Contratos celebrados à distância relativos a serviços financeiros

Jurisprudência

Continuamos hoje a análise da jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) no primeiro semestre de 2020, dedicando-nos ao tema dos contratos celebrados à distância relativos a serviços financeiros.

O direito europeu regula de forma separada os contratos celebrados à distância em geral (Diretiva 2011/83/EU, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Outubro de 2011, relativa aos direitos dos consumidores) e os contratos celebrados à distância relativos a serviços financeiros (Diretiva 2002/65/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de setembro de 2002, relativa à comercialização à distância de serviços financeiros prestados a consumidores).

aqui analisamos em agosto três decisões do TJUE que incidem sobre o primeiro diploma (a que se soma uma quarta, já do segundo semestre, analisada no início deste mês), tendo então ficado prometido que faríamos uma análise separada dos contratos relativos a serviços financeiros.

É essa a promessa que agora cumprimos.

No Processo Sparkasse Südholstein, C‑639/18 (acórdão de 18 de junho de 2020), estava em causa a questão de saber se a Diretiva 2002/65/CE se aplica a um contrato através do qual as partes alteram um contrato de crédito anteriormente celebrado “quando essa modificação diz respeito unicamente à taxa de juro estipulada (acordo complementar relativo à taxa de juro), sem prorrogar a duração do empréstimo nem alterar o seu montante”.

A resposta dada pelo tribunal é negativa.

Segundo o tribunal (considerando 30), “decorre tanto de uma interpretação literal como sistemática do artigo 2.°, alínea a), da Diretiva 2002/65 que se deve considerar como «contrato relativo a serviços financeiros» o contrato que prevê a prestação desses serviços. Ora, este requisito não está preenchido no caso de, como no processo principal, o acordo complementar em causa apenas ter por objeto a adaptação da taxa de juro devida em contrapartida de um serviço já acordado”. Acrescenta-se ainda como argumento neste sentido, nos considerandos 32 e 33, a finalidade da Diretiva (“assegurar um elevado nível de proteção dos consumidores para garantir um reforço da sua confiança na venda à distância e garantir a livre circulação dos serviços financeiros”), considerando-se que “tal objetivo não exige necessariamente que, nos casos em que, em conformidade com uma cláusula inicial de um contrato de empréstimo, um acordo complementar ao mesmo fixe uma nova taxa de juro, esse acordo complementar deva ser qualificado como novo contrato relativo a serviços financeiros”.

Os contratos que alterem contratos abrangidos pela Diretiva apenas no que respeita à taxa de juro não são, portanto, abrangidos pelo diploma.

O Processo Leonhard, C‑301/18 (acórdão de 4 de junho de 2020), incide sobre o tema do direito de arrependimento, em especial sobre os efeitos do exercício do direito por parte do consumidor.

O art. 7.º-4 da Diretiva 2002/65/CE estabelece que “o prestador fica obrigado a restituir ao consumidor, o mais rapidamente possível, e o mais tardar no prazo de 30 dias de calendário, quaisquer quantias dele recebidas nos termos do contrato à distância, com exceção do montante […] [relativo ao serviço financeiro efetivamente prestado]”.

O tribunal alemão de reenvio veio perguntar ao TJUE se o preceito transcrito pode ser interpretado no sentido de que o consumidor tem o direito de obter, além do reembolso do capital e dos juros pagos em execução desse contrato, uma indemnização pela utilização desse capital e desses juros por parte do profissional, como parece estar previsto no BGB (Código Civil alemão).

Tratando-se de uma diretiva de harmonização máxima, os Estados-Membros não podem prever outras regras que não as consagradas no diploma, ainda que estas possam ser mais favoráveis ao consumidor. Não estando previsto na Diretiva um direito do consumidor a indemnização, o TJUE responde à questão colocada pelo tribunal nacional em sentido negativo.

O direito nacional não pode, assim, conceder ao consumidor uma indemnização pela utilização pelo profissional das quantias recebidas do consumidor.

Site de encontros e direito de arrependimento

Jurisprudência

O Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) proferiu na semana passada uma decisão muito interessante em matéria de direito de arrependimento, no âmbito do Processo C-641/19 (caso PE Digital).

A PE Digital gere um site de encontros na Alemanha, propondo aos seus utilizadores dois tipos de adesão: (i) gratuita, com possibilidades de contacto limitadas; (ii) premium, mediante pagamento, por 6, 12 ou 24 meses, com garantia de contacto. O serviço premium inclui um teste de personalidade de cerca de 30 minutos, relativo às características, hábitos e interesses relevantes em matéria de encontro, o qual é enviado ao cliente sob a forma de um «relatório pericial de personalidade» de 50 páginas.

No dia 4 de novembro de 2018, o consumidor celebrou um contrato de adesão premium com a empresa, pelo período de 12 meses, por um valor de € 523,95 (valor superior ao dobro do valor cobrado a outros clientes pelo mesmo serviço no mesmo ano).

O consumidor foi informado da existência do direito de arrependimento e declarou pretender que o serviço começasse a ser prestado antes do termo do prazo para arrependimento.

No dia 8 de novembro de 2018, o consumidor exerceu o direito de arrenpendimento, tendo a empresa exigido então o pagamento de € 392,96. Não se conformando com a situação, o consumidor recorreu a tribunal, pedindo a devolução de todos os valores pagos.

O tribunal alemão decidiu então colocar algumas questões ao TJUE, respondidas no acórdão em análise.

O art. 14.º-3 da Directiva 2011/83/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de outubro de 2011, relativa aos direitos dos consumidores, regula os efeitos do exercício do direito de arrependimento nos casos em que, num contrato de prestação de serviços, o consumidor deu o seu consentimento quanto ao início da prestação do serviço antes do termo do prazo para arrependimento, como foi o caso na situação em causa neste processo. Assim, o consumidor tem de pagar “ao profissional um montante proporcional ao que foi fornecido até ao momento em que o consumidor comunicou ao profissional o exercício do direito de [arrependimento], em relação ao conjunto das prestações previstas no contrato. O montante proporcional a pagar pelo consumidor ao profissional é calculado com base no preço total acordado no contrato. Se o preço total for excessivo, o montante proporcional é calculado com base no valor de mercado do que foi fornecido”.

A questão que o tribunal de reenvio coloca consiste em saber se “há que ter em conta o preço acordado nesse contrato para o conjunto das prestações nele previstas e calcular o montante devido pro rata temporis, ou se é necessário ter em conta o facto de uma das prestações objeto do contrato [no caso, o teste de personalidade] ter sido fornecida ao consumidor na íntegra antes de este ter exercido o seu direito” (considerando 26).

O TJUE responde à questão de forma bastante clara, considerando que “o montante proporcional a pagar pelo consumidor (…) deve ser calculado, em princípio, tendo em conta todas as prestações que são objeto do contrato, a saber, a prestação principal e as prestações acessórias necessárias para assegurar essa prestação principal” (considerando 28), só assim não sendo “no caso de o contrato prever expressamente que uma ou várias das prestações são fornecidas integralmente desde o início da execução do contrato, de maneira distinta, a um preço que deve ser pago separadamente” (considerando 29).

O TJUE reforça a importância do pagamento separado do preço no considerando 31, ao referir que “o contrato em causa não previa um preço separado para qualquer prestação que pudesse ser considerada como separável da prestação principal prevista nesse contrato”.

Este raciocínio parece-me ser integralmente aplicável à situação comum em contratos de prestação de serviços de comunicações eletrónicas em que as empresas tentam cobrar um valor relativo à instalação quando o consumidor exerce o direito de arrependimento. Não sendo este valor pago separadamente, não releva autonomamente para a definição do montante proporcional a pagar pelo consumidor.

Quanto à questão de saber os critérios para avaliar se o preço total acordado é excessivo, o TJUE considera que “todas as circunstâncias relativas ao valor de mercado do serviço prestado são relevantes (…), nomeadamente a comparação tanto com o preço cobrado pelo profissional em causa a outros consumidores nas mesmas condições como com o preço de um serviço equivalente prestado por outros profissionais”.

Por fim, o TJUE é chamado a pronunciar-se sobre se o relatório de personalidade incluído no contrato em causa no processo pode ser qualificado como um conteúdo digital, caso em que poderia estar excluído o direito de arrependimento, nos termos do art. 16.º-m) da Diretiva. O tribunal conclui de forma breve que não. Julgo que, mesmo que se tratasse de um conteúdo digital, não se deveria aplicar a exceção, uma vez que se trata apenas de um elemento acessório do contrato, claramente consumido, no que respeita ao regime aplicável, pelo serviço prestado pela empresa.

Como é possível verificar, a decisão do TJUE é favorável ao consumidor em todos os pontos.

Novo Pacote Financeiro Digital na União Europeia

Legislação

A Comissão Europeia lançou, em 24 de setembro, um novo Pacote Financeiro Digital que inclui a sua Estratégia Financeira Digital e de Pagamentos, bem como propostas legislativas sobre crypto-assets, Distributed Ledger Technology (DLT) e resiliência digital.

A ideia geral é impulsionar a competitividade e inovação da Europa no setor financeiro, aumentando a escolha e oportunidades dos consumidores, mantendo a sua proteção e a estabilidade financeira do mercado.

As medidas visam a recuperação económica da UE, incentivando especialmente empresas digitais altamente inovadoras, procurando simultaneamente atenuar potenciais riscos.

Os principais objetivos da Estratégia Financeira Digital passam por tornar os serviços financeiros europeus mais favoráveis à digitalização e estimular a inovação e a concorrência responsáveis entre os fornecedores, reduzindo-se a fragmentação no mercado único digital. A gestão de dados está também no centro da estratégia, pretendendo-se promover a sua partilha, mantendo elevados padrões de privacidade e proteção de dados. A estratégia visa ainda assegurar condições equitativas entre os fornecedores, sejam empresas tradicionais ou tecnológicas, garantindo que à mesma atividade e riscos, se aplicam as mesmas regras.

No que diz respeito aos pagamentos, pretende-se que sejam seguros, rápidos e fiáveis para os consumidores e empresas europeias, incluindo soluções de pagamentos transfronteiriços instantâneos.