Existe um número limitado de incentivos que, não obstante algumas exceções, são conferidos com base na ordem de chegada dos beneficiários;

2) O valor dos incentivos é variável consoante o veículo em questão, podendo ir dos 100€, para bicicletas citadinas convencionais, até aos 1.000€, para bicicletas de carga com assistência elétrica. O incentivo nunca ultrapassa 50% do valor total do veículo, podendo, em alguns casos, atingir apenas 20% do valor de aquisição;

3) Algumas categorias de bicicletas, como as bicicletas desportivas, não são abrangidas pelo incentivo;

4) As bicicletas devem ser novas e obtidas durante o período de 1 de janeiro de 2021 a 30 de novembro de 2021, devendo o beneficiário apresentar, no momento da inscrição, fatura com a data de aquisição do veículo;

5) As pessoas singulares apenas podem submeter um único veículo para obtenção do incentivo;

6) Os beneficiários ficam obrigados a manter a posse do veículo por um período não inferior a 24 meses, ficando também vedada a possibilidade de exportarem os veículos que tenham sido objeto do incentivo.


[1] O regime do Despacho n.º 2535/2021 não se limita às bicicletas, incluindo também determinados automóveis, motociclos e ciclomotores. As trotinetes elétricas ficam excluídas do âmbito de aplicação do incentivo. O presente artigo tem como escopo apenas as bicicletas.

[2] Podemos encontrar este objetivo na parte introdutória do Despacho n.º 2535/2021.

[3] Para além dos documentos relativos ao candidato, como o documento de identificação ou o número de identificação bancária, a fatura de aquisição do veículo é um documento fundamental para comprovar a data em que o veículo foi adquirido.

A venda de smartphones sem carregador constitui uma prática comercial desleal?

Doutrina

Esta questão surge no seguimento do meu primeiro texto sobre a admissibilidade da venda de smartphones sem adaptador à luz do direito à informação, no qual referi que, caso exista falta de informação, o consumidor tem o direito de resolução do contrato no prazo de sete dias úteis a contar da data de receção do bem, assim como o direito a indemnização nos termos gerais.
Trata-se agora de saber quais as possíveis repercussões da não inclusão de adaptadores ao nível do regime das práticas comerciais desleais, presente no Decreto-Lei n.º 57/2008.
No âmbito deste regime, conseguimos identificar três possíveis situações relacionadas com a questão inicial.

A primeira será a do profissional que não inclui um adaptador de corrente com o smartphone e que não presta de forma diligente a informação necessária para o esclarecimento do consumidor.
Este caso configura uma omissão enganosa, nos termos do art. 9.º-1-a) do DL 57/2008. Desta norma retiramos como critério que “é enganosa, e portanto conduz ou é suscetível de conduzir o consumidor a tomar uma decisão de transação que não teria tomado de outro modo, a prática comercial […] que omite uma informação com requisitos substanciais para uma decisão negocial esclarecida do consumidor”. Este artigo pressupõe uma análise da definição de “decisão de transação” e que se preencham os conceitos de “requisitos substanciais” e de “consumidor”.
A definição de decisão de transação está presente no art. 3.º l), não constituindo qualquer entrave ao nosso caso.
Em relação ao conceito de “requisitos substanciais” devemos recorrer ao art. 10.º-a), que nos esclarece que “são consideradas substanciais para efeitos do artigo anterior […] as características principais do bem ou serviço, na medida adequada ao meio e ao bem ou serviço”. Assim, podemos afirmar que o adaptador de corrente, que de forma reiterada sempre foi parte integrante do conteúdo da caixa, é um requisito substancial.
O conceito de consumidor, para efeitos deste diploma, resulta da articulação das definições dos arts. 3.º-a) e 5.º-2. Da referida alínea, retiramos que é consumidor “qualquer pessoa singular que […] atue com fins que não se incluam no âmbito da sua atividade comercial, industrial, artesanal ou profissional” e, do art 5.º-2, que “o carácter leal ou desleal da prática comercial é aferido utilizando-se como referência o consumidor médio”.
Devido à popularidade dos telemóveis, e pelo facto de estarem a ser retirados adaptadores de corrente de telemóveis que abrangem gamas altas e médias, é difícil concretizar o que será o “consumidor médio”.
Sobre o nível de diligência esperado por parte do consumidor médio, a doutrina divide-se. Na jurisprudência portuguesa, no âmbito da propriedade industrial[1], o consumidor médio será apressado, distraído e desatento se estiverem em causa bens de valor reduzido ou elevado consumo[2].  No direito da União Europeia, o considerando 18 da Diretiva 2005/29/CE revela que o consumidor médio é “normalmente informado e razoavelmente atento e advertido, tendo em conta fatores de ordem social, cultural e linguística”.
Independentemente do critério adotado é certo dizer que, se não existir informação suficiente por parte do profissional, por estarmos perante uma modificação de uma prática comercial consolidada, o consumidor médio não será capaz de prever que o carregador não está incluído na caixa.
A respeito do critério do art. 9.º-1, sobre a suscetibilidade de poder conduzir o consumidor médio a não tomar uma decisão de transação que este não teria tomado de outro modo, podemos simplesmente afirmar que a não inclusão de um acessório é algo que pode conduzir o consumidor a optar por outro telemóvel que tenha o acessório incluído. Esta afirmação preenche o requisito de mera suscetibilidade de condução a uma decisão de transação do n.º 1 e, em articulação com a análise que foi feita em relação aos restantes elementos da norma, podemos afirmar que estamos perante uma omissão enganosa caso o consumidor não seja informado sobre a não inclusão do adaptador de corrente na caixa do telemóvel.

A segunda prática comercial desleal acontece em torno da tecnologia de carregamento rápido (fast charging). Passou a ser comum a indicação das velocidades de carregamento dos dispositivos por forma a cativar os consumidores. Como o tempo de carregamento está diretamente dependente do adaptador que se utiliza, o profissional deve esclarecer este facto perante o consumidor. Se o profissional não fizer esta indicação, podemos estar novamente no âmbito do art. 9.º-1-a) do DL 57/2008, em articulação com o art. 10.º-a), por existir uma omissão de informação que incide sobre uma característica principal do bem (a velocidade de carregamento). O profissional deve indicar que as velocidades anunciadas só serão atingidas se for adquirido, em separado, um adaptador compatível com fast charging. Se não for feita esta advertência, o consumidor (médio) poderá pensar que qualquer adaptador servirá para carregar rapidamente o seu telemóvel e, se utilizar um antigo adaptador que já disponha em sua casa (em linha com os objetivos ambientais), é provável que não beneficie desta nova tecnologia se este não for apto para o efeito. A falta de informação também pode conduzir o consumidor a comprar um adaptador sem fast charging, o que não só contribui negativamente para os alegados objetivos de sustentabilidade a que se compromete o profissional, como também lesaria o consumidor que teria de adquirir outro adaptador para poder usufruir das velocidades anunciadas.

É ainda possível encontrar uma terceira prática comercial desleal no caso em análise.
O art. 7.º-1-c), relativo às ações enganosas, indica que a motivação da prática comercial é um elemento capaz de induzir, ou ser suscetível a induzir, o consumidor em erro. A estrutura do art. 7.º-1 é semelhante à do art. 9.º-1, na medida em que utiliza a mera suscetibilidade de o consumidor ser induzido em erro para efeitos de aplicação da norma. Como o consumidor pode ser influenciado se for anunciado que um telemóvel de uma determinada marca é mais “amigo do ambiente” que outros dispositivos concorrentes, podemos afirmar que existe suscetibilidade de conduzir o consumidor a tomar uma decisão de transação que não tomaria de outro modo, preenchendo os elementos do art. 7.º-1. Deste modo, se o profissional divulgar que está a retirar os adaptadores de corrente das caixas dos telemóveis por motivos ambientais e de sustentabilidade, é importante que esses motivos sejam verificados e que correspondam à realidade. Se, em vez disso, estiverem exclusivamente relacionados com o aumento de lucro ou se comprovar que colocar os adaptadores numa caixa em separado contribui negativamente para o ambiente, estaremos perante uma ação enganosa por parte do profissional[3].

Quais são as consequências de uma prática comercial desleal para o profissional?

A consequência jurídica poderá passar, em primeiro lugar, pela anulabilidade do contrato de compra e venda, no prazo de um ano a contar da data da prática comercial desleal, por aplicação do art. 14.º-1 que, por sua vez, remete para o art. 287.º do Código Civil.

Em segundo lugar, em alternativa à anulabilidade, podemos ter a modificação do contrato segundo juízos de equidade, a requerimento do consumidor. A qualificação desta solução não se configura como uma redução (art. 292.º do Código Civil), aproximando-se mais da conversão (art. 293.º do Código Civil). Como refere Jorge Morais Carvalho, “a modificação do contrato não fica dependente do requisito estabelecido na parte final daquele preceito, não relevando a avaliação da vontade hipotética das partes”[4]. Se tivéssemos em consideração a vontade do profissional, este não quereria a celebração do contrato com outro objeto. Por este motivo, não podemos valorizar a vontade hipotética do profissional, pelo que a solução passa pela “justiça do caso concreto, devendo ser ponderados todos os elementos que sejam considerados relevantes”. Partindo deste preceito, uma forma de obter a justiça do caso concreto poderia passar pela inclusão do carregador, a título de liberalidade, no contrato de compra e venda do telemóvel.

Nos termos do n.º 3, “se a invalidade afetar apenas uma ou mais cláusulas do contrato, pode o consumidor optar pela manutenção deste, reduzido ao seu conteúdo válido”. Esta norma, ao contrário da anterior, aponta para uma redução nos termos do art. 292.º do CC. Poderíamos ter uma situação em que seria vendido o telemóvel sem o carregador, sendo descontado o valor deste ao preço final.

Estas consequências não operam automaticamente. É necessário que o consumidor atue dentro do prazo referido, sob pena de se manter o contrato de compra e venda.

O DL 57/2008 prevê ainda a aplicação de sanções contraordenacionais (art. 21.º) e o direito do consumidor a indemnização (art. 15.º).


[1] Jorge Morais Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 6.ª edição, Almedina, Coimbra, 2019, pp. 138-140, expõe a noção de consumidor médio e demonstra a diferença que existe a respeito deste no direito da U.E. e no direito nacional.

[2] Acórdão do TRL, de 19-01-2010, processo 25/07.5TYLSB.L1-1.

[3] Como exemplo de uma decisão fundamentada, em parte, na necessidade de saber a motivação do profissional que retira os adaptadores da caixa, encontramos a decisão do Procon-SP contra a Apple. Na notificação, de 28 de outubro de 2020, o Procon-SP solicita à Apple que apresente “quais [as] razões [que] fundamentam a decisão comercial” de retirar os adaptadores. Como não obteve resposta, o Procon-SP multou a empresa em R$ 10.546.442,48, a 22 de março de 2021.

[4] Jorge Morais Carvalho, in Código Civil Anotado, coord. de Ana Prata, Volume I, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, 2019, pp. 386-388.

A admissibilidade da venda de smartphones sem adaptador à luz do direito à informação

Doutrina

Antes da chegada dos smartphones, e numa altura em que o e-waste era um termo desconhecido para a maioria das pessoas, era comum que cada fabricante fosse responsável por, pelo menos, um carregador proprietário. De acordo com a avaliação de impacto inicial, elaborada pelo grupo de peritos da Comissão Europeia sobre equipamentos de rádio (E03587), também conhecido por RED expert group, em 2009, […] mais de 30 soluções proprietárias existiam no mercado”.

Numa perspetiva de sustentabilidade, e para mitigar o impacto ambiental causado pela falta de estandardização, a União Europeia decidiu agir.
O memorando de entendimento relativo à harmonização da capacidade de carregamento para telemóveis, de 5 de junho de 2009, foi um dos primeiros passos neste sentido, e permitiu iniciar o diálogo com as empresas de telemóveis no que concerne à adoção voluntária do micro-USB para efeitos de interoperabilidade e diminuição de lixo eletrónico. É por volta desta altura que começam a proliferar pelo mercado carregadores compostos por duas peças: um cabo micro-USB e um adaptador de corrente. Estes têm um impacto ambiental menor e conferem vantagens económicas para o consumidor pois, ao permitir trocar o cabo, a parte mais frágil e mais propícia a deixar de funcionar, o consumidor prolonga a vida do adaptador de corrente.
A União Europeia continuou os seus esforços no sentido de reduzir o e-waste e, para tal, apostou na padronização dos carregadores com a Diretiva 2014/53/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de abril de 2014 e com um novo Memorando de Entendimento emitido a 20 de março de 2018. Neste memorando, é adotado o USB-C como a nova solução comum para o carregamento de equipamentos eletrónicos, persistindo o caráter voluntário de adoção como no já referido memorando de 2009.
É neste contexto que temos de analisar a nova prática comercial de não incluir adaptadores de corrente juntamente com os telemóveis, procurando dar uma resposta à questão da admissibilidade desta prática.

Oferecendo uma resposta breve, podemos dizer que ao abrigo das regras de mercado livre, e desde que informe devidamente o consumidor, o profissional pode deixar de incluir o adaptador de corrente nas caixas de telemóvel, existindo já uma decisão neste sentido no Brasil[1]. O desequilíbrio na relação comercial em análise surge se o profissional não informar que alterou o conteúdo incluído na caixa do telemóvel, apresentando-o como se nenhuma alteração tivesse sido feita, ferindo as expectativas do consumidor.
O direito à informação está constitucionalmente garantido no art. 60.º-1 da Constituição da República Portuguesa, estando também previsto, em termos gerais, na alínea d) do art. 3.º da Lei de Defesa do Consumidor (LDC). A LDC concretiza este direito nos arts. 7.º e 8.º, relevando o último para efeitos de resolução do caso em questão, por tratar do direito à informação em particular. O art. 8.º-1-a) esclarece que “o fornecedor de bens ou prestador de serviços deve, tanto na fase de negociações como na fase de celebração de um contrato, informar o consumidor de forma clara, objetiva e adequada […] nomeadamente sobre […] as características principais dos bens ou serviços”. Este artigo necessita de alguma adaptação ao caso em análise se quisermos diferenciar os acessórios e o bem principal, em vez de uma análise conjunta do conteúdo da caixa. Não obstante, mesmo que não fosse possível situar o caso em estudo no art. 8.º-1-a), o n.º 1 não apresenta um conjunto fechado de situações para as quais o profissional tem o dever de informar o consumidor. Caso contrário, o consumidor ficaria desprotegido em várias situações. A utilização do termo “nomeadamente” aponta para esse sentido, pelo que é possível enquadrar o caso em análise no espírito da norma.
Como consequência da falta de informação sobre o conteúdo da caixa, o art. 8.º-5 estabelece que “o fornecedor de bens ou o prestador de serviços que viole o dever de informar responde pelos danos que causar ao consumidor”. Este número deve ser articulado com o n.º 4 do mesmo artigo, que esclarece que, quando se verificar falta de informação que comprometa a utilização adequada do bem, o consumidor tem o direito de resolução do contrato no prazo de sete dias úteis a contar da data de receção do bem. A essencialidade do adaptador é evidente por não ser possível carregar, ou carregar eficazmente o telemóvel, recorrendo apenas ao cabo que vem incluído na caixa. Deste modo, a utilização adequada do telemóvel fica comprometida se o profissional não informar que o adaptador, ao contrário do que costuma ser a prática reiterada deste mercado, não está incluído com o telemóvel.
Assim, por efeito da violação do dever de informação pelo profissional, o consumidor tem o direito de resolução do contrato no prazo de sete dias úteis a contar da data de receção do bem, bem como o direito a indemnização, nos termos gerais.


[1] Para aceder ao documento é necessário introduzir o número de processo 1019678-91.2020.8.26.0451 e o código 9463E02