A garrafa de vinho mais cara do que o jantar

Consumo em Ação

Por Leandro Pinto, Matilde Pinho e Rita Saramago

Hipótese: No dia 15 de junho, Joaquim telefonou para o restaurante Belos Cozinhados e reservou uma mesa para nove pessoas para as 21h. Joaquim combinou a ementa com  o empregado do restaurante. Com o grupo totalmente instalado e com os pratos já servidos, o empregado veio perguntar o que pretendiam beber. Joaquim pediu vinho e água para todos. Uns minutos depois, o empregado apareceu com uma garrafa de vinho na mão, que apresentou como sugestão do restaurante. Joaquim aceitou sem colocar qualquer questão sobre o preço, tendo sido pedida uma segunda garrafa de vinho a meio da refeição. Terminada a refeição, Joaquim pediu a conta e, quando esta chegou, ficou surpreendido com o valor apresentado (€ 1 500), dos quais € 1 300 diziam respeito às duas garrafas de vinho, referidas na conta como sendo “Barca Velha” (um conhecido vinho, bastante caro). Joaquim tem de pagar?

Resolução: No caso em análise, o processo negocial pode ser objeto de duas leituras diferentes. A primeira é considerar-se que foi celebrado apenas um contrato atípico que junta elementos de vários tipos. Neste caso, teríamos dois elementos principais – empreitada (no que à confeção do jantar diz respeito) e prestação de serviços (serviço do restaurante) – e dois elementos secundários – compra e venda (relativamente ao vinho e à água) e aluguer (talheres, cadeiras, mesas do restaurante). Diferentemente, pode autonomizar-se o contrato de compra e venda das garrafas de vinho, o que nos parece ser a solução mais correta para o tratamento do caso.

Quanto ao jantar, o contrato celebrou-se por telefone. Joaquim tem a obrigação de pagar o preço e o restaurante deve confecionar e servir o jantar.

No que respeita ao vinho, temos um contrato de compra e venda. Cabe analisar se o ato de apresentar a garrafa ao cliente consubstancia uma proposta contratual e se foi, de facto, celebrado um contrato. É inequívoco que o comportamento do empregado se apresenta como uma proposta contratual e que Joaquim, ao aceitar que este servisse o vinho, a aceitou. A questão incide no preço, que não é comunicado no momento da aceitação, o que nos levará posteriormente a discutir a validade do contrato, por violação do direito à informação do consumidor, plasmado no art. 8.º-1-c) da Lei de Defesa do Consumidor.

Antes de passarmos à questão da validade do contrato, importa percebermos qual seria a determinação mais correta do valor do vinho. Por força do Decreto-Lei n.º 138/90 de 26 de abril, é obrigatória a indicação dos preços dos bens e serviços colocados à disposição do consumidor no mercado, o que à partida pressupõe que o restaurante tinha afixada a tabela de preços praticados no estabelecimento comercial e, como é sabido por regras de experiência comum, teria também um menu à disposição dos seus clientes. Podemos, assim, concluir que o preço do vinho estava determinado, mas que não foi comunicado ao consumidor no momento de apresentação da proposta. Houve uma omissão por parte do empregado.

Terá havido uma prática comercial desleal e, consequentemente, o consumidor pode resolver o contrato? Se assim for, não tem de pagar qualquer valor pelas garrafas? Ou, pelo contrário, o empregado (e representante do restaurante) foi diligente e era o consumidor quem tinha o dever de solicitar o menu, verificando o preço do vinho?

Para determinar se existiu uma prática comercial desleal, recorremos ao Decreto-Lei n.º 57/2008, de 26 de março. Este regime pode ser analisado numa estrutura de pirâmide, em três níveis de análise diferentes: listagem normativa (arts. 8.º e 12.º), que indica práticas enganosas e agressivas em qualquer circunstância; práticas comerciais desleais em especial [art. 6.º-b) e c)]; cláusula geral (arts. 4.º e 5.º).

A prática em apreço não se enquadra nas listas dos arts. 8.º e 12.º, pelo que cabe averiguar se estamos perante uma prática comercial desleal em especial. Ao abrigo dos arts. 9.º-1-a) e 10.º-c), aplicáveis por remissão do art. 6.º-b), é discutível se a omissão do preço se traduz numa omissão de informação com requisitos substanciais para a decisão negocial. Atendendo às circunstâncias do caso concreto, nomeadamente o preço exorbitante do vinho, consideramos que sim, pois trata-se de uma informação de relevo, que interferiria, com elevada probabilidade, na decisão negocial do consumidor. Deste modo, esta informação deveria ter sido transmitida pelo profissional, através do seu representante (empregado), e não foi, impossibilitando Joaquim de tomar uma decisão negocial esclarecida.

Embora Joaquim não tenha especificado as bebidas no ato da reserva, tendo em conta o contexto e o preço médio da refeição, entendemos que foi tacitamente acordado um limite para o custo do vinho. O entendimento esperado de um cliente colocado na posição de Joaquim seria o de que o vinho não custaria mais de € 30, o preço médio de uma garrafa de vinho num restaurante.

Por este motivo, consideramos que se verificou uma prática comercial desleal especial por omissão.

Se dúvidas ainda existissem, chegaríamos à mesma conclusão através do nível seguinte de análise, a cláusula geral, plasmada no art. 5.º-1. Esta cláusula inclui quatro requisitos cumulativos[1]: (i) relação jurídica de consumo; (ii) existência de uma  prática comercial; (iii) contrariedade à diligência profissional; (iv) suscetibilidade da distorção do comportamento económico do consumidor.

Tendo já sido feita a verificação relativa aos pontos (i) e (ii), passamos a dedicar a nossa atenção aos pontos (iii) e (iv).

Tendo em conta o preço avultado do vinho comparado com o preço da refeição, seria expectável que o profissional, ao sugeri-lo, informasse o cliente, evitando que este fosse surpreendido em momento posterior. O comportamento não foi honesto, contrariando a diligência profissional que incumbe ao profissional.

A falta de honestidade teve como efeito o cliente ter um comportamento diferente daquele que teria caso tivesse todas as informações. Atendendo ao preço avultado do vinho, é (quase) certo que Joaquim adotaria um comportamento diferente se tivesse sido informado, não aceitando a proposta.

Paralelamente, a determinação do valor do vinho não resultou de um acordo entre as partes, tendo sido definido um valor de forma unilateral por parte do restaurante (em respeito pelas regras de fixação de preços que não cabe aqui aprofundar), valor este que não foi comunicado a Joaquim.

Violado o direito à informação do consumidor, Joaquim teria o direito de resolução do contrato, por força do art. 8.º-4 da Lei de Defesa do Consumidor. Tal implicaria que o consumidor tivesse de devolver o bem ao vendedor e este deixaria de poder exigir a obrigação de pagamento do preço. Neste caso, é evidente que esta não é uma solução adequada, uma vez que o vinho é um bem consumível e que, neste caso, já foi consumido durante a refeição, ficando Joaquim impossibilitado de devolver o conteúdo da garrafa.

Tratando-se de uma prática comercial desleal, aplica-se o art. 14.º-1 do Decreto-Lei n.º 57/2008 e o consumidor pode exigir a redução adequada do preço do bem, solução adequada neste caso. Em vez de serem cobrados € 1300 euros pelas duas garrafas, seria fixado um preço mais reduzido por cada garrafa, de acordo com o preço de mercado de um vinho, normalmente recomendado num restaurante como o Belos Cozinhados e expectável pelo consumidor médio colocado naquela posição.

Respondendo à questão colocada, Joaquim tem de pagar, mas não o valor exigido pelo restaurante. O valor deverá ser reduzido, equivalendo ao valor de mercado de duas garrafas de um vinho médio, normalmente recomendado em restaurantes como o Belos Cozinhados, cujo preço seja expectável para o consumidor médio colocado na posição do Joaquim.


[1] Jorge Morais Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 7.ª edição, Almedina, 2020, p. 142.

A Camisola que estava na caixa “Tudo a € 10” por engano

Consumo em Ação

Por Leandro Pinto, Matilde Pinho e Rita Saramago

Hipótese: Xénia, consumidora, entrou numa conhecida loja de roupa e retirou uma camisola de uma caixa que continha a indicação “Tudo a € 10”. Quando chegou à caixa percebeu que a camisola estava naquela caixa por engano, custando € 23, tal como indicado na etiqueta. Xénia ficou sem saber o que fazer. O que lhe diria?

Resolução: No caso em apreço, parece existir uma proposta contratual por parte da loja[1]. A declaração é completa, já que revela o conteúdo mínimo do contrato a celebrar. É também precisa, uma vez que não deixa dúvidas acerca dos elementos do contrato a celebrar. Ademais, é evidente a intenção inequívoca de contratar, pelo que o requisito da firmeza também se verifica, bem como o da adequação formal, dado que a celebração deste contrato não se encontra sujeita a forma especial (art. 219.º do Código Civil).

Cumpridos todos os requisitos, basta a proposta ser aceite para o contrato ser celebrado, sendo o ato de aceitação de Xénia levar a camisola até à caixa[2]. No momento da aceitação, Xénia concorda com todos os aspetos contratualmente relevantes da proposta e, consequentemente, é celebrado o contrato.

Xénia só se apercebe do preço real da camisola quando chega à caixa, isto é, quando já aceitou a proposta. Ora, um declaratário normal assumiria que o preço que lhe é indicado na caixa é, efetivamente, o preço do bem, nos termos do art. 236.º do Código Civil. Assim, neste contexto, podemos considerar que existiam, em rigor, duas propostas: uma com um preço de € 10 e outra com um preço de € 23.

O consumidor pode concluir o negócio aceitando a proposta com o preço mais baixo.

Esta resposta pressupõe um determinado enquadramento: a camisola deve encontrar-se dobrada juntamente com outras as camisolas. Por hipótese, se a camisola se encontrasse desarrumada numa caixa cheia de cintos com a mesma legenda (“Tudo a € 10”), poderíamos concluir que um declaratário normal poderia deduzir que a legenda não se aplicaria à camisola e, por isso, não seria esse o preço aplicável. De facto, era expectável de um consumidor diligente que o entendesse e que não tentasse tirar proveito da situação.

Semelhante seria o caso em que Xénia via a etiqueta na qual estava indicado o preço de € 23 e, mesmo assim, levava a camisola até à caixa com a intenção de comprá-la pelo preço indicado na caixa. É incontestável que esta atitude não espelha a diligência esperada de um consumidor.

Hipótese diferente seria o caso em que Xénia se dirigia à caixa e, quando o artigo passa no scanner, aparece no ecrã a indicação de € 5. Consideramos este momento posterior à celebração do contrato. A proposta tinha um preço (€ 10) e a aceitação não pode alterar a proposta. Deste modo, se a proposta já foi aceite, Xénia estaria a incumprir a obrigação, ainda que não de forma culposa, se pagasse apenas os € 5. O preço a pagar deve ser aquele que foi acordado, isto é, o preço pelo qual o consumidor aceitou a proposta contratual emitida pelo profissional.


[1] Sobre os requisitos da proposta, cfr. Jorge Morais Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 7.ª edição, Almedina, 2020, pp. 79 a 81.

[2] Sobre os estabelecimentos que funcionam em autosserviço, cfr. Carlos Ferreira de Almeida, Texto e Enunciado na Teoria do Negócio Jurídico, Vol. II, Almedina, 1992, p. 818; José de Oliveira Ascensão, Direito Civil – Teoria Geral, Vol. II, Coimbra Editora, 1999, p. 458.

O Robô de Cozinha da Lena

Consumo em Ação

Por André Neves, Beatriz Pereira e Luís Cruz

Hipótese: Lena foi a uma demonstração de Bimbitas a casa de uma amiga e acabou por comprar um robô de cozinha. Apenas o fez porque a representante da marca também lhe ofereceu a possibilidade celebrar um contrato de crédito com outra empresa. Lena nem precisava de se preocupar, pois a empresa de crédito pagaria diretamente à Bimbitas, Lda. o valor do robô de cozinha, ficando Lena apenas com a obrigação de pagar as prestações mensais relativas ao crédito. Quando a Bimbita chegou, Lena percebeu que esta não funcionava. Já passou algum tempo e a questão não está resolvida. Lena tem de continuar a pagar as prestações?

Resolução: Lena celebrou dois contratos: um contrato de compra e venda de uma Bimbita com a Bimbitas, Lda., e um contrato de crédito ao consumo com outra empresa. Primeiramente, há que analisar que direitos pode a Lena exercer em relação à Bimbita que comprou à Bimbitas, Lda.. De seguida, importa averiguar se estamos perante um contrato de crédito coligado. Dados estes passos, conseguiremos dar resposta à questão.

Quanto aos direitos que Lena poderá eventualmente exercer em relação à Bimbita, importa analisar o DL 67/2003. Parecem estar preenchidos os quatro elementos do conceito de consumidor (art. 1.º-B-a)): elemento subjetivo, elemento objetivo, elemento teleológico e elemento relacional. Assim sendo, estando perante um contrato de compra e venda (art. 1.º-A-1), podemos concluir que o diploma é aplicável à relação contratual em análise.

Refere o art. 2º-1 que “[o] vendedor tem o dever de entregar ao consumidor bens que sejam conformes com o contrato de compra e venda”, e as alíneas do art. 2.º-2 são no fundo “critérios [formulados pela negativa] que têm como objetivo definir os elementos que integram o contrato, […] para depois, no momento do cumprimento, [se] aferir se o objeto prestado corresponde ao objeto contratado”[1] [2]. Assim sendo, não obstante a sua letra, o art. 2.º-2 não deve ser interpretado no sentido de consagrar uma presunção[3]; em termos figurados, diríamos que a norma se dirige ao consumidor, “dizendo-lhe” que se ele conseguir provar um dos factos previstos nas alíneas, em princípio haverá falta de conformidade[4]. Sendo que a Bimbita pura e simplesmente não funciona, parece-nos que Lena conseguiria desde logo provar, quer o facto descrito na alínea d), quer o facto descrito na alínea c)[5], pelo que, não estando obviamente em causa o art. 2.º-3, há falta de conformidade.

Dispõe o art. 3.º-1 que o vendedor responde perante o consumidor por qualquer falta de conformidade que exista no momento em que o bem lhe é entregue, e o n.º 2 do mesmo artigo explicita, para o que nos importa, que as faltas de conformidade que se manifestem num prazo de dois anos a contar da data de entrega de coisa móvel corpórea presumem-se existentes já nessa data. Ora, estando perante uma dispensa ou liberação do ónus da prova[6], cabe ao profissional fazer prova de que a falta de desconformidade não existia no momento da entrega do bem. Assim sendo, a Bimbitas, Lda. teria de provar um facto posterior concreto, que não lhe seja imputável, gerador da falta de conformidade[7], e tanto quanto sabemos esse facto não existiu.

Tendo a Bimbitas, Lda. de responder pela falta de conformidade, Lena tem os quatro direitos previstos no art. 4.º-1, sendo livre de exercer o que entender, uma vez que não é estabelecida qualquer hierarquia entre eles[8], tendo apenas como limite a impossibilidade e o abuso de direito (art. 4.º-5). Uma vez que a Bimbita não funciona, parece-nos que faria sentido que Lena pedisse a reparação, a restituição ou a resolução do contrato, embora pudesse também pedir uma redução adequada do preço, caso fosse essa a sua vontade. Entendemos que nenhuma das opções constituiria abuso de direito (e com toda a probabilidade não se levantariam problemas de impossibilidade) e, portanto, Lena tem dois anos a contar da data da entrega do bem para exercer um dos direitos referidos (art. 5.º-1).

É referido no enunciado que já passou algum tempo desde que a Bimbita chegou e a questão não está resolvida. Ora, se a questão não estiver resolvida porque Lena não chegou a interpelar a Bimbitas, Lda., caso já tenha passado mais de dois meses da data em que detetou a desconformidade, ela não poderá exercer os direitos que lhe são atribuídos nos termos do art.4.º (art. 5.º-A-2). Não temos informações relativas ao facto de Lena ter ou não interpelado a Bimbitas, Lda. dentro do prazo referido; contudo, para efeitos de prossecução na resolução da hipótese, vamos assumir que interpelou e, não obstante, não teve o seu problema resolvido.

Posto isto, importa agora partir para a análise da questão principal à luz do DL 133/2009, que, à partida, é aplicável ao contrato de crédito ao consumo celebrado entre Lena e a empresa de crédito (art. 1.º-2 e art. 4.º-1 a), b) e c) do referido diploma)[9].

Para concluirmos se Lena tem ou não de continuar a pagar as prestações mensais relativas ao crédito, temos de perceber se existe uma conexão bastante entre o contrato de compra e venda e o contrato de crédito ao consumo. O DL em análise tem uma figura interessantíssima, que é a figura do contrato de crédito coligado, cuja definição se pode encontrar no seu art. 4.º-1-o). Ora, o pressuposto da i) está verificado, na medida em que o crédito concedido serve exclusivamente para financiar o pagamento do preço do fornecimento da Bimbita. Quanto ao da ii), está igualmente verificado: ambos os contratos constituem objetivamente uma unidade económica, desde logo porque a empresa de crédito recorreu à Bimbitas, Lda. para a celebração do contrato de crédito[10]. Estando os dois pressupostos preenchidos, podemos concluir no sentido de que temos um contrato de crédito coligado.

Havendo um contrato de crédito coligado, podemos partir para a análise do art. 18.º, que refere, no seu n.º 2, que “a invalidade ou revogação do contrato de compra e venda repercute-se, na mesma medida, no contrato de crédito coligado”. Ora, não obstante a norma não aludir à ineficácia, seguimos Fernando de Gravato Morais[11] e Jorge Morais Carvalho, ensinando-nos o último que “tendo em conta a razão de ser do preceito, e não existindo diferenças substanciais entre as duas situações, […] [deve entender-se que] noutros casos de ineficácia, diversos da revogação (leia-se exercício do direito de arrependimento), a norma também tem aplicação”[12]. Assim sendo, importa agora analisar o DL 24/2014, que ao que tudo indica é aplicável à relação contratual entre Lena e a Bimbitas, Lda., na medida em que tudo nos leva a crer que estamos perante um contrato entre um consumidor e um profissional celebrado fora do estabelecimento comercial (art. 2.º-1, art. 3.º-g)-iv), art. 3.º-c) e art. 3.º-i)). Nos termos do art. 10.º-1-b) deste diploma, regra geral, o consumidor tem direito de arrependimento no prazo de 14 dias a contar do dia em que adquire a posse física do bem. Ora, o enunciado parece dar-nos a entender que este prazo já passou (“Já passou algum tempo”); contudo, caso não tenha passado, Lena pode exercer este direito nos termos do art. 11.º e, portanto, ver automaticamente repercutir-se a ineficácia do contrato de compra e venda no contrato de crédito ao consumo (art. 18.º-2 do DL 133/2009), tendo “o dever de informar o financiador da ineficácia do contrato de crédito para que este possa tomar as medidas que entenda adequadas no âmbito da sua relação com o vendedor ou prestador do serviço”[13]. Nesta situação, Lena não teria de continuar a pagar as prestações mensais relativas ao crédito[14], tal como não teria de continuar a pagá-las se, partindo do pressuposto de que estaríamos dentro do prazo previsto pelo art. 17.º do DL 133/2009, exercesse o direito de arrependimento relativamente ao contrato de crédito[15].

Resta-nos analisar o art. 18.º-3, o qual refere que, no caso de desconformidade no cumprimento de contrato de compra e venda coligado com contrato de crédito, o consumidor que, após interpelação do vendedor[16], não tenha obtido deste a satisfação do seu direito ao exato cumprimento do contrato, pode interpelar o financiador para exercer uma de três pretensões previstas nas alíneas do art. 18.º-3. Assumindo que Lena já interpelou a Bimbitas, Lda. para que esta procedesse ao cumprimento pontual do contrato, e esta não prestou o bem “em conformidade com o contrato dentro de um prazo razoável, […] pode aquela recorrer ao financiador com o objetivo de salvaguardar a sua contraprestação”[17]. Se a Lena tivesse exercido o direito de reparação ou de substituição perante a Bimbitas, Lda., poderia exercer a exceção de não cumprimento do contrato perante o financiador (art. 18º-3-a)). Por outro lado, se eventualmente tivesse exigido a redução do preço perante a Bimbitas, Lda., o que no caso não faria muito sentido, poderia interpelar o financiador no sentido de exigir a redução do montante do crédito em montante igual ao da redução do preço (art. 18º-3-b)). E, por fim, caso tivesse exercido o direito de resolução perante a Bimbitas, Lda., poderia exigir a resolução do contrato de crédito perante o financiador (art. 18º-3-c)). Existe um paralelismo entre as soluções relativamente ao contrato de crédito e as soluções relativamente ao contrato de compra e venda, isto é, Lena pode fazer repercutir no contrato de crédito a solução que resulta do direito que tiver exercido relativamente ao contrato de compra e venda (qualquer um dos previstos no art. 4.º-1 do DL 67/2003). Sem prejuízo do que aqui foi exposto, partindo do pressuposto de que Lena quer, de facto, a Bimbita e, por isso, exerceu o seu direito de reparação ou de substituição perante a Bimbitas, Lda. (art. 4.º-1 DL 67/2003), o qual não foi satisfeito, pode interpelar o financiador e exercer a exceção do não cumprimento do contrato (art. 18.º-3-a) do DL 133/2009), não pagando, assim, as prestações mensais relativas ao crédito enquanto o bem não for reparado ou substituído pela Bimbitas, Lda..


[1] JORGE MORAIS CARVALHO, Manual do Direito do Consumo, Almedina, 2020, p.285.

[2] Ac. do STJ de 19 de novembro de 2015, Processo n.º 139/12.0TVLSB.L1.S1 (Oliveira Vasconcelos).

[3] JORGE MORAIS CARVALHO e MICAEL MARTINS TEIXEIRA, Duas Presunções Que Não São Presunções: A Desconformidade na Venda de Bens de Consumo em Portugal, in “Revista de Direito do Consumidor”, Vol. 27, n.º 115, 2018, pp. 311-330.

[4] JOÃO CALVÃO DA SILVA, Venda de Bens de Consumo, Almedina, 2003, p. 61.

[5] Bastaria provar um deles, mas de facto o não funcionamento geral da Bimbita cabe perfeitamente tanto na alínea c) quanto na alínea d).

[6] JORGE MORAIS CARVALHO, Manual do Direito do Consumo, cit., p. 319.

[7] Ibidem, p. 320.

[8] Ibidem, p. 323.

[9] Não temos elementos que nos levem a concluir em sentido contrário.

[10] JORGE MORAIS CARVALHO, Manual do Direito do Consumo, cit., p. 463.

[11] FERNANDO GRAVATO DE MORAIS, Crédito aos consumidores, Almedina, 2009, p. 88.

[12] JORGE MORAIS CARVALHO, Manual do Direito do Consumo, cit., p. 464.

[13] Ibidem, p. 465

[14] E teria obviamente direito a que lhe fosse devolvido o montante que já tivesse pago, tanto no caso em que exerce o direito de arrependimento relativamente ao contrato de compra e venda perante a Bimbitas, Lda.., quanto no caso em que exerce o direito de arrependimento relativamente ao contrato de crédito perante a empresa de crédito.

[15] Nos termos do art. 18º-1, a ineficácia do contrato de crédito resultante do exercício do direito de arrependimento repercutir-se-ia também no contrato de compra e venda. Vd. FERNANDO GRAVATO DE MORAIS, Crédito aos consumidores, cit., p. 87

[16] Para que o consumidor possa interpelar o financiador, antes tem de se ter dirigido ao vendedor. Vd. FERNANDO DE GRAVATO MORAIS, Crédito aos consumidores, cit., pp. 89-89.

[17] JORGE MORAIS CARVALHO, Manual do Direito do Consumo, cit., p. 467.

O Barco Comprado Através do Facebook

Consumo em Ação

Por Beatriz Alves, Diogo Sereno e Pedro Catanho

Hipótese: No dia 13 de dezembro de 2017, Diamantina estava a navegar na internet quando surgiu no seu feed de notícias do Facebook a seguinte mensagem, colocada pela empresa Barcos & Barcos, Lda.: “Grande oportunidade. Compre um barco da marca Velejar 4300. Como novo. Preço imbatível: € 120 000. Financiamento pela empresa Crédito para Barcos, S.A.”. A mensagem continha ainda uma foto de um barco da marca Velejar 4300. Entusiasmada, Diamantina enviou de imediato uma mensagem de correio eletrónico à Barcos & Barcos, dizendo que estava muito interessada, mas que pretendia ver o barco antes de decidir. No dia seguinte, a Barcos & Barcos respondeu, também por correio eletrónico, agradecendo o contacto e anexando dois documentos, designados Contrato de compra e venda de barco e Proposta de crédito, ambos contendo um conjunto de cláusulas. Diamantina foi ver o barco no dia 17 de dezembro de 2012 e, apesar de ter ficado um pouco desiludida por perceber que este tinha apenas uma janela, ao contrário do barco da foto que constava da mensagem do Facebook, assinou os documentos. Dois dias depois, a empresa Crédito para Barcos aprovou o crédito, tendo a Barcos & Barcos entregue a Diamantina as chaves do barco. Indique o modelo de celebração deste contrato, qualificando cada uma das mensagens referidas no enunciado.

Resolução: No caso em concreto verificamos a celebração de um contrato de compra e venda e um possível contrato de crédito. Por tal, será necessário focar as nossas atenções nos regimes legais aplicáveis e nos trâmites que deles derivam.

Para a resolução do caso sub judice é necessário abordar cinco aspetos cruciais. Primeiramente temos de averiguar se estamos perante uma proposta contratual quando analisamos o anúncio da empresa Barcos & Barcos. A declaração negocial constitui uma proposta contratual quando esta for completa, firme, formalmente adequada e precisa, sendo uma “declaração em que a iniciativa de vinculação contratual pertence ao seu autor”[1].

Uma proposta é completa e firme quando todos os elementos essenciais e necessários para a celebração do contrato estão presentes. No caso em análise, este requisito não levanta dúvidas, visto que toda a informação fulcral para a aceitação do contrato está presente. Relativamente à forma adequada, verifica-se que estamos perante um contrato de compra e venda de um barco, bem móvel que não está sujeito a forma legalmente exigida, cumprindo assim este requisito.

Assim, concluímos que estamos perante uma proposta contratual sendo esta, em concreto, feita ao público. Neste tipo de proposta há uma indeterminação e fungibilidade dos destinatários.

Deste modo, verificados todos os requisitos de uma proposta, concluímos que bastaria um sim do destinatário para que se considerasse aceite e o contrato concluído. A proposta contratual, a partir do momento em que é formulada, “independentemente de ser ou não aceite, investe cada uma das pessoas que satisfaça os requisitos nela previstos no direito potestativo de formação do contrato e coloca o proponente na situação de sujeição correspondente”[2] , ficando assim vinculado a cumpri-la.

Neste seguimento, para a formação de um contrato é necessária a aceitação por parte de Diamantina, ou seja, uma declaração dirigida ao proponente, que reflete uma concordância com todos os aspetos contratualmente relevantes da proposta apresentada. Tem, no entanto, que cumprir dois requisitos: a conformidade com a proposta (ideia subjacente ao art. 232.º do Código Civil) e a adequação formal.

Importa agora analisar o financiamento pela empresa Crédito para Barcos, S.A.. Também aqui é necessário verificar os mesmos requisitos para concluir se estamos perante uma proposta ou um mero convite a contratar. Neste caso, um simples sim de Diamantina não chegaria para a concretização do contrato de crédito.

No que diz respeito a contratos de crédito, temos sempre de considerar que, sem ter sido feita a avaliação da solvabilidade (art. 10.º do DL 133/2009), não é possível considerar a declaração como uma proposta. Trata-se de um convite a contratar, pois, após avaliação da solvabilidade, o credor tem a possibilidade de recusar-se a conceder o crédito. Efetivamente, o próprio regime do crédito ao consumo impõe um dever de avaliação da solvabilidade, desde 2009, no direito português. O que distingue a proposta contratual do convite a contratar é que este último não preenche todos os requisitos supramencionados, uma vez que a aceitação do convite a contratar não leva à celebração do contrato.

Coloca-se agora a questão de saber se há ou não uma relação entre o contrato de crédito e o contrato de compra e venda.

O contrato de compra e venda pode estar intimamente ligado ao contrato de crédito, se Diamantina necessitar do crédito para conseguir comprar o barco. Neste caso, a celebração do contrato de compra e venda poderá estar dependente da eficácia do contrato de crédito. 

Podemos também abrir a hipótese de o contrato de crédito não colocar em causa o contrato de compra e venda, visto que a consumidora não é obrigada a celebrar ambos os contratos, podendo optar apenas pela celebração do contrato de compra e venda.

Para o seguimento de análise do caso partiremos desta última hipótese, em que a junção de uma proposta de contrato e um eventual convite a contratar não põe em causa a compra e venda do barco, uma vez que esta, por si só, é considerada como uma proposta.

A mensagem enviada por Diamantina por correio eletrónico pode considerar-se como uma aceitação da proposta ao público emitida pela empresa Barcos & Barcos? Como supramencionado, para ser considerada uma aceitação é necessário que, in casu, da mensagem enviada por Diamantina, seja possível retirar uma concordância com todos os aspetos referidos no anúncio, mesmo que tal não seja expressa, tendo por base os arts. 234.º e 217.º do Código Civil. Podemos então concluir, atendendo ao conteúdo da mensagem, que não estamos perante uma declaração de aceitação, na medida em que esta não revela uma concordância em relação ao conteúdo da proposta.

Será, por sua vez, uma proposta contratual?

Para ser uma proposta contratual, teria que reunir as já anteriormente referidas características: ser completa, contendo todo o conteúdo que a lei exija e que as partes entendam ser necessário para a celebração do negócio; precisa, não podendo resultar dúvidas acerca da forma e do conteúdo do contrato a celebrar; firme, não só revelando de forma inequívoca que há intenção de contratar como também, da sua aceitação pela outra parte, resultar a celebração automática do contrato; formalmente adequada, que por regra é livre exceto nos casos em que a lei preveja forma especial.

Não podemos considerar que se trata de uma proposta contratual, na medida em que Diamantina não decidiu ainda se pretende adquirir o barco ou não, já que esta só decidirá depois de ver o barco. Por isso, não é firme. Nesse sentido, é um convite a contratar, já que não cumpriu todos os requisitos para ser considerada uma proposta contratual. O convite a contratar não vincula o proponente à realização de qualquer negócio jurídico.

Em resposta a Diamantina, a Barcos & Barcos, Lda., envia uma mensagem de correio eletrónico, anexando dois documentos denominados “Contrato de compra e venda de barco” e “Proposta de crédito”, contendo cada um deles um conjunto de cláusulas. Importa então perceber se estamos perante uma proposta contratual ou um convite a contratar.

Relativamente à compra do barco, estamos perante uma situação semelhante à da primeira proposta efetuada pela Barcos & Barcos, com a diferença de que esta já não é uma proposta dirigida ao público, mas sim dirigida diretamente a Diamantina. Podemos concluir que estamos perante uma declaração completa, precisa, firme e formalmente adequada. Consequentemente, Diamantina vê surgir na sua esfera jurídica um direito potestativo de aceitação da proposta, aceitação essa que produziria os efeitos contratualmente previstos, estando então a empresa Barcos & Barcos numa situação de sujeição. Posto isto, assim que a declaração de aceitação fosse do conhecimento da Barcos & Barcos, a declaração negocial tornar-se-ia eficaz.

Já quanto ao contrato de crédito, levantam-se as mesmas questões acima referidas. Estamos perante um mero convite a contratar, uma vez que ainda será necessária a avaliação da solvabilidade de Diamantina.

Por último, e para rematar o caso, temos de considerar dois momentos. Em primeiro lugar, o momento em que Diamantina assina os documentos contratuais e, em segundo lugar, o momento em que, posteriormente, a empresa Crédito para Barcos, S.A., aprova o crédito. Quando o crédito é aprovado, ficam ainda a faltar certos elementos, nomeadamente a assinatura e a entrega de cópia do documento contratual. A partir desse momento, já não estaremos perante um convite a contratar, mas sim perante uma proposta contratual. A aceitação dá-se com a assinatura dos documentos contratuais, ficando Diamantina vinculada nos termos da proposta da Barcos & Barcos. Quanto à entrega dos documentos contratuais ao consumidor, importa relembrar que, se não houver assinatura pelo credor no contrato de crédito e se não for entregue um exemplar do contrato ao consumidor, a consequência é a nulidade do negócio jurídico (art. 13.º-1 do DL 133/2009). Quando a Barcos & Barcos entrega as chaves do barco, dá-se a entrega da coisa, sendo já este um ato de cumprimento do contrato, posterior à sua celebração.


[1] Carlos Ferreira de Almeida, Texto e enunciado na teoria do negócio jurídico, Almedina, 1992, p. 784.

[2] Carlos Ferreira de Almeida, Texto e enunciado na teoria do negócio jurídico, Almedina, 1992, p. 788

A Odisseia da Troca das Prendas de Natal

Consumo em Ação

Por Carolina Silva e Leonor Guiomar

Hipótese: Teodoro recebeu duas prendas iguais no Natal, compradas na mesma loja. Os talões contêm a seguinte indicação: “trocas até ao dia 3 de janeiro”. Quando se dirigiu à loja para efetuar a troca, a funcionária informou Teodoro que este apenas poderia trocar o seu bem por outro de igual valor (e não por um de valor superior, como Teodoro pretendia, pagando a diferença de preço). A funcionária também informou Teodoro de que política da loja não admite a atribuição de vales. Teodoro pode fazer alguma coisa?

Resolução: No caso em apreço, somos confrontados com uma questão referente à interpretação da informação presente no talão entregue a Teodoro (T). Ora, uma vez que esse talão não tinha todas as informações posteriormente dadas pela funcionária da loja, cabe-nos interpretar o sentido da declaração negocial à luz do art. 236.º-1 do Código Civil (CC). Posto isto, o declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, iria olhar para a indicação do talão e entender que é possível proceder à troca por outra ou outras coisas de valor igual ou diferente (pagando a respetiva diferença, no caso de o valor ser superior).

Outra questão é o facto de podermos estar perante uma prática desleal, o que nos leva à aplicação do regime das práticas comerciais desleais (Decreto-Lei n.º 57/2008).

Este diploma é aplicável “às práticas comerciais desleais das empresas nas relações com os consumidores” (art. 1.º-1). Cumpre apreciar se T é consumidor para efeitos do diploma.

Não parecem existir factos que obstem à consideração de T como consumidor, dado que se encontram preenchidos os elementos previstos do art. 3.º. Começando pelo elemento subjetivo, tem-se em conta a alínea a), concluindo-se que T é uma pessoa singular. É ainda nesta alínea que se evidencia a verificação do elemento teleológico, na medida em que T não pretendia utilizar a prenda para fins profissionais. Também a alínea b) parece estar devidamente preenchida, dado que a loja se enquadra abrangida na definição de profissional aí presente (elemento relacional). Por fim, temos a alínea d), que reflete o elemento objetivo, estando em causa uma prática comercial. Perante o exposto, concluímos, então, que T é considerado consumidor para efeitos do DL 57/2008.

Cumpre, agora, analisar se a prática levada a cabo pela loja pode ser considerada desleal. A prática não se inclui em nenhuma das situações enumeradas nos arts. 8.º e 12.º do diploma, pelo que temos de recorrer aos arts. 7.º, 9.º e 11.º, que se referem às práticas enganosas e agressivas, respetivamente.

Olhando para as características do caso concreto, encaixamos esta prática no art. 9.º-1, estando em causa uma prática que conduz ou é pelo menos suscetível de conduzir o consumidor a tomar uma decisão diferente daquela que teria tomado. Ora, em virtude da omissão de uma informação fundamental, nomeadamente, “a troca estar limitada a bens do mesmo valor”, T foi privado de efetuar a troca nos termos em que seria expectável que o pudesse fazer. Ademais, poderíamos reforçar esta ideia recorrendo à cláusula geral presente no art. 5.º.

A omissão realizada pela loja é proibida, não só pelo art. 4.º do diploma indicado, como também parece colidir com o art. 60.º da Constituição da República Portuguesa, que tutela o direito à informação, um dos direitos fundamentais dos consumidores.

Por estarmos perante uma prática comercial desleal, são aplicáveis sanções contraordenacionais (arts. 19.º e segs.), pode ser invocada a invalidade do contrato (art. 14.º) e o profissional incorre em responsabilidade civil (art. 15.º). Em suma, T pode exigir a troca por coisa(s) de valor diferente. Ao mesmo tempo, poderá ser aplicada ao profissional uma sanção contraordenacional relativa à prática comercial desleal.

Direito de arrependimento e cláusulas contratuais

Consumo em Ação

Por Luís Neves, Pedro Barata e Shiping Shen

Hipótese: Qual das seguintes cláusulas é admissível de acordo com o Decreto-Lei n.º 24/2014?

a) Cláusula de renúncia ao direito de arrependimento num contrato de prestação de serviços de comunicações eletrónicas com período de fidelização de 24 meses;

b) Cláusula de acordo com a qual o direito de arrependimento só pode ser exercido através de carta registada com aviso de receção;

c) Cláusula que estipule que o direito de arrependimento deve ser exercido num prazo máximo de 7 dias úteis;

d) Cláusula que estabeleça que, em caso de exercício do direito de arrependimento, as despesas de devolução do bem superiores a € 10 serão suportadas pelo consumidor.

Resolução: Aplica-se o DL 24/2014, pelo que se pressupõe que as cláusulas em questão advêm de contratos celebrados à distância ou fora do estabelecimento comercial.

a) O art. 11.º-7 estabelece que as cláusulas que prevejam a renúncia ou uma penalização para o exercício do direito de livre resolução por parte do consumidor são nulas. O art. 29.º fixa o caráter imperativo do regime. Mesmo que se tivesse acordado integrar esta cláusula no contrato, esta seria nula. O direito ao arrependimento é um direito de suma importância para o consumidor. Nos contratos celebrados à distância ou fora do estabelecimento, a necessidade de proteção é ainda maior, devido à utilização de métodos consideravelmente mais agressivos de comercialização, em que o consumidor é muitas vezes surpreendido.

b) O art. 11.º-1 estabelece que o consumidor pode exercer o direito de arrependimento através do envio de um modelo de livre resolução ou de qualquer outra declaração inequívoca da vontade de findar o contrato. O n.º 2 especifica que a declaração de vontade é inequívoca se tiver sido comunicada através de qualquer meio, desde que suscetível de prova. O consumidor pode assim exercer o direito através de carta registada com aviso de receção, mas não pode ser limitado a exercê-lo apenas através dessa forma. Face ao art. 29.º, o leque de hipóteses em alternativa previsto no art. 11.º não pode ser limitado. Conclui-se que a cláusula é nula.

c) Segundo o art. 10.º-1, o consumidor pode exercer o direito de livre resolução num prazo de 14 dias a contar da data da entrega, no caso de contratos de compra e venda, ou a contar da data da celebração do contrato, em contratos de prestação de serviços. O prazo pode ser alargado em benefício do consumidor, mas nunca reduzido. Como o regime é imperativo, a cláusula é nula.

d) A regra geral estabelecida no 13.º-2 estabelece que é o consumidor quem suporta o custo da devolução dos bens, exceto se se verificarem as situações previstas nas alíneas do preceito. Segundo a alínea a), o consumidor deixa de ter que pagar o valor relativo à devolução do bem se o fornecedor tiver assumido esses custos. A alínea b) vai mais longe, estabelecendo que, se o fornecedor não tiver comunicado previamente que é o consumidor quem suporta os custos, deve aquele suportá-los. Recorrendo a uma interpretação a contrario sensu desta alínea, se o consumidor não tiver sido informado, cabe ao fornecedor arcar com os custos. Está em causa uma cláusula contratual, tendo o consumidor sido previamente informado. Conclui-se, assim, que a cláusula é válida.

Laranjas do Algarve e a relevância contratual da publicidade

Consumo em Ação

Por André Neves, Beatriz Pereira e Luís Cruz

Hipótese: Xavier viu um anúncio na televisão com a seguinte mensagem: “Laranjas do Algarve a € 0,70 o quilo. Só esta semana, no sítio de que mais gosta”. Entusiasmado, Xavier dirigiu-se ao supermercado, mas foi informado de que as laranjas do Algarve estavam agora a € 1,20 o quilo. O que pode Xavier fazer?

Resolução: O primeiro passo a dar na resolução de uma hipótese como esta é analisar se o anúncio constitui uma proposta contratual. Ora, não se levantam problemas a esse nível, na medida em que estamos perante uma declaração completa, precisa, firme e formalmente adequada[1]. Mais concretamente, uma vez que se trata de uma proposta que não tem destinatário ou destinatários determinados, podemos qualificá-la como sendo uma proposta ao público[2].

Esta modalidade de proposta contratual “coloca o [seu] emitente […] em situação de sujeição […], concedendo a cada um dos destinatários indeterminados o direito potestativo de concluir o contrato”[3] . Significa isto que, caso consideremos que a proposta não foi válida e eficazmente revogada pelo supermercado, está nas mãos de Xavier celebrar ou não o contrato por 0,70 euros o quilo.

Assim sendo, importa referir que a proposta ao público é eficazmente revogável quando é feita na forma da oferta ou em forma equivalente (art. 230.º-3 do Código Civil – CC), ainda que seja durante o período de duração da proposta fixado pelo proponente (art. 228.º-2)[4]. A questão é complexa, e partindo do pressuposto de que a eventual revogação da proposta opera por via de um anúncio similar àquele em que foi emitida (que passou na televisão durante o período entre o qual Xavier viu o primeiro anúncio e chegou ao supermercado), à primeira vista poderíamos ser levados a crer que houve efetivamente uma revogação da primeira proposta e uma nova proposta já com o preço de 1,20 euros o quilo. Contudo, entendemos que essa não é a melhor interpretação para esta situação em concreto.

Há um elemento de atração fundamental na publicidade, na medida em que o grande objetivo da empresa, quando emite um anúncio na televisão, é promover a aquisição ou estimular a procura[5], fazendo com que os consumidores se dirijam ao supermercado. Assim sendo, se Xavier se dirige ao supermercado depois de ter visto o anúncio, e porque viu o anúncio, parece-nos que não podemos considerar que neste caso tenha havido uma revogação da proposta contratual em relação a ele. Aliás, impedir esta revogação parece-nos uma forma adequada de “responsabilizar os lojistas” quanto à forma como indicam os preços.

O anúncio diz expressamente que as laranjas estão a 0,70 euros o quilo durante aquela semana. Xavier dirige-se ao supermercado para as comprar e só quando lá chega é que é informado que, entretanto, o preço aumentou. Numa interpretação do art. 230.º-3 do CC à luz dos princípios fundamentais orientadores do ordenamento jurídico, nomeadamente à luz da boa-fé (art. 9.º-1 da Lei de Defesa do Consumidor), parece-nos que é necessário “dar um tempo”, isto é, parece-nos que os consumidores que estejam a deslocar-se para a loja em virtude de terem visto o anúncio não podem ser abrangidos pela revogação operada por meio do segundo anúncio (que nem sequer temos a certeza se existiu).

Tendo em conta a razão de ser do art. 230.º-3, entendemos que só um anúncio que, em circunstâncias normais, permitisse a Xavier ter a perceção de que o preço havia aumentado antes de se ter deslocado ao supermercado, é que poderia configurar uma revogação da proposta “feita na forma da oferta ou em forma equivalente” em relação a si.

Se porventura não tiver existido nenhum anúncio posterior ao que configurou a proposta, ainda mais fortalecida se torna a nossa posição de que não há qualquer revogação que abranja Xavier. Pela teleologia dos argumentos já expostos, que a este caso também se aplica, a tentativa de revogação da proposta que havia sido operada por meio de um anúncio, tentativa essa feita já no supermercado, não pode abranger quem se dirige ao mesmo precisamente para comprar o produto anunciado e por conta de ter visto o tal anúncio. Não havendo qualquer revogação que abranja Xavier, este tem o direito potestativo de concluir o contrato por 0,70 euros o quilo, sendo que a sua aceitação dar-se-á no momento em que apresentar as laranjas na caixa, pois será nesse momento que manifestará de forma inequívoca a sua intenção de aceitar a proposta.


[1] Ac. do STJ, de 27 de outubro de 2011, Processo nº 2279/07.8TBOVR.C1.S1 (Oliveira Vasconcelos).

[2] Jorge Morais Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 7.ª edição, Almedina, 2020, p. 83.

[3] Carlos Ferreira de Almeida, Direito do Consumo, Almedina, 2005, p. 98.

[4] Admitimos que no caso em que é anunciado um período de duração de determinada proposta (“Só esta semana”) e essa proposta é revogada, poderemos estar perante uma prática comercial desleal, assim como admitimos a eventual possibilidade de, em tal caso, por via da articulação entre a norma geral e as normas especiais de direito do consumo, se considerar o prazo como vinculativo. Contudo, uma vez que neste caso conseguimos garantir a proteção do consumidor por uma outra via, a nosso ver mais clara, decidimos optar por essa outra via.

[5] Carlos Ferreira de Almeida, “Conceito de Publicidade”, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 349, 1985, pp. 115-134.

Música para os ouvidos de Paul

Consumo em Ação

Por Francisco Colaço, Heloísa Monte e Tiago Pedro

Hipótese: Paul, músico, cidadão alemão que vive e trabalha em Portugal há alguns anos, amante de música oriental, estava em casa sem nada para fazer e decidiu proceder ao download da aplicação Chinese Songs, gerida por uma empresa chinesa, a partir da App Store. Quando Paul começou a utilizar a aplicação, teve de se registar e dar o seu consentimento para a recolha de dados, incluindo a música que ouvia, a hora do dia e o local. Estes dados seriam então tratados pela empresa para descobrir a hora e o local de uso do telefone por parte do utilizador. Paul não precisava de pagar nenhum valor para fazer o download ou para se registar na aplicação. De acordo com as informações disponíveis nos termos e condições, o utilizador pode ouvir cinco músicas completas por dia, sem interrupções. Quando Paul estava a ouvir a segunda música, esta foi interrompida a meio por publicidade. Os termos e condições também indicam que a lei chinesa é aplicável a qualquer litigioso resultante do contrato.

Questão 1 – Assumindo que a lei alemã é mais favorável ao consumidor, seguida da lei portuguesa e finalmente da lei chinesa, qual será a lei aplicável ao contrato?

Para determinarmos qual a lei aplicável, temos de recorrer ao Regulamento Roma I, o qual trata da lei aplicável às obrigações contratuais, em especial quando estão em causa obrigações contratuais em matéria comercial que impliquem um conflito de leis. De acordo com o art. 3.º, prevalece a liberdade de escolha das partes quanto ao direito aplicável, pelo que se aplicaria, à partida, a lei chinesa, em resultado dos Termos e Condições previstos no contrato celebrado entre Paul e a Chinese Songs. Todavia, numa análise mais atenta, verificamos que se trata de uma cláusula contratual geral, e tendo em conta que um contrato não deve criar um desequilíbrio entre as partes, podemos eventualmente considerá-la como uma cláusula potencialmente abusiva, a qual não vincularia o consumidor e não poderia ser invocada pelo profissional. Por conseguinte, deixando de ser vinculativa, estaríamos perante a falta de escolha quanto ao direito a aplicar, o que nos conduziria para o art. 4.º, segundo o qual, perante a falta de escolha, é aplicável a lei do país em que o vendedor tem a sua residência habitual.  Tratando-se de uma pessoa coletiva (empresa gestora da Chinese Songs), é considerado o lugar da sua sede, pelo que se aplicaria a lei chinesa. Neste sentido, independentemente de ter existido ou não um acordo entre as partes, ou de estarmos ou não perante uma cláusula abusiva, seríamos sempre conduzidos para a aplicabilidade da lei chinesa.

No entanto, no art. 6.º do Regulamento encontramos um regime especial que se destina aos contratos celebrados por consumidores, o qual prevê que seja aplicável a lei do país onde o consumidor reside habitualmente, se se verificar uma de duas condições: (i) o profissional exerça as suas atividades no país onde o consumidor reside habitualmente ou, (ii) por qualquer meio, dirigir as suas atividades a esse país.

Neste sentido, primeiramente teremos de verificar se Paul pode ser qualificado como consumidor, para efeitos de aplicação do Regulamento Roma I. Importa referir que este conceito de consumidor é um conceito restrito, na medida em que basta uma utilização profissional, ainda que mínima, para que Paul não possa ser qualificado como consumidor. Assim, mediante os dados apresentados, não obstante o Paul ser músico, iremos assumir que o elemento teleológico se encontra preenchido, ou seja, que Paul fez o download das músicas com a única finalidade de satisfação pessoal, despido de qualquer intenção profissional, uma vez que o fez por ser um apaixonado por música oriental e se encontrar num momento de lazer. Ultrapassada esta questão, constata-se que os demais elementos constitutivos do conceito de consumidor (objetivo, subjetivo e relacional) não levantam dúvidas face à sua verificação, pelo que, de acordo com o art. 6.º-1, Paul é consumidor.

Relativamente às condições impostas pelo artigo, pode desde logo excluir-se a possibilidade de a empresa exercer atividade através de um estabelecimento localizado em Portugal, uma vez que não temos dados que nos orientem nesse sentido, acrescendo o facto de a aplicação poder ser descarregada a partir de um qualquer lugar geográfico. Por conseguinte, resta-nos aferir se essa empresa direciona as suas atividades para o país onde o consumidor tem residência habitual, ou seja, para Portugal. Paul, quando estava na sua residência (em Portugal), fez o download da aplicação a partir da App Store e registou-se na mesma. Assumindo que as cláusulas estavam escritas em português e que o download foi possível tendo em consideração a localização e os dados do utilizador (uma vez que nem todas as aplicações estão disponíveis em todos os países) e que não existiu da parte de Paul uma procura específica na China por esse tipo de serviço, podemos concluir que a Chinese Songs direciona as suas atividades (também) para um público português. Assim, verificados os pressupostos, afasta-se a aplicabilidade dos arts. 3.º e 4.º e, de acordo com o art. 6.º, será aplicável a lei Portuguesa (que é a mais favorável). Não obstante, se a lei chinesa fosse mais favorável, Paul poderia invocar a sua aplicação ao abrigo do art. 6.º-2 do Regulamento. 

Resta acrescentar que, não descurando a complexidade existente em distinguir na internet o tipo de consumidor que se trata, este é um artigo que visa garantir uma proteção acrescida do chamado consumidor passivo, ou seja, do consumidor que contrata sem sair do seu país, em contraposição ao consumidor ativo (ou tradicionalmente turista), que ativamente se desloca para ser consumidor, contratando no âmbito de uma relação internacional[1].

Questão 2 – Paul pode exercer algum direito contra a empresa que gere a aplicação? Responda tendo em conta a legislação europeia.

Para determinar os possíveis direitos de Paul na presente situação, primeiramente temos que aferir se existe alguma desconformidade no contrato celebrado. Ora, Paul celebrou um contrato inicial misto de conteúdos e serviços digitais (com maior predominância na prestação de serviços digitais, por associação a uma aplicação, esta última, conteúdo digital), matéria que é regulada pela Diretiva 2019/770

Recorrendo ao art. 7.º-a) da Diretiva, verificando-se uma desconformidade (subjetiva) com o contrato, na medida em que o serviço digital prestado a Paul não corresponde à descrição feita pelo profissional. Naturalmente, podemos questionar se as cinco músicas sem interrupções são seguidas ou se serão cinco músicas sem interrupções ao longo do dia, num universo de muitas mais, uma vez que o modo como se interpreta pode ter implicações práticas. Ora, o critério mais adequado para esclarecer esta questão passará por recorrer a uma interpretação à luz do art. 236.º do Código Civil, segundo a qual se deve colocar um declaratário normal na posição do real declaratário e daí retirar o sentido depreendido por este (sentido objetivo). Por conseguinte, é sensato afirmar que o declaratário normal colocado na posição de Paul, entenderia que a descrição constante das cláusulas contratuais gerais corresponderia às primeiras cinco músicas que fossem ouvidas, sendo impossível, de outra forma, determinar o número de músicas ouvidas por um utilizador ao longo do dia. Assim, perante os factos apresentados, estamos perante uma desconformidade evidente entre o serviço contratado e o serviço prestado.

O art. 14.º da Diretiva 2019/770 elenca os direitos do consumidor: reposição da conformidade, redução proporcional do preço ou resolução do contrato. Poderia, neste caso, Paul exigir uma redução do preço? Parece-nos lógico que não, porque, ainda que exista uma contraprestação associada, não existe um preço. O direito à resolução do contrato não traria também qualquer vantagem para Paul, uma vez que os seus efeitos típicos passariam pelo término da prestação do serviço digital e pela devolução do preço, o que remete para o problema acima apresentado. Acresce ainda que a eventual “vantagem” que Paul poderia obter, no que respeita ao tratamento dos dados pessoais, poderia sempre ser alcançada por outras vias, como através da revogação de consentimento ou através do direito ao esquecimento, previstos respetivamente nos arts. 7.º e 17.º do RGPD. Assim, no nosso entender, a solução mais adequada passa, neste caso, pela reposição da conformidade.


[1] Claudia Lima Marques, “Por um direito internacional de proteção dos consumidores: sugestões para a nova lei de introdução ao Código Civil brasileiro no que se refere à lei aplicável a alguns contratos e acidentes de consumo”, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Vol. 24, n.º 1, 2004, pp. 89-137, p. 94.

A Melhor Bolacha do Mundo

Consumo em Ação

Por Inês Alves, Joana Sousa e Mariana Soeiro

Hipótese: Belmira foi a um estabelecimento comercial e pediuuma bolacha que estava anunciada como sendo “a melhor bolacha do Mundo”. Não gostou e agora pretende saber se pode fazer alguma coisa. O que lhe diria?

Resolução: Este caso remete-nos para a matéria das práticas comerciais desleais, regulada pela Diretiva 2005/29/CE, transposta para o ordenamento jurídico português pelo Decreto-Lei n.º 57/2008.

Nos termos do art. 1.º-1, o diploma é “aplicável às práticas comerciais desleais das empresas nas relações com os consumidores, ocorridas antes, durante ou após uma transação comercial relativa a um bem ou serviço”. Nesta lógica, cumpre aferir se Belmira se afigura como uma consumidora, na aceção da noção presente no art. 3.º-a).

Os elementos inerentes ao conceito de consumidor (subjetivo, objetivo, teleológico e relacional estão todos verificados, uma vez que Belmira é uma pessoa singular, a quem foi fornecido um bem de consumo – “a melhor bolacha do Mundo” – para uso imediato e não profissional, tendo este bem sido facultado por um estabelecimento comercial, no âmbito da sua atividade profissional. Belmira é, portanto, consumidora na aceção do DL 57/2008.

A questão que se prende com o anúncio da bolacha é relativa à existência ou não de uma prática comercial desleal. Cumpre referir, a priori, que a prática comercial em causa não está presente em nenhuma das listas dos arts. 8.º e 12.º do DL, pelo que devemos analisar a cláusula geral do art. 5.º-1, que define prática comercial deslealcomo a prática “desconforme à diligência profissional, que distorça ou seja suscetível de distorcer de maneira substancial o comportamento económico do consumidor seu destinatário ou que afete este relativamente a certo bem ou serviço”. Daqui se retiram quatro requisitos: relação jurídica de consumo, prática comercial, prática desconforme com a diligência profissional e prática capaz ou suscetível de distorcer o comportamento económico do consumidor.

Como já constatámos acima, Belmira é consumidora, pelo que o primeiro critério está verificado. Seguidamente, da leitura do art. 3.º-d) conclui-se que o segundo requisito se verifica, porquanto houve uma ação com relação direta com o bem, isto é, um tipo determinado de bolachas foram anunciadas como as melhores do Mundo, constituindo uma prática comercial.

A verificação do terceiro requisito abre espaço a discussão: agiu o profissional de acordo com a diligência profissional?

Para resolvermos esta questão, urge que se analise a declaração negocial à luz da existência de dolus bonus, consagrado na Diretiva 2005/29/CE e no art. 253.º do Código Civil.

Não obstante a sua previsão nestes diplomas, há quem entenda que o instituto do dolus bonus não se aplica no Direito do Consumo[1] por se afigurar como uma contradição em relação ao princípio da lealdade e ao direito à informação, presentes na legislação especial de proteção dos consumidores e no art. 60.º da Constituição da República Portuguesa. A permissão de práticas que consistem em “fazer afirmações exageradas ou afirmações que não são destinadas a ser interpretadas literalmente” (art. 5.º-3 da Diretiva 2005/29/CE) ou em “sugestões ou artifícios usuais”, bem como a “dissimulação do erro” (art. 253.º-2 do Código Civil), seria, para quem defende esta posição, incompatível com os já referidos princípios aplicáveis a contratos de consumo, pelo que não deveria ser admitida. Em virtude disto, aquando da transposição da Diretiva 2005/29/CE para o ordenamento jurídico português, o referido instituto foi deliberadamente omitido, não constando do DL 57/2008.

Todavia, e apesar das críticas, a Diretiva em apreço é de harmonização máxima, pelo que não permite uma diminuição ou um aumento da proteção do consumidor, a não ser na medida em que essa possibilidade esteja expressamente prevista o que, pela análise do considerando 12, não se verifica. Por conseguinte, consideramos que, mediante uma interpretação do direito nacional conforme o direito europeu, devemos admitir o dolus bonus nos termos da legislação europeia.

O art. 5.º-3 da Diretiva prevê que “a prática publicitária comum e legítima que consiste em fazer afirmações exageradas ou afirmações que não são destinadas a ser interpretadas literalmente” seja permitida. Ora, in casu, é exatamente isto que se sucede: num primeiro ponto, importa realçar o pendor subjetivo da afirmação “melhor bolacha do Mundo”, visto que essa classificação depende de aceções “subjetivas e insuscetíveis de uma verificação objetiva, por padrões científicos ou comprováveis”[2]; em segundo lugar, a leitura do caso revela a ausência de qualquer certificado que comprove a afirmação; por fim, um consumidor médio, utilizando-se como marco de referência o consumidor “normalmente informado e razoavelmente atento e advertido” (considerando 18 da Diretiva 2005/29/CE), compreende que este anúncio contém uma expressão exagerada e desprovida de seriedade, como sucede com a Confeitaria “O Melhor Bolo de Chocolate do Mundo”, que é hoje uma marca registada, já espalhada pelo mundo, ou com os anúncios da Red Bull (“Red Bull dá-te Asas”), pelo que este anúncio, apesar de poder influenciar o comportamento de Belmira, não prejudica a sua aptidão para tomar uma decisão esclarecida.

Pelo exposto, podemos concluir que a declaração negocial estava isenta da intenção de enganar, constatando-se que o estabelecimento comercial agiu com diligência profissional, de acordo com a expectativa razoável de competência e cuidado de um profissional, baseada no princípio da boa-fé. Belmira não poderá exigir nada do estabelecimento comercial, uma vez que não estamos perante uma prática comercial desleal.


[1] Relativamente à noção presente no CC, Carlos Ferreira de Almeida considera-a uma permissão de “certas práticas de ludíbrio” e de “omissão de informação”, que deve ser inadmissível em contratos de consumo: Carlos Ferreira de Almeida, “Invalidades em Contratos de Consumo”, in De Legibus Revista de Direito, n.º 0, 2020, pp. 17 a 38, pp. 22 a 23.

[2] Jorge Pegado Liz, “Práticas Comerciais Proibidas”, in Estudos do Instituto de Direito do Consumo, Vol. IV, 2014, pp. 79 a 141, p. 107.