Faço (boa) referência ao texto de Carlos Filipe Costa, intitulado “Há um direito a (ter) conta bancária? – a conta de serviços mínimos bancários” publicado neste mesmo fórum no dia 23 de julho de 2021. Recomendo, antes de mais – e acima de tudo – a sua leitura cuidada porquanto apresenta, de uma forma bastante clara e compreensível, a discussão em torno do direito do consumidor (hic: interessado) a (ter) uma conta bancária dentro do contexto jurídico estabelecido pelo Decreto-Lei n.º 27-C/2000, de 10 de outubro, que criou o sistema de acesso aos serviços mínimos bancários (SMB). Sem prejuízo de outros tópicos mencionados no texto que, na minha perspetiva, seriam também interessantes explorar, o motivo deste pequeno comentário funda-se essencialmente no desacordo que tenho quanto a uma qualificação técnico-jurídica sugerida pelo autor a propósito deste direito a (ter) uma conta bancária[1].
O autor entende – e bem – que o regime jurídico que regula o sistema de acesso aos SMB configura, na perspetiva da instituição de crédito, uma restrição à autonomia privada, em especial à liberdade contratual. Segue, afirmando que o que está em causa é uma “obrigação (legal) de contratar com o consumidor, desde que este revista a qualidade de «interessado»”, o que indicia, prima facie, a natureza creditícia da situação jurídica em questão. Todavia – e aqui jaz a minha posição discordante –, defende o autor logo de seguida que, na medida em que estejam preenchidos todos os pressupostos estabelecidos pelo supra mencionado regime jurídico, “o cliente, por um ato livre de vontade (…) não carece da cooperação da instituição de crédito para a conclusão do depósito à ordem”, concluindo que “em bom rigor, o mesmo se encontra investido num direito potestativo, a que se opõe um estado de sujeição da contraparte, que tem de suportar inelutavelmente na sua esfera a consequência jurídica cominada (no caso, a abertura de conta de SMB domiciliada na instituição de crédito escolhida pelo consumidor), sem nada poder (nem dever) fazer para o evitar”. Nas próximas linhas procurarei explicar muito sucintamente por que motivo entendo que, neste caso, a situação jurídica não configura rigorosamente uma relação direito potestativo/sujeição, mas sim uma relação jurídico-obrigacional.
In tribus verbis, o direito potestativo corresponde a uma situação jurídica ativa nos termos da qual é conferido ao seu titular o poder de, unilateralmente, produzir um determinado efeito jurídico – constitutivo, modificativo ou extintivo – noutra pessoa (que se encontra na situação jurídica passiva de sujeição). A constituição de uma servidão de passagem em benefício de prédio encravado, o direito de opção, a revogação da procuração pelo representado ou o direito de resolução são alguns exemplos tradicionais de direitos potestativos.
O elemento ontológico que distingue esta espécie de direito subjetivo da relação jurídico-obrigacional funda-se na ausência do dever de prestar e, nesse sentido, na impossibilidade de inadimplência por parte da pessoa em situação de sujeição. O efeito produzido pelo exercício do direito potestativo é, por regra, automático, não necessitando de qualquer intervenção do destinatário quanto à sua conformação, sem prejuízo de, nalguns casos, ser ainda necessária a intervenção de uma autoridade administrativa ou judicial para a completude do efeito jurídico pretendido. Em todo o caso, este atinge a esfera da pessoa “sujeita” independentemente de atos materiais ou jurídicos cuja prática dependam apenas e exclusivamente de si. O proprietário do prédio sobre o qual recai uma servidão de passagem pode impedir materialmente o acesso do titular do direito potestativo, mas não pode obstar ao – ou de alguma forma bloquear o – efeito produzido pelo exercício do direito; da mesma forma, o exercício de uma opção de venda sobre um determinado objeto produz, regra geral e de forma automática, o efeito real pretendido – a transmissão do direito de propriedade sobre o objeto – sem que o adquirente possa, de um ponto de vista jurídico, impedir a sua conformação.
A qualificação de uma determinada situação jurídica como constituindo um direito potestativo não se deve apenas basear em critérios e razões qualitativas, hierárquicas, de importância jurídica ou socioeconómica em função da situação em concreto; ela deve atender também – e principalmente – ao caráter jurídico-funcional que o direito potestativo consagra e que se resume fundamentalmente na já referida ausência do dever de prestar. É exatamente por força da impossibilidade técnica de não cumprimento que o direito potestativo, de um ponto de vista funcional, liberta o titular da situação jurídica ativa de uma eventual dependência da “contraparte” (rectius: pessoa correlacionada) no sentido de ver assegurado o seu interesse por mero efeito do exercício do direito. Ora, para que uma situação relacional seja qualificada como direito potestativo/sujeição, é necessário que o efeito pretendido in casu seja viável, de um ponto de vista jurídico, tendo em consideração o objeto do próprio efeito previsto, sendo exatamente neste ponto que considero incorreta a qualificação do direito a (ter) uma conta bancária como direito potestativo. Passo a explicar.
O primeiro passo a tomar no sentido de justificar a qualificação da situação ativa como configurando um direito potestativo é precisamente averiguar qual o efeito produzido pelo mero exercício do direito por parte do seu titular (hic: consumidor/interessado). Ora, na situação em apreço, segundo o autor, “a consequência jurídica cominada” é (…) “no caso, a abertura de conta de SMB domiciliada na instituição de crédito escolhida pelo consumidor”. Defende o autor que a celebração do contrato de abertura de conta resulta no efeito automático e constitutivo produzido por força da declaração unilateral emitida pelo interessado; de outra forma, torna-se cliente da instituição de crédito.
O contrato bancário geral (ou, para alguns, contrato de abertura de conta) configura um contrato-quadro regulador de uma relação de clientela tendencialmente duradora e complexa, sujeita à celebração eventual de uma multiplicidade de negócios jurídicos unilaterais e bilaterais posteriores, autónomos, mas funcionalmente dependentes daquele, tais como o contrato de depósito à ordem, contrato de cartão bancário, emissão de ordens de transferência, etc. Ademais, e independente deste facto, os serviços bancários integrados nos SMB, nomeadamente serviços relativos à constituição, manutenção, gestão, titularidade e encerramento de conta de depósito à ordem, a emissão de cartão de débito, acessibilidade na movimentação de conta em caixas automáticas dentro da União Europeia, homebanking e acesso a balcões da instituição de crédito, bem como aceitação de depósitos, cumprimento de ordens de transferência e de pagamento, etc., são factos que estão sujeitos a um dever de prestar por parte da instituição de crédito – que pode sempre decidir não cumprir –, descaracterizando dessa forma a funcionalidade intrínseca a um eventual direito potestativo.
Não é possível, de um ponto de vista jurídico, atribuir um direito potestativo cujo efeito (aqui extintivo da obrigação) resultaria no cumprimento do dever de prestar; este facto dependerá sempre da atuação de uma outra pessoa, não bastando a mera declaração unilateral do titular do direito para que o tal efeito pretendido seja alcançado – e o seu interesse assim protegido. Também a qualificação desta situação ativa como direito potestativo e que resultaria automaticamente na celebração do contrato de abertura de conta tornar-se-ia, na prática, inútil, na medida em que a instituição de crédito teria sempre a faculdade de, ainda que injustificadamente, exercer o direito (também potestativo) à resolução desse mesmo contrato, desfuncionalizando, uma vez mais, aqueloutro direito[2].
Pergunto-me também se se seria viável, seguro e adequado, a atribuição de um direito potestativo, nos termos do qual bastasse a mera declaração unilateral do consumidor/interessado para a automática produção dos referidos efeitos constitutivos sem permitir que as instituições de crédito pudessem exercer algum controlo prévio no que toca à conformidade factual apresentada pelo interessado-requerente com os requisitos legais previstos na lei… Julgo que não e, aliás, parece também ter sido essa a posição do legislador. É preciso não esquecer que o próprio texto legislativo atribui à instituição de crédito o poder/dever de análise prévia da situação do interessado no sentido de averiguar o preenchimento dos pressupostos legais, culminando na possibilidade da instituição, mediante justificação, poder recusar a celebração do contrato de abertura de conta e, consequentemente, a prestação dos SMB (cfr. artigo 4.º, n.ºs 5 e 7 do Decreto-Lei n.º 27-C/2000). Neste caso, para além dos motivos que justificam a recusa, a instituição de crédito deverá informar o interessado (i) das alternativas que tem para reclamar do ato de recusa junto do Banco de Portugal e (ii) de outros meios de resolução alternativa de litígios que estejam disponíveis. A atribuição de um direito potestativo seria manifestamente incompatível com este procedimento previsto pelo regime aplicável. Pelo exposto concluo que a qualificação do direito a (ter) uma conta bancária fundada no Decreto-Lei n.º 27-C/2000 não é, summo rigore, um direito potestativo, mas um direito de crédito, encontrando-se, por outro lado, a instituição de crédito “sujeita” ao dever jurídico de contratar.
[1] Naturalmente que o presente texto em nada pretende atingir direta ou indiretamente o autor, nem o conteúdo do texto referenciado, mas apenas alargar o sempre bem desejado debate doutrinário sobre uma questão que considero relevante, em especial por todas as implicações jurídicas que extravasam o próprio tema dos SMB.
[2] A resolução ilícita (rectius: resolução infundada) não é, no meu entendimento, inválida. Ela produz os efeitos extintivos de qualquer declaração unilateral, sendo nessa circunstância equiparada ao incumprimento definitivo. No sentido da extinção do contrato por força da “resolução ilícita”, v., por exemplo, TRP, proc. n.º 1041/12.0TVPRT.P1, de 28 de outubro de 2015 (Anabela Dias da Silva); STJ, proc. n.º 2348/16.3T8VFR.L1-7, de 20 de março de 2021 (Luís Filipe Sousa).
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