O vinho mais barato da carta

Doutrina

Em muitos restaurantes, ocorre um fenómeno estranho que consiste na rutura de stock da garrafa de vinho mais barata da carta. O cliente, ao pedir essa garrafa de vinho, é informado de que esta não se encontra disponível, tendo de escolher outra. Por vezes, essa informação é acompanhada de uma sugestão de outra garrafa de vinho, normalmente sem indicação do respetivo preço[1]. Veremos neste texto se estas práticas são lícitas, à luz dos princípios da transparência e da lealdade.

A apresentação de uma lista ou carta com a indicação da comida e das bebidas constitui uma proposta contratual apresentada pela entidade gestora do restaurante (que designaremos simplesmente por restaurante) ao cliente. O restaurante fica numa situação de sujeição e o cliente tem o direito potestativo de fazer um pedido consistente com a informação constante da carta, pedindo o que aí estiver indicado. Se o cliente pedir uma garrafa de vinho constante da carta, celebra-se então um contrato relativo a essa garrafa. Este contrato é um contrato misto, pois inclui, além da própria garrafa (objeto principal do contrato, que aponta no sentido de se tratar de um contrato essencialmente de compra e venda), o serviço associado à sua abertura e, por vezes, à colocação nos copos, o aluguer dos copos e tudo o que está subjacente à utilização do espaço (utilização das cadeiras e da mesa, música, etc.). Celebrado o contrato, o restaurante tem de fornecer a garrafa de vinho. Se se recusar a fazê-lo, haverá incumprimento da obrigação por parte do restaurante.

O restaurante pode incluir na carta a indicação de que o vinho não se encontra disponível. Pode haver um risco ou uma cruz ao lado ou por cima da garrafa de vinho em causa. Neste caso, a proposta não inclui essa garrafa de vinho, não se desencadeando os efeitos referidos no parágrafo anterior. Se não for incluída essa informação, poderá ainda considerar-se a possibilidade de uma rutura de stock. No entanto, para que o argumento da rutura de stock seja eficaz, legitimando a conduta do restaurante, é necessário que tal tenha sucedido imediatamente antes do pedido, não tendo dado tempo para, antes da disponibilização da lista, ser incluída a informação referida no início deste parágrafo.

Antes da celebração do contrato, o restaurante deve informar o consumidor sobre os bens e serviços fornecidos e o respetivo preço, nos termos do art. 8.º da Lei de Defesa do Consumidor. Essa informação pode constar da carta, mas a norma não será cumprida se, apresentada a carta, não houver indicação clara relativamente a objetos indisponíveis. Acresce que, qualquer sugestão feita oralmente pelo representante do restaurante, deve igualmente, nos termos da mesma norma, ser acompanhada da informação relativa ao preço. A omissão do preço, ainda que este conste da lista, constitui uma violação do art. 8.º da Lei de Defesa do Consumidor.

Esta prática coloca ainda em causa o princípio da lealdade. Isto porque pode ser suscetível de levar o cliente a adquirir uma garrafa de vinho mais cara do que aquela que pretendia inicialmente.

Aplica-se, então, o regime das práticas comerciais desleais (DL 57/2008).

Podemos estar perante uma omissão enganosa (arts. 9.º e 10.º), por faltar, pelo menos, uma informação essencial para a decisão de contratar do consumidor: a indicação da inexistência do bem. Como indicado anteriormente, poderá faltar igualmente outro elemento essencial: o preço da garrafa de vinho sugerida pelo restaurante.

A prática pode igualmente consubstanciar uma ação enganosa. Com efeito, nos termos do art. 8.º-e), é proibida a prática que consiste em “propor a aquisição de bens ou serviços a um determinado preço sem revelar a existência de quaisquer motivos razoáveis que o profissional possa ter para acreditar que não pode, ele próprio, fornecer ou indicar outro profissional que forneça os bens ou serviços em questão ou equivalentes, àquele preço (…)”. A alínea f) proíbe ao profissional “propor a aquisição de bens ou serviços a um determinado preço e, com a intenção de promover um bem ou serviço diferente, recusar posteriormente apresentar aos consumidores o bem ou o serviço publicitado”.

Para a aplicação destas alíneas, é necessário que a prática seja intencional, ou seja, que haja uma estratégia no sentido de levar o consumidor a, no caso, adquirir uma garrafa de vinho mais cara. A circunstância de a garrafa mais barata não estar muitas vezes disponível aponta nesse sentido, mesmo quando o menu indica que a garrafa está temporariamente indisponível, se de facto estiver excecionalmente disponível[2].

Havendo uma prática comercial desleal, o restaurante está sujeito à aplicação de sanções contraordenacionais (art. 21.º). O consumidor pode pedir o livro de reclamações para dar a conhecer a prática à ASAE.

O consumidor tem ainda direito à redução adequada do preço ou à resolução do contrato ou a exigir uma indemnização do restaurante. A resolução do contrato, após ter consumido a garrafa de vinho, parece constituir uma situação de abuso do direito. É mais equilibrada, tendo em conta a situação, a redução adequada do preço, para o preço da garrafa mais barata pedida num primeiro momento, em especial nos casos em que o consumidor não tenha sido informado adequadamente do preço da nova garrafa. O risco de ter sido feita uma sugestão de uma garrafa muito mais cara correrá, assim, por conta do restaurante, o que parece ser uma solução ajustada aos valores subjacentes ao caso.


[1] Este tema já foi discutido aqui no blog no texto “A Garrafa de Vinho mais Cara do que o Jantar”. Nesse caso, o cliente não tinha chegado a ver a lista, tenho sido sugerido pelo representante do restaurante que a refeição fosse acompanhada por um Barca Velha. Também aí se concluiu, como neste texto, que a redução adequada do preço é a solução mais equilibrada.

[2] Num contexto diferente, descreve-se a prática identificada, em Espanha, no sentido de indicar que o terminal de pagamentos se encontra avariado para forçar os consumidores a pagar com dinheiro. A circunstância de o aviso de avaria do terminal estar plastificado e apresentar sinais da passagem do tempo aponta claramente no sentido de que se trata, não de um problema temporário, em vias de resolução, mas de uma prática intencional de forçar o pagamento em notas e moedas.

A step backwards from the European Union in Consumer ADR?

Legislação

On 17 October 2023, the European Commission presented a set of proposals and recommendations to revise the legal framework for the consumer alternative dispute resolution (CADR), which includes the following main documents:

Proposal for a Regulation of the European Parliament and of the Council repealing Regulation (EU) No 524/2013 and amending Regulations (EU) 2017/2394 and (EU) 2018/1724 with regards to the discontinuation of the European ODR Platform;

– Proposal for a Directive of the European Parliament and of the Council amending Directive 2013/11/EU on alternative dispute resolution for consumer disputes, as well as Directives (EU) 2015/2302, (EU) 2019/2161 and (EU) 2020/1828;

– Commission Recommendation (EU) 2023/2211 of 17 October 2023 on quality requirements for dispute resolution procedures offered by online marketplaces and Union trade associations.

The Report from the Commission to the European Parliament, the Council and the European Economic and Social Committee on the application of Directive 2013/11/EU of the European Parliament and of the Council on alternative dispute resolution for consumer disputes and Regulation (EU) No 524/2013 of the European Parliament and of the Council on online dispute resolution for consumer disputes has also been made public as a supporting document.

Overall, although several provisions may represent a step forward in the field of CADR, the European Union plans to take a significant step backwards in this area, at least in comparison with the 2013 legislative package.

So far, it was possible to identify three different phases in the evolution of the EU policy on ADR:

– First phase – Identification of the problem and adoption of non-binding instruments;

– Second phase – Adoption of binding instruments with a sectoral impact, applicable to all means of ADR or to means of CADR on specific issues;

– Third phase – Adoption of binding CADR instruments.

We are probably now heading towards a fourth phase of slowdown and disinvestment in this field.

Obviously, the European Commission does not present the legislative package adopted for discussion in this light. One can, however, easily see a clear trend in this direction.

Given the substantial differences between the Member States in terms of models and commitment to CADR, the solution is justified. Although I believe that alternative dispute resolution is the right way forward in this and other areas, I admit that the role of the European Union could be reduced by helping the Member States to implement the mechanisms they deem appropriate and, if possible, by financially supporting the organisations that resolve disputes.

The following is an analysis of the eight main aspects in which this legislative package, in particular the Proposal for a Directive, is innovative[1].

  • Discontinuation of the European ODR Platform

In an article published in 2016[2], Joana Campos Carvalho and I had already predicted that the sad end of the platform would be in sight if significant changes were not made to the system provided for in Regulation (EU) No 524/2013 and some of its provisions. The number of cases was already low then and, over the years, it certainly has not increased.

Three main problems were identified.

Firstly, the lack of information about the existence of the platform. Although it was rightly required that the trader informed the consumer about the platform, nothing was done to ensure that this information was actually provided in a way that was easily accessible to the consumer. We therefore proposed the creation of a EU logo, which would have to be displayed on the homepage of the trader. Without information, both consumers and professionals are unlikely to take part in the project.

Secondly, the platform had very little flexibility and was not in line with some of the most successful national CADR systems. In fact, in cases where CADR is imposed on traders by national legislation, the platform had no mechanism to allow the process to move forward without the cooperation of the trader. If the CADR is imposed on them, the platform could never allow the trader to block the continuation of the process.

Thirdly, the Regulation was distrustful of CADR entities, not allowing them to contact the trader directly to convince them of the advantages of CADR before deciding whether or not to accept the procedure.

In practical terms, the shutdown of the platform will have very little impact on CADR, since it has always had very little use over the last ten years.

However, from a symbolic point of view, it is a landmark step in the EU’s policy and the main reason for the conclusion that the European institutions have clearly disinvested in this area. Nevertheless, the courage to back down from a solution that has not worked is to be commended.

  • Duties to inform and respond

The Proposal for a Directive removes the duty of the trader to inform the consumer about the CADR if they are not bound to take part in a CADR procedure.

Whilst it is true that traders have an excessive number of information duties resulting from EU legislation (in many cases, on top of those resulting from purely national rules), it is nonetheless symbolic that the aim of reducing bureaucracy and the associated costs comes at the cost of a rule in such a relevant area.

This information had one objective: to make the CADR known to consumers. If the information is no longer provided, the likelihood of consumers knowing about the system and realising whether the trader is bound by it decreases dramatically.

It can be said that this is a cost rationalisation measure for businesses, which may well be justified, but it cannot be said that it will encourage greater participation in the CADR.

On the other hand, it is now compulsory for the trader to reply to the CADR entity within a maximum of 20 days. The response can be to participate or not participate in the procedure, in cases where it is not binding under national law, but the trader cannot fail to respond.

The effectiveness of this measure will essentially depend on the consequences envisaged internally in the event of a lack of response.

In terms of information duties, the simplification of procedures for CADR entities should be emphasised. This measure is positive, as some of these entities are more like centres of bureaucracy than of dispute resolution. It is strange, however, that there is no longer a requirement to report on the training of the individuals who manage the CADR procedures. This training is very important for the quality of the system, and it is anticipated that removing this duty to report could have the effect of reducing training time and, consequently, reducing the quality of the procedures.

  • Extended scope of application

The scope of application of the Directive is extended to include non-contractual consumer relationships, particularly as regards the pre-contractual phase, and legal obligations.

This is a step in the right direction, although I think it would be preferable to extend the scope of application to all consumer disputes, possibly excluding only those that it would not be appropriate to resolve through ADR. I find it difficult to specify which disputes would be excluded from the scope of the Directive if the path I suggest were to be followed, which demonstrates the advantages of the extension.

  • Bundling similar cases

In order to make the system more flexible and procedures more efficient, it is now possible to bundle similar cases involving the same trader.

I think we could go a little further and allow, in some situations, with the authorisation of the parties involved, the bundling of similar cases even if two or more different traders are involved.

  • Prior contact with the CADR entity

The CADR bodies will still be able to refuse to deal with a dispute on the grounds that the consumer did not first try to contact the trader to resolve the dispute.

However, if the amendment is approved, the Directive will provide that CADR bodies may not impose disproportionate conditions in this regard. Recital (12) gives two examples: (i) “the obligation to use the company escalation system after a first negative contact with the complaints handling service” and “the obligation to prove that a specific part of a company’s after sales service was contacted”.

  • Disputes with traders established outside the European Union

The Proposal for a Directive clarifies that the ADR entities must handle disputes in cases where the consumer is a resident of the Member State in question and the trader is based in a country outside the European Union.

This is a good solution, although attention is drawn to the difficulty, in many of these cases, of contacting the trader and, if necessary, managing the procedure, including for linguistic reasons.

  • Accessibility

Article 5-2 of the Proposal for a Directive expressly provides that (i) consumers may submit the complaint and access the paper file at their request, (ii) that tools relating to digital procedures are “easily accessible and inclusive” and that, (iii) in the event that the procedure is automated, the parties are granted a right to a review of the decision by a natural person.

The rationale for providing for these rights is understandable, although it should be emphasised that these are burdens that can be significant in practice for CADR entities.

  • CADR contact point

One of the main innovations introduced by the Directive is the creation of a CADR contact point, which must be designated in each Member State, to assist consumers and traders.

Member States will have to make a first decision in this regard: will the CADR contact point be competent only for cross-border disputes or also for domestic disputes?

This question may be relevant to answering the second one: who should be the CADR contact point in each Member State?

The rule points to a preference for the contact point to operate in the European Consumer Centre, but this will probably only make sense in two cases: (i) the contact point is only intended to assist in cross-border disputes; (ii) the European Consumer Centre of the Member State concerned has powers extended to domestic disputes.

In any case, the success of this measure will essentially depend on its practical application. A contact point that effectively provides assistance to consumers and traders can add value to the system, helping to fulfil the objective of increasing access to the ADR network.


[1] Issues related to online marketplaces are not analysed: (i) on the one hand, the relationship between this regime and Art. 21 of the Digital Services Act; (ii) on the other hand, Recommendation (EU) 2023/2211, indicated in the second paragraph of the text.

[2] “Online Dispute Resolution Platform – Making European Contract Law More Effective”, in Alberto De Franceschi (ed.), European Contract Law and the Digital Single Market, Intersentia, Cambridge, 2016, pp. 245-266.

Direito do Cliente a Copos de Água Gratuitos

Doutrina

Os clientes de empreendimentos turísticos, estabelecimentos de alojamento local e estabelecimentos de restauração e bebidas têm direito, desde 2021, a exigir a disponibilização gratuita de copos de água da torneira.

Este direito encontra-se previsto no art. 25.º-A-5 do DL 152-D/2017, na redação dada pela Lei 52/2021. Na versão do DL 102-D/2020, que aditou o art. 25.º-A, já se previa a disponibilização de água, mas admitia-se que esta tivesse custos, ainda que necessariamente inferiores ao da água embalada.

O regime pode ser incluído no âmbito do Direito do Consumo, tendo como objetivo claro a promoção de práticas sustentáveis e uma melhor gestão de resíduos.

O art. 25.º-A estabelece que, “nos estabelecimentos do setor HORECA, é obrigatório manter à disposição dos clientes um recipiente com água da torneira e copos não descartáveis higienizados para consumo no local, de forma gratuita”.

Vejamos a quem se aplica o diploma.

O direito é conferido a “clientes”. O regime não se aplica, portanto, apenas a consumidores. Qualquer cliente, seja ou não consumidor, tem direito à água. Exige-se, no entanto, que a pessoa seja cliente do estabelecimento. Isto significa que o direito pode apenas ser exercido por alguém que tenha, naquele momento, celebrado um contrato com o estabelecimento em causa. Se, por exemplo, alguém entrar num café e quiser apenas beber um copo de água, a norma não se aplica.

O direito pode ser exercido nos estabelecimentos do setor HORECA, o que inclui, nos termos do art. 3.º-1-iii), os empreendimentos turísticos, os estabelecimentos de alojamento local e os estabelecimentos de restauração e bebidas.

Os empreendimentos turísticos podem ser estabelecimentos hoteleiros (hotéis, aparthotéis, pousadas e hotéis rurais), aldeamentos turísticos, apartamentos turísticos, conjuntos turísticos (resorts), empreendimentos de turismo de habitação, empreendimentos de turismo no espaço rural [casas de campo (que podem ser turismo de aldeia) e agroturismo] e parques de campismo e de caravanismo (arts. 4.º e 11.º a 19.º do DL 39/2008).

Os estabelecimentos de alojamento local podem ser moradias, apartamentos, quartos ou estabelecimentos de hospedagem, incluindo hostéis (art. 3.º do DL 128/2014).

Nos termos do art. 2.º do RJACSR (Regime jurídico de acesso e exercício de atividades de comércio, serviços e restauração), considera-se estabelecimento de bebidas “o estabelecimento de serviços destinado a prestar, mediante remuneração, serviços de bebidas e cafetaria no próprio estabelecimento ou fora dele” e estabelecimento de restauração “o estabelecimento destinado a prestar, mediante remuneração, serviços de alimentação e de bebidas no próprio estabelecimento ou fora dele, não se considerando contudo estabelecimentos de restauração ou de bebidas as cantinas, os refeitórios e os bares de entidades públicas, de empresas, de estabelecimentos de ensino e de associações sem fins lucrativos, destinados a fornecer serviços de alimentação e de bebidas exclusivamente ao respetivo pessoal, alunos e associados, e seus acompanhantes, e que publicitem este condicionamento”.

Inclui-se no âmbito do regime qualquer tipo de restaurante, incluindo os que funcionam apenas em sistema de take away, cafés, pastelarias, bares ou discotecas, entre outros estabelecimentos.

A obrigação, de fonte legal, mas que pressupõe, como referimos, a existência de um contrato entre as partes, consiste em disponibilizar um recipiente com água da torneira e copos não descartáveis higienizados para consumo no local.

Podemos identificar aqui vários elementos.

A água tem de ser da torneira. O estabelecimento pode disponibilizar gratuitamente água embalada aos clientes, no exercício da sua autonomia privada, mas não pode deixar de, em simultâneo, disponibilizar a água da torneira, nos termos do regime em análise. Por razões de promoção da sustentabilidade, o cliente pode preferir a água da torneira. Naturalmente, não deve ser disponibilizada água que não seja adequada ao consumo humano. Se, em determinado momento, a água da torneira não estiver em condições de ser bebida, deixa de ser exigida a sua disponibilização. O estabelecimento deve, no entanto, fazer todos os esforços para normalizar a situação o mais rapidamente possível.

Os copos têm de ser não descartáveis e estar higienizados. Assim, o estabelecimento não pode cumprir a obrigação disponibilizando copos descartáveis, nomeadamente de utilização única, tendo de garantir o serviço de lavagem regular de copos.

O sistema deve permitir o consumo no local, não bastando que o consumidor tenha acesso à água com vista ao seu consumo fora do estabelecimento. O cliente pode beber mais do que um copo de água, mas terá de utilizar o mesmo copo. É a solução mais adequada ao objetivo de promover práticas mais sustentáveis.

Pode colocar-se igualmente a questão de saber o que significa “disponibilizar” a água, ou seja, se o estabelecimento tem de ter a água (numa garrafa) ou a própria torneira e os copos em local visível e de livre acesso pelo cliente para se servir ou se basta oferecer a possibilidade de, a pedido, fornecer a água e o copo. Em estabelecimentos de restauração e bebidas com balcão e recolha dos produtos pelo cliente antes de sentar ou de consumir, será uma boa prática permitir ao cliente que se sirva livremente. Nos estabelecimentos em que os produtos são servidos diretamente na mesa (por exemplo, a maioria dos restaurantes), deve entender-se que é suficiente trazer a água e os copos quando o cliente faz o pedido. Nestes casos, deve assinalar-se que o estabelecimento, se for pedida água, deve trazer água da torneira e não uma garrafa de água. Deve, no mínimo, perguntar ao cliente o que este prefere.

Tem-se tornado comum, em especial em restaurantes, fornecer a água em recipientes de vidro do próprio estabelecimento, dando a entender, ou dizendo-o diretamente, que se trata de água da torneira com algum tratamento, nomeadamente filtragem. Esta prática pode ser problemática, na medida em que pode confundir o cliente no que diz respeito ao direito em análise neste texto. O estabelecimento tem sempre de garantir a disponibilização gratuita de água da torneira, independentemente de fornecer água filtrada a troco de um preço.

O regime não prevê um dever de informação ao cliente, por parte do estabelecimento, o que pode ser problemático. Sem informação, o exercício do direito torna-se menos provável. Como se deixou escrito ao longo do texto, exige-se do estabelecimento, no mínimo, o esclarecimento, num pedido concreto de água por um cliente, da existência da opção prevista no diploma em análise.

Não ajuda ao esclarecimento dos consumidores uma frase que consta do relevantíssimo Guia preparado recentemente pela Direção-Geral do Consumidor e pela AHRESP com “Regras e Boas Práticas na Restauração”. Na p. 12, a propósito de “Copos de água”, pode ler-se que, “caso a disponibilização do copo de água da torneira implique um serviço por parte do estabelecimento, já poderá haver lugar a cobrança, desde que tal conste da lista de preços”. A única interpretação compatível com a lei parece ser a de que se alude aqui a serviços como a filtragem da água, mas tal prática não afasta, como já se deixou dito, a obrigatoriedade de fornecer também, a título gratuito, água da torneira (ainda que não-filtrada).

O direito previsto no regime encontra-se, tal como todos os direitos, limitado pelos princípios gerais do ordenamento jurídico, nomeadamente a boa-fé ou o fim económico e social. Haverá abuso do direito se, entre outras práticas, por exemplo, o cliente pretender beber um número excessivo de copos de água, utilizar mais do que um copo por pessoa num determinado momento ou utilizar a água para uma finalidade que não seja a de beber.

Lei n.º 10/2023 completa a transposição da Diretiva (UE) 2019/2161

Doutrina

Em dezembro de 2021, o Decreto-Lei n.º 109-G/2021, de 10 de dezembro, transpôs para a ordem jurídica portuguesa uma parte significativa da Diretiva (UE) 2019/2161, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de novembro de 2019, também conhecida por “Diretiva Omnibus”, por alterar uma série de diplomas europeus em matéria de Direito do Consumo. Em texto anterior, Sofia Assunção Soares comentou aqui no blog as alterações feitas em matéria de práticas comerciais desleais.

Como se pode ler no preâmbulo do referido decreto-lei, excluiu-se então “a matéria sancionatória que se insere na reserva legislativa de competências da Assembleia da República”. Com a dissolução da Assembleia da República em dezembro de 2021, foi necessário aguardar pela nova legislatura e por um novo processo legislativo para termos a transposição completa do diploma europeu.

Este processo ficou concluído agora, com a publicação da Lei n.º 10/2023, de 3 de março, que, como indica o seu art. 1.º-a), “completa a transposição da Diretiva (UE) 2019/2161”. Além das alterações no domínio das sanções contraordenacionais, aproveitou-se para corrigir alguns problemas do anterior diploma de transposição.

São alterados cinco diplomas legais, relativos às cláusulas contratuais gerais, à indicação de preços, às práticas com redução de preços, às práticas comerciais desleais e aos contratos celebrados à distância. Com exceção deste último, nos restantes as alterações circunscrevem-se à matéria sancionatória.

Não abordo neste texto em pormenor as alterações em matéria sancionatória, mas não quero deixar de fazer duas notas sobre o assunto.

Em primeiro lugar, deve destacar-se que as sanções contraordenacionais no caso de infrações com impacto em pelo menos três Estados-Membros da União Europeia passam a ter um limite máximo das coimas correspondente a 4% do volume de negócios anual do infrator nos Estados-Membros em causa ou, se não houver essa informação, a dois milhões de euros. Sobre esta possibilidade, falámos neste texto de fevereiro de 2021. A perspetiva adotada acabou por ser minimalista, não se aproveitando a transposição da Diretiva para aumentar o valor das coimas no que respeita às restantes infrações.

Em segundo lugar, lamento que não se tenha aproveitado a oportunidade para incluir um regime sancionatório na Lei de Defesa do Consumidor. Tal regime sancionatório é imposto pelo direito europeu. Ao transpor parte das normas da Diretiva 2011/83/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Outubro de 2011, relativa aos direitos dos consumidores, na Lei de Defesa do Consumidor (v. arts. 8.º e 9.º-A), impunha-se prever consequências em caso de incumprimento das normas. As sanções contraordenacionais são uma parte muito relevantes dessas consequências. Acresce que as regras relativas ao limite máximo das coimas também têm de ser aplicadas em caso de infrações aos arts. 8.º e 9.º-A da Lei de Defesa do Consumidor (v. art. 24.º da Diretiva 2011/83/UE, na redação dada pela Diretiva 2019/2161) e não existe, de momento, base legal para a sua aplicação. Também o Decreto-Lei n.º 59/2021, de 14 de julho, que estabelece o regime aplicável à disponibilização e divulgação de linhas telefónicas para contacto do consumidor, deveria ter sido alterado, uma vez que transpõe o art. 21.º da Diretiva 2011/83/UE, alterada pela Diretiva 2019/2161. A matéria sancionatória deve, portanto, ser igualmente adaptada às alterações introduzidas por este último diploma.

Além das alterações em matéria sancionatória, a Lei n.º 10/2013 introduziu algumas modificações noutros domínios no Decreto-Lei n.º 24/2014, que regula os contratos celebrados à distância e fora do estabelecimento.

As alterações visam corrigir imperfeições na transposição, na sequência do DL 109-G/2021.

Numa técnica duvidosa do ponto de vista legístico, corrige-se o português de algumas normas. Por exemplo, o art. 4.º-B-1-b) do DL 24/2014 passa a prever que o prestador do mercado em linha tem de “identificar, de forma clara e inequívoca, as avaliações feitas em troca de algum benefício, quando disso tenha ou deva ter conhecimento”. Na versão anterior, determinava-se que tinha o dever de “identificar de forma clara e inequívoca a avaliação cujos autores tenham recebido algum benefício em troca da sua avaliação, quando disso tenha, ou deva ter, conhecimento”. Com o mesmo objetivo, v. a nova redação do art. 4.º-B-3. É pena que, por exemplo, na nova redação do art. 17.º-1-l), o português tenha sido, por sua vez, um pouco maltratado (“fornecimento, que não em suporte material, de conteúdos digitais, se a execução do contrato tiver tido início e do mesmo resultar para o consumidor a obrigação de pagar, quando (…)”).

São ainda corrigidas algumas remissões para outros artigos do mesmo diploma, as quais tinham ficado erradas na sequência do DL 109-G/2021 – v. arts. 4.º-3 e 10.º-2 e 3 do DL 24/2014. Outras correções ficaram por fazer. Por exemplo, é necessário corrigir, no art. 5.º, a remissão para o artigo anterior. O artigo anterior é o art. 4.º-B e não o art. 4.º, para o qual se pretende remeter nesse preceito.

São, no entanto, feitas duas alterações de substância ao regime, impostas pelo direito europeu.

No art. 12.º, são introduzidas normas sobre o destino dos dados que não sejam dados pessoais do consumidor em caso de este exercer o direito de arrependimento. Estas normas constavam da Diretiva 2019/2161 (alteração ao art. 13.º da Diretiva 2011/83/UE) e não tinham sido transpostas anteriormente para a ordem jurídica portuguesa. Estas normas têm paralelo no art. 36.º do DL 84/2021, a propósito da resolução do contrato de fornecimento de conteúdos ou serviços digitais em caso de desconformidade com o contrato.

No art. 4.º-1-a) do DL 24/2014, são eliminadas duas palavras (“caso existam”), mas a alteração é bastante significativa. Até agora, num contrato celebrado à distância, o profissional apenas tinha o dever de indicar o seu número de telefone e o seu endereço de correio eletrónico, caso existissem. Com a eliminação daquelas duas palavras, o profissional passa a ter de disponibilizar quer o número de telefone quer o endereço de correio eletrónico. Isto significa que deixa de ser possível ter uma atividade profissional de contratação à distância sem criar um sistema de contacto pelos consumidores por estas duas vias.

Como escrevi em texto publicado com A.R. Lodder, a solução anterior “permitiria a um empresário individual que não gostava de atender chamadas telefónicas de consumidores que encomendam online dizer que não tinha um número de telefone disponível para o seu negócio”[1]. Dá-se agora preferência à possibilidade de o consumidor tratar das questões relativas aos contratos à distância por via telefónica. Em suma, todos os profissionais que contratem à distância passam a ter de disponibilizar um número de telefone e um endereço de correio eletrónico.


[1] A.R. Lodder & Jorge Morais Carvalho, “Online Platforms: Towards an Information Tsunami with New Requirements on Moderation, Ranking, and Traceability”, in European Business Law Review, Vol. 33, n.º 4, 2022, pp. 537-556, p. 542.

Tsunami informativo, falta de leitura pelo consumidor e encargo pesado para as empresas

Doutrina

Em 2022, publiquei com A.R. Lodder, Professor da Vrije Universiteit Amsterdam (Países Baixos), o texto Online Platforms: Towards an Information Tsunami with New Requirements on Moderation, Ranking, and Traceability. Este artigo foi escrito no âmbito das atividades do Jean Monnet Centre of Excellence ‘Consumers and SMEs in the Digital Single Market (Digi-ConSME)’, dirigido pelo Professor Federico Ferretti, da Unidade de Bolonha.

Nos dias 2 a 4 de fevereiro de 2023, realizou-se o evento de encerramento do projeto, no qual participaram, além dos investigadores que contribuíram para as atividades do Centro, representantes das instituições europeias e de associações de consumidores e de pequenas e médias empresas.

O Professor Hans-Wolfgang Micklitz fez uma intervenção inicial desafiante, na qual identificou a crescente fragmentação do Direito do Consumo, por via de uma distinção cada vez maior entre consumidores, nomeadamente por meio da identificação de diferentes vulnerabilidades. Colocou, nomeadamente, a questão de saber se o conceito de pessoa jurídica, inexistente no Direito da União Europeia, está a ser preenchido por esta via.

No evento final, A.R. Lodder e eu apresentámos algumas conclusões do nosso trabalho.

Partimos de três pressupostos de base:

  1. Ninguém[1] lê os chamados “terms and conditions”, ou seja, a lista de cláusulas contratuais gerais constante de todos os sites e plataformas;
  2. O número de elementos de informações que deve ser incluído no processo de contratação pelo profissional e pela plataforma é cada vez mais abundante;
  3. É difícil para o profissional e para plataforma cumprir os deveres de informação, pois é difícil que, com tantos elementos de informação para transmitir, a informação possa ser clara e compreensível, como a lei exige.

A conclusão é a de que o sistema vigente não é bom nem para os consumidores, que não têm acesso efetivo à informação, nem para as empresas, que têm um encargo pesado e, na prática, impossível de cumprir, pois (quase) nenhum consumidor que use de comum diligência, adaptando a expressão constante do regime português das cláusulas contratuais gerais, toma conhecimento da informação em causa.

Coloca-se então a questão de saber se se pretende que a informação seja realmente dirigida ao consumidor concreto que está diante do profissional ou da plataforma, com vista a dela tomar conhecimento efetivo.

Temos de concluir que não, tendo em conta os três pressupostos enunciados. Os interesses dos consumidores podem ser indiretamente protegidos se considerarmos que em muitos casos o objetivo é, por um lado, obrigar o profissional a pensar sobre os assuntos em causa e ter de assumir por escrito a perspetiva adotada e, por outro lado, permitir o controlo por parte das entidades fiscalizadoras e reguladoras e o private enforcement, através de ações coletivas.

Torna-se então necessário distinguir entre elementos de informação que

  • têm de ser apresentados ao consumidor em destaque e no momento específico em que a questão se coloca; e
  • outros que podem sê-lo apenas nos chamados “terms and conditions”.

Garante-se, relativamente a estes últimos, (i) que a empresa tem uma política sobre o tema em causa, (ii) que ficam disponíveis para qualquer consumidor interessado, sendo que a maioria dos consumidores não está interessada, e (iii) que podem ser fiscalizados pelas entidades de supervisão e por associações de consumidores.

Por exemplo, no Digital Services Act (Regulamento dos Serviços Digitais), os novos elementos de informação relacionados com moderação de conteúdos (art. 14.º) e rastreabilidade dos profissionais (art. 30.º) estão no segundo grupo, enquanto parte dos relativos a publicidade (art. 26.º) e sistemas de recomendação (art. 27.º) estão no primeiro. Ficam aqui algumas ideias para reflexão e discussão. Embora o tema esteja longe de ser novo, parece não haver, em especial da parte das instituições europeias, vontade de fazer as mudanças necessárias para ajustar o direito à realidade.


[1] Digamos “quase ninguém”, por precaução (científica). Desde logo, leem os juristas que elaboram as cláusulas e os que pretendem, em caso de litígio, colocá-las em causa.

Prazo para a reparação ou substituição ao abrigo da garantia legal

Doutrina

Em caso de uma falta de conformidade do bem com o contrato que se manifeste dentro do período de responsabilidade do profissional, o consumidor tem direito à reposição da conformidade, através de reparação ou de substituição (art. 15.º-1 do DL 84/2021).

Segundo o art. 18.º-1-a), a reparação ou a substituição deve ser efetuada a título gratuito, ou seja, nos termos do art. 2.º-a), “livre dos custos necessários incorridos para repor os bens em conformidade, nomeadamente o custo de porte postal, transporte, mão-de-obra ou materiais”. A lista não é exaustiva, pelo que outras despesas relativas à reposição da conformidade do bem, como custos com peritagens ou avaliações, devem considerar-se incluídas. Portanto, o consumidor não tem de pagar qualquer valor pela reparação, incluindo os custos do transporte do bem para o vendedor.

Nos termos do art. 18.º-2-b), a reparação ou a substituição deve ser efetuada num prazo razoável, ou seja, o “mais curto prazo necessário para a sua conclusão” (considerando 55 da Diretiva 2019/771).

Nesse mesmo considerando, pode ler-se que “os Estados-Membros deverão poder interpretar o conceito de prazo razoável para a conclusão da reparação ou da substituição, prevendo prazos fixos que podem ser geralmente considerados razoáveis para a reparação ou substituição, em especial no que respeita a categorias específicas de produtos”.

Utilizando esta possibilidade, prevê-se no art. 18.º-3 que “o prazo para a reparação ou substituição não deve exceder os 30 dias, salvo nas situações em que a natureza e complexidade dos bens, a gravidade da falta de conformidade e o esforço necessário para a conclusão da reparação ou substituição justifiquem um prazo superior”.

Esta norma é particularmente infeliz. Sob a aparência de melhorar a posição do consumidor, por se prever um prazo fixo, vem, na verdade, apresentar-se esse prazo como mínimo, permitindo a sua extensão nas situações aí indicadas. Na verdade, pouco se acrescenta em relação à cláusula geral do prazo razoável, que perde efeito. Temos dúvidas, até, que, na Diretiva, se esteja a pensar em prever simultaneamente a cláusula do prazo razoável e a previsão de um prazo fixo.

Os profissionais que não pretendam cumprir o prazo de 30 dias irão sempre invocar uma das exceções constantes do preceito, o que irá também aumentar consideravelmente a litigiosidade.

É, no entanto, necessário ter em conta um requisito adicional relativo à reposição da conformidade que pode limitar os efeitos negativos para o consumidor de uma reparação ou de uma substituição mais prolongada no tempo.

Assim, a reparação ou a substituição deve ser efetuada também, como prevê o art. 18.º-2-c), “sem grave inconveniente para o consumidor, tendo em conta a natureza dos bens e a finalidade a que o consumidor os destina”.

A concretização do conceito indeterminado de “grave inconveniente” deve ter em conta o caso concreto, relevando, nomeadamente, circunstâncias relativas à relação entre o consumidor e o bem.

A reposição da conformidade terá de ser feita em menos de 30 dias se o consumidor tiver um grave inconveniente com a reparação ou a substituição nesse prazo. É o que sucederá na generalidade dos casos.

Causa grave inconveniente ao consumidor não ter telemóvel durante 30 dias? À partida, se não tiver outro, a resposta será positiva. Isto significa que a reposição da conformidade em 30 dias não cumpre os requisitos previstos na lei. Na verdade, ficar sem telemóvel por mais de um ou dois dias já causará grave inconveniente a um consumidor normal. Isto significa que, em regra, um ou dois dias é o prazo máximo para a reparação ou a substituição do telemóvel sem ser causado um grave inconveniente ao consumidor. Estas observações valem para a generalidade dos bens, relembrando-se que a análise deve ser feita em concreto.

O profissional poderá utilizar, ainda assim, o tempo razoável para as operações de reparação ou de substituição, mas tem de fazer alguma coisa para que o consumidor não tenha um grave inconveniente. A solução mais adequada, nestes casos, passa pela disponibilização de um bem de substituição que satisfaça as necessidades do consumidor enquanto o bem reparado ou o novo bem não é entregue.

A ausência de reposição da conformidade a título gratuito, num prazo razoável (em princípio, 30 dias) e sem grave inconveniente para o consumidor, além de constituir ilícito contraordenacional, nos termos do art. 48.º-1-d), permite ao consumidor exercer de imediato o direito à redução do preço ou de resolução do contrato, como prevê o art. 15.º-4-a)-ii). Refira-se ainda que, segundo o art. 16.º, “nos casos em que a falta de conformidade se manifeste no prazo de 30 dias após a entrega do bem, o consumidor pode solicitar a imediata substituição do bem”. Neste caso, a substituição deve ser imediata, não se permitindo sequer ao profissional avaliar previamente a existência de falta de conformidade. Essa avaliação terá de ser feita apenas posteriormente.

Caso Victorinox – Informação sobre garantia comercial do produtor nem sempre é obrigatória

Jurisprudência

No dia 5 de maio, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) proferiu a decisão no âmbito do caso Victorinox (C-179/21). A questão central discutida no acórdão consiste em saber se o vendedor está vinculado a informar sobre as cláusulas relativas à garantia comercial oferecida pelo produtor no caso de não ter referido (ou, numa segunda questão, não ter realçado) a existência dessa garantia na informação pré-contratual. Coloca-se ainda a questão de saber como se relacionam as normas que impõem deveres de informação sobre garantias comerciais na Diretiva 2011/83/UE (direitos dos consumidores) e na Diretiva 1999/44/CE (venda de bens de consumo).

Analisando brevemente os factos, a Aboluts vende, através do marketplace da Amazon, canivetes da Victorinox (produtor suíço). No site da Amazon, não é feita qualquer referência à garantia comercial oferecida pela Victorinox, mas existe uma ligação, designada “Manual de instruções”, no separador ”Outras informações técnicas”, que remete para um documento elaborado pelo produtor. Na segunda página desse documento há uma declaração relativa à «garantia Victorinox».

A the‑trading‑company propôs uma ação contra a Absoluts, seu concorrente, exigindo que esta passasse a incluir uma referência à extensão territorial da garantia comercial, por um lado, e aos direitos legais do consumidor e ao facto de a garantia do produtor não restringir esses direitos, por outro lado. O caso chegou, em segunda instância, ao Bundesgerichtshof, que submeteu ao TJUE as questões já sumariadas.

O art. 6.º-1-m) da Diretiva 2011/83/UE estabelece que, “antes de o consumidor ficar vinculado por um contrato à distância ou celebrado fora do estabelecimento comercial ou por uma proposta correspondente, o profissional faculta ao consumidor, de forma clara e compreensível, as seguintes informações: (…) Se aplicável, a existência e condições (…) de garantias comerciais”.

O TJUE considera que este preceito inclui a informação relativa quer às garantias comerciais oferecidas pelo próprio vendedor quer às garantias comerciais oferecidas pelo produtor. No entanto, o tribunal introduz alguns limites, tendo em conta “a ponderação de um elevado nível de defesa dos consumidores com a competitividade das empresas” (considerando 41). Com efeito, considera-se que “a obrigação incondicional de fornecer tais informações, em quaisquer circunstâncias, afigura‑se desproporcionada, em especial no contexto económico do funcionamento de determinadas empresas, nomeadamente as mais pequenas”, sendo que “essa obrigação incondicional forçaria os profissionais a efetuar um trabalho significativo de recolha e de atualização das informações relativas a tal garantia, apesar de estes não terem necessariamente uma relação contratual direta com os produtores e de a questão da garantia comercial dos produtores não estar abrangida, em princípio, pelo contrato que pretendem celebrar com o consumidor” (considerado 40). Logo, “o profissional apenas é obrigado a fornecer informações pré‑contratuais ao consumidor sobre a garantia comercial do produtor quando o interesse legítimo do consumidor médio, normalmente informado e razoavelmente atento e avisado, num elevado nível de defesa deve prevalecer sobre a sua decisão de se vincular contratualmente, ou não, a esse profissional” (considerando 41). O tribunal esclarece esta afirmação, indicando que “a obrigação do profissional de fornecer ao consumidor informações pré‑contratuais sobre a garantia comercial do produtor não resulta da simples existência dessa garantia, mas da presença de tal interesse legítimo” (considerando 42).

O consumidor tem interesse legítimo, segundo o tribunal, (apenas) “quando o profissional torna a garantia comercial proposta pelo produtor num elemento central ou decisivo da sua oferta” (considerando 44), quando “chama expressamente a atenção do consumidor para a existência de uma garantia comercial do produtor de maneira a utilizá‑la como argumento de venda ou argumento publicitário e, assim, melhorar a competitividade e a atratividade da sua oferta relativamente às ofertas dos seus concorrentes” (considerando 45).

No considerando 48, o tribunal inclui alguns critérios para avaliar se a garantia constitui um elemento central ou decisivo na proposta do vendedor:

  • Conteúdo e configuração geral da oferta relativamente ao bem em causa;
  • Importância, em termos de argumento de venda ou de argumento publicitário, da referência à garantia comercial do produtor;
  • Lugar ocupado por essa referência na oferta;
  • Risco de erro ou de confusão que a referência pode criar no espírito do consumidor médio, normalmente informado e razoavelmente atento e avisado em relação aos diferentes direitos à garantia que pode exercer ou à identidade real do garante;
  • Presença, ou não, na oferta, de explicações relativas às outras garantias associadas ao bem;
  • Qualquer outro elemento suscetível de estabelecer uma necessidade objetiva de proteção do consumidor.

No caso em análise, o tribunal aponta claramente no sentido de a garantia não ser um elemento central ou decisivo na proposta do vendedor (considerando 52).

A decisão parece-me totalmente correta. Num caso como este, não se justifica que o profissional tenha de realçar a existência da garantia comercial. Trata-se de um aspeto do negócio que é favorável ao consumidor, por se tratar de direitos que acrescem aos previstos na lei, pelo que a ausência de destaque não merece censura. Mesmo que a garantia comercial fosse proposta pelo vendedor, a omissão de um destaque, por si só, também não aparentaria ser censurável. A censura resultará, como refere o tribunal, de o consumidor ver traído um interesse legítimo.

Critico, no entanto, a utilização, também neste contexto, do conceito de consumidor médio. Tal como noutros domínios, a bitola do consumidor médio pode deixar desprotegidos muitos consumidores, precisamente aqueles que, em muitos casos, mais necessitam de proteção.

Chamo ainda a atenção para a circunstância de, apesar de a ação ter sido proposta contra a Absoluts, toda esta discussão também interessar à Amazon, enquanto intermediário. Com efeito, no acórdão proferido recentemente no caso Tiketa, aqui comentado, o TJUE conclui que o intermediário é considerado profissional para efeitos da Diretiva 2011/83/UE, respondendo, tal como o vendedor, pelo incumprimento dos deveres de informação pré-contratual.

Quanto à relação entre as normas que impõem deveres de informação sobre garantias comerciais na Diretiva 2011/83/UE e na Diretiva 1999/44/CE, o tribunal considera que prosseguem interesses distintos, pelo que não tem de se verificar uma coincidência total. O profissional não tem, portanto, de indicar na fase pré-contratual todo o conteúdo da garantia (considerando 58). Esta afirmação não estaria correta se estivesse em causa uma garantia com natureza contratual, pois, nesse caso, o conteúdo da garantia é conteúdo do contrato e tem de ser incluído na proposta contratual, sob pena de não vincular as partes.

Para saber que “condições” relativas à garantia comercial devem constar da informação pré-contratual, nos termos do art. 6.º-1-m) da Diretiva 2011/83/UE, o critério utilizado pelo tribunal é também o do interesse legítimo do consumidor a tomar uma decisão esclarecida, não sendo induzido em erro. As condições incluem “qualquer elemento de informação relativo às condições de aplicação e de execução da garantia comercial em causa”, o que abrange, não só “o local de reparação em caso de dano ou as eventuais restrições de garantia, mas igualmente (…) o nome e o endereço do garante”.

Em suma, o vendedor nem sempre tem o dever de incluir na informação pré-contratual referência à existência e às condições de garantia comercial oferecida pelo produtor. Apenas terá de o fazer se a garantia em causa for apresentada como uma parte relevante da proposta apresentada. Nesse caso, a referência às condições da garantia deve incluir tudo o que for necessário para que o consumidor possa tomar uma decisão esclarecida, não sendo induzido em erro.

Caso Fuhrmann‑2 – O Tribunal de Justiça volta a chutar para canto

Jurisprudência

O Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) proferiu, no passado dia 7 de abril, o acórdão do Caso Fuhrmann-2 (Processo C-249/21). Tal como no recente Caso Tiketa, aqui analisado, em que o TJUE não conclui se uma simples remissão para o conteúdo de um link é suficiente para se considerar cumprido o dever de informação constante da Diretiva 2011/83/UE, também neste acórdão a questão fica em aberto, ainda que num contexto diferente.

O art. 8.º-2 da Diretiva 2011/83/UE, na parte relevante para este efeito, estabelece que, “se a realização de uma encomenda implicar a ativação de um botão ou uma função semelhante, o botão ou a função semelhante é identificado de forma facilmente legível, apenas com a expressão «encomenda com obrigação de pagar» ou uma formulação correspondente inequívoca, que indique que a realização de uma encomenda implica a obrigação de pagar ao profissional”.

No caso em análise, a questão resume-se, no essencial, a saber se a expressão «Terminar reserva» (na duvidosa tradução para português da expressão alemã «Buchung abschließen»), apresentada no site da internet da Booking, pode ser considerada equivalente à expressão «encomenda com obrigação de pagar».

Não havendo qualquer referência a “pagamento” na expressão em causa, a resposta negativa parece clara.

No entanto, o TJUE devolve a questão ao tribunal nacional, indicando, com utilidade, que “há que atender unicamente à indicação que figura [no] botão ou […] função semelhante”. É realçada, portanto, a autonomia do botão ou função semelhante em relação a momentos anteriores do caminho para a celebração do contrato. Ou, dizendo-o de outra forma (considerando 32), deve atender-se “apenas aos termos utilizados por essa formulação e independentemente das circunstâncias que rodeiam o processo de reserva”.

Como se pode ler no considerando 33, na sequência da decisão do TJUE, o tribunal nacional deverá “verificar se o termo «reserva» está, em língua alemã, tanto na linguagem corrente como no espírito do consumidor médio[1], normalmente informado e razoavelmente atento e avisado, necessária e sistematicamente associado ao surgimento de uma obrigação de pagamento. Em caso de resposta negativa, não se pode deixar de observar o caráter ambíguo da expressão «Terminar reserva», pelo que esta expressão não pode ser considerada uma formulação correspondente à expressão «encomenda com obrigação de pagar»”. Ficaria muito surpreendido se o tribunal alemão viesse a concluir no sentido da equivalência entre as duas expressões, pelo que não compreendo a razão pela qual o TJUE não se limita a considerar a expressão «Terminar reserva» inadmissível, à luz do direito europeu. Tornaria o direito mais claro para todos, nomeadamente para as empresas que utilizam sistemas de contratação através da Internet.


[1] Trata-se da única referência ao “consumidor médio” em toda a decisão e que surge num contexto que não é tão habitual. Será que, no domínio do direito do consumo, a interpretação do contrato deverá passar a ter como referência o consumidor médio e não o declaratário normal? Ou ter-se-á tratado de um desvio linguístico inadvertido?

O Caso Tiketa e o alargamento do conceito de profissional ao intermediário

Jurisprudência

No dia 24 de fevereiro de 2022, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) proferiu um acórdão, no âmbito do Caso Tiketa (Processo C-536/20), que se debruça sobre duas questões muito relevantes em matéria de direito europeu do consumo. Em primeiro lugar, pergunta-se se o conceito de profissional da Diretiva 2011/83/UE abrange a pessoa que atua como intermediária de um profissional. Em segundo lugar, está em causa o valor jurídico de uma remissão para as condições gerais do serviço constantes de um site no caso de o consumidor ter declarado a sua aprovação. Por um lado, importa saber se essa aprovação implica o cumprimento do dever de informação pré-contratual. Por outro lado, é necessário verificar se está cumprida a obrigação de confirmação através de um suporte duradouro.

A Tiketa é uma empresa que exerce, na Lituânia, uma atividade de distribuição de bilhetes para eventos (14)[1]. No dia 7 de dezembro de 2017, o consumidor adquiriu um bilhete para um evento cultural, organizado pela Baltic Music, a realizar no dia 20 de janeiro de 2018. Antes da conclusão do contrato, constava no site da Tiketa que esse evento era organizado pela Baltic Music. Também se podia ler, em letras vermelhas, a seguinte informação: o “organizador do evento assume total responsabilidade pelo evento, pela sua qualidade e conteúdo, bem como por quaisquer informações relacionadas. A Tiketa é o distribuidor dos bilhetes e atua na qualidade de agente comercial”. Das “condições gerais da prestação de serviços”, disponíveis no site da Tiketa, constavam “informações mais precisas sobre o prestador de serviços em causa e o reembolso dos bilhetes” (15). O bilhete reproduzia apenas uma parte dessas condições gerais, contendo, “em especial, a menção de que os “bilhetes não são trocados nem reembolsados. Em caso de cancelamento ou de adiamento do evento, o organizador [deste] responde integralmente pelo reembolso do preço dos bilhetes”. Do bilhete constava igualmente “o nome, o endereço e o número de telefone do organizador do evento em causa e era indicado que este último era totalmente responsável «pelo evento, pela sua qualidade e conteúdo, bem como pelas informações relacionadas», na medida em que a Tiketa atuava apenas como distribuidor de bilhetes e «agente comercial»” (16).

No dia marcado para o evento, o consumidor ficou a saber, através de cartaz afixado no local, que o mesmo não se realizaria (17). Dois dias depois, a Tiketa informou o consumidor de que poderia obter, em linha, o reembolso do valor pago (18). No dia seguinte, o consumidor veio exigir à Tiketa o reembolso do valor pago e uma indemnização pelas “despesas de viagem” e pelos “danos morais sofridos devido ao cancelamento do evento em causa”, tendo esta remetido a questão para a Baltic Music, que nunca respondeu (19).

Em julho do mesmo ano, o consumidor propôs uma ação contra as duas empresas, pedindo a sua condenação solidária (20). O tribunal de primeira instância decidiu, menos de três meses depois (!), julgando “o pedido parcialmente procedente, condenando a Tiketa a pagar ao interessado as quantias pedidas a título de reparação dos seus danos materiais e uma parte das pedidas a título de reparação do seu dano moral, acrescendo juros à taxa anual de 5% a contar da propositura da ação até à execução integral da sua sentença” (21). O tribunal de segunda instância manteve a decisão, o que motivou o recurso para o Supremo Tribunal, que suspendeu a instância, submetendo várias questões prejudiciais ao TJUE, já resumidas no primeiro parágrafo do presente texto.

A primeira questão consiste em saber se o conceito de profissional abrange a pessoa que atua como intermediária.

O art. 2.º-2 define profissional como “qualquer pessoa singular ou coletiva, pública ou privada, que, nos contratos abrangidos pela presente diretiva, atue, incluindo através de outra pessoa que atue em seu nome ou por sua conta, no âmbito da sua atividade comercial, industrial, artesanal ou profissional”.

A versão em lituano é diferente da versão em português (25 e 26): “qualquer pessoa singular ou coletiva, pública ou privada, que atue no âmbito de um contrato abrangido pela presente diretiva para fins ligados à sua atividade comercial, industrial, artesanal ou profissional, incluindo qualquer outra pessoa que atue em nome ou por conta do comerciante”.

Segundo o TJUE (27), impõe-se uma interpretação das diretivas em caso de disparidades linguísticas que tenha em conta a sua economia geral, o que remete para o elemento sistemático de interpretação, e a sua finalidade (elemento teleológico). Conclui o TJUE, à luz destas orientações, que o intermediário é profissional, sendo irrelevante se o intermediário informou que era intermediário para ser qualificado como profissional nos termos do diploma (34). Constituem argumentos do TJUE que (i) o art. 6.º-1-c) pressupõe que é profissional o intermediário, uma vez que, além dos seus dados, devem ser prestados os dados “do profissional por conta de quem atua” (28), que (ii) se impõe uma interpretação homogénea, resultando do acórdão proferido no Caso Kamenova (32, 33, 36) que profissional é qualquer pessoa que atue com fins profissionais ou em nome ou por conta de um profissional (29), e que (iii) o art. 1.º convida a uma interpretação ampla do diploma (30).

Segundo o TJUE, o Caso Wathelet, que qualifica um intermediário como vendedor, não releva neste contexto, uma vez que a Diretiva 2011/83/UE não determina a identidade das partes nem a repartição das responsabilidades (33).

O TJUE conclui, portanto, que quer o intermediário quer o profissional em nome de quem este atua podem ser qualificados como profissionais para efeitos do cumprimento das normas do diploma europeu.

A segunda questão, apesar de não ser colocada nestes precisos termos pelo TJUE, consiste em concluir sobre o valor jurídico de uma remissão para as condições gerais do serviço constantes de um site no caso de o consumidor ter declarado a sua aprovação.

O TJUE começa (41) por distinguir as obrigações materiais de informação (art. 6.º) das obrigações formais (art. 8.º).

Antes da celebração do contrato, o profissional apenas deve fornecer as informações exigidas pelo art. 6.º-1 “de uma forma clara e compreensível” (45), só após a celebração do contrato se impondo ao profissional confirmar através de um suporte duradouro.

Logo, em abstrato, é suficiente que o consumidor selecione, no site, a casa prevista para o efeito para se considerar que as informações são levadas ao conhecimento (46). No entanto, salienta-se que cabe ao tribunal nacional avaliar se as informações foram fornecidas de forma clara e compreensível (47).

Na prática, tenho algumas dúvidas de que uma remissão para um site seja mais do que uma ficção de conhecimento (e de aprovação), claramente insuficiente para que se possa considerar cumprido o dever de informação de forma clara e compreensível.

Esse procedimento de informação (pré-contratual) não substitui a (obrigação contratual de) confirmação em suporte duradouro (48), uma vez que a informação constante de um site não é fornecida através de um suporte duradouro (51).

Independentemente do incumprimento da obrigação de confirmação em suporte duradouro, as informações prestadas são parte do contrato, nos termos do art. 6.º-5 (52). Em suma, o TJUE conclui que a Tiketa deve ser qualificada como profissional para efeitos de aplicação da Diretiva 2011/3/UE. Quanto ao cumprimento, pela Tiketa, do dever de informação pré-contratual de informação, a resposta cabe ao tribunal nacional, que deve avaliar se o mesmo foi cumprido através de uma forma clara e compreensível. Já quanto ao cumprimento da obrigação de confirmação através de um suporte duradouro, o TJUE conclui que não basta que a informação tenha estado disponível no site, com aprovação pelo consumidor, em momento anterior à celebração do contrato.


[1] Os contratos celebrados através da Tiketa não são, naturalmente, contratos de compra e venda de bilhete, uma vez que o bilhete não é o objeto principal do contrato. Se se tratar de espetáculo artístico, teremos um contrato para a assistência a espetáculo desportivo, contrato misto em que predomina o elemento prestação de serviço. Note-se que os números indicados entre parêntesis correspondem aos considerandos do Acórdão em que a questão em causa é abordada.

“Garantia” das peças inseridas num bem no âmbito da sua reparação

Doutrina

A questão a que se pretende dar resposta neste pequeno texto consiste em saber se as peças inseridas no bem no âmbito de uma reparação beneficiam de uma “garantia legal”[1] autónoma e/ou nova em relação à do próprio bem. Para esta análise é fundamental refletir sobre o problema mais geral do destino da “garantia” em caso de substituição e de reparação.

A reparação a que este texto diz respeito é a reparação feita na sequência da falta de conformidade do bem, ao abrigo do artigo 15.º-1-a) do DL 84/2021. Se se tratar de uma reparação feita fora do período de responsabilidade do vendedor, às peças inseridas no bem é aplicável o DL 84/2021, nos termos do artigo 3.º-1-b), uma vez que estaremos perante um contrato misto com elementos de prestação de serviço e de compra e venda, tendo o consumidor os direitos previstos no diploma.

A matéria foi objeto de discussão em outubro de 2004, na sequência de pedido feito à UMAC (hoje NOVA Consumer Lab) pela Direção-Geral do Consumidor. Joana Galvão Teles, Pedro Félix, Sofia Cruz e eu preparámos, então, um parecer sobre “Venda de Bens de Consumo: Garantia das Peças Inseridas Num Bem no Âmbito da Sua Reparação”, posteriormente publicado na obra Conflitos de Consumo, Almedina, Coimbra, 2006, pp. 225-244 (disponível aqui).

Apesar de o Comité Económico e Social e o Parlamento Europeu, nos seus pareceres, terem sugerido que se regulasse a matéria (defendendo-se o recomeço do prazo de “garantia” após a reparação), a Diretiva 1999/44/CE deixou a questão em aberto. O DL 67/2003, na versão originária, não resolveu a questão. Face a essa omissão, defendemos no referido parecer que “as peças novas colocadas no bem no âmbito da sua reparação, dentro do período da garantia legal, não eram abrangidas por um novo período de garantia legal”. Na nossa perspetiva, a lei deveria tratar da mesma forma os casos em que o consumidor exerce o direito à reposição da conformidade, quer este seja exercido através de reparação ou de substituição.

Em 2008, o DL 67/2003 foi alterado pelo DL 84/2008, passando a prever-se, no artigo 5.º-6, que, “havendo substituição do bem, o bem sucedâneo goza de um prazo de garantia de dois ou de cinco anos a contar da data da sua entrega, conforme se trate, respetivamente, de bem móvel ou imóvel”.

Ao contrário do que tínhamos defendido no Parecer, distinguiu-se expressamente entre a reparação e a substituição, tornando a substituição muito mais apetecível para o consumidor. Assim, face ao regime anterior, em caso de reparação, o período de “garantia” inicial continuava a correr, sem qualquer alargamento. Em caso de substituição, reiniciava-se esse período de “garantia”.

A lei não definiu, contudo, se às peças inseridas no âmbito de uma reparação era ou não aplicável o artigo 5.º-6. Na nossa perspetiva, embora com dúvidas, a resposta deveria ser negativa. Tratando-se de reparação (e não de substituição), não se estabelecia um novo período de “garantia”.

A Diretiva 2019/771 também não regula a matéria, sendo este um tema em relação ao qual os Estados-Membros mantêm alguma liberdade (v. considerando 44).

Ao transpor a Diretiva 2019/771, Portugal veio finalmente esclarecer a dúvida de forma expressa, utilizando a possibilidade conferida pelo referido considerando 44 na sua plenitude. Com efeito, no artigo 18.º do DL 84/2021 prevê-se o que acontece ao período de “garantia”, quer no caso de reparação, quer no caso de substituição.

Se se tratar de substituição, aplica-se o artigo 18.º-6, reiniciando-se o prazo, tal como estava previsto no regime anterior. Não há, aqui, novidades.

A novidade é a norma relativa à reparação (artigo 18.º-4), a qual abrange, naturalmente, os casos em que uma peça é inserida no bem no âmbito dessa reparação. Nesse caso, o bem reparado beneficia de um prazo de “garantia” adicional de seis meses. Assim, em caso de reparação, não se reinicia a contagem do período de “garantia”, mas este é alargado em seis meses.

Pela primeira vez no ordenamento jurídico português, resulta claro que a peça inserida no âmbito dessa reparação não tem uma “garantia” autónoma, uma vez que a conformidade não foi reposta por via de substituição, a qual implica a devolução do bem desconforme e a entrega de um novo bem conforme.

Por exemplo, imaginemos um contrato de compra e venda de um automóvel. Em caso de desconformidade, o consumidor pode exercer o direito à reposição da conformidade através de reparação. Se, no âmbito dessa reparação, for necessário substituir o motor, o novo motor não beneficia de uma “garantia” autónoma e nova, mas todo o automóvel beneficiará de um alargamento do período de garantia em seis meses. A resposta será a mesma se, por exemplo, a reparação tiver como objeto a pintura para remoção de um risco ou a substituição dos estofos.

Embora continue a discordar de uma solução que passe pela existência de regras distintas em caso de reparação ou substituição quanto ao reinício do período de “garantia”, o DL 84/2021 tem o mérito de resolver em definitivo a questão das peças inseridas no bem no âmbito de uma reparação. A solução em que a substituição é mais favorável para o consumidor do que a reparação é particularmente criticável em termos de sustentabilidade do planeta.

A solução constante do artigo 18.º-4 tem algumas parecenças com a que se encontra prevista no direito francês. Com efeito, o primeiro parágrafo do artigo L. 217-13 do Code de la consommation, na redação dada pela Ordonnance n.° 2021-1247, estabelece que “o bem reparado no quadro da garantia legal de conformidade beneficia de uma extensão dessa garantia em seis meses” (tradução minha). Note-se que, neste caso, ao contrário da lei portuguesa, não se prevê qualquer limite ao número de extensões do período da “garantia” (em Portugal, o limite corresponde a quatro extensões). Contrastando com o que sucede em Portugal, em França, o período de “garantia” não se reinicia em caso de substituição do bem. Tal apenas sucede, nos termos do segundo parágrafo do artigo L. 217-13 do Code de la consommation, na redação de 2021, nos casos em que o consumidor tenha escolhido a reparação, mas o profissional não tenha reparado o bem, tendo sido posteriormente reposta a conformidade por via de substituição. É a única situação em que a substituição do bem implica o reinício do período de “garantia”. Trata-se de um incentivo à reparação, mensagem oposta àquela que é dada pela lei portuguesa.


[1] O conceito de “garantia” não deveria ser utilizado neste contexto, uma vez que pode ser enganoso na perspetiva do consumidor. A sua constante utilização na linguagem comum justifica a referência neste texto. Como defendo na obra Compra e Venda e Fornecimento de Conteúdos e Serviços Digitais – Anotação ao Decreto-Lei n.º 84/2021, de 18 de Outubro, Almedina, 2022, p. 16, «se já era discutível a utilização da palavra “garantia” face ao DL 67/2003, essa expressão é ainda mais enganosa com o novo regime. Na nossa perspetiva, não sendo os dois prazos idênticos, não se pode falar em garantia. Reforçando a ideia, parece-nos estar mais próximo de um eventual prazo de “garantia” o período de dispensa ou liberação do ónus da prova de anterioridade da desconformidade do que o período de responsabilidade do vendedor». Neste texto, por “garantia” deve entender-se o período de responsabilidade do vendedor acrescido do período dentro do qual se prevê a dispensa ou liberação do ónus da prova da anterioridade da desconformidade.