O consumidor médio e a imoralidade de Pablo Escobar

Doutrina

No dia 17 de Abril de 2024, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) manteve a recusa do Instituto da Propriedade Intelectual da União Europeia (EUIPO) em registar a marca “Pablo Escobar” para uma grande variedade de bens e serviços em toda a União Europeia (UE). A recusa baseia-se no fato de que a marca em questão seria contrária à ordem pública ou aos bons costumes, motivo para recusa previsto no artigo 7 (1)(f) do Regulamento sobre a Marca Comunitária.

A decisão não é a primeira do tribunal a seguir esta tendência. Por exemplo, a marca “La mafia se sienta a la mesa” já teve seu registo cancelado na UE. A corte argumenta que ao remeter a agentes criminosos, tais marcas banalizam a seriedade das atividades criminosas cometidas e, assim, entram em conflito com valores fundamentais da UE, a exemplo da dignidade da pessoa humana (Para mais, veja EUIPO Case-law Research Report: Trade marks contrary to public policy or accepted principles of morality).

No presente caso, o curioso reside na argumentação do requerente, Escobar Inc., empresa estabelecida nos Estados Unidos (EUA). Além de afirmar que Pablo Escobar nunca foi condenado criminalmente, é também ressaltada sua reputação enquanto “Robin Hood Colombiano”, diante das boas obras que também haveria realizado para a população da Colômbia. A requerente constrói uma argumentação de que o nome Pablo Escobar já estaria descolado das atividades criminosas um dia cometidas pelo próprio, tornando-se uma figura da cultura pop geral, amplamente aceite (e até mesmo querida) pela sociedade, como representado na famosa série da Netflix “Narcos”. A requerente ainda traz exemplos como “Al Capone”, também um famoso antigo líder de grupo criminoso nos EUA, e que é uma marca registada na UE.

A corte, por sua vez, é taxativa em afirmar que tais fatos não retiram a associação do nome Pablo Escobar a um símbolo do crime organizado o que, portanto, não deve ser protegido pela UE enquanto marca registada. Segundo o tribunal, o consumidor médio espanhol – frisa-se: aquele com parâmetros médios de sensitividade e tolerância – iria considerar a marca como contrária aos standards morais da sociedade espanhola, a qual possui maiores vínculos com a história de Pablo Escobar e seus atos na Colômbia.

A decisão do caso, assim como de todos os outros que abordam similares questões, é fundamentado na ideia de “consumidor médio”. Este conceito é amplamente debatido pela doutrina, sendo considerado, muitas vezes, uma noção das cortes que não reflete a realidade (Para mais, veja Rossella Incardona & Cristina Poncibò e Lotte Anemaet). Entretanto, um ponto que não foi levantado no caso em questão, e que pode ter grande importância numa análise de moralidade e bons costumes, é o contexto em que os produtos associados à marca seriam vendidos.

Para registar uma marca, é necessário indicar a quais bens ela se destina. Ao observar a marca “Al Capone”, seu registo restringe-se a produtos de tabaco, charutos, cigarrilhas e cigarros. A marca “Pablo Escobar”, por outro lado, destinava-se a uma grande variedade de bens, desde veículos, a cosméticos, utensílios de casa, comidas, bebidas alcoólicas e não-alcoólicas, roupas e jogos. Ademais, incluía também serviços como propaganda, construção civil, telecomunicação, viagens, educação, restauração, e até mesmo babysitting.

Apesar de não ressaltado pela corte, o consumidor médio de cada um desses produtos irá inevitavelmente variar. Enquanto ao tratar de produtos para cigarros é necessário que o consumidor seja maior de 18 anos, o mesmo não ocorre para produtos como brinquedos ou serviços educacionais e de babysitting. Muito pelo contrário, nesse caso imagina-se enquanto consumidor médio uma criança ou adolescente. Assim, levanta-se uma questão: há parâmetros diferentes ao considerar tão distintos consumidores médios? Poderia uma marca como “Pablo Escobar” ser registada, por exemplo, apenas para bebidas alcoólicas?

O Advogado-Geral Szpunar levantou semelhante questão na sua opinião para o caso “Fack Ju, Goethe”, marca que também gerou discussão em torno da sua moralidade por ser um trocadilho em alemão com a expressão inglesa “Fuck you, Goethe”. No parágrafo 85, ele afirma que, embora o pedido da requerente abranja uma diversa lista de bens e serviços, a viabilidade do registo em apenas algumas categorias não foi levantada durante o recurso. Por isso, ele optou por não se pronunciar sobre essa possibilidade. A decisão da corte no caso Pablo Escobar traz à tona os mesmos debates sobre marcas, moralidade, a interpretação da perceção cultural da sociedade atual e a definição do “consumidor médio”. No entanto, não oferece novas respostas. Como podemos avançar na compreensão desses conceitos? Será que uma definição clara de tal “consumidor médio” é possível? Como garantir uma aplicação justa e consistente de padrões morais em diferentes contextos?

O papel da propriedade industrial na proteção do consumidor

Legislação

A propriedade industrial é uma área do direito da propriedade intelectual que visa “garantir a lealdade da concorrência, pela atribuição de direitos privativos sobre os diversos processos técnicos de produção e desenvolvimento da riqueza”[1]. A proteção deste tipo de criações intelectuais é concedida através de vários institutos jurídicos, nomeadamente a patente, a marca, o registo de desenhos e modelos industriais, indicações geográficas, entre outros. Sendo uma área do direito que interage com várias outras, importa perceber o papel que a propriedade industrial tem na proteção dos consumidores.

O principal instrumento legal relativo à propriedade industrial em Portugal é o Decreto-Lei n.º 110/2018, de 10 de dezembro, que aprova o novo Código da Propriedade Industrial, transpondo as Diretivas (UE) 2015/2436 e (UE) 2016/94. Neste, são várias as referências à especial atenção que tem de ser garantida ao consumidor.

Vejamos.

O registo de uma marca é um ato administrativo realizado junto do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) e que está associado a vários fundamentos e exige o cumprimento de certas formalidades. Um dos motivos para recusa do registo da marca será a tentativa de induzir o consumidor em erro através da tentativa da reprodução de marca anteriormente registada para produtos (ou serviços) idênticos ou afins que poderiam induzir o consumidor em erro ou confusão. De igual modo é recusado o registo de uma marca que apresente elementos (como a bandeira nacional) que poderiam levar o consumidor a crer que se trata de um produto ou serviço proveniente de uma entidade pública nacional (art. 231.º-2-a)). Estas disposições legais não são exclusivas às marcas, existindo normas semelhantes relativas aos logótipos (art. 289.º-1-b)) e indicações geográficas (art. 302.º-2).

Para além de marcas que possam tentar induzir o consumidor em erro por reproduzirem outras marcas, há a possibilidade das próprias marcas serem enganosas: uma marca com o nome de “Motas Novas” que só venda motociclos usados estará, naturalmente, a distorcer a realidade dos seus produtos. Para estas situações a lei prevê um regime diferente do anterior: a marca deverá ter o seu registo caducado se “tornar suscetível de induzir o público em erro, nomeadamente acerca da natureza, qualidade e origem geográfica desses produtos ou serviços, no seguimento do uso feito pelo titular da marca, ou por terceiro com o seu consentimento, para os produtos ou serviços para que foi registada” (art. 268.º-2-b)). Como tal, a expectativa do consumidor é essencial para que a marca seja um elemento que identifique e distinga produtos e serviços.

Além de incluir o consumidor em normas de direito substantivo, é interessante ver que a lei também dá relevância ao consumidor em questões processuais.

Existe a possibilidade de apresentar junto do INPI um pedido de declaração de nulidade de um registo de marca (art. 262.º) ou de um desenho ou modelo (art. 204.º) quando existirem fundamentos para invalidar esse mesmo registo. Tanto num caso como no outro, a lei considera que qualquer pessoa (inclusive um consumidor[2] – individualmente ou representado através de uma associação de consumidores, desde que tenha capacidade para demandar ou ser demandado/a), deverá ser encarado como um interessado com legitimidade. Não só os consumidores são interessados com legitimidade num processo de nulidade de registo de marca ou de desenho ou modelo, como também o são na determinação de sanções acessórias. Quando os tribunais são chamados a decidir num processo judicial relacionado com esta matéria, podem aplicar sanções acessórias relativas ao destino dos bens em relação aos quais tenha havido violação do direito de propriedade industrial. Estas medidas terão de ser tomadas de forma adequada e proporcional, tendo sempre em conta os legítimos interesses de terceiros, em particular os interesses dos consumidores (art. 348.º).

Todos os produtos e serviços adquiridos por um consumidor são (diretamente ou indiretamente) criações intelectuais. Não só o produto final como a imagem. O desenho, a marca e o logótipo do produtor também o são. Desta forma, é essencial evitar que haja produtos diferentes a serem dissimulados como sendo produtos iguais. Não só isto cria problemas a nível económico como também poderá causar danos gravíssimos nos consumidores: alimentos que usam a imagem ou marca de outros produtos com padrões, qualidades e naturezas diferentes são um risco de saúde para os consumidores que possam ter alergias alimentares ou necessidade de outros cuidados especiais. Como tal, é percetível a importância que a lei dá à proteção dos consumidores, reconhecendo a urgência de garantir que estes são devidamente informados. O direito à informação dos consumidores vem previsto no art. 60.º-1 da Constituição da República Portuguesa, que refere que “os consumidores têm direito à qualidade dos bens e serviços consumidos, à formação e à informação […]”[3]. É com base neste preceito constitucional que a lei procura garantir que a informação à qual o consumidor tem acesso é autêntica, nomeadamente na informação que o consumidor encontra quando interage com um produto ou serviço. Caberá ao Estado e às autoridades garantir que a informação é verdadeira e precisa, atuando na primeira linha de combate às manifestações de propriedade industrial que possam vir a confundir o consumidor ou a induzi-lo em erro.


[1] Art. 1.º do DL n.º 110/2018, de 10 de dezembro. Todas as referências legais neste texto serão relativas a este diploma.

[2] Apesar do legislador não utilizar o conceito de consumidor, “qualquer pessoa singular ou coletiva” com legitimidade pode apresentar o pedido junto do INPI. Como tal, consumidores e não consumidores estarão abrangidos neste conceito amplo.

[3] A proteção dos consumidores no texto constitucional em vigor foi anteriormente abordada neste blog aqui.