O vinho mais barato da carta

Doutrina

Em muitos restaurantes, ocorre um fenómeno estranho que consiste na rutura de stock da garrafa de vinho mais barata da carta. O cliente, ao pedir essa garrafa de vinho, é informado de que esta não se encontra disponível, tendo de escolher outra. Por vezes, essa informação é acompanhada de uma sugestão de outra garrafa de vinho, normalmente sem indicação do respetivo preço[1]. Veremos neste texto se estas práticas são lícitas, à luz dos princípios da transparência e da lealdade.

A apresentação de uma lista ou carta com a indicação da comida e das bebidas constitui uma proposta contratual apresentada pela entidade gestora do restaurante (que designaremos simplesmente por restaurante) ao cliente. O restaurante fica numa situação de sujeição e o cliente tem o direito potestativo de fazer um pedido consistente com a informação constante da carta, pedindo o que aí estiver indicado. Se o cliente pedir uma garrafa de vinho constante da carta, celebra-se então um contrato relativo a essa garrafa. Este contrato é um contrato misto, pois inclui, além da própria garrafa (objeto principal do contrato, que aponta no sentido de se tratar de um contrato essencialmente de compra e venda), o serviço associado à sua abertura e, por vezes, à colocação nos copos, o aluguer dos copos e tudo o que está subjacente à utilização do espaço (utilização das cadeiras e da mesa, música, etc.). Celebrado o contrato, o restaurante tem de fornecer a garrafa de vinho. Se se recusar a fazê-lo, haverá incumprimento da obrigação por parte do restaurante.

O restaurante pode incluir na carta a indicação de que o vinho não se encontra disponível. Pode haver um risco ou uma cruz ao lado ou por cima da garrafa de vinho em causa. Neste caso, a proposta não inclui essa garrafa de vinho, não se desencadeando os efeitos referidos no parágrafo anterior. Se não for incluída essa informação, poderá ainda considerar-se a possibilidade de uma rutura de stock. No entanto, para que o argumento da rutura de stock seja eficaz, legitimando a conduta do restaurante, é necessário que tal tenha sucedido imediatamente antes do pedido, não tendo dado tempo para, antes da disponibilização da lista, ser incluída a informação referida no início deste parágrafo.

Antes da celebração do contrato, o restaurante deve informar o consumidor sobre os bens e serviços fornecidos e o respetivo preço, nos termos do art. 8.º da Lei de Defesa do Consumidor. Essa informação pode constar da carta, mas a norma não será cumprida se, apresentada a carta, não houver indicação clara relativamente a objetos indisponíveis. Acresce que, qualquer sugestão feita oralmente pelo representante do restaurante, deve igualmente, nos termos da mesma norma, ser acompanhada da informação relativa ao preço. A omissão do preço, ainda que este conste da lista, constitui uma violação do art. 8.º da Lei de Defesa do Consumidor.

Esta prática coloca ainda em causa o princípio da lealdade. Isto porque pode ser suscetível de levar o cliente a adquirir uma garrafa de vinho mais cara do que aquela que pretendia inicialmente.

Aplica-se, então, o regime das práticas comerciais desleais (DL 57/2008).

Podemos estar perante uma omissão enganosa (arts. 9.º e 10.º), por faltar, pelo menos, uma informação essencial para a decisão de contratar do consumidor: a indicação da inexistência do bem. Como indicado anteriormente, poderá faltar igualmente outro elemento essencial: o preço da garrafa de vinho sugerida pelo restaurante.

A prática pode igualmente consubstanciar uma ação enganosa. Com efeito, nos termos do art. 8.º-e), é proibida a prática que consiste em “propor a aquisição de bens ou serviços a um determinado preço sem revelar a existência de quaisquer motivos razoáveis que o profissional possa ter para acreditar que não pode, ele próprio, fornecer ou indicar outro profissional que forneça os bens ou serviços em questão ou equivalentes, àquele preço (…)”. A alínea f) proíbe ao profissional “propor a aquisição de bens ou serviços a um determinado preço e, com a intenção de promover um bem ou serviço diferente, recusar posteriormente apresentar aos consumidores o bem ou o serviço publicitado”.

Para a aplicação destas alíneas, é necessário que a prática seja intencional, ou seja, que haja uma estratégia no sentido de levar o consumidor a, no caso, adquirir uma garrafa de vinho mais cara. A circunstância de a garrafa mais barata não estar muitas vezes disponível aponta nesse sentido, mesmo quando o menu indica que a garrafa está temporariamente indisponível, se de facto estiver excecionalmente disponível[2].

Havendo uma prática comercial desleal, o restaurante está sujeito à aplicação de sanções contraordenacionais (art. 21.º). O consumidor pode pedir o livro de reclamações para dar a conhecer a prática à ASAE.

O consumidor tem ainda direito à redução adequada do preço ou à resolução do contrato ou a exigir uma indemnização do restaurante. A resolução do contrato, após ter consumido a garrafa de vinho, parece constituir uma situação de abuso do direito. É mais equilibrada, tendo em conta a situação, a redução adequada do preço, para o preço da garrafa mais barata pedida num primeiro momento, em especial nos casos em que o consumidor não tenha sido informado adequadamente do preço da nova garrafa. O risco de ter sido feita uma sugestão de uma garrafa muito mais cara correrá, assim, por conta do restaurante, o que parece ser uma solução ajustada aos valores subjacentes ao caso.


[1] Este tema já foi discutido aqui no blog no texto “A Garrafa de Vinho mais Cara do que o Jantar”. Nesse caso, o cliente não tinha chegado a ver a lista, tenho sido sugerido pelo representante do restaurante que a refeição fosse acompanhada por um Barca Velha. Também aí se concluiu, como neste texto, que a redução adequada do preço é a solução mais equilibrada.

[2] Num contexto diferente, descreve-se a prática identificada, em Espanha, no sentido de indicar que o terminal de pagamentos se encontra avariado para forçar os consumidores a pagar com dinheiro. A circunstância de o aviso de avaria do terminal estar plastificado e apresentar sinais da passagem do tempo aponta claramente no sentido de que se trata, não de um problema temporário, em vias de resolução, mas de uma prática intencional de forçar o pagamento em notas e moedas.

50% de noção (ou breve reflexão sobre o conceito de «preço mais baixo anteriormente praticado»)

Doutrina

Chegada a época franca do frio e das castanhas, aproxima-se também sem pudores a época dos descontos apocalípticos, das sextas-feiras negras e dos fatídicos dias em que milhares de adultos (em Portugal e no mundo inteiro) renunciam temporariamente à sua dignidade para, num salto mais comprido ou num atropelo mais bem conseguido, sem piedade pelo próximo, arrecadarem de irresistíveis prateleiras milimetricamente organizadas os afamados brinquedos com “descontos nunca antes vistos”.

Mas será mesmo assim? Procurei, de forma perfunctória e sem qualquer pretensão de rigor científico, em 2022 e agora, em 2023, comparar os preços de determinados produtos ao longo do ano e durante este período promocional escatológico. Cheguei à conclusão de que, em muitos casos, bens que em período promocional e com “50% de desconto” apresentavam um determinado preço, eram vendidos a um preço muito semelhante, sem descontos, meses antes, no mesmo estabelecimento comercial.

Não é uma novidade. Uma breve pesquisa pela Internet permite encontrar diversas queixas de particulares e até mesmo de associações ligadas à defesa do consumidor que vão no mesmo sentido da conclusão da minha pesquisa: muitos estabelecimentos comerciais manipulam o preço ao longo do ano de modo a que, embora cumprindo de forma literal o que se encontra legalmente estabelecido, o desconto real para o consumidor seja quase nulo.

O Decreto-Lei n.º 70/2007, de 26 de março, que regula as práticas comerciais com redução de preço nas vendas a retalho praticadas em estabelecimentos comerciais, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 109-G/2021, de 10 de dezembro, que transpôs parcialmente a Diretiva (EU) 2019/2161 do Parlamento Europeu e do Conselho, relativa à defesa dos consumidores (Diretiva Omnibus, já abordada no Blog aqui e aqui), determina, no artigo 6.º, que durante a realização de práticas comerciais com redução de preço, nas modalidades de venda previstas, os letreiros devem exibir de forma clara o novo preço e o preço mais baixo anteriormente praticado. O preço mais baixo anteriormente praticado é, na aceção dada pelo diploma, “o preço mais baixo a que o produto foi vendido nos últimos 30 dias consecutivos anteriores à aplicação da redução do preço” (artigo 3.º, n.º 2, alínea a)).

É evidente que à teleologia da norma subjaz uma proteção e segurança acrescida para o consumidor e não o seu oposto. A leitura dos Considerandos da primitiva Diretiva 98/6/CE do Parlamento e do Conselho, relativa à defesa dos consumidores em matéria de indicações dos preços dos produtos, possibilita inferir de forma clara que o que está em causa é o direito que o consumidor tem a um funcionamento honesto do mercado e à informação “precisa, transparente e inequívoca” sobre os preços dos produtos que lhe estão a ser oferecidos.

No mesmo sentido vai o preâmbulo do Decreto-Lei n.º 109-G/2021 ao declarar que o objetivo de se tomarem por referência os preços praticados nos 30 dias anteriores à redução do preço, incluindo aqueles que o sejam em eventuais períodos de saldos ou de promoções, é garantir uma maior proteção dos consumidores no âmbito das práticas comerciais de redução de preço e assegurar um maior equilíbrio do mercado, acrescentando que as comparações com preços de referência devem ser efetivamente reais, “por forma a assegurar a livre e esclarecida formação de vontade pelos consumidores”.

Não se trata, pois, de um assunto de mera aritmética. Ao adotar esta redação, o legislador teve a pretensão de assegurar que, ao apresentar o preço mais baixo praticado nos 30 dias anteriores à data da redução do preço, o consumidor pudesse fazer uma comparação razoável entre o valor mais baixo que o profissional esteve disposto a atribuir a um determinado bem e o valor desse bem com desconto, a fim de ter uma ideia real da poupança final.

Sabemos que, no que diz respeito aos preços dos produtos, há flutuações de mercado, inflação, e muitos outros fatores que têm impacto na variação do valor final. Por outro lado, pese embora o meu inexperto estudo de mercado me tenha dado sinais de alarme, também é certo que poderá não ser uma prática absolutamente generalizada.

Contudo, a verdade é que, pelo menos nalguns casos, podemos afirmar com segurança que estamos perante um insólito paradoxo, que nos poderá até mesmo remeter para o conceito de prática comercial desleal: o cumprimento formal de uma norma e a concomitante violação da ratio que a preside.

Adaptando livremente um adágio conhecido, “a ignorância do consumidor nunca aproveitará ao próprio”, a verdade é que, em 2023, o “consumidor médio” tem acesso a um conjunto de ferramentas que lhe permite acompanhar a evolução dos preços dos produtos e até mesmo comparar com os preços praticados em diversos estabelecimentos comerciais. Ainda assim, nesta relação assimétrica, incumbe às empresas não só cumprir o que se encontra disposto na lei, mas também promover uma conduta profissional ética que respeite o princípio da boa-fé e a contraparte do negócio.

Os exercícios de benchmarking legal e regulatório são sempre interessantes e permitem conhecer as boas (e más) práticas que poderão (ou não), no futuro, ser adotadas (ainda que com adaptações).

Nos EUA, há cerca de 50 anos, a Federal Trade Commission (FTC)[1] decidiu[2] que a melhor forma de evitar práticas abusivas ou enganadoras no que diz respeito aos preços seria a ausência de enforcement nesta matéria, partindo do princípio que a livre concorrência faria naturalmente a regulação do mercado. Contudo, a realidade provou que nem sempre é assim[3] e as ações judiciais coletivas relacionadas com práticas enganosas de indicação de preços (deceptive pricing practices) têm-se sucedido[4][5].

Ainda assim, parece-me interessante o caminho seguido pela FTC nas suas Guides Against Deceptive Pricing[6]. Nestas orientações, a FTC define cinco situações distintas: (i) comparação com preço anteriormente praticado (former price comparisons); (ii) comparação de preços entre retalhistas (retail price comparisons; comparable value comparisons); (iii) publicidade de preços de retalho estabelecidos ou “PVP recomendado” (advertising retail prices which have been established or suggested by manufacturers or other nonretail distributors); (iv) ofertas de produtos na compra de outro produtos (bargain offers based upon the purchase of other merchandise); e (v) comparações de preços com critérios iguais quando se trata de situações distintas (miscellaneous price comparisons).

Para os propósitos deste texto gostaria de me deter apenas na primeira orientação: comparação com o preço anteriormente praticado. Nesta orientação, a FTC define o preço anteriormente praticado como o preço verdadeiro pelo qual o artigo foi vendido ao público de forma regular, durante um período considerável e estável, e apenas admite como verdadeira a prática de redução de preço que tenha como referência os preços praticados com este critério. Caso a redução de preço apresentada tenha como base um preço anteriormente praticado artificialmente inflacionado, a oferta é considerada falsa ou enganadora[7].

Esta construção normativa alicerçada no princípio da boa-fé onera o profissional e permite adicionar um critério interpretativo importante para a definição do conceito. A comunicação correta e verdadeira da informação relativa ao preço anteriormente praticado é essencial para a formação do animus contrahendi do consumidor que, quando compra um bem com redução de preço, fá-lo por acreditar que vai pagar um preço inferior ao preço de venda habitual e que, naquele momento, conhece qual é a diferença real entre os dois preços.

Por outro lado, o critério de estabilidade e de continuidade temporal do preço anteriormente praticado previne manipulações abusivas ou alterações arbitrárias por parte do profissional e viabiliza um controlo maior do lado do consumidor. A utilização destes parâmetros obriga, como se pode constatar pelo exemplo dos EUA, a uma vigilância mais constante e mais apoiada no poder coercitivo, mas pode significar também uma proteção mais eficaz do consumidor.

Perante o exposto, impõe-se, pois, avaliar a aplicação do artigo 3.º, n.º 2, alínea a) do Decreto-Lei n.º 70/2007 e questionar se a definição de “preço mais baixo anteriormente praticado” tal qual como se encontra descrita nos termos atuais serve de facto os interesses do consumidor; ou se não será tempo de adotar novos critérios que componham uma definição mais robusta e menos permeável a manipulações e violações diretas de direitos fundamentais dos consumidores, como são o direito à informação e à transparência.


[1] Agência governamental americana com a missão de regulamentar e promover a proteção dos consumidores, instituída em 1914 pelo Federal Trade Commission Act (https://www.ftc.gov/about-ftc/history).

[2] https://scholarship.law.stjohns.edu/cgi/viewcontent.cgi?referer=&httpsredir=1&article=4332&context=lawreview

[3] https://journals.sagepub.com/doi/10.1177/00222429231164640 apud https://news.nd.edu/news/disclosing-true-normal-price-recommended-to-protect-consumers-from-deceptive-pricing/  

[4] https://risnews.com/promotional-pricing-right-side-law

[5] https://content.next.westlaw.com/practical-law/document/I6dfb3ee4077511e89bf099c0ee06c731/Beware-of-the-Sale-Complying-with-Promotional-Pricing-Guidelines?viewType=FullText&transitionType=Default&contextData=(sc.Default)

[6] Disponíveis no Code of Federal Regulations, em https://www.ecfr.gov/current/title-16/chapter-I/subchapter-B/part-233, § 233.1 a § 233.5

[7]If the former price is the actual, bona fide price at which the article was offered to the public on a regular basis for a reasonably substantial period of time, it provides a legitimate basis for the advertising of a price comparison. Where the former price is genuine, the bargain being advertised is a true one. If, on the other hand, the former price being advertised is not bona fide but fictitious—for example, where an artificial, inflated price was established for the purpose of enabling the subsequent offer of a large reduction—the “bargain” being advertised is a false one; the purchaser is not receiving the unusual value he expects. In such a case, the “reduced” price is, in reality, probably just the seller’s regular price.

A garrafa de vinho mais cara do que o jantar

Consumo em Ação

Por Leandro Pinto, Matilde Pinho e Rita Saramago

Hipótese: No dia 15 de junho, Joaquim telefonou para o restaurante Belos Cozinhados e reservou uma mesa para nove pessoas para as 21h. Joaquim combinou a ementa com  o empregado do restaurante. Com o grupo totalmente instalado e com os pratos já servidos, o empregado veio perguntar o que pretendiam beber. Joaquim pediu vinho e água para todos. Uns minutos depois, o empregado apareceu com uma garrafa de vinho na mão, que apresentou como sugestão do restaurante. Joaquim aceitou sem colocar qualquer questão sobre o preço, tendo sido pedida uma segunda garrafa de vinho a meio da refeição. Terminada a refeição, Joaquim pediu a conta e, quando esta chegou, ficou surpreendido com o valor apresentado (€ 1 500), dos quais € 1 300 diziam respeito às duas garrafas de vinho, referidas na conta como sendo “Barca Velha” (um conhecido vinho, bastante caro). Joaquim tem de pagar?

Resolução: No caso em análise, o processo negocial pode ser objeto de duas leituras diferentes. A primeira é considerar-se que foi celebrado apenas um contrato atípico que junta elementos de vários tipos. Neste caso, teríamos dois elementos principais – empreitada (no que à confeção do jantar diz respeito) e prestação de serviços (serviço do restaurante) – e dois elementos secundários – compra e venda (relativamente ao vinho e à água) e aluguer (talheres, cadeiras, mesas do restaurante). Diferentemente, pode autonomizar-se o contrato de compra e venda das garrafas de vinho, o que nos parece ser a solução mais correta para o tratamento do caso.

Quanto ao jantar, o contrato celebrou-se por telefone. Joaquim tem a obrigação de pagar o preço e o restaurante deve confecionar e servir o jantar.

No que respeita ao vinho, temos um contrato de compra e venda. Cabe analisar se o ato de apresentar a garrafa ao cliente consubstancia uma proposta contratual e se foi, de facto, celebrado um contrato. É inequívoco que o comportamento do empregado se apresenta como uma proposta contratual e que Joaquim, ao aceitar que este servisse o vinho, a aceitou. A questão incide no preço, que não é comunicado no momento da aceitação, o que nos levará posteriormente a discutir a validade do contrato, por violação do direito à informação do consumidor, plasmado no art. 8.º-1-c) da Lei de Defesa do Consumidor.

Antes de passarmos à questão da validade do contrato, importa percebermos qual seria a determinação mais correta do valor do vinho. Por força do Decreto-Lei n.º 138/90 de 26 de abril, é obrigatória a indicação dos preços dos bens e serviços colocados à disposição do consumidor no mercado, o que à partida pressupõe que o restaurante tinha afixada a tabela de preços praticados no estabelecimento comercial e, como é sabido por regras de experiência comum, teria também um menu à disposição dos seus clientes. Podemos, assim, concluir que o preço do vinho estava determinado, mas que não foi comunicado ao consumidor no momento de apresentação da proposta. Houve uma omissão por parte do empregado.

Terá havido uma prática comercial desleal e, consequentemente, o consumidor pode resolver o contrato? Se assim for, não tem de pagar qualquer valor pelas garrafas? Ou, pelo contrário, o empregado (e representante do restaurante) foi diligente e era o consumidor quem tinha o dever de solicitar o menu, verificando o preço do vinho?

Para determinar se existiu uma prática comercial desleal, recorremos ao Decreto-Lei n.º 57/2008, de 26 de março. Este regime pode ser analisado numa estrutura de pirâmide, em três níveis de análise diferentes: listagem normativa (arts. 8.º e 12.º), que indica práticas enganosas e agressivas em qualquer circunstância; práticas comerciais desleais em especial [art. 6.º-b) e c)]; cláusula geral (arts. 4.º e 5.º).

A prática em apreço não se enquadra nas listas dos arts. 8.º e 12.º, pelo que cabe averiguar se estamos perante uma prática comercial desleal em especial. Ao abrigo dos arts. 9.º-1-a) e 10.º-c), aplicáveis por remissão do art. 6.º-b), é discutível se a omissão do preço se traduz numa omissão de informação com requisitos substanciais para a decisão negocial. Atendendo às circunstâncias do caso concreto, nomeadamente o preço exorbitante do vinho, consideramos que sim, pois trata-se de uma informação de relevo, que interferiria, com elevada probabilidade, na decisão negocial do consumidor. Deste modo, esta informação deveria ter sido transmitida pelo profissional, através do seu representante (empregado), e não foi, impossibilitando Joaquim de tomar uma decisão negocial esclarecida.

Embora Joaquim não tenha especificado as bebidas no ato da reserva, tendo em conta o contexto e o preço médio da refeição, entendemos que foi tacitamente acordado um limite para o custo do vinho. O entendimento esperado de um cliente colocado na posição de Joaquim seria o de que o vinho não custaria mais de € 30, o preço médio de uma garrafa de vinho num restaurante.

Por este motivo, consideramos que se verificou uma prática comercial desleal especial por omissão.

Se dúvidas ainda existissem, chegaríamos à mesma conclusão através do nível seguinte de análise, a cláusula geral, plasmada no art. 5.º-1. Esta cláusula inclui quatro requisitos cumulativos[1]: (i) relação jurídica de consumo; (ii) existência de uma  prática comercial; (iii) contrariedade à diligência profissional; (iv) suscetibilidade da distorção do comportamento económico do consumidor.

Tendo já sido feita a verificação relativa aos pontos (i) e (ii), passamos a dedicar a nossa atenção aos pontos (iii) e (iv).

Tendo em conta o preço avultado do vinho comparado com o preço da refeição, seria expectável que o profissional, ao sugeri-lo, informasse o cliente, evitando que este fosse surpreendido em momento posterior. O comportamento não foi honesto, contrariando a diligência profissional que incumbe ao profissional.

A falta de honestidade teve como efeito o cliente ter um comportamento diferente daquele que teria caso tivesse todas as informações. Atendendo ao preço avultado do vinho, é (quase) certo que Joaquim adotaria um comportamento diferente se tivesse sido informado, não aceitando a proposta.

Paralelamente, a determinação do valor do vinho não resultou de um acordo entre as partes, tendo sido definido um valor de forma unilateral por parte do restaurante (em respeito pelas regras de fixação de preços que não cabe aqui aprofundar), valor este que não foi comunicado a Joaquim.

Violado o direito à informação do consumidor, Joaquim teria o direito de resolução do contrato, por força do art. 8.º-4 da Lei de Defesa do Consumidor. Tal implicaria que o consumidor tivesse de devolver o bem ao vendedor e este deixaria de poder exigir a obrigação de pagamento do preço. Neste caso, é evidente que esta não é uma solução adequada, uma vez que o vinho é um bem consumível e que, neste caso, já foi consumido durante a refeição, ficando Joaquim impossibilitado de devolver o conteúdo da garrafa.

Tratando-se de uma prática comercial desleal, aplica-se o art. 14.º-1 do Decreto-Lei n.º 57/2008 e o consumidor pode exigir a redução adequada do preço do bem, solução adequada neste caso. Em vez de serem cobrados € 1300 euros pelas duas garrafas, seria fixado um preço mais reduzido por cada garrafa, de acordo com o preço de mercado de um vinho, normalmente recomendado num restaurante como o Belos Cozinhados e expectável pelo consumidor médio colocado naquela posição.

Respondendo à questão colocada, Joaquim tem de pagar, mas não o valor exigido pelo restaurante. O valor deverá ser reduzido, equivalendo ao valor de mercado de duas garrafas de um vinho médio, normalmente recomendado em restaurantes como o Belos Cozinhados, cujo preço seja expectável para o consumidor médio colocado na posição do Joaquim.


[1] Jorge Morais Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 7.ª edição, Almedina, 2020, p. 142.

A Camisola que estava na caixa “Tudo a € 10” por engano

Consumo em Ação

Por Leandro Pinto, Matilde Pinho e Rita Saramago

Hipótese: Xénia, consumidora, entrou numa conhecida loja de roupa e retirou uma camisola de uma caixa que continha a indicação “Tudo a € 10”. Quando chegou à caixa percebeu que a camisola estava naquela caixa por engano, custando € 23, tal como indicado na etiqueta. Xénia ficou sem saber o que fazer. O que lhe diria?

Resolução: No caso em apreço, parece existir uma proposta contratual por parte da loja[1]. A declaração é completa, já que revela o conteúdo mínimo do contrato a celebrar. É também precisa, uma vez que não deixa dúvidas acerca dos elementos do contrato a celebrar. Ademais, é evidente a intenção inequívoca de contratar, pelo que o requisito da firmeza também se verifica, bem como o da adequação formal, dado que a celebração deste contrato não se encontra sujeita a forma especial (art. 219.º do Código Civil).

Cumpridos todos os requisitos, basta a proposta ser aceite para o contrato ser celebrado, sendo o ato de aceitação de Xénia levar a camisola até à caixa[2]. No momento da aceitação, Xénia concorda com todos os aspetos contratualmente relevantes da proposta e, consequentemente, é celebrado o contrato.

Xénia só se apercebe do preço real da camisola quando chega à caixa, isto é, quando já aceitou a proposta. Ora, um declaratário normal assumiria que o preço que lhe é indicado na caixa é, efetivamente, o preço do bem, nos termos do art. 236.º do Código Civil. Assim, neste contexto, podemos considerar que existiam, em rigor, duas propostas: uma com um preço de € 10 e outra com um preço de € 23.

O consumidor pode concluir o negócio aceitando a proposta com o preço mais baixo.

Esta resposta pressupõe um determinado enquadramento: a camisola deve encontrar-se dobrada juntamente com outras as camisolas. Por hipótese, se a camisola se encontrasse desarrumada numa caixa cheia de cintos com a mesma legenda (“Tudo a € 10”), poderíamos concluir que um declaratário normal poderia deduzir que a legenda não se aplicaria à camisola e, por isso, não seria esse o preço aplicável. De facto, era expectável de um consumidor diligente que o entendesse e que não tentasse tirar proveito da situação.

Semelhante seria o caso em que Xénia via a etiqueta na qual estava indicado o preço de € 23 e, mesmo assim, levava a camisola até à caixa com a intenção de comprá-la pelo preço indicado na caixa. É incontestável que esta atitude não espelha a diligência esperada de um consumidor.

Hipótese diferente seria o caso em que Xénia se dirigia à caixa e, quando o artigo passa no scanner, aparece no ecrã a indicação de € 5. Consideramos este momento posterior à celebração do contrato. A proposta tinha um preço (€ 10) e a aceitação não pode alterar a proposta. Deste modo, se a proposta já foi aceite, Xénia estaria a incumprir a obrigação, ainda que não de forma culposa, se pagasse apenas os € 5. O preço a pagar deve ser aquele que foi acordado, isto é, o preço pelo qual o consumidor aceitou a proposta contratual emitida pelo profissional.


[1] Sobre os requisitos da proposta, cfr. Jorge Morais Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 7.ª edição, Almedina, 2020, pp. 79 a 81.

[2] Sobre os estabelecimentos que funcionam em autosserviço, cfr. Carlos Ferreira de Almeida, Texto e Enunciado na Teoria do Negócio Jurídico, Vol. II, Almedina, 1992, p. 818; José de Oliveira Ascensão, Direito Civil – Teoria Geral, Vol. II, Coimbra Editora, 1999, p. 458.

Laranjas do Algarve e a relevância contratual da publicidade

Consumo em Ação

Por André Neves, Beatriz Pereira e Luís Cruz

Hipótese: Xavier viu um anúncio na televisão com a seguinte mensagem: “Laranjas do Algarve a € 0,70 o quilo. Só esta semana, no sítio de que mais gosta”. Entusiasmado, Xavier dirigiu-se ao supermercado, mas foi informado de que as laranjas do Algarve estavam agora a € 1,20 o quilo. O que pode Xavier fazer?

Resolução: O primeiro passo a dar na resolução de uma hipótese como esta é analisar se o anúncio constitui uma proposta contratual. Ora, não se levantam problemas a esse nível, na medida em que estamos perante uma declaração completa, precisa, firme e formalmente adequada[1]. Mais concretamente, uma vez que se trata de uma proposta que não tem destinatário ou destinatários determinados, podemos qualificá-la como sendo uma proposta ao público[2].

Esta modalidade de proposta contratual “coloca o [seu] emitente […] em situação de sujeição […], concedendo a cada um dos destinatários indeterminados o direito potestativo de concluir o contrato”[3] . Significa isto que, caso consideremos que a proposta não foi válida e eficazmente revogada pelo supermercado, está nas mãos de Xavier celebrar ou não o contrato por 0,70 euros o quilo.

Assim sendo, importa referir que a proposta ao público é eficazmente revogável quando é feita na forma da oferta ou em forma equivalente (art. 230.º-3 do Código Civil – CC), ainda que seja durante o período de duração da proposta fixado pelo proponente (art. 228.º-2)[4]. A questão é complexa, e partindo do pressuposto de que a eventual revogação da proposta opera por via de um anúncio similar àquele em que foi emitida (que passou na televisão durante o período entre o qual Xavier viu o primeiro anúncio e chegou ao supermercado), à primeira vista poderíamos ser levados a crer que houve efetivamente uma revogação da primeira proposta e uma nova proposta já com o preço de 1,20 euros o quilo. Contudo, entendemos que essa não é a melhor interpretação para esta situação em concreto.

Há um elemento de atração fundamental na publicidade, na medida em que o grande objetivo da empresa, quando emite um anúncio na televisão, é promover a aquisição ou estimular a procura[5], fazendo com que os consumidores se dirijam ao supermercado. Assim sendo, se Xavier se dirige ao supermercado depois de ter visto o anúncio, e porque viu o anúncio, parece-nos que não podemos considerar que neste caso tenha havido uma revogação da proposta contratual em relação a ele. Aliás, impedir esta revogação parece-nos uma forma adequada de “responsabilizar os lojistas” quanto à forma como indicam os preços.

O anúncio diz expressamente que as laranjas estão a 0,70 euros o quilo durante aquela semana. Xavier dirige-se ao supermercado para as comprar e só quando lá chega é que é informado que, entretanto, o preço aumentou. Numa interpretação do art. 230.º-3 do CC à luz dos princípios fundamentais orientadores do ordenamento jurídico, nomeadamente à luz da boa-fé (art. 9.º-1 da Lei de Defesa do Consumidor), parece-nos que é necessário “dar um tempo”, isto é, parece-nos que os consumidores que estejam a deslocar-se para a loja em virtude de terem visto o anúncio não podem ser abrangidos pela revogação operada por meio do segundo anúncio (que nem sequer temos a certeza se existiu).

Tendo em conta a razão de ser do art. 230.º-3, entendemos que só um anúncio que, em circunstâncias normais, permitisse a Xavier ter a perceção de que o preço havia aumentado antes de se ter deslocado ao supermercado, é que poderia configurar uma revogação da proposta “feita na forma da oferta ou em forma equivalente” em relação a si.

Se porventura não tiver existido nenhum anúncio posterior ao que configurou a proposta, ainda mais fortalecida se torna a nossa posição de que não há qualquer revogação que abranja Xavier. Pela teleologia dos argumentos já expostos, que a este caso também se aplica, a tentativa de revogação da proposta que havia sido operada por meio de um anúncio, tentativa essa feita já no supermercado, não pode abranger quem se dirige ao mesmo precisamente para comprar o produto anunciado e por conta de ter visto o tal anúncio. Não havendo qualquer revogação que abranja Xavier, este tem o direito potestativo de concluir o contrato por 0,70 euros o quilo, sendo que a sua aceitação dar-se-á no momento em que apresentar as laranjas na caixa, pois será nesse momento que manifestará de forma inequívoca a sua intenção de aceitar a proposta.


[1] Ac. do STJ, de 27 de outubro de 2011, Processo nº 2279/07.8TBOVR.C1.S1 (Oliveira Vasconcelos).

[2] Jorge Morais Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 7.ª edição, Almedina, 2020, p. 83.

[3] Carlos Ferreira de Almeida, Direito do Consumo, Almedina, 2005, p. 98.

[4] Admitimos que no caso em que é anunciado um período de duração de determinada proposta (“Só esta semana”) e essa proposta é revogada, poderemos estar perante uma prática comercial desleal, assim como admitimos a eventual possibilidade de, em tal caso, por via da articulação entre a norma geral e as normas especiais de direito do consumo, se considerar o prazo como vinculativo. Contudo, uma vez que neste caso conseguimos garantir a proteção do consumidor por uma outra via, a nosso ver mais clara, decidimos optar por essa outra via.

[5] Carlos Ferreira de Almeida, “Conceito de Publicidade”, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 349, 1985, pp. 115-134.

Contrato de Fornecimento de Energia Elétrica e Direito à Cobrança do Preço

Doutrina

O contrato de fornecimento de energia elétrica é um contrato misto, com elementos de compra e venda (art. 874.º do Código Civil) e de prestação de serviço (art. 1154.º do Código Civil) por terceiro, de execução duradoura, nos termos do qual o comercializador, nas palavras de Pedro Falcão, “única contraparte do utente no contrato”, se obriga à “venda da eletricidade e a promessa da prestação do serviço pelo terceiro operador da rede, consubstanciada na instalação e manutenção do contador, na entrega da eletricidade e na medição do consumo” (prestação de execução continuada), encontrando-se o utente adstrito à contraprestação, de execução periódica, consistente no pagamento do preço proporcional à energia elétrica pelo mesmo efetivamente consumida, fixado por unidade de medida (kWh), e reconduzível à figura da venda ad mensuram (art. 887.º do Código Civil).

No âmbito da execução do contrato, impende sobre o comercializador de energia elétrica o cumprimento do dever de informação ao utente (arts. 4.º da LSPE  e 3.º da Lei n.º 5/2019, de 11 de janeiro), sendo um dos seus corolários mais imediatos e mais relevantes, a obrigação de emissão de faturação detalhada, com periodicidade mensal, dotada dos elementos necessários a uma completa, clara e acessível compreensão dos valores faturados, na qual se discrimine, nomeadamente o montante referente aos bens fornecidos ou serviços prestados (arts. 9.º-4 da LSPE e 8.º-1 da Lei 5/2019).

Por força do disposto no art. 43.º-2 a 4 do Regulamento de Relações Comerciais do Setor Energético e do Gás (RRC), a faturação apresentada pelo comercializador ao utente tem por base a informação sobre os dados de consumo disponibilizada pelo operador da rede, obtida por este mediante leitura direta do equipamento de medição (art. 37.º-2 e 7-b) do RRC e ponto 29.1.2. do Guia de Medição, Leitura e Disponibilização de Dados de energia elétrica em Portugal continental – GMLDD) – ou por estimativa de valores de consumo, nos intervalos entre leituras de ciclo, com recurso a método, previsto no GMLDD e escolhido pelo utente no momento da celebração do contrato, que aproxime o melhor possível os consumos faturados dos valores reais de consumo (arts. 39.º e 43.º-5 do RRC), na certeza, porém, que deve prevalecer, sempre que existente, a mais recente informação de consumos obtida por leitura direta do equipamento de medição, nesta se incluindo a que tenha sido comunicada pelo utente (arts. 37.º-1, 3 e 4 e 43.º-3 do RRC).

O primeiro dos pressupostos constitutivos do direito de crédito do comercializador ao pagamento do preço pelo utente consiste no facto de a quantidade de energia elétrica refletida na fatura ter sido registada pelo equipamento de medição instalado, em cada momento, no local de consumo do utente. É, portanto, com base nos dados de consumo obtidos mediante leitura do equipamento de medição afeto à instalação de consumo do utente que se deve aquilatar da correção da quantia peticionada a título de energia ativa consumida, desde que, por sua vez, esses dados tenham sido extraídos de equipamento de medição metrologicamente conforme – o segundo pressuposto constitutivo da posição jurídica ativa do comercializador.

Nos termos do art. 5.º-1 do Decreto-Lei n.º 45/2017, de 27 de abril, só podem ser disponibilizados no mercado e colocados em serviço os instrumentos de medição que satisfaçam os requisitos previstos no diploma e sejam objeto de uma avaliação de conformidade. Os instrumentos de medição que cumpram as exigências previstas no diploma gozam de uma presunção de conformidade.

O ponto 10.5 do Anexo I deste diploma estabelece que, “independentemente de poderem ou não ser lidos à distância, os instrumentos de medição destinados à medição de fornecimentos de serviços públicos devem estar equipados com um mostrador metrologicamente controlado que seja acessível ao consumidor sem a utilização de ferramentas. O valor indicado neste mostrador é o resultado que serve de base para determinar o preço da transação”.

Adicionalmente, importa atender ao disposto no art. 7.º-1 do Anexo à Portaria n.º 321/2019, de 19 de setembro, de acordo com o qual a “verificação periódica dos instrumentos de medição é anual, salvo no caso dos contadores de água, dos contadores de gás e instrumentos de conversão de volume e dos contadores de energia elétrica ativa, cuja periodicidade é a indicada no quadro n.º 1 constante do anexo ao presente Regulamento”, ou seja, 12 anos. Estão previstas normas para os contadores de energia elétrica ativa em utilização e instalados ao abrigo de regulamentos anteriores à portaria. Face a tudo quanto precede e nessa conformidade, forçoso é concluir que, como declarado, entre outras, na Sentença do TRIAVE, de 22 de outubro de 2018, Processo n.º 1601/2018/FL (relator: Dr. Paulo Duarte), “a prova da realização do fornecimento (ou, simetricamente, do consumo) de energia elétrica, e da correspondente quantidade real (a prova, pois, da realização e da real medida da prestação do fornecedor deste “serviço público essencial”), apenas pode fazer-se através de indicação constante de contador metrologicamente conforme, considerando quer os requisitos essenciais de colocação em serviço, quer as exigências de verificação periódica”.

Novamente os saldos, as promoções e as liquidações – Decreto n.º 3-B/2021, de 19 de janeiro

Legislação

Em face da evolução da atual pandemia, o Governo tem vindo a adotar, progressivamente, medidas para o combate à propagação do vírus Sars-CoV-2, adaptadas às necessidades de controlo da mesma.

Ainda há uns dias anunciávamos aqui no blog as medidas previstas no Decreto-Lei n.º 6-E/2021, de 15 de janeiro, em matéria de saldos. O art. 11.º deste diploma veio flexibilizar o anúncio de saldos, determinando que a comercialização em saldos que se venha a realizar durante o período de suspensão das atividades e encerramento dos estabelecimentos no âmbito do estado de emergência não releva para efeitos de contabilização do limite máximo temporal previsto legalmente para a venda em saldos, de 124 dias por ano, nos termos do art. 10.º-1 do Decreto-Lei n.º 70/2007, de 26 de março.

Pois bem: poucos dias depois temos uma nova regra emergencial sobre anúncio de reduções de preços, incluindo saldos, promoções e liquidações, esta de sentido contrário.

Assim, no passado dia 19 de janeiro, foi publicado em Diário da República o Decreto n.º 3-B/2021, que altera o anterior Decreto n.º 3-A/2021, de 14 de janeiro.

O Decreto n.º 3-B/2021 adita um novo art. 15.º-A ao Decreto n.º 3-A/2021: “é proibida a publicidade, a atividade publicitária ou a adoção de qualquer outra forma de comunicação comercial, designadamente em serviços da sociedade da informação, que possam ter como resultado o aumento do fluxo de pessoas a frequentar estabelecimentos que, nos termos do presente decreto, estejam abertos ao público, designadamente através da divulgação de saldos, promoções ou liquidações”.

Para compreender o art. 15.º-A é essencial segmentá-lo em três partes distintas.

Em primeiro lugar, determina-se a proibição da publicidade, da atividade publicitária ou de qualquer outra forma de comunicação comercial, designadamente em serviços da sociedade de informação.

O conceito de publicidade, bem como o de atividade publicitária, conforme dispostos nos arts. 3.º e 4.º, respetivamente, do Código da Publicidade, são bastante abrangentes. Será considerada publicidade a comunicação, no âmbito de uma atividade comercial, industrial, artesanal ou liberal, com o objetivo de promover, com vista à sua comercialização ou alienação, quaisquer bens ou serviços.

Na segunda parte do artigo restringe-se o seu âmbito, referindo-se que a proibição nos termos expostos se aplica “designadamente em serviços da sociedade de informação, que possam ter como resultado o aumento do fluxo de pessoas a frequentar estabelecimentos que (…) estejam abertos ao público”.

Os serviços da sociedade de informação são, nos termos legais, quaisquer serviços prestados à distância, por via eletrónica, no âmbito de uma atividade económica. Assim, sendo claro que os estabelecimentos atualmente abertos ao público não poderão promover, por meios publicitários, os seus produtos online, dúvidas restam quanto à permissibilidade de práticas publicitárias desses mesmos bens ou produtos nos próprios estabelecimentos.

Se recorrermos à ratio do diploma, i.e., a necessidade de diminuição da circulação dos cidadãos, por forma a mitigar os contágios do vírus SARS-CoV-2, facilmente percebemos que o artigo sob análise tem como objetivo desencorajar que os consumidores se dirijam a espaços físicos de comércio ou prestação de serviços, por incentivo de mensagens publicitárias.

Assim, poderia defender-se, quanto à publicidade feita dentro dos próprios estabelecimentos abertos ao público, que, não tendo os consumidores acesso às promoções via online, não seriam motivados a dirigir-se ao estabelecimento por força das práticas promocionais aí praticadas (porque não teriam conhecimento das mesmas antes de entrar no estabelecimento), mas antes por necessidade estrita de acesso a bens ou serviços essenciais.

A última parte da norma sob análise vem estreitar, mais uma vez, o seu âmbito de aplicação, dizendo que é designadamente proibida a divulgação de saldos, promoções ou liquidações que possam ter como resultado o aumento do fluxo de pessoas a frequentar estabelecimentos abertos ao público.

Resta a dúvida sobre a consagração, neste trecho, de um numerus clausus de práticas publicitárias proibidas.

Desta forma, as conclusões a tirar serão que, por um lado, aos estabelecimentos encerrados ou cujas atividades tenham sido suspensas por ordem do Governo não será de aplicar a presente proibição, beneficiando estes do regime mais favorável consagrado recentemente para os saldos (e que já foi analisado aqui).

É também de concluir que a proibição sob análise não será de aplicar aos operadores económicos que, apesar de estarem, de momento, abertos ao público, promovam práticas comerciais com redução de preço aplicáveis exclusivamente às compras através de plataforma online, contando que o processo de venda e pós-venda seja passível de ser concluído sem necessidade de contacto com o estabelecimento físico do operador económico.

É ainda clara a aplicabilidade da proibição de anunciar saldos, promoções ou liquidações em estabelecimentos abertos ao público, publicitando tais práticas com redução de preço online.

Restam dúvidas quanto a saber se a proibição aqui em causa se aplica, de facto, a toda a publicidade, ou antes, conforme descrito na respetiva epígrafe, apenas à publicidade a práticas comerciais com redução de preço.

Covid-19 e a cobrança de equipamentos de proteção individual em estabelecimentos de prestação de cuidados de saúde

Legislação

Muitos dos leitores já terão tido a oportunidade de se dirigir a um estabelecimento privado, social ou cooperativo de prestação de cuidados de saúde e sido informados sobre o aumento do preço da consulta, por motivos relacionados com a aquisição de equipamentos de proteção individual, utilizados no âmbito da epidemia SARS-CoV-2 e da infeção epidemiológica por Covid-19.

O crescente número de pedidos de informação suscitou, inclusive, a necessidade de a Entidade Reguladora da Saúde (ERS) emitir o Alerta de Supervisão n.º 3/2020. Assim, assevera a ERS que é permitida a inclusão no preço de tais equipamentos, desde que haja a previsão desses custos numa tabela de preços disponível ao público. Decorrerá tal entendimento da já conhecida necessidade de o utente ter, na sua esfera, os necessários elementos a uma tomada de decisão esclarecida no momento da contratação, dos quais o montante a pagar é, naturalmente, um ponto fundamental no processo decisório.

Resta esclarecer, no entanto, qual o raciocínio jurídico a aplicar às consultas anteriormente agendadas, cujo preço estava já previamente acordado. Isto é, deverá a situação ímpar dos tempos em que vivemos justificar a alteração unilateral do preço? Ou deverá, em alternativa, ser honrado o contrato anteriormente celebrado e abster-se o profissional da cobrança do montante adicional, onerando a sua própria posição contratual?

Fica também por ilustrar qual o limite de aumento que uma tal cobrança poderá implicar. É sabido que a estas entidades prestadoras de cuidados de saúde é permitido o estabelecimento do preço. Contudo, não deixará de preocupar que uma determinada prestação de serviço que, numa situação normal, implicaria, por exemplo, o pagamento de 10 euros, permita agora a cobrança de um valor total de 25 euros, à ordem do cumprimento de aquisição de equipamentos de proteção individual.

Aproximam-se tempos curiosos. E de muita substância para o direito do consumo.

Covid-19 e saldos – Lei n.º 20-E/2020

Legislação

O Decreto-Lei n.º 20-E/2020, de 12 de maio, vem, na senda de outros diplomas aprovados nos últimos meses, estabelecer um regime excecional e temporário motivado pela crise pandémica em curso, neste caso em matéria de venda em saldos.

A problemática da comercialização de bens ou serviços com redução de preço encontra-se no limiar entre o direito do consumo e o direito da concorrência: por um lado, o objetivo é assegurar o conhecimento dos preços pelo consumidor, garantindo que existe uma diferença efetiva entre o preço praticado antes e depois da promoção; por outro lado, pretende defender-se o funcionamento regular dos mercados.

A matéria encontra-se regulada pelo Decreto-Lei n.º 70/2007.

O art. 3.º contém uma enumeração taxativa das práticas comerciais com redução de preços: saldos, promoções e liquidação. Os profissionais apenas podem publicitar uma redução de preços se esta consistir numa destas práticas (art. 3.º-3) e não podem utilizar uma expressão que não corresponda à prática utilizada (art. 3.º-4).

Note-se que, uma vez que o preço dos bens ou serviços pode ser livremente fixado, um profissional pode, em qualquer momento, fazer um desconto no valor da contraprestação. Ao contrário do que se poderia supor da letra da lei (“só são permitidas as práticas comerciais com redução de preço nas modalidades referidas no número anterior”), não está em causa a permissão da prática, mas o seu anúncio ao público em geral.

Assim, se um bem custa € 20 num estabelecimento comercial e, na semana seguinte, o comerciante o coloca à venda por € 10, sem fazer qualquer publicidade ao desconto, trata-se de uma redução do preço, que é válida e não tem de respeitar o regime do diploma em análise (com exceção das poucas normas que não dependem da existência de uma redução de preço, como os arts. 7.º-2 e 9.º). O que não é permitido é anunciar que é conferido um desconto e não cumprir as determinações da lei.

Se o conceito de promoção é bastante amplo, abrangendo qualquer redução de preços, independentemente da duração e do período do ano, o conceito de saldos é mais limitado.

Com efeito, o Decreto-Lei n.º 10/2015 alterou significativamente a teleologia subjacente aos saldos, tendo estes deixado de ter como caraterística a circunstância de se realizarem em fim de estação, em datas predefinidas pela lei (28 de dezembro e 28 de fevereiro e entre 15 de julho e 15 de setembro), podendo realizar-se em quaisquer períodos do ano, desde que não ultrapassassem, no total, quatro meses por ano. O Decreto-Lei n.º 109/2019 foi ainda mais longe, alargando ligeiramente a duração máxima da comercialização em saldos, que corresponde agora a 124 dias por ano (art. 10.º-1). Os saldos caraterizam-se atualmente apenas pelo seu objetivo: escoamento acelerado de bens ou serviços [art. 3.º-1-a)].

É precisamente com o objetivo de ajudar os profissionais a escoar produtos que o art. 3.º do Decreto-Lei n.º 20-E/2020 estabelece que “a venda em saldos que se realize durante os meses de maio e junho de 2020 não releva para efeitos de contabilização do limite máximo de venda em saldos de 124 dias por ano, previsto no n.º 1 do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 70/2007, de 26 de março, na sua redação atual”.

Pode ler-se no preâmbulo do diploma que se torna “imperioso atender a que os estabelecimentos comerciais que se mantiveram encerrados ou cuja atividade foi suspensa se viram privados da possibilidade de escoar os respetivos produtos, diretamente ou através dos serviços prestados, acumulando agora existências nos respetivos inventários, que se revela essencial escoar, não apenas para permitir um esvaziamento e renovação dos produtos, como também para dinamizar a respetiva atividade económica”. Acrecenta-se ainda no preâmbulo que importa “introduzir soluções que permitam aos estabelecimentos comerciais escoar as respetivas existências, o que passa, nomeadamente, pela modificação provisória do regime das práticas comerciais com redução de preço, criando oportunidades de venda ou de prestação de serviços para os operadores económicos e novas oportunidades de compra de bens e serviços para os consumidores”.

É interessante que a lei reconheça que o anúncio de “saldos” é especialmente eficaz (provavelmente no subconsciente do consumidor) para a comercialização de bens e serviços, tendo um efeito mais significativo na decisão de contratar do consumidor do que o anúncio de “promoções”, que sempre estaria acessível aos profissionais nos termos do Decreto-Lei n.º 70/2007, sem necessidade de qualquer alteração da lei.

É bem mais duvidosa a afirmação de que a simples permissão do anúncio de comercialização de bens e serviços em saldos crie “novas oportunidades” para os consumidores. As oportunidades já estão nos bens não comercializados anteriormente, vindo a lei permitir apenas que a redução do preço seja anunciada de uma forma mais eficiente para o profissional.

O art. 4.º do Decreto-Lei n.º 20-E/2020 vem ainda estabelecer que “o operador económico que pretenda vender em saldos durante os meses de maio e junho de 2020 está dispensado de emitir, para este período, a declaração, prevista no n.º 5 do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 70/2007, de 26 de março, na sua redação atual, dirigida à Autoridade de Segurança Alimentar e Económica”. Flexibiliza-se, portanto, ainda um pouco mais o anúncio de uma operação de saldos durante o período indicado.

É interessante notar que, em Espanha, a mensagem que se pretende passar é diferente no que respeita a promoções feitas em estabelecimentos comerciais físicos. Vejamos a disposição adicional segunda da Orden SND/399/2020, de 9 de mayo, para la flexibilización de determinadas restricciones de ámbito nacional, establecidas tras la declaración del estado de alarma en aplicación de la fase 1 del Plan para la transición hacia una nueva normalidad: “Os estabelecimentos não podem anunciar ou adotar práticas comerciais que possam ter como efeito a aglomeração de pessoas dentro do estabelecimento comercial ou na sua vizinhança. Esta restrição não afeta as vendas com desconto ou as vendas em oferta ou promoção realizada através do site”.

Proíbe-se, portanto, em Espanha, durante este período, o anúncio de promoções ou saldos nos estabelecimentos comerciais. Sobrepõe-se, assim, o objetivo de evitar aglomerações ao objetivo de garantir o escoamento de existências por parte dos profissionais.