O papel da propriedade industrial na proteção do consumidor

Legislação

A propriedade industrial é uma área do direito da propriedade intelectual que visa “garantir a lealdade da concorrência, pela atribuição de direitos privativos sobre os diversos processos técnicos de produção e desenvolvimento da riqueza”[1]. A proteção deste tipo de criações intelectuais é concedida através de vários institutos jurídicos, nomeadamente a patente, a marca, o registo de desenhos e modelos industriais, indicações geográficas, entre outros. Sendo uma área do direito que interage com várias outras, importa perceber o papel que a propriedade industrial tem na proteção dos consumidores.

O principal instrumento legal relativo à propriedade industrial em Portugal é o Decreto-Lei n.º 110/2018, de 10 de dezembro, que aprova o novo Código da Propriedade Industrial, transpondo as Diretivas (UE) 2015/2436 e (UE) 2016/94. Neste, são várias as referências à especial atenção que tem de ser garantida ao consumidor.

Vejamos.

O registo de uma marca é um ato administrativo realizado junto do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) e que está associado a vários fundamentos e exige o cumprimento de certas formalidades. Um dos motivos para recusa do registo da marca será a tentativa de induzir o consumidor em erro através da tentativa da reprodução de marca anteriormente registada para produtos (ou serviços) idênticos ou afins que poderiam induzir o consumidor em erro ou confusão. De igual modo é recusado o registo de uma marca que apresente elementos (como a bandeira nacional) que poderiam levar o consumidor a crer que se trata de um produto ou serviço proveniente de uma entidade pública nacional (art. 231.º-2-a)). Estas disposições legais não são exclusivas às marcas, existindo normas semelhantes relativas aos logótipos (art. 289.º-1-b)) e indicações geográficas (art. 302.º-2).

Para além de marcas que possam tentar induzir o consumidor em erro por reproduzirem outras marcas, há a possibilidade das próprias marcas serem enganosas: uma marca com o nome de “Motas Novas” que só venda motociclos usados estará, naturalmente, a distorcer a realidade dos seus produtos. Para estas situações a lei prevê um regime diferente do anterior: a marca deverá ter o seu registo caducado se “tornar suscetível de induzir o público em erro, nomeadamente acerca da natureza, qualidade e origem geográfica desses produtos ou serviços, no seguimento do uso feito pelo titular da marca, ou por terceiro com o seu consentimento, para os produtos ou serviços para que foi registada” (art. 268.º-2-b)). Como tal, a expectativa do consumidor é essencial para que a marca seja um elemento que identifique e distinga produtos e serviços.

Além de incluir o consumidor em normas de direito substantivo, é interessante ver que a lei também dá relevância ao consumidor em questões processuais.

Existe a possibilidade de apresentar junto do INPI um pedido de declaração de nulidade de um registo de marca (art. 262.º) ou de um desenho ou modelo (art. 204.º) quando existirem fundamentos para invalidar esse mesmo registo. Tanto num caso como no outro, a lei considera que qualquer pessoa (inclusive um consumidor[2] – individualmente ou representado através de uma associação de consumidores, desde que tenha capacidade para demandar ou ser demandado/a), deverá ser encarado como um interessado com legitimidade. Não só os consumidores são interessados com legitimidade num processo de nulidade de registo de marca ou de desenho ou modelo, como também o são na determinação de sanções acessórias. Quando os tribunais são chamados a decidir num processo judicial relacionado com esta matéria, podem aplicar sanções acessórias relativas ao destino dos bens em relação aos quais tenha havido violação do direito de propriedade industrial. Estas medidas terão de ser tomadas de forma adequada e proporcional, tendo sempre em conta os legítimos interesses de terceiros, em particular os interesses dos consumidores (art. 348.º).

Todos os produtos e serviços adquiridos por um consumidor são (diretamente ou indiretamente) criações intelectuais. Não só o produto final como a imagem. O desenho, a marca e o logótipo do produtor também o são. Desta forma, é essencial evitar que haja produtos diferentes a serem dissimulados como sendo produtos iguais. Não só isto cria problemas a nível económico como também poderá causar danos gravíssimos nos consumidores: alimentos que usam a imagem ou marca de outros produtos com padrões, qualidades e naturezas diferentes são um risco de saúde para os consumidores que possam ter alergias alimentares ou necessidade de outros cuidados especiais. Como tal, é percetível a importância que a lei dá à proteção dos consumidores, reconhecendo a urgência de garantir que estes são devidamente informados. O direito à informação dos consumidores vem previsto no art. 60.º-1 da Constituição da República Portuguesa, que refere que “os consumidores têm direito à qualidade dos bens e serviços consumidos, à formação e à informação […]”[3]. É com base neste preceito constitucional que a lei procura garantir que a informação à qual o consumidor tem acesso é autêntica, nomeadamente na informação que o consumidor encontra quando interage com um produto ou serviço. Caberá ao Estado e às autoridades garantir que a informação é verdadeira e precisa, atuando na primeira linha de combate às manifestações de propriedade industrial que possam vir a confundir o consumidor ou a induzi-lo em erro.


[1] Art. 1.º do DL n.º 110/2018, de 10 de dezembro. Todas as referências legais neste texto serão relativas a este diploma.

[2] Apesar do legislador não utilizar o conceito de consumidor, “qualquer pessoa singular ou coletiva” com legitimidade pode apresentar o pedido junto do INPI. Como tal, consumidores e não consumidores estarão abrangidos neste conceito amplo.

[3] A proteção dos consumidores no texto constitucional em vigor foi anteriormente abordada neste blog aqui.

Inteligência Artificial – Regulamento(s) e Plano coordenado da União Europeia

Legislação

A Comissão Europeia, conforme se previa e noticiava neste blog, anunciou ontem um novo pacote legislativo que contém uma Proposta de Regulamento relativo à Inteligência Artificial (IA), com o primeiro quadro jurídico sobre a matéria. A União Europeia (UE) optou, como vem sendo regra, pelo regulamento em vez da diretiva.

O referido pacote inclui também um Regulamento sobre máquinas, revendo a Diretiva existente sobre a matéria, de 2006[1], bem como um Plano coordenado entre os Estados-membros relativo à IA, que tem em vista a liderança global pela União Europeia no que diz respeito à inteligência artificial confiável.

Todo este esforço visa tornar a Europa apta para a era digital, reforçando a confiança de todos, de modo a que tanto empresas, como consumidores, habitem e desenvolvam em segurança transações comerciais online, desenvolvendo o mercado único europeu num espaço diferente, paralelo, que tem vindo a ganhar terreno ao comércio tradicional. Desde há vários anos que a União Europeia tem consciência de que a Economia Digital é um dos campos em que poderá ter um crescimento significativo, já que as suas possibilidades de competir globalmente nos setores clássicos da agricultura, da indústria e, até, dos serviços se vão apresentando limitadas.

Observando-se o esforço e resultados, numa perspetiva global do mundo, dir-se-ia, no mínimo, que não vai adiantada.

Margrethe Vestager, vice-presidente executiva para uma Europa adequada para a era digital, afirmou que “On Artificial Intelligence, trust is a must, not a nice to have.”, manifestando a vontade da União Europeia de, com estas regras, conseguir estabelecer novos padrões globais para uma inteligência artificial confiável, salvaguardando-se a segurança e os direitos fundamentais dos cidadãos, enquanto se garante uma UE competitiva.  

As novas regras, que constando de Regulamento, serão aplicadas diretamente da mesma forma, em todos os Estados-Membros, assentam numa abordagem baseada no risco. Os sistemas de IA de risco inaceitável são banidos. Estes são os que representam uma clara ameaça à segurança, à subsistência e aos direitos das pessoas, nomeadamente sistemas de AI que manipulem o comportamento, ou que permitam que os governos atribuam “pontuações sociais” às pessoas (tendo aqui provavelmente em vista a recusa de realidades como o denominado Crédito Social chinês, apresentado neste blog aqui).

Os sistemas de IA identificados como de alto risco são sujeitos a obrigações estritas antes de serem colocados no mercado e incluem tecnologia de IA usada, por exemplo, em infraestruturas críticas ou produtos que podem colocar em risco a vida e a saúde das pessoas (Ex.: transportes, cirurgias assistidas por robôs) e em decisões que podem determinar a sua vida (Ex.: pontuação em exames, seleção de candidaturas a emprego ou crédito, administração da justiça).

Nestes casos, quando se estiver perante sistemas de IA de alto risco devem ser implementadas fortes medidas com vista à avaliação adequada do risco e à sua mitigação como, por exemplo, a verificação da qualidade dos dados usados e a possibilidade de se perceber como se chegou aos resultados apresentados (a denominado descodificação das black boxes da IA), segurança, prestação de informação e supervisão humana.

É especialmente determinado que todos os sistemas remotos de identificação biométrica são considerados de alto risco e sujeitos a requisitos especialmente rigorosos.

Sendo qualificado como “limitado” o risco dos sistemas de IA, haverá obrigações específicas de transparência. Por exemplo, ao usar chatbots, os usuários devem estar cientes de que estão a interagir com uma máquina para que possam tomar uma decisão informada sobre se pretendem continuar ou não com a interação.

Se o risco for qualificado como “mínimo”, o que acontecerá com a maior parte dos sistemas de IA, o regulamento não intervém, já que será mínimo ou nenhum o risco para os direitos e segurança dos cidadãos.

Em termos de governação, a Comissão propõe que as autoridades nacionais competentes de fiscalização do mercado supervisionem as novas regras, sendo criado um Comité Europeu de Inteligência Artificial para facilitar a sua implementação, bem como para impulsionar o desenvolvimento de normas para IA e de códigos de conduta voluntários.

Estas medidas são o culminar de um caminho, resumidamente apresentado aqui e aqui

As intenções são boas, dir-se-iam até ótimas.

Desde já, levantam-se-nos três questões. Primeira, quanto mais tempo vai passar até que existam as regras propriamente ditas, isto é, até à finalização do processo legislativo e à entrada em vigor dos diplomas que vierem a ser aprovados? Depois disso, quanto tempo vai demorar a construção da estrutura burocrática que, inevitavelmente, tudo na UE pressupõe? Por fim e mais importante, como correrá a operacionalização das regras, a começar pela qualificação, na prática, do risco de um determinado sistema de IA? Esse é o pressuposto da determinação do modo como vai ser tratado e de como, concretamente, vai existir e funcionar.


[1] Diretiva 2006/42/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de Maio de 2006, relativa às máquinas.

Por uma arbitragem de consumo mais verde (e mais eficiente para consumidores e empresas)

Doutrina

Por Joana Campos Carvalho e Jorge Morais Carvalho

Está em curso a nível internacional uma campanha para tornar as arbitragens mais verdes (Campaign for Greener Arbitrations). Esta campanha visa aumentar a sensibilidade da comunidade arbitral para a sua significativa pegada de carbono. O objetivo passa por trabalhar com todos os intervenientes relevantes para promover as melhores práticas na gestão sustentável das arbitragens, estimulando todos os profissionais a comprometerem-se com os Princípios Orientadores da Campanha e a reduzirem as suas emissões de carbono, assinando o Compromisso Verde (Green Pledge).

Se é certo que as emissões de carbono poderão ser mais significativas na arbitragem comercial, em especial na arbitragem comercial internacional, tendo em conta o maior volume de documentos e o maior número de pessoas envolvidas em cada processo, não é menos verdade que a arbitragem de consumo pode desempenhar aqui um papel muito relevante na prossecução de um tão importante desígnio do Mundo nos dias de hoje. A adesão dos nossos centros de arbitragem a esta campanha seria um sinal muito positivo para o sistema, podendo ter igualmente a vantagem de tornar mais eficientes e menos dispendiosos os processos para os centros e para as partes.

Vejamos algumas das práticas do Compromisso Verde que poderiam – e deveriam – ser aplicadas à arbitragem de consumo em Portugal:

1) Troca de correspondência por via eletrónica, com a ressalva dos casos em que a correspondência em papel é expressamente necessária. A utilização do correio eletrónico também tem uma pegada de carbono, mas menor do que o envio de cartas. Além de ser mais sustentável, a utilização do e-mail enquanto meio preferencial de contacto torna o processo consideravelmente mais eficiente, em especial na arbitragem de consumo, que se pretende rápida e com custos reduzidos.

2) Utilização preferencial de instalações de videoconferência como alternativa às viagens (incluindo para inquirição de testemunhas). Esta é a principal mudança que, na nossa perspetiva, se impõe na arbitragem de consumo. Reduz, sem dúvida, a pegada ecológica. E permite, além disso, a consumidores e profissionais não terem de se deslocar aos centros de arbitragem para as diligências relativas aos processos, em especial para o julgamento arbitral. Se há algo de positivo que resulta da experiência de pandemia em curso é a demonstração de que circulávamos muitas vezes sem sentido, perdendo tempo em atividades desnecessárias. Com as técnicas certas e a formação adequada, tudo num processo arbitral pode ser feito à distância, com a mesma proximidade e com a mesma ou muito mais qualidade. A experiência do último ano demonstra-o.

Não há nenhum princípio fundamental do processo justo que seja, em abstrato, afetado com a realização de um julgamento à distância ou com a inquirição de testemunhas através de uma plataforma como o Zoom. Uma das preocupações poderá ser com o respeito pelo princípio da imediação. Este princípio, que não é um princípio fundamental, impõe que o julgador deve ter o contacto mais direto possível com as pessoas que servem como fontes de prova[1]. Ora, a proximidade não tem de ser física. Pelo contrário, no Zoom, a expressão facial das pessoas até está mais próxima, podendo ser mais fácil lê-la do que numa sala de audiência. Não havendo, em abstrato, violação de qualquer princípio, o árbitro deve ter o cuidado de avaliar a existência de eventuais violações no caso concreto, tal como faz em qualquer audiência presencial. Por exemplo, se, no caso concreto, a ligação à internet de uma das partes é muito instável, pode estar colocado em causa o princípio do contraditório. Nessa situação, o árbitro deve tomar medidas, por exemplo a remarcação da audiência. Noutro exemplo, se o árbitro se aperceber de que alguém está na mesma sala a tentar influenciar a testemunha deve tomar medidas para que a isenção desta seja salvaguardada. Pode, também, haver casos em que o árbitro considere que, por alguma razão, naquele caso concreto faz mais sentido a audiência ser presencial. Por exemplo se as pessoas são todas da mesma cidade e uma das partes é mais idosa e demonstra ter muitas dificuldades informáticas. Os princípios do processo justo são suficientemente flexíveis para acomodar a realização de audiências arbitrais de consumo à distância. A barreira será mais relacionada com a circunstância de ser uma mudança e algo a que os profissionais da justiça não estão habituados, o que causa alguma insegurança. Por esse motivo, pode ser importante também descansar as partes e os advogados, explicando como tudo se vai passar para que se possam sentir seguros e confortáveis durante o processo.

Argumentos contrários à realização de diligências à distância na arbitragem de consumo, por natureza mais flexível e informal, esbarram também com a prática comum de fazer diligências à distância em arbitragens comerciais internacionais, muitas vezes de muitos milhões de euros. O ambiente agradece. E a generalidade dos consumidores e empresas também.

3) Evitar a impressão de documentos e ter o processo apenas em versão digital. Julgo que esta prática já será dominante nos centros de arbitragem de consumo em Portugal. Há muitos anos, quando a gestão dos processos do CNIACC estava no NOVA Consumer Lab, da NOVA School of Law, tomámos a decisão de tornar os processos exclusivamente digitais, não se imprimindo qualquer documento e incentivando as partes a comunicarem com o centro apenas por meios digitais. Também aqui se ganha ao nível da redução da pegada ecológica, mas também ao nível da eficiência e dos custos do processo arbitral.

A questão coloca-se igualmente no âmbito da mediação. Já existe também um Green Pledge neste domínio, com site em português. Como se pode ler nessa página, o passo que muitos mediadores tiveram de dar para a mediação online, em resposta à pandemia da Covid-19, demonstrou que há formas de mediar amigas do ambiente que são, simultaneamente, facilmente acessíveis e eficazes. A associação a estes compromissos é fácil. E esta associação pode depois ser anunciada. Fica, pois, o desafio lançado a mediadores/as e árbitros/as de consumo.


[1] José Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, 4.ª ed., Gestlegal, 2017.

A Clubhouse e a privacidade dos utilizadores

Doutrina

A nova rede social Clubhouse é já bastante conhecida entre o público, tendo chegado a Portugal no início deste ano. A sua popularidade eclodiu após ter sido palco de um debate entre Elon Musk, Marc Andreessen, Vlad Tenev e muitos outros empresários e elementos do público em geral, que chegaram mesmo a esgotar a capacidade da sala de chat hospedada pela Clubhouse para o efeito. O seu crescimento exponencial trouxe também alguns desafios e uma certa polémica em torno da privacidade dos utilizadores.

O grande fator que torna a Clubhouse atrativa prende-se com a sua exclusividade: além de apenas estar disponível para iOS, cada utilizador começa com dois convites para enviar a outras pessoas para aderirem à rede social. Esta rede social permite manter diálogos com outros utilizadores através de áudio – diálogos estes que, de acordo com a política de privacidade, não ficam gravados, pois quando a sala virtual é encerrada, não subsiste qualquer registo daquele chat. Existem exceções: os áudios dos utilizadores poderão ser temporariamente armazenados se houver, por exemplo, o reporte de um incidente. Nesta é ainda possível acumular-se seguidores e seguir outros utilizadores. O nome de utilizador é público e poderá ser utilizado para encontrar outros utilizadores. É possível mudar a fotografia de perfil, ligar a aplicação às contas do Twitter e Instagram, entre muitas outras opções.

Não obstante toda esta atratividade e utilidade, várias têm sido as preocupações levantadas pelos utilizadores no que se refere à privacidade. Até agora, muitos foram os relatos apresentados de falhas nesta vertente. Um dos casos mais falados é datado de fevereiro deste ano: um utilizador conseguiu transmitir em direto o áudio de uma sala de chat no seu website, mas foi rapidamente banido pois a gravação ou streaming sem a autorização explícita dos oradores viola os termos e condições da rede social.

Outro incidente ocorreu há poucos dias: a Clubhouse sofreu um ataque informático, o que resultou na disponibilização da informação relativa a 1,3 milhões de utilizadores em plena internet. Do que foi possível apurar, não foram revelados dados relativos a cartões bancários, moradas e emails. No entanto, a informação disponibilizada poderá facilitar ataques de phishing. A Clubhouse manifestou-se publicamente quanto a este assunto, afirmando que os dados disponibilizados já seriam públicos e poderiam ser consultados por qualquer utilizador através da aplicação.

Outro problema e desafio que a Clubhouse comporta relaciona-se com a facilidade de difusão de opiniões e informações, sem qualquer controlo por parte de um moderador associado à rede social – deste modo, será mais fácil a propagação de fake news, ódio, difamação contra utilizadores, teorias da conspiração, etc. O facto de as conversas não deixarem qualquer registo, após o encerramento de cada sala, implica que se os incidentes não forem reportados em tempo útil, não restem quaisquer provas que permitam reagir contra estes abusos.

Apesar destes incidentes, a questão mais relevante que cumpre analisar prende-se com o seguinte: se um utilizador quiser convidar amigos a utilizar a aplicação, terá de autorizar o acesso da aplicação à sua lista de contactos. Se não autorizar este acesso, o utilizador poderá continuar a utilizar a aplicação, mas ser-lhe-á relembrado constantemente através de uma notificação de que ainda não deu tal permissão.

Importa agora analisar a Política de Privacidade da Clubhouse, através de uma visão guiada pelo Regulamento Geral de Proteção de dados (RGPD). Na política de privacidade consta que a rede social recolhe dados fornecidos pelo utilizador titular de dados quer quando este acede à rede social, quer quando este a utiliza, criando ou partilhando conteúdos e comunicando com outros utilizadores da rede, o que é algo normal e necessário à execução do contrato, ou seja, de acordo com o art. 6.º, nº 1, alínea b), do RGPD, estamos perante um tratamento válido e lícito. Além do tratamento ser válido e lícito, também a questão dos deveres de informação é cumprida, pois aplica-se o artigo 14º, uma vez que a pessoa que recebe o convite recebe todas as informações necessárias sobre o tratamento de dados, os seus direitos, prazos de conservação. Supõe-se também que se o titular de dados não aceitar o convite num certo período de tempo, o Clubhouse deve apagar os dados utilizados nesta operação de tratamento (caso não lhe tenha sido dada autorização para o acesso contínuo à lista de contactos pelo utilizador). Releva ainda para a discussão o facto de na política de privacidade, no ponto relativo a Networks and Connections, a rede social menciona que, se o utilizador escolher dar permissão à aplicação para esta fazer o upload, sincronizar ou importar as informações da sua lista de contactos pessoais, esta poderá ser utilizada para “melhorar a experiência do utilizador em vários aspetos”, notificando-o quando um dos seus contactos se junte à rede social e utilizando a lista de contactos para recomendar outros utilizadores que possa querer seguir e recomendando, por sua vez, a sua conta a outros utilizadores.

Dado o exposto, se a aplicação requer que o utilizador dê permissão para que a mesma possa aceder à sua lista de contactos, estaremos já perante outra base de licitude, que será o consentimento, ou seja, sem o consentimento do utilizador titular de dados, a rede social não poderá ter acesso a esta informação (art. 6º, n.º 1, alínea a), do RGPD). Levantam-se aqui várias questões: em primeiro lugar, existem queixas de utilizadores que não deram permissão e mesmo assim a aplicação teve acesso aos dados das suas listas de contactos. Em segundo lugar, é suspeito e bastante invasivo um utilizador dar permissão para o acesso à sua lista de contactos à aplicação, e pessoas que nem sequer utilizam a aplicação veem os seus dados recolhidos e tratados pela Clubhouse sem terem dado o seu consentimento. Esta prática designa-se shadow profile.

Podemos concluir que, apesar de esta não aceitação da permissão de acesso à lista de contactos por parte do utilizador não afetar o funcionamento e utilização da rede social por parte do mesmo, este não poderá disfrutar da experiência completa da rede social, uma vez que será mais difícil encontrar e conectar-se com os seus amigos e familiares e, além disso, também não poderá enviar os seus dois convites disponibilizados inicialmente, o que criará entraves à socialização com amigos, que é o verdadeiro objetivo da rede social. Todavia, a autorização que o titular de dados dá para o acesso da aplicação à lista de contactos não se trata de um verdadeiro consentimento para o tratamento, na medida em que o utilizador não é o titular destes dados, devendo tratar-se de uma imposição dos termos de serviço do IOS e da App Store da Apple. Esta autorização dada pelo utilizador vai de encontro ao princípio da transparência e lealdade do RGPD, sendo que até pode ser considerada como uma oportunidade dada ao utilizador de exercer o direito de oposição.

Em março, surgiu uma atualização para tentar colmatar esta e muitas outras questões e falhas, sobretudo no que se refere à encriptação. No entanto, as queixas mantêm-se. Aguardemos o desenrolar da situação.

Decreto-Lei n.º 26-A/2021 – Espetáculos, festivais e concertos em tempos de pandemia (ainda os de 2020, os de 2021 e já os de 2022)

Legislação

O Decreto-Lei n.º 26-A/2021, de 5 de abril, vem alterar pela quinta vez o Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 de março (comentado no nosso blog aqui e aqui). Este novo diploma surge com o objetivo de adequar as medidas excecionais de âmbito cultural e artístico à evolução pandémica, em especial no que se refere aos espetáculos não realizados.

Vejamos o que mudou. No que se refere à janela temporal, o atual Decreto-Lei estabelece no seu artigo 2.º que o mesmo é aplicável ao “reagendamento ou cancelamento de espetáculos não realizados, por determinação legislativa ou administrativa de fonte governamental, bem como da autoridade nacional de saúde”, ou seja, não existe aqui um limite temporal. O único limite imposto aparece no art. 4.º-2, que estabelece que o espetáculo reagendado tem de ocorrer até 31 de dezembro de 2022. Isto significa que qualquer espetáculo que não tenha podido ou não se possa realizar devido à crise pandémica por determinação ou recomendação de qualquer entidade referida no art. 2.º, gozará do regime deste Decreto-Lei – nunca esquecendo que este é um regime excecional.

Quer isto dizer que, aos espetáculos não realizados neste período não se aplica art. 9.º-1-a) do Decreto-Lei n.º 23/2014, pelo que o portador do bilhete não pode exigir de imediato a restituição da importância correspondente ao preço dos bilhetes, salvo se o evento for cancelado.

O n.º 1 do art. 4.º vem estabelecer que os espetáculos abrangidos pelo Decreto-Lei em questão devem ser, sempre que possível, reagendados até 14 dias úteis antes da data prevista para a realização do evento, “sob pena de o adiamento ser havido, para todos os efeitos, como cancelamento”. Ou seja, em caso de incumprimento deste prazo por parte dos promotores do evento, os portadores de bilhete terão direito ao reembolso do valor dos mesmos, a realizar no prazo máximo de 60 dias úteis a contar dessa data, nos termos do art. 5.º-3. Aqui parece-me que o objetivo desta alínea será reforçar e garantir que os promotores dos espetáculos atuam segundo as regras da boa fé, protegendo-se o consumidor de quaisquer abusos e surpresas. Claro que a regra geral continua a ser a do reagendamento do espetáculo, mas este deverá ocorrer, como já foi referido, até ao dia 31 de dezembro de 2022, eliminando-se a regra do “prazo máximo de um ano após a data inicialmente prevista”, que constava do n.º 2 do art. 4.º, presente na versão anterior do diploma.

O art. 4.º do Decreto-Lei, na versão atual, continua a consagrar e a fazer prevalecer o critério da distância, uma vez que o espetáculo não poderá ser marcado para um local a mais de 50 quilómetros do local inicialmente previsto.

Importa agora abordar os aditamentos mais relevantes introduzidos por este novo diploma. No art. 5.º-B levanta-se a proibição de realização de festivais e espetáculos de natureza análoga no ano de 2021, sendo que estes deverão seguir as orientações emitidas pela DGS face à evolução da pandemia da doença COVID-19. No n.º 2 permite-se a promoção de eventos-piloto, em parceria com a DGS, para a definição das orientações técnicas relativas à ocupação de lugares, lotação e distanciamento físico dos espectadores. No n.º 3 estabelece-se que todos os envolvidos nos espetáculos podem ser sujeitos à realização de testes de diagnóstico à COVID-19. No final do art. 5.º-B estabelece-se que os espetáculos reagendados devem ocorrer até 31 de dezembro de 2022.

Quanto ao art. 5.º-C, estabelece-se que o reagendamento de espetáculos, festivais e espetáculos de natureza análoga inicialmente agendados para o ano de 2020 e que ocorram apenas em 2022 dá lugar à restituição do preço do bilhete de ingresso ao respetivo portador, nos termos previstos na norma. Assim, “o portador do bilhete tem direito a solicitar a devolução do respetivo preço no prazo de 14 dias úteis a contar da data prevista para a realização do evento no ano de 2021”. Por outro lado, “na falta de pedido de reembolso, nos prazos referidos, considera-se que o portador do bilhete ou do vale aceita o reagendamento do espetáculo, festival ou espetáculo de natureza análoga sem direito ao reembolso do respetivo valor”.

Regulamento Europeu relativo à Inteligência Artificial – divulgação antecipada (leaked draft)

Doutrina

A Comissão Europeia vai anunciar brevemente, provavelmente durante a próxima semana, a Proposta de Regulamento relativo à Inteligência Artificial que tem estado a preparar. A propósito da divulgação antecipada pelo Politico de um draft daquela Proposta, acessível aqui, já se encontram notícias muito concretas sobre o assunto.

Na senda da adoção de Regulamentos que vem caraterizando a União Europeia, principalmente no que à denominada Economia Digital diz respeito, já analisada neste blog, mais uma vez o instrumento preferido pela União é aquele que, com maior rapidez e a possível eficácia, faz chegar regras semelhantes a todos os Estados-Membros.

Este diploma vem coroar um esforço, que vai longo e intenso, no sentido de a UE procurar dominar esta força, aparentemente descontrolada, que se tem vindo a revelar ser o alastramento da utilização de inteligência artificial na análise de volumes astronomicamente crescentes de big data, que todos nós produzimos, com entusiasmo ou enfado, quando vamos usando e abusando de dispositivos eletrónicos, principalmente de smartphones e que se junta aos dados produzidos por todas as outras fontes, em permanência, de que se destacam a denominada Internet das Coisas, a omnipresente vigilância através de câmaras espalhadas em espaços públicos e privados e o GPS que nos mantém um pequeno boneco desarticulado nos mapas virtuais.

Esse esforço tem sido reportado e analisado neste blog, principalmente aqui e aqui, em relação à Estratégia para a inteligência Artificial (Artificial Intelligence – AI), aos trabalhos do Grupo de Peritos especificamente criado neste âmbito (AI HLEG), à criação da European AI Alliance (EAIA), do Livro Branco sobre a inteligência artificial e do Relatório sobre as implicações em matéria de segurança e de responsabilidade decorrentes da inteligência artificial, da Internet das Coisas e da robótica, bem como ao nascimento do ALLAI, tudo com vista à criação e operacionalização de uma AI confiável.

Passo de gigante será o Regulamento que enquadra juridicamente o tema e que estará a chegar.

De acordo com o draft divulgado, o diploma vai ter 92 considerandos, 69 artigos e 8 anexos.

A estrutura apresentada é a seguinte: Título I de “General Provisions”, Titulo II relativo a “Prohibited Artificial Intelligence Practices”, Título III que regula os “High-Risk AI Systems”, (para os quais estabelece requisitos e obrigações específicas, os “Notified Bodies” e os “Conformity Assessment, Standards, Certificates, Registration”), Título IV relativo à “Transparency Obligations for Certain Other AI Systems”, Título V estabelecendo as “Obligations For The Use Of Remote Biometric Identification Systems”, Título VI as “Measures In Support Of Innovation”, o Título VII a “Governance” (criando o artigo 47.º um “European Artificial Intelligence Board”), o Titulo VIII a “Eu Database For High-Risk Ai Systems”, Título IX a “Post-Market Monitoring, Information Sharing, Market Surveillance”, Título X os já habituais Códigos de Conduta, Título XI “Confidentiality And Penalties”, criando as também já habituais sanções astronómicas, Título XII os “Delegated Acts & Comitology” (maravilhoso termo que talvez se possa traduzir pelo correspondente nacional não menos delicioso “Comitologia”, que mostra muito daquilo em que se tornou a UE), fechando com o Título XIII de “Final Provisions”.

Deixamos o resumo e acesso ao draft leaked, para abrir o apetite e ficaremos atentos à divulgação oficial do texto final que se espera para muito breve, altura em que haverá oportunidade de se verificar se o draft divulgado antecipadamente corresponde à versão que virá a ser oficialmente anunciada. Tarefa comparativa completamente talhada para uma AI.

As bases enferrujadas do comércio global: o que o navio encalhado no Canal de Suez revelou ao mundo

Doutrina

O ano é 2021. Na mesma esfera da pauta em que se destacam a inteligência artificial, a teoria da singularidade, a manipulação de dados voltada ao direcionamento do consumo e um exponencial crescimento da dependência e importância da tecnologia na vida humana, a sociedade global foi recentemente surpreendida por um incidente que, em última análise, serviu para expor as fraquezas de um sistema de consumo e circulação de bens que apresenta bases que parecem enferrujar.

No dia 23 de março deste ano, o mundo assistiu o navio porta-contentores “Ever Given”, um dos maiores do mundo, com seus quase 400 metros de comprimento (equivalente à altura do Empire State Building) e suas 219 toneladas encalhar, nada mais, nada menos, que no Canal de Suez, localizado no Egito, bloqueando por completo o tráfego de uma das zonas mais importantes para o comércio marítimo mundial[1], que funciona como a ligação naval mais rápida entre o oceano Índico e o mar Mediterrâneo, e daí ao Atlântico, isto é, entre a Ásia e Europa.

O tema, globalmente noticiado, veio a resultar para além dos infindáveis prejuízos ao comércio internacional – e que ainda suscitam discussões contratuais e securitárias, em perdas económicas diárias situadas entre seis mil milhões e dez mil milhões de dólares[2], conforme informado pela seguradora Allianz. Nesta semana, por sua vez, fora então divulgada a decisão do Egito de não liberar o navio até que uma multa de mil milhões de dólares seja paga com fim de compensar os danos resultantes do período de bloqueio.

          O valor exigido pelo Egito para liberação do navio seria, em princípio, calculado com base na perda de taxas de uso do canal perdidas depois que diversos outros navios desviaram a rota, dando a volta pela África do Sul. Além disso, há os danos causados à hidrovia durante a drenagem, os esforços de retirada do cargueiro e os custos com equipamentos e materiais. Vale ressaltar, ainda, que no momento da liberação do EverGiven, havia 422 navios na fila de espera para realizar a passagem pelo Canal[3].

          Não bastassem todas as dificuldades logísticas, resultantes das circunstâncias da pandemia de Covid-19, vimos a rota por onde passam de 10 a 12% do mercado mundial ser interrompida pelo resultado de mais uma ação da natureza, como a baixa na maré da região, e a revelação do quão despreparado o mundo parece estar para estas ações.

          O tema, portanto, é só mais uma demonstração da precariedade das estruturas que fundam a economia mundial e o comércio internacional.  O sistema de fabricação “just-in-time”, voltado à redução de custos e aumento de lucros, em que estoques são evitados como forma de também evitar-se o dispêndio de dinheiro, sob a escusa de as empresas terem a circular por todos os cantos insumos suficientes para a produção de todo e qualquer produto, não mais que “de repente”, mostrou suas fragilidades inerentes.

          Nenhuma tecnologia industrial, digital, e nem mesmo a internet foi capaz de resolver o impasse que bloqueou a navegação global e que colocou em xeque a circulação internacional de bens. Da mesma forma, recentemente, diferentes indústrias têm assistido, em desespero, a falta de insumos para produção das vacinas contra o vírus da COVID-19. Isso para não adentrar na deflagrada falta de materiais hospitalares, incluindo máscaras e luvas, em diferentes países e sistemas de saúde do mundo.

          O fato de especialistas em resgate levarem quase uma semana para liberar o navio Ever Given do Canal de Suez, após utilização de drenagem, máquinas e operações de reboque, não vem só reafirmar a fragilidade humana perante incidentes naturais ou casuísticos, como também vem expor de forma clara a fragilidade dos pilares em que se fundam a circulação de bens no comércio internacional, envolvendo não somente diferentes indústrias, mas, acima de tudo, milhares de milhões de consumidores.

          Os diferentes modelos de gestão idealizados para um exponencial aumento de lucros, bem como a contante busca pelo modelo de produção rápida e especializada, evidentemente mudou também o eixo de como consumimos, ou ainda mais a velocidade com que podemos ter à nossa disposição produtos vindos de todo o mundo. O grande exemplo, como no caso da ascensão dos navio porta-contentores, em que caixas de ferro são empilhadas para otimizar o transporte ultramarino, fez aumentar drasticamente a disponibilidade de produtos de consumo a baixos custos e preços.

Ainda que não se abordem aqui as respostas aos problemas postos, o NOVA Consumer Lab tem a missão de observar o comportamento do consumo e do consumidor, bem como de problematizar esses mesmos progressos que geraram vulnerabilidades na organização da atividade mundial. E é neste momento que é preciso questionar se nossos esforços estão, mesmo que minimamente, debruçados sobre os pontos corretos e nossos olhares atentos aos problemas reais.

Como muito bem colocado pelo professor de globalização na Universidade de Oxford, Ian Goldin, “conforme nos tornamos mais interdependentes, somos ainda mais submetidos às fragilidades que surgem, e elas são sempre imprevisíveis (…) Ninguém poderia prever que um navio encalharia no meio do canal, como ninguém previu de onde viria a pandemia. Como não podemos prever o próximo ciberataque, ou a próxima crise financeira, mas sabemos que vão acontecer”[4].


[1] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2021/03/entenda-por-que-o-canal-de-suez-e-tao-importante.shtml?origin=folha

[2] https://www.jornaldenegocios.pt/empresas/detalhe/navios-ja-comecaram-a-atravessar-o-canal-do-suez

[3] https://www.reuters.com/article/egito-canaldosuez-idLTAKBN2BQ0GW

[4] https://www.euronews.com/2021/04/06/firms-must-store-more-to-avoid-shocks-to-global-supply-chain-says-mep

Em busca de um conceito jurisprudencial de consumidor

Jurisprudência

Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 4/2019

Uma das questões mais caras e importantes no âmbito do direito do consumo é, sem dúvida, a do conceito de consumidor. Sem sabermos o que se deve entender por consumidor, nunca saberemos que relações jurídicas estão abrangidas pelas normas deste “sub-ramo jurídico”. 

No ordenamento português, inexistindo um código e estando a  legislação de direito do consumo dispersa por vários diplomas legais, cada diploma, ao delimitar o seu âmbito de aplicação (subjetivo), contém uma definição de consumidor. Não existe, portanto, um conceito único de consumidor, quer a nível nacional quer a nível internacional.

Se o legislador não conseguiu ou não quis uniformizar a noção de consumidor, também a jurisprudência tem revelado flutuações acentuadas quanto à interpretação das várias normas legais que a definem. 

E não se pense que a discussão se restringe às definições constantes de diplomas de direito do consumo. Inusitadamente, uma das mais profícuas querelas quanto ao que se deve entender por consumidor surgiu e desenvolveu-se no âmbito da graduação de créditos em insolvência.

Tudo “começou” quando o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/2014 uniformizou jurisprudência no sentido de que, “no âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no art. 755º nº 1 alínea f) do Código Civil”.

Em suma, estava em causa saber se num contrato promessa incumprido pela promitente vendedora insolvente, o promitente-comprador que seja consumidor e a quem foram transmitidos os imóveis objeto do contrato meramente obrigacional, goza do “direito de retenção” sobre os mesmos para pagamento dos seus créditos, prevalecendo assim sobre outro crédito hipotecário que sobre eles incidia. 

A decisão do STJ foi claramente favorável à posição do consumidor ante a dos credores hipotecários (em regra, entidades bancárias), imbuído do espírito legislativo que deu origem à inclusão da referida al. f) ao n.º 1 do artigo 755.º do Código Civil. Como se pode ler no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 379/86, de 11 de Novembro, “neste conflito de interesses, afigura-se razoável atribuir prioridade à tutela dos particulares. Vem na lógica da defesa do consumidor. Não que se desconheçam ou esqueçam a proteção devida aos legítimos direitos das instituições de crédito e o estímulo que merecem como elementos de enorme importância na dinamização da atividade económico-financeira. Porém, no caso, estas instituições, como profissionais, podem precaver-se, por exemplo, através de critérios ponderados de seletividade do crédito, mais facilmente do que o comum dos particulares a respeito das deficiências e da solvência das empresas construtoras”.

No entanto, o AUJ n.º 4/2014 não incluiu no segmento uniformizador a noção de consumidor, o que despoletou nova querela. Nessa decisão, apenas se refere, numa nota de rodapé (!), que o consumidor é o “utilizador final com o significado comum do termo, que utiliza os andares para seu uso próprio e não com escopo de revenda”. 

A jurisprudência posterior divergiu, essencialmente, entre duas posições: uma vertente que, numa tentativa de restringir os efeitos da interpretação restritiva do artigo 755.º-1-f) do Código Civil, entendia o conceito de consumidor como todo o utilizador final de um bem (mais abrangente); e outra vertente, que recorria à noção de consumidor consagrada na LDC, restringindo a noção de consumidor aos que destinam o bem objeto do contrato-promessa a um uso não profissional.

Para perceber o alcance da querela, nada melhor do que convocar o caso que motivou nova uniformização de jurisprudência. Tratou-se de um contrato-promessa de duas frações de um edifício constituído em propriedade horizontal, onde os promitentes-compradores, obtida a traditio, “efetuam, diariamente, tratamentos de fisioterapia, se realizam consultas de cirurgia, consultas de otorrinologia, consultas e tratamentos de saúde dentária, consultas de fisiatria, diversos exames de Tac, Ressonâncias, Raio X, Cardio e outros serviços de saúde a diversos doentes”.

Ora, com este exemplo, fica claro o sentido e alcance da querela, na medida em que apenas adotando o conceito mais amplo de consumidor poderão os promitentes-compradores daquelas frações beneficiar do direito de retenção das mesmas para obter o pagamento dos seus créditos no processo de insolvência, visto que, apesar de serem utilizadores finais do bem, o destinam a um uso profissional.

A divergência foi sanada então com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/2019, que uniformiza jurisprudência no sentido de que, “Na graduação de créditos em insolvência, apenas tem a qualidade de consumidor, para os efeitos do disposto no Acórdão n.º 4 de 2014 do Supremo Tribunal de Justiça, o promitente-comprador que destina o imóvel, objeto de traditio, a uso particular, ou seja, não o compra para revenda nem o afeta a uma atividade profissional ou lucrativa”.

De facto, esta é a solução que mais se adequa à fundamentação do primitivo acórdão uniformizador, onde se sustentou que “a opção legislativa no conflito entre credores hipotecários e os particulares consumidores, concedendo -lhes o direito de retenção teve e continua a ter uma razão fundamental: a proteção destes últimos no mercado da habitação; na verdade, constituem a parte mais débil que por via de regra investem no imóvel as suas poupanças e contraem uma dívida por largos anos, estando muito menos protegidos do que o credor hipotecário (normalmente a banca) que dispõe regra geral de aconselhamento económico, jurídico e logístico que lhe permite prever com maior segurança os riscos que corre …”.

Cumprimento da obrigação de fornecimento de conteúdos e serviços digitais

Legislação

Nos termos do seu art. 1.º, a Diretiva (UE) 2019/770 estabelece, entre outras, regras relativas “ao fornecimento de conteúdos ou serviços digitais”, no sentido de cumprimento da obrigação de fornecimento por parte do profissional, e “aos meios de ressarcimento em caso (…) de não fornecimento e as modalidades de exercício dos mencionados meios de ressarcimento”. A obrigação de fornecimento aparece no diploma estruturalmente separada da obrigação de fornecer os conteúdos ou serviços digitais em conformidade com o contrato, outra matéria nele tratada, aliás até com mais profundidade. Neste texto aborda-se apenas a obrigação de fornecimento.

No que respeita ao contrato de compra e venda, o “fornecimento” propriamente dito pode ser enquadrado no conceito de “entrega”, matéria que não é tratada pelo Diretiva (EU) 2019/771. Isto porque vários aspetos do regime da compra e venda já se encontravam abrangidos por outra diretiva (v. arts. 17.º e segs. da Diretiva 2011/83/UE), incluindo um artigo sobre a entrega (art. 18.º).

Aos contratos de fornecimento de suportes materiais que funcionam exclusivamente como meio de disponibilização de conteúdos digitais (por exemplo, CD, DVD, etc.), que são qualificados como contratos de compra e venda de coisa corpórea, aplica-se o art. 18.º da Diretiva 2011/83/UE, em matéria de entrega, o que justifica a não aplicação das regras que, na Diretiva (EU) 2019/770, regulam esta matéria (arts. 5.º e 13.º), como expressamente resulta do seu art. 3.º-3 (v. também consid. 20).

O art. 5.º trata das modalidades e do prazo do cumprimento da obrigação de fornecimento dos conteúdos e serviços digitais, entendida como a obrigação principal que recai sobre o profissional (consid. 41).

O art. 5.º-1 começa por determinar que o profissional tem a obrigação de fornecer os conteúdos ou serviços digitais ao consumidor. O n.º 2 esclarece quando é que se considera cumprida esta obrigação.

Nos termos do art. 5.º-2, considera-se cumprida a obrigação se o consumidor puder utilizar os conteúdos ou serviços digitais em conformidade com o contrato sem estar dependente de qualquer ato do profissional. Podemos imaginar vários casos em que tal sucede:

  • o conteúdo digital é disponibilizado ao consumidor (por exemplo, enviado por e-mail);
  • o consumidor descarrega o conteúdo digital numa página ou aplicação (podendo estas ser do profissional ou de terceiro, nomeadamente uma plataforma digital ou um prestador de serviços de alojamento em nuvem);
  • o consumidor acede ao conteúdo ou serviço digital numa página ou aplicação (podendo também estas ser do profissional ou de terceiro).

No caso de ser acordado, por opção do consumidor, que o conteúdo ou serviço digital ficará disponível para descarregar ou aceder numa página ou aplicação de um terceiro, o profissional cumpre a sua obrigação de fornecimento se colocar o conteúdo ou serviço digital acessível nessa página ou aplicação.

Se o consumidor não tiver optado especificamente por descarregar ou aceder ao conteúdo ou serviço digital junto de um terceiro, à qual é equiparada a situação em que não lhe foi apresentada outra opção em alternativa (v. consid. 41), considera-se cumprida a obrigação apenas quando o conteúdo ou serviço digital é disponibilizado ao consumidor ou este a ele acede. Não basta que o objeto do contrato esteja na página ou plataforma, sendo necessário que o consumidor consiga utilizá-los em conformidade com o contrato.

A Diretiva refere-se a “instalação física ou virtual”, o que parece ir mais além do que as páginas ou plataformas a que aludimos nos parágrafos anteriores. Será uma situação mais rara aquela em que o consumidor acede a conteúdos ou serviços digitais numa instalação física.

Relativamente ao momento do fornecimento, o art. 5.º-1 estabelece que este deve realizar-se, salvo acordo em contrário, “sem demora indevida”. A referência a “após a celebração do contrato”, associada à utilização do conceito indeterminado de “demora indevida” parece-nos impor, na verdade, como regra geral supletiva, o fornecimento imediato do conteúdo ou serviço digital no momento imediatamente seguinte ao da conclusão do contrato. Isto tendo em conta, como se pode ler no consid. 41, “as práticas do mercado e as possibilidades técnicas”, abrindo-se assim um certo “grau de flexibilidade”. Se as partes estipularem um prazo para o fornecimento, é nesse prazo que os conteúdos ou serviços digitais devem ser fornecidos.

FIFA World Cup Qatar 2022: a caminho de um boicote?

Doutrina

Morreram mais de 6.700 pessoas no Qatar desde que o país foi designado anfitrião do campeonato do mundo de futebol. Não foram umas pessoas quaisquer e não foi numas circunstâncias quaisquer. Foram trabalhadores migrantes provenientes da Índia, do Bangladesh, do Nepal, do Sri Lanka e do Paquistão, e o número divulgado pelo The Guardian nem inclui a mão-de-obra proveniente de países como o Quénia e as Filipinas[1]. São sempre os mesmos.

Problema número um: os registos de óbito não especificam o local de trabalho dos falecidos, muito embora Nick McGeehan (diretor da FairSquare Projects) assegure que “uma proporção muito significativa dos trabalhadores migrantes que morreram desde 2011 estava no país apenas porque o Qatar obteve o direito de receber o Mundial de Futebol”[2].

Se os registos não especificam se morreram na construção de infraestruturas para o Mundial do Futebol, então não temos um problema. Exceto se, de repente, a Noruega aparecer com uma t-shirt estampada com o slogan “Human Rights: on and off the pitch” no jogo contra Gibraltar e ainda ganhar 3-0. Aí começam a surgir dúvidas acerca da veracidade da “causa natural” de 69% das mortes de indianos, nepaleses e bangladeshianos no Qatar.

Já em 2013 a Amnistia Internacional expusera a “exploração alarmante” dos trabalhadores estrangeiros no Qatar, afirmando que estes são “tratados como animais”[3]. Em 2016, nova investida sobre o lado feio do jogo bonito[4]. E nada. Perante várias pressões mediáticas, o Qatar anunciou um programa de proteção e garantia de bem-estar e agora, em 2021, os organizadores do evento assinam um memorando de entendimento com a CNDH. Atempado é que não foi.

Vários clubes noruegueses apoiam um boicote ao Mundial. 55% dos noruegueses são favoráveis a um boicote ao Mundial. A Alemanha, a Dinamarca e a Holanda já se juntaram ao movimento. Outros estão a caminho. Que parece em curso uma campanha articulada de boicote por parte das grandes estruturas, já não há grandes dúvidas. As acusações de sportwashing a isso obrigam, mas já obrigavam antes. Nesta cadência, as consequências não serão bonitas para o futebol: milhões de euros investidos em vão, milhares de promessas rompidas, algumas carreiras prejudicadas. Mas, sobretudo, milhares de vidas perdidas até agora e outras tantas com a sua atividade dispensada daqui para a frente.

Resta agora saber se também o público se juntará ao movimento. Não será surpreendente que o comportamento de boicote se torne viral, sobretudo se içado pelos sonantes nomes da indústria do futebol. No entanto, o público adepto da modalidade não tem contornado a devoção perante os múltiplos escândalos que estoiram permanentemente na área (e isto nem é um trocadilho). Talvez só mesmo a ausência das principais estrelas da modalidade poderiam justificar o desinteresse do público, o que, em teoria, nunca seria um verdadeiro boicote por parte do consumidor.

Também não será surpreendente o seu reverso, marcado pela já conhecida indiferença pelo fenómeno da violação de direitos humanos, conduzindo, sem qualquer rasgo de perturbação, o público ao estádio e ao comando. Tudo dependerá do eco que o movimento vai recolher, como já temos sido habituados. De todo o modo, é até inteligível a interrogação dos que não venham a compreender o que tem o futebol a ver com trabalhadores migrantes, dos que venham a não conceber que a perversa máquina por trás dos relvados, sempre tão bem regados a cifrões, desta vez encerre em si vidas dos seus iguais.

Qualquer um dos desfechos será agonizantemente hipócrita. Como bem referiu Håvard Melnæs, “não deveria Martin Ødegaard, ao protestar contra a exploração dos trabalhadores no Qatar, fazer o mesmo contra o patrocinador mais importante do seu clube, os Emirados Árabes Unidos, que trata os seus trabalhadores migrantes da mesma forma ou talvez pior do que o Qatar?”[5].

Não deixa nem por isso de ser curioso que a iniciativa venha do clube norueguês Tromsø, do Círculo Polar Ártico. Talvez lá de cima se veja melhor o panorama (do) mundial.


[1] https://www.theguardian.com/global-development/2021/feb/23/revealed-migrant-worker-deaths-qatar-fifa-world-cup-2022

[2] https://www.business-humanrights.org/en/latest-news/qatar-guardian-investigation-finds-6500-migrant-workers-have-died-in-world-cup-host-country-since-2010/

[3] https://www.amnesty.org/download/Documents/16000/mde220102013en.pdf

[4] https://www.amnesty.org/en/documents/mde22/3548/2016/en/

[5] https://www.theguardian.com/commentisfree/2021/mar/30/norway-boycott-qatar-world-cup-football