Será consumidora uma pessoa que adquire um imóvel para arrendamento?

Jurisprudência

No passado dia 24 de outubro, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) proferiu uma decisão no âmbito do Processo C-347/23 (Caso Zabitoń). O caso centra-se na interpretação do conceito de consumidor numa situação em que duas pessoas casadas (LB, agente da polícia, e JL, diretora de uma escola) adquirem um bem imóvel, celebrando um contrato de crédito hipotecário para o efeito, com a intenção de obter rendimentos do imóvel por via do seu arrendamento posterior.

O TJUE examina se os membros deste casal podem ser enquadrados na categoria de consumidor, à luz do direito europeu, beneficiando da legislação mais protetora que é conferida a este, nomeadamente pela diretiva das cláusulas abusivas.

Destaca-se que o conceito de consumidor, de acordo com o direito europeu, se aplica, em regra, a pessoas singulares que adquirem bens ou serviços para fins pessoais, ou seja, alheios a uma atividade profissional. Assim, a motivação dos compradores é analisada com vista a determinar se o ato de aquisição de um imóvel com a finalidade de o arrendar lhe retira o caráter de consumo pessoal, transformando-o numa atividade profissional.

O TJUE decide que, apesar do objetivo de obter proveito com o arrendamento, os membros do casal devem ser considerados consumidores. O tribunal argumenta que a aquisição do imóvel não ocorre no âmbito de uma atividade profissional contínua e organizada. Assim, o simples facto de obter uma vantagem económica não transforma os compradores em profissionais. Não existindo uma intenção de exercer uma atividade imobiliária contínua, o negócio é enquadrado como um ato de consumo.

O TJUE realça a importância de uma interpretação do conceito de consumidor que garanta a segurança jurídica e a proteção no mercado. O tribunal opta, assim, por proteger o casal, considerando que a aquisição se traduz numa típica relação de consumo, não tendo os compradores experiência profissional no setor imobiliário nem atuando com caráter de habitualidade. Visa-se apenas, citando o acórdão, “consolidar o seu património privado”, sendo “uma forma de investimento” (ponto 33).

Esta decisão é bastante revelante, uma vez que a solução adotada não era evidente. Com efeito, o imóvel fora, neste caso, adquirido como um investimento, com vista à obtenção de rendimentos, o que poderia aproximar o negócio de uma atividade profissional, que se caracteriza precisamente pela finalidade lucrativa. Concorda-se, no entanto, com a decisão, na medida em que se tratou de um ato isolado, único[1], não revelando o exercício de uma atividade profissional, com regularidade. O arrendamento tem, na verdade, caráter regular, mas está aqui em causa o contrato de compra e venda do imóvel. O casal pretendia apenas fazer um investimento ao comprar o imóvel, colocando o seu património a render, sem ter conhecimentos específicos na área em causa. Julgo que a decisão poderia já ser outra se o casal comprasse um segundo imóvel para arrendar ou tivesse já outros imóveis arrendados. Aí se deverá, na minha perspetiva, traçar a fronteira entre ser ou não consumidor (ou não ser ou ser profissional, respetivamente).

É interessante notar que, no contrato de arrendamento, também não se poderá, reflexamente, considerar o casal (senhorio) como profissional, não se aplicando, portanto, a legislação de consumo. A qualificação como consumidor no contrato de compra do imóvel (e no contrato de crédito hipotecário associado) tem, portanto, o importante efeito de não se proteger como consumidor uma outra pessoa (inquilino) numa outra relação ligada a esta.

Podemos concluir deste caso, em suma, que o investimento ainda pode ser considerado consumo se não tiver caráter regular.


[1] No ponto 11 da decisão, refere-se que “os demandantes no processo principal não deram de arrendamento outros bens imóveis”.

Cláusulas Abusivas e Sanções Contraordenacionais

Legislação

A alteração da Diretiva 93/13/CEE pela Diretiva 2019/2161 implica que a utilização de cláusulas abusivas passe a ser qualificada, em alguns casos, a nível interno, como uma infração administrativa. O direito europeu impõe aos Estados-Membros que prevejam consequências adicionais, além da sanção contratual relativa à nulidade das cláusulas, nomeadamente sendo aplicadas sanções contraordenacionais.

Nos termos do art. 34.º-A-1 do DL 446/85, introduzido pelo DL n.º 109-G/2021 e alterado pela Lei n.º 10/2023, “constitui contraordenação muito grave, punível nos termos do Regime Jurídico das Contraordenações Económicas (RJCE), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 9/2021, de 29 de janeiro, a utilização de cláusulas absolutamente proibidas nos contratos, incluindo as previstas nos artigos 18.º e 21.º”.

Assim, a inclusão num contrato singular de uma cláusula elencada numas das listas negras dos arts. 18.º e 21.º constitui sempre contraordenação, independentemente de já ter sido considerada abusiva, em concreto, por uma decisão judicial (ou arbitral).

O art. 34.º-A não se aplica, no entanto, apenas a estas cláusulas. O elemento literal da norma aponta neste sentido, ao referir que a consequência inclui essas cláusulas (“incluindo as previstas”). Se a consequência se aplicasse apenas a essas cláusulas, a formulação teria de ser outra: “(…) a utilização nos contratos das cláusulas absolutamente proibidas incluídas nos artigos 18.º e 21.º”.

Para percebermos a que outras cláusulas se pode aplicar esta consequência é necessário interpretar esta norma à luz do art. 8.º-B da Diretiva 93/13/CEE, introduzido pela Diretiva 2019/2161. Segundo o n.º 2 deste preceito, “os Estados-Membros podem restringir essas sanções às situações em que as cláusulas contratuais sejam expressamente definidas como abusivas segundo o direito nacional ou em que o profissional continue a recorrer a cláusulas contratuais que tenham sido consideradas abusivas numa decisão definitiva adotada nos termos do artigo 7.º-2”. A primeira parte dirá respeito às cláusulas absolutamente proibidas, enquanto a segundo remete para as cláusulas consideradas abusivas no âmbito de uma ação inibitória, independentemente de estar em causa uma cláusula incluída numa das listas ou ser abrangida pela cláusula geral. O considerando 14 da Diretiva 2019/2161 vai um pouco mais longe, esclarecendo que “as sanções também poderão ser impostas pelas autoridades administrativas ou pelos tribunais nacionais (…) quando o profissional utiliza uma cláusula contratual que tenha sido considerada abusiva por uma decisão definitiva com caráter vinculativo”.

O art. 34.º-A-1 do DL 446/85 deve ser interpretado neste sentido, constituindo contraordenação quer a utilização num contrato singular de uma cláusula (abusiva) incluída numa das listas negras dos arts. 18.º ou 21.º (independentemente de uma decisão judicial prévia nesse sentido) quer a utilização num contrato singular de uma cláusula considerada abusiva por uma decisão de um tribunal que tenha transitado em julgado (numa ação inibitória ou em qualquer outra ação).

A contraordenação é muito grave, punível nos termos do Regime Jurídico das Contraordenações Económicas (RJCE). Nos termos do art. 18.º-c), o intervalo do valor da coima é o seguinte:

– Tratando-se de pessoa singular, de € 2 000 a € 7 500;

– Tratando-se de microempresa, de € 3 000 a € 11 500;

– Tratando-se de pequena empresa, de € 8 000 a € 30 000;

– Tratando-se de média empresa, de € 16 000 a € 60 000;

– Tratando-se de grande empresa, de € 24 000 a € 90 000.

A sanção será bastante mais pesada se estiver em causa uma infração generalizada ou uma infração generalizada ao nível da União Europeia, na aceção do art. 3.º do Regulamento (UE) 2017/2394, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2017. Neste caso, o limite máximo das coimas pode corresponder a 4% do volume de negócios anual do infrator nos Estados-Membros em causa, sendo que, quando não esteja disponível informação sobre o volume de negócios anual do infrator, o limite máximo da coima é de € 2 000 000.

Na determinação da coima, devem ser tidos em conta, entre outros aspetos eventualmente previstos na legislação sectorialmente aplicável, a natureza, gravidade, dimensão e duração da infração cometida, as medidas adotadas pelo infrator para atenuar ou reparar os danos causados aos consumidores, as infrações cometidas anteriormente pelo infrator em causa, os benefícios financeiros obtidos ou os prejuízos evitados pelo infrator em virtude da infração cometida, se os dados em causa estiverem disponíveis, e, nas situações transfronteiriças, as sanções impostas ao infrator pela mesma infração noutros Estados-Membros (art. 34.º-B).

A fiscalização, a instrução do processo e a aplicação das sanções competem à entidade reguladora ou de controlo de mercado competente ou, na sua ausência, à Direção-Geral do Consumidor (art. 34.º-C).

No final de outubro deste ano, a Direção-Geral do Consumidor (DGC) emitiu uma nota de imprensa, na qual dá conta de ter detetado cláusulas absolutamente proibidas em contratos de ginásios[1]. Na sequência de uma ação de fiscalização, enquanto entidade com competência no âmbito do regime jurídico das cláusulas contratuais gerais, a DGC instaurou dois processos de contraordenação contra operadores económicos que gerem ginásios. Estão em causa, nomeadamente, cláusulas pelas quais estes se desresponsabilizam totalmente por quaisquer danos decorrentes da prática de atividades físicas nas suas instalações ou definem antecipadamente a compensação devida por danos resultantes da utilização de uma máquina em mau estado de funcionamento.

Trata-se, segundo julgo saber, da primeira vez que o regime é aplicado, sendo instaurados processos de contraordenação por utilização de cláusulas abusivas. Aplaude-se a decisão, uma vez que é muito importante que os profissionais percebam que o regime é efetivamente aplicado.


[1] Estes contratos levantam por vezes também problemas relativos à inserção de cláusulas, nomeadamente ao nível da comunicação e do esclarecimento ao aderente (arts. 5.º, 6.º e 8.º do DL 446/85). Não estão, no entanto, previstas sanções contraordenacionais em caso de incumprimento destas normas.  

Gorjeta incluída na conta

Doutrina

Nos últimos anos, tem-se generalizado em alguns restaurantes, em especial os de gama mais alta, uma prática que consiste em incluir na conta um valor relativo a gorjeta, sendo em regra apresentados dois preços, um sem gorjeta e o outro com esta incluída. A percentagem é variável, situando-se em torno de 5% a 10%.

Esta prática parece-me contrária ao Direito português vigente, pelo menos nos casos em que se trate de uma relação de consumo, ou seja, o cliente não esteja a agir na qualidade de profissional na relação com o restaurante.

A análise que se segue tem como base os princípios do Direito do Consumo e a sua aplicação a esta situação concreta.

As principais questões colocam-se ao nível da transparência e da lealdade. No entanto, antes de entrar na sua análise, importa perceber as razões que estão subjacentes a esta prática.

Trata-se de uma forma de aumentar o valor pago pelo cliente, que tem como destinatários os trabalhadores dos restaurantes. Ou seja, está em causa uma prática que visa aumentar a parte variável da remuneração dos trabalhadores, relativa às gratificações dadas pelos clientes. A sua inclusão na conta poderá ter a vantagem de ser mais claro, do ponto de vista da tributação, qual o rendimento relevante. Haverá, portanto, um interesse geral subjacente a esta prática, ainda que indiretamente considerado.

Do ponto de vista do Direito do Consumo, a prática é, no entanto, muito problemática.

Desde logo, levanta problemas de transparência.

Com efeito, o consumidor não tem conhecimento, quando lhe é apresentado o menu, que, ao valor da comida e das bebidas, será aplicada, no final, uma percentagem variável, não obrigatório, na conta. Tipicamente, não é afixado qualquer cartaz com essa informação no restaurante, não constando igualmente da ementa a referência a essa percentagem nem a circunstância de esta ser posteriormente apresentada com a conta. Assim, quando está a fazer as contas quanto ao que irá gastar, o consumidor não inclui esse montante na operação.

O preço é um elemento essencial da decisão de contratar do consumidor e deve ser obrigatoriamente incluído antes de este avançar para a decisão de transação. Tal é exigido pelo art. 1.º do DL 138/90 (regime da indicação de preços), aplicável aos serviços por via do art. 10.º do mesmo diploma. Também o art. 8.º-1-c) da Lei de Defesa do Consumidor e o art. 10.º-c) do DL 57/2008 (práticas comerciais desleais) impõem a indicação do preço, incluindo taxas e impostos, e, acrescento eu, qualquer outro valor que possa ser acrescentado ao consumidor.

A indicação do preço deve incluir, parece-me, por questões de transparência, valores facultativos eventualmente apresentados ao consumidor em momento posterior. A situação é ainda mais problemática se tivermos em conta que a percentagem é variável. Em alguns restaurantes são 5%, noutras 7%, noutras 10%, por exemplo.

Acresce ao que já foi referido, em termos de transparência, o modo como a gorjeta é apresentada e a relação entre este valor e o valor total constante da conta. Muitas vezes é apresentado o valor total, sem gorjeta, em tamanho mais pequeno do que o valor total, acrescido da gorjeta, apresentado numa linha abaixo. Ou seja, o total apresentado num tamanho maior e no final é o valor com a gorjeta. Muitos consumidores leem apenas esse valor total, julgando ser esse o valor a pagar. Tal é ainda mais problemático se se tratar de um consumidor estrangeiro, que pode não saber ler em português e, por isso, não conseguir entender que o valor da gorjeta é facultativo e não tem de ser pago. Embora o problema de transparência não se circunscreva a consumidores que não leiam português, atinge estes de modo ainda mais significativo.

A não inclusão imediata da informação enviesa a decisão de contratar livre e esclarecida do consumidor. Este acaba por ser surpreendido, mais à frente, já depois de se ter vinculado irreversivelmente. Nesse momento, terá apenas uma de duas opções: (i) confrontar o empregado que o serviu com a sua decisão de não pagar o valor da gorjeta indicado; (ii) pagar esse valor. Para muitos consumidores, a primeira decisão é muito difícil de tomar.

Isto leva-nos para o segundo – e mais grave – problema associado a esta prática: a deslealdade.

Em relações de consumo, o comportamento do profissional deve ser especialmente norteado pela honestidade e pela proteção dos interesses económicos dos consumidores (v. art. 60.º da Constituição da República Portuguesa).

O já referido DL 57/2008 proíbe as práticas comerciais desleais. Temos, desde logo, a cláusula geral (art. 5.º), segundo a qual é desleal a prática desconforme à diligência profissional que leve o consumidor a tomar uma decisão de transação diferente da que tomaria se não fosse confrontado com a prática em causa.

A prática de incluir a gorjeta na conta, ainda que facultativa, parece ser contrária à diligência profissional – definida no art. 3.º-h) –, pois não corresponde à prática mais comum e honesta de mercado nem está de acordo coma boa-fé, em especial porque surpreende o consumidor, que fica numa situação de certa forma limitada, com a dupla opção referida anteriormente neste texto. É igualmente indiscutível que o comportamento do consumidor seria, em princípio, outro se soubesse que seria apresentada uma conta com a indicação de um valor adicional a pagar, ainda que este seja facultativo.

As práticas desleais distinguem-se entre práticas enganosas e agressivas.

Neste caso, parece-me que estamos perante uma prática agressiva. Nos termos do art. 11.º do DL 57/2008, há uma prática agressiva nos casos em que a liberdade do consumidor é afetada por assédio, coação ou influência indevida.

No caso em análise, não estaremos perante uma situação de coação, pois, pelo menos em regra, o consumidor não é forçado, física ou psicologicamente, a pagar a gorjeta. Em certos casos, podemos conceber que o empregado faça alguma pressão adicional, inadmissível, no sentido de informar o cliente que a sua remuneração depende em grande medida das gorjetas pagas pelos clientes. Nestes casos, poderemos estar perante situações de coação.

Parece-me que estaremos, no entanto, na generalidade dos casos, perante uma situação de influência indevida, conceito definido no art. 3.º-j).

Com efeito, o profissional utiliza uma posição de poder, que consiste na circunstância de ter servido o consumidor, estar no final da refeição, num momento em que o consumidor tem o dever de pagar, ficando por isso limitado, ainda que não fisicamente. Se não quiser pagar esse valor, o consumidor terá de o dizer ao empregado, a pessoa que o serviu e que irá receber, diretamente, esse valor. Um consumidor médio, com um nível de conhecimento e um perfil psicológico normal, tem dificuldade em confrontar a pessoa com quem interagiu com essa decisão. E isso é aproveitado pelo profissional por via dessa prática. Há, portanto, uma influência indevida sobre o consumidor, que o leva a tomar uma decisão de transação diferente da que tomaria, dando uma gorjeta que não daria ou dando uma gorjeta de valor superior àquela que daria (até tendo em conta o que é habitual no nosso país). Em Portugal, é relativamente comum não ser dado qualquer valor de gorjeta ou ser dado um valor relativamente baixo, arredondando-se o valor total à unidade de euro mais próxima ou um valor fixo em euros (um, dois ou cinco euros, por exemplo, consoante o valor total).

A prática em análise visa, claramente, aumentar o valor pago em gorjeta. E, como vimos, esse aumento resulta de uma influência indevida eficaz, pouco transparente, sendo, por isso, a prática desleal. O profissional tem uma forma muito mais transparente e leal de resolver o problema que o leva a adotar esta prática, que consiste em aplicar essa percentagem a cada um dos produtos que comercializa. Nesse caso, os preços serão maiores, mas o consumidor pode decidir de modo livre e esclarecido.

Consumidor promitente-comprador (muito) menos protegido

Doutrina

Sem qualquer discussão pública e muito pouca publicidade ou preocupação (mediática), foi publicado recentemente no Diário da República o Decreto-Lei n.º 48/2024, de 25 de julho, que limita as situações em que o direito de retenção prevalece sobre a hipoteca, por via de uma alteração do art. 759.º do Código Civil.

O que é que está, no essencial, em causa?

Imaginemos um casal jovem que pretende comprar uma casa para viver e descobre um apartamento perfeito, num prédio a estrear, quase pronto, por € 250 000. Alguns dias depois, a empresa construtora e o casal celebram um contrato-promessa de compra e venda do imóvel com eficácia obrigacional, pagando este, a título de sinal, € 50 000. O casal passa a habitar o apartamento de imediato, apesar de as obras não estarem ainda totalmente concluídas. Entretanto, o casal está em contacto com várias entidades bancárias para conseguir um bom crédito à habitação para financiar a compra da casa. Fica combinado entre as partes que o contrato definitivo (de compra e venda) será celebrado mais tarde, quando o casal tiver conseguido o financiamento.

Entretanto, uns dias depois, a empresa construtora é declarada insolvente. Não tendo o contrato-promessa eficácia real, o administrador da insolvência poderá recusar o seu cumprimento (v. arts. 102.º e 106.º-1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas – CIRE), não se celebrando o contrato de compra e venda. Este regime é muito duvidoso do ponto de vista do equilíbrio e da justiça da solução, colocando o promitente-comprador a quem foi entregue o imóvel numa situação de tremenda fragilidade (jurídica e não só). Discutível, do ponto de vista da justiça material da solução, é igualmente a regra que não permite ao casal, neste caso, exigir a devolução do sinal em dobro, ou seja, € 100 000 (v. art. 442.º-2 do Código Civil), como crédito sobre a insolvência, nos termos do art. 102.º-3-c) do CIRE. Em qualquer caso, não há dúvida de que terá direito ao sinal em singelo, ou seja, aos € 50 000.

Neste momento, o casal é surpreendido com a notícia de que, sobre o imóvel, estava já constituída uma hipoteca, a favor de uma entidade financiadora da empresa construtora, no valor de € 5 000 000. Este valor é muito superior ao património da construtora, pelo que o casal apenas receberá qualquer valor se for pago antes da entidade financiadora.

Vejamos qual a solução legal consagrada até agora.

Nos termos do art. 755.º-1-f) do Código Civil, goza do direito de retenção “o beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do artigo 442.º”. Apesar de alguma doutrina se manifestar contrária à existência de direito de retenção nos casos em que o administrador de insolvência pode licitamente recusar o cumprimento do contrato-promessa, o Ac. do STJ, de 27/4/2021, concluiu que isso é conciliável com o reconhecimento de um direito de retenção ao promitente-comprador[1]. Concordo com esta decisão, por se tratar da solução mais justa, do ponto de vista material, salvaguardando de forma adequada quer o princípio fundamental do pacta sunt servanda quer o equilíbrio social subjacente ao problema. O crédito do casal goza, portanto, de direito de retenção.

O art. 759.º-1 do Código Civil, na versão anterior, atribuindo relevância prática a este direito de retenção, previa que o titular do direito de retenção tinha o direito “de ser pago com preferência aos demais credores do devedor”, prevalecendo o direito de retenção “sobre a hipoteca, ainda que esta [tivesse] sido registada anteriormente” (n.º 2).

É importante realçar que o Ac. do STJ, de 20/3/2014, já limitara o âmbito deste regime, uniformizando jurisprudência no sentido de que, em contrato-promessa com eficácia obrigacional e tradição da coisa, apenas beneficia do direito de retenção, no âmbito da graduação de créditos em insolvência, o promitente-comprador que possa ser qualificado como consumidor[2]. No Ac. do STJ, de 12/2/2019, foi uniformizada jurisprudência no sentido de que tem a qualidade de consumidor, para este efeito, “o promitente-comprador que destina o imóvel, objeto de traditio, a uso particular, ou seja, não o compra para revenda nem o afeta a uma atividade profissional ou lucrativa”.

Portanto, este regime aplicava-se (apenas) a consumidores, como o jovem casal da nossa história. O seu crédito seria graduado antes do crédito da entidade financiadora da construtora, o que aumentaria a probabilidade de receber o valor devido (ou, pelo menos, uma parte deste valor, se o património do insolvente não fosse suficiente para satisfazer a totalidade).

Vejamos agora qual a solução para o caso à luz do novo regime.

A alteração parece cirúrgica, tendo em conta as poucas palavras utilizadas, mas é muito significativa, retirando, sem lhe mexer, quase toda a relevância prática ao art. 755.º-1-f) do Código Civil.

A parte final do n.º 1 do art. 759.º do Código Civil é alterada, passando a circunscrever-se o direito ao pagamento preferencial, leia-se, antes do credor hipotecário (v. art. 759.º-2) aos “casos em que o crédito assegura o reembolso de despesas para a conservar ou aumentar o seu valor”. Estão em causa, por exemplo, as obras feitas pelo titular do direito de retenção para garantir que a coisa não se deteriora ou que aumenta o seu valor.

Deixa de estar abrangido o crédito do promitente-comprador a quem o imóvel tenha sido entregue e decorrente do incumprimento do contrato-promessa pelo promitente-vendedor (quer este tenha ou não eficácia real). Trata-se de um regime que visa, no essencial, apenas reduzir os direitos dos consumidores, uma vez que esta regra protegia apenas o promitente-comprador que fosse consumidor.

O casal da nossa história terá de abandonar o apartamento e, provavelmente, não irá receber nada, perdendo os € 50 000 do sinal, uma vez que o crédito da entidade financiadora passa a ser graduado antes do seu e dificilmente haverá no património da empresa construtora, que se encontra insolvente, bens suficientes para a satisfação de qualquer outro crédito.

Esta alteração legislativa encontrava-se prevista, segundo o preâmbulo do Decreto-Lei n.º 48/2024, no projeto 18.3 do Plano de Recuperação e Resiliência. Terá sido, assim, imposta pelas instituições europeias. No confronto entre o direito do consumidor que adquiriu uma casa a uma empresa a não perder, além do direito a adquirir e a residir no imóvel, o valor do sinal e o da entidade financiadora, em princípio o banco ou outra instituição de crédito que financiou a construtora, a receber o seu crédito, prefere-se atualmente este último.

A justificação está na circunstância de este ser anterior àquele, ou seja, de a hipoteca ser anterior ao direito de retenção. A solução anterior frustrava as expectativas do credor hipotecário, que era confrontado com uma alteração (relativamente) imprevisível da sua posição, na medida em que o direito de retenção não é passível de registo.

No entanto, do ponto de vista social parecia ser essa a única via aceitável – e legítima, do ponto de vista da justiça. Parece iníquo que o consumidor, provavelmente desconhecendo a existência da hipoteca, ou sequer da existência da possibilidade de não-celebração do contrato de compra e venda, não veja, no mínimo, satisfeito, o direito à devolução do valor pago.

Das duas, uma: (i) ou a alteração deste regime tem uma importância efetiva (e significativa) para a atividade financeira em geral, caso em que é muito preocupante a solução adotada, uma vez que estaremos a falar de muitas situações reais de consumidores que ficam simultaneamente sem o imóvel e sem o dinheiro; (ii) ou a alteração tem escassa relevância efetiva para a atividade financeira em geral e alguns consumidores ficarão prejudicados sem que haja uma vantagem significativa para os credores hipotecários, não sendo aquela justificada. Uma alteração tão significativa deveria ter sido acompanhada, desde o início, ou seja, desde o momento da sua inclusão no Plano de Recuperação e Resiliência, de alguma discussão, justificando-se ainda a adoção simultânea de outras medidas com vista a mitigar os efeitos desta.


[1] O tribunal justifica assim a manutenção do direito de retenção: “(…) tendo em vista a tutela da intensa expetativa do promitente-adquirente, no caso de promessa sinalizada em que tenha havido tradição da coisa, de a vir a adquirir e que se justifica, tanto em caso de incumprimento imputável ao promitente-alienante, como no caso de recusa lícita de cumprimento pelo administrador de insolvência, até porque esta é reflexamente imputável ao incumprimento daquele”.

[2] Note-se que, neste acórdão, o STJ entendeu que a recusa de cumprimento é um ato ilícito e culposo e, como tal, o promitente-comprador consumidor tinha direito à devolução do sinal em dobro (e direito de retenção). Em 2021, o STJ alterou a perspetiva, apontando no sentido de se tratar de um ato lícito, que não confere o direito ao sinal em dobro, mantendo-se, no entanto, o direito de retenção. Esta é, sem dúvida, a solução mais equilibrada, que permite ao consumidor promitente-comprador a quem foi entregue o imóvel receber preferencialmente o valor do sinal que pagou. Esse equilíbrio, como se verá, é totalmente colocado em causa pela alteração legislativa de 2024.

O vinho mais barato da carta

Doutrina

Em muitos restaurantes, ocorre um fenómeno estranho que consiste na rutura de stock da garrafa de vinho mais barata da carta. O cliente, ao pedir essa garrafa de vinho, é informado de que esta não se encontra disponível, tendo de escolher outra. Por vezes, essa informação é acompanhada de uma sugestão de outra garrafa de vinho, normalmente sem indicação do respetivo preço[1]. Veremos neste texto se estas práticas são lícitas, à luz dos princípios da transparência e da lealdade.

A apresentação de uma lista ou carta com a indicação da comida e das bebidas constitui uma proposta contratual apresentada pela entidade gestora do restaurante (que designaremos simplesmente por restaurante) ao cliente. O restaurante fica numa situação de sujeição e o cliente tem o direito potestativo de fazer um pedido consistente com a informação constante da carta, pedindo o que aí estiver indicado. Se o cliente pedir uma garrafa de vinho constante da carta, celebra-se então um contrato relativo a essa garrafa. Este contrato é um contrato misto, pois inclui, além da própria garrafa (objeto principal do contrato, que aponta no sentido de se tratar de um contrato essencialmente de compra e venda), o serviço associado à sua abertura e, por vezes, à colocação nos copos, o aluguer dos copos e tudo o que está subjacente à utilização do espaço (utilização das cadeiras e da mesa, música, etc.). Celebrado o contrato, o restaurante tem de fornecer a garrafa de vinho. Se se recusar a fazê-lo, haverá incumprimento da obrigação por parte do restaurante.

O restaurante pode incluir na carta a indicação de que o vinho não se encontra disponível. Pode haver um risco ou uma cruz ao lado ou por cima da garrafa de vinho em causa. Neste caso, a proposta não inclui essa garrafa de vinho, não se desencadeando os efeitos referidos no parágrafo anterior. Se não for incluída essa informação, poderá ainda considerar-se a possibilidade de uma rutura de stock. No entanto, para que o argumento da rutura de stock seja eficaz, legitimando a conduta do restaurante, é necessário que tal tenha sucedido imediatamente antes do pedido, não tendo dado tempo para, antes da disponibilização da lista, ser incluída a informação referida no início deste parágrafo.

Antes da celebração do contrato, o restaurante deve informar o consumidor sobre os bens e serviços fornecidos e o respetivo preço, nos termos do art. 8.º da Lei de Defesa do Consumidor. Essa informação pode constar da carta, mas a norma não será cumprida se, apresentada a carta, não houver indicação clara relativamente a objetos indisponíveis. Acresce que, qualquer sugestão feita oralmente pelo representante do restaurante, deve igualmente, nos termos da mesma norma, ser acompanhada da informação relativa ao preço. A omissão do preço, ainda que este conste da lista, constitui uma violação do art. 8.º da Lei de Defesa do Consumidor.

Esta prática coloca ainda em causa o princípio da lealdade. Isto porque pode ser suscetível de levar o cliente a adquirir uma garrafa de vinho mais cara do que aquela que pretendia inicialmente.

Aplica-se, então, o regime das práticas comerciais desleais (DL 57/2008).

Podemos estar perante uma omissão enganosa (arts. 9.º e 10.º), por faltar, pelo menos, uma informação essencial para a decisão de contratar do consumidor: a indicação da inexistência do bem. Como indicado anteriormente, poderá faltar igualmente outro elemento essencial: o preço da garrafa de vinho sugerida pelo restaurante.

A prática pode igualmente consubstanciar uma ação enganosa. Com efeito, nos termos do art. 8.º-e), é proibida a prática que consiste em “propor a aquisição de bens ou serviços a um determinado preço sem revelar a existência de quaisquer motivos razoáveis que o profissional possa ter para acreditar que não pode, ele próprio, fornecer ou indicar outro profissional que forneça os bens ou serviços em questão ou equivalentes, àquele preço (…)”. A alínea f) proíbe ao profissional “propor a aquisição de bens ou serviços a um determinado preço e, com a intenção de promover um bem ou serviço diferente, recusar posteriormente apresentar aos consumidores o bem ou o serviço publicitado”.

Para a aplicação destas alíneas, é necessário que a prática seja intencional, ou seja, que haja uma estratégia no sentido de levar o consumidor a, no caso, adquirir uma garrafa de vinho mais cara. A circunstância de a garrafa mais barata não estar muitas vezes disponível aponta nesse sentido, mesmo quando o menu indica que a garrafa está temporariamente indisponível, se de facto estiver excecionalmente disponível[2].

Havendo uma prática comercial desleal, o restaurante está sujeito à aplicação de sanções contraordenacionais (art. 21.º). O consumidor pode pedir o livro de reclamações para dar a conhecer a prática à ASAE.

O consumidor tem ainda direito à redução adequada do preço ou à resolução do contrato ou a exigir uma indemnização do restaurante. A resolução do contrato, após ter consumido a garrafa de vinho, parece constituir uma situação de abuso do direito. É mais equilibrada, tendo em conta a situação, a redução adequada do preço, para o preço da garrafa mais barata pedida num primeiro momento, em especial nos casos em que o consumidor não tenha sido informado adequadamente do preço da nova garrafa. O risco de ter sido feita uma sugestão de uma garrafa muito mais cara correrá, assim, por conta do restaurante, o que parece ser uma solução ajustada aos valores subjacentes ao caso.


[1] Este tema já foi discutido aqui no blog no texto “A Garrafa de Vinho mais Cara do que o Jantar”. Nesse caso, o cliente não tinha chegado a ver a lista, tenho sido sugerido pelo representante do restaurante que a refeição fosse acompanhada por um Barca Velha. Também aí se concluiu, como neste texto, que a redução adequada do preço é a solução mais equilibrada.

[2] Num contexto diferente, descreve-se a prática identificada, em Espanha, no sentido de indicar que o terminal de pagamentos se encontra avariado para forçar os consumidores a pagar com dinheiro. A circunstância de o aviso de avaria do terminal estar plastificado e apresentar sinais da passagem do tempo aponta claramente no sentido de que se trata, não de um problema temporário, em vias de resolução, mas de uma prática intencional de forçar o pagamento em notas e moedas.

A step backwards from the European Union in Consumer ADR?

Legislação

On 17 October 2023, the European Commission presented a set of proposals and recommendations to revise the legal framework for the consumer alternative dispute resolution (CADR), which includes the following main documents:

Proposal for a Regulation of the European Parliament and of the Council repealing Regulation (EU) No 524/2013 and amending Regulations (EU) 2017/2394 and (EU) 2018/1724 with regards to the discontinuation of the European ODR Platform;

– Proposal for a Directive of the European Parliament and of the Council amending Directive 2013/11/EU on alternative dispute resolution for consumer disputes, as well as Directives (EU) 2015/2302, (EU) 2019/2161 and (EU) 2020/1828;

– Commission Recommendation (EU) 2023/2211 of 17 October 2023 on quality requirements for dispute resolution procedures offered by online marketplaces and Union trade associations.

The Report from the Commission to the European Parliament, the Council and the European Economic and Social Committee on the application of Directive 2013/11/EU of the European Parliament and of the Council on alternative dispute resolution for consumer disputes and Regulation (EU) No 524/2013 of the European Parliament and of the Council on online dispute resolution for consumer disputes has also been made public as a supporting document.

Overall, although several provisions may represent a step forward in the field of CADR, the European Union plans to take a significant step backwards in this area, at least in comparison with the 2013 legislative package.

So far, it was possible to identify three different phases in the evolution of the EU policy on ADR:

– First phase – Identification of the problem and adoption of non-binding instruments;

– Second phase – Adoption of binding instruments with a sectoral impact, applicable to all means of ADR or to means of CADR on specific issues;

– Third phase – Adoption of binding CADR instruments.

We are probably now heading towards a fourth phase of slowdown and disinvestment in this field.

Obviously, the European Commission does not present the legislative package adopted for discussion in this light. One can, however, easily see a clear trend in this direction.

Given the substantial differences between the Member States in terms of models and commitment to CADR, the solution is justified. Although I believe that alternative dispute resolution is the right way forward in this and other areas, I admit that the role of the European Union could be reduced by helping the Member States to implement the mechanisms they deem appropriate and, if possible, by financially supporting the organisations that resolve disputes.

The following is an analysis of the eight main aspects in which this legislative package, in particular the Proposal for a Directive, is innovative[1].

  • Discontinuation of the European ODR Platform

In an article published in 2016[2], Joana Campos Carvalho and I had already predicted that the sad end of the platform would be in sight if significant changes were not made to the system provided for in Regulation (EU) No 524/2013 and some of its provisions. The number of cases was already low then and, over the years, it certainly has not increased.

Three main problems were identified.

Firstly, the lack of information about the existence of the platform. Although it was rightly required that the trader informed the consumer about the platform, nothing was done to ensure that this information was actually provided in a way that was easily accessible to the consumer. We therefore proposed the creation of a EU logo, which would have to be displayed on the homepage of the trader. Without information, both consumers and professionals are unlikely to take part in the project.

Secondly, the platform had very little flexibility and was not in line with some of the most successful national CADR systems. In fact, in cases where CADR is imposed on traders by national legislation, the platform had no mechanism to allow the process to move forward without the cooperation of the trader. If the CADR is imposed on them, the platform could never allow the trader to block the continuation of the process.

Thirdly, the Regulation was distrustful of CADR entities, not allowing them to contact the trader directly to convince them of the advantages of CADR before deciding whether or not to accept the procedure.

In practical terms, the shutdown of the platform will have very little impact on CADR, since it has always had very little use over the last ten years.

However, from a symbolic point of view, it is a landmark step in the EU’s policy and the main reason for the conclusion that the European institutions have clearly disinvested in this area. Nevertheless, the courage to back down from a solution that has not worked is to be commended.

  • Duties to inform and respond

The Proposal for a Directive removes the duty of the trader to inform the consumer about the CADR if they are not bound to take part in a CADR procedure.

Whilst it is true that traders have an excessive number of information duties resulting from EU legislation (in many cases, on top of those resulting from purely national rules), it is nonetheless symbolic that the aim of reducing bureaucracy and the associated costs comes at the cost of a rule in such a relevant area.

This information had one objective: to make the CADR known to consumers. If the information is no longer provided, the likelihood of consumers knowing about the system and realising whether the trader is bound by it decreases dramatically.

It can be said that this is a cost rationalisation measure for businesses, which may well be justified, but it cannot be said that it will encourage greater participation in the CADR.

On the other hand, it is now compulsory for the trader to reply to the CADR entity within a maximum of 20 days. The response can be to participate or not participate in the procedure, in cases where it is not binding under national law, but the trader cannot fail to respond.

The effectiveness of this measure will essentially depend on the consequences envisaged internally in the event of a lack of response.

In terms of information duties, the simplification of procedures for CADR entities should be emphasised. This measure is positive, as some of these entities are more like centres of bureaucracy than of dispute resolution. It is strange, however, that there is no longer a requirement to report on the training of the individuals who manage the CADR procedures. This training is very important for the quality of the system, and it is anticipated that removing this duty to report could have the effect of reducing training time and, consequently, reducing the quality of the procedures.

  • Extended scope of application

The scope of application of the Directive is extended to include non-contractual consumer relationships, particularly as regards the pre-contractual phase, and legal obligations.

This is a step in the right direction, although I think it would be preferable to extend the scope of application to all consumer disputes, possibly excluding only those that it would not be appropriate to resolve through ADR. I find it difficult to specify which disputes would be excluded from the scope of the Directive if the path I suggest were to be followed, which demonstrates the advantages of the extension.

  • Bundling similar cases

In order to make the system more flexible and procedures more efficient, it is now possible to bundle similar cases involving the same trader.

I think we could go a little further and allow, in some situations, with the authorisation of the parties involved, the bundling of similar cases even if two or more different traders are involved.

  • Prior contact with the CADR entity

The CADR bodies will still be able to refuse to deal with a dispute on the grounds that the consumer did not first try to contact the trader to resolve the dispute.

However, if the amendment is approved, the Directive will provide that CADR bodies may not impose disproportionate conditions in this regard. Recital (12) gives two examples: (i) “the obligation to use the company escalation system after a first negative contact with the complaints handling service” and “the obligation to prove that a specific part of a company’s after sales service was contacted”.

  • Disputes with traders established outside the European Union

The Proposal for a Directive clarifies that the ADR entities must handle disputes in cases where the consumer is a resident of the Member State in question and the trader is based in a country outside the European Union.

This is a good solution, although attention is drawn to the difficulty, in many of these cases, of contacting the trader and, if necessary, managing the procedure, including for linguistic reasons.

  • Accessibility

Article 5-2 of the Proposal for a Directive expressly provides that (i) consumers may submit the complaint and access the paper file at their request, (ii) that tools relating to digital procedures are “easily accessible and inclusive” and that, (iii) in the event that the procedure is automated, the parties are granted a right to a review of the decision by a natural person.

The rationale for providing for these rights is understandable, although it should be emphasised that these are burdens that can be significant in practice for CADR entities.

  • CADR contact point

One of the main innovations introduced by the Directive is the creation of a CADR contact point, which must be designated in each Member State, to assist consumers and traders.

Member States will have to make a first decision in this regard: will the CADR contact point be competent only for cross-border disputes or also for domestic disputes?

This question may be relevant to answering the second one: who should be the CADR contact point in each Member State?

The rule points to a preference for the contact point to operate in the European Consumer Centre, but this will probably only make sense in two cases: (i) the contact point is only intended to assist in cross-border disputes; (ii) the European Consumer Centre of the Member State concerned has powers extended to domestic disputes.

In any case, the success of this measure will essentially depend on its practical application. A contact point that effectively provides assistance to consumers and traders can add value to the system, helping to fulfil the objective of increasing access to the ADR network.


[1] Issues related to online marketplaces are not analysed: (i) on the one hand, the relationship between this regime and Art. 21 of the Digital Services Act; (ii) on the other hand, Recommendation (EU) 2023/2211, indicated in the second paragraph of the text.

[2] “Online Dispute Resolution Platform – Making European Contract Law More Effective”, in Alberto De Franceschi (ed.), European Contract Law and the Digital Single Market, Intersentia, Cambridge, 2016, pp. 245-266.

Direito do Cliente a Copos de Água Gratuitos

Doutrina

Os clientes de empreendimentos turísticos, estabelecimentos de alojamento local e estabelecimentos de restauração e bebidas têm direito, desde 2021, a exigir a disponibilização gratuita de copos de água da torneira.

Este direito encontra-se previsto no art. 25.º-A-5 do DL 152-D/2017, na redação dada pela Lei 52/2021. Na versão do DL 102-D/2020, que aditou o art. 25.º-A, já se previa a disponibilização de água, mas admitia-se que esta tivesse custos, ainda que necessariamente inferiores ao da água embalada.

O regime pode ser incluído no âmbito do Direito do Consumo, tendo como objetivo claro a promoção de práticas sustentáveis e uma melhor gestão de resíduos.

O art. 25.º-A estabelece que, “nos estabelecimentos do setor HORECA, é obrigatório manter à disposição dos clientes um recipiente com água da torneira e copos não descartáveis higienizados para consumo no local, de forma gratuita”.

Vejamos a quem se aplica o diploma.

O direito é conferido a “clientes”. O regime não se aplica, portanto, apenas a consumidores. Qualquer cliente, seja ou não consumidor, tem direito à água. Exige-se, no entanto, que a pessoa seja cliente do estabelecimento. Isto significa que o direito pode apenas ser exercido por alguém que tenha, naquele momento, celebrado um contrato com o estabelecimento em causa. Se, por exemplo, alguém entrar num café e quiser apenas beber um copo de água, a norma não se aplica.

O direito pode ser exercido nos estabelecimentos do setor HORECA, o que inclui, nos termos do art. 3.º-1-iii), os empreendimentos turísticos, os estabelecimentos de alojamento local e os estabelecimentos de restauração e bebidas.

Os empreendimentos turísticos podem ser estabelecimentos hoteleiros (hotéis, aparthotéis, pousadas e hotéis rurais), aldeamentos turísticos, apartamentos turísticos, conjuntos turísticos (resorts), empreendimentos de turismo de habitação, empreendimentos de turismo no espaço rural [casas de campo (que podem ser turismo de aldeia) e agroturismo] e parques de campismo e de caravanismo (arts. 4.º e 11.º a 19.º do DL 39/2008).

Os estabelecimentos de alojamento local podem ser moradias, apartamentos, quartos ou estabelecimentos de hospedagem, incluindo hostéis (art. 3.º do DL 128/2014).

Nos termos do art. 2.º do RJACSR (Regime jurídico de acesso e exercício de atividades de comércio, serviços e restauração), considera-se estabelecimento de bebidas “o estabelecimento de serviços destinado a prestar, mediante remuneração, serviços de bebidas e cafetaria no próprio estabelecimento ou fora dele” e estabelecimento de restauração “o estabelecimento destinado a prestar, mediante remuneração, serviços de alimentação e de bebidas no próprio estabelecimento ou fora dele, não se considerando contudo estabelecimentos de restauração ou de bebidas as cantinas, os refeitórios e os bares de entidades públicas, de empresas, de estabelecimentos de ensino e de associações sem fins lucrativos, destinados a fornecer serviços de alimentação e de bebidas exclusivamente ao respetivo pessoal, alunos e associados, e seus acompanhantes, e que publicitem este condicionamento”.

Inclui-se no âmbito do regime qualquer tipo de restaurante, incluindo os que funcionam apenas em sistema de take away, cafés, pastelarias, bares ou discotecas, entre outros estabelecimentos.

A obrigação, de fonte legal, mas que pressupõe, como referimos, a existência de um contrato entre as partes, consiste em disponibilizar um recipiente com água da torneira e copos não descartáveis higienizados para consumo no local.

Podemos identificar aqui vários elementos.

A água tem de ser da torneira. O estabelecimento pode disponibilizar gratuitamente água embalada aos clientes, no exercício da sua autonomia privada, mas não pode deixar de, em simultâneo, disponibilizar a água da torneira, nos termos do regime em análise. Por razões de promoção da sustentabilidade, o cliente pode preferir a água da torneira. Naturalmente, não deve ser disponibilizada água que não seja adequada ao consumo humano. Se, em determinado momento, a água da torneira não estiver em condições de ser bebida, deixa de ser exigida a sua disponibilização. O estabelecimento deve, no entanto, fazer todos os esforços para normalizar a situação o mais rapidamente possível.

Os copos têm de ser não descartáveis e estar higienizados. Assim, o estabelecimento não pode cumprir a obrigação disponibilizando copos descartáveis, nomeadamente de utilização única, tendo de garantir o serviço de lavagem regular de copos.

O sistema deve permitir o consumo no local, não bastando que o consumidor tenha acesso à água com vista ao seu consumo fora do estabelecimento. O cliente pode beber mais do que um copo de água, mas terá de utilizar o mesmo copo. É a solução mais adequada ao objetivo de promover práticas mais sustentáveis.

Pode colocar-se igualmente a questão de saber o que significa “disponibilizar” a água, ou seja, se o estabelecimento tem de ter a água (numa garrafa) ou a própria torneira e os copos em local visível e de livre acesso pelo cliente para se servir ou se basta oferecer a possibilidade de, a pedido, fornecer a água e o copo. Em estabelecimentos de restauração e bebidas com balcão e recolha dos produtos pelo cliente antes de sentar ou de consumir, será uma boa prática permitir ao cliente que se sirva livremente. Nos estabelecimentos em que os produtos são servidos diretamente na mesa (por exemplo, a maioria dos restaurantes), deve entender-se que é suficiente trazer a água e os copos quando o cliente faz o pedido. Nestes casos, deve assinalar-se que o estabelecimento, se for pedida água, deve trazer água da torneira e não uma garrafa de água. Deve, no mínimo, perguntar ao cliente o que este prefere.

Tem-se tornado comum, em especial em restaurantes, fornecer a água em recipientes de vidro do próprio estabelecimento, dando a entender, ou dizendo-o diretamente, que se trata de água da torneira com algum tratamento, nomeadamente filtragem. Esta prática pode ser problemática, na medida em que pode confundir o cliente no que diz respeito ao direito em análise neste texto. O estabelecimento tem sempre de garantir a disponibilização gratuita de água da torneira, independentemente de fornecer água filtrada a troco de um preço.

O regime não prevê um dever de informação ao cliente, por parte do estabelecimento, o que pode ser problemático. Sem informação, o exercício do direito torna-se menos provável. Como se deixou escrito ao longo do texto, exige-se do estabelecimento, no mínimo, o esclarecimento, num pedido concreto de água por um cliente, da existência da opção prevista no diploma em análise.

Não ajuda ao esclarecimento dos consumidores uma frase que consta do relevantíssimo Guia preparado recentemente pela Direção-Geral do Consumidor e pela AHRESP com “Regras e Boas Práticas na Restauração”. Na p. 12, a propósito de “Copos de água”, pode ler-se que, “caso a disponibilização do copo de água da torneira implique um serviço por parte do estabelecimento, já poderá haver lugar a cobrança, desde que tal conste da lista de preços”. A única interpretação compatível com a lei parece ser a de que se alude aqui a serviços como a filtragem da água, mas tal prática não afasta, como já se deixou dito, a obrigatoriedade de fornecer também, a título gratuito, água da torneira (ainda que não-filtrada).

O direito previsto no regime encontra-se, tal como todos os direitos, limitado pelos princípios gerais do ordenamento jurídico, nomeadamente a boa-fé ou o fim económico e social. Haverá abuso do direito se, entre outras práticas, por exemplo, o cliente pretender beber um número excessivo de copos de água, utilizar mais do que um copo por pessoa num determinado momento ou utilizar a água para uma finalidade que não seja a de beber.

Lei n.º 10/2023 completa a transposição da Diretiva (UE) 2019/2161

Doutrina

Em dezembro de 2021, o Decreto-Lei n.º 109-G/2021, de 10 de dezembro, transpôs para a ordem jurídica portuguesa uma parte significativa da Diretiva (UE) 2019/2161, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de novembro de 2019, também conhecida por “Diretiva Omnibus”, por alterar uma série de diplomas europeus em matéria de Direito do Consumo. Em texto anterior, Sofia Assunção Soares comentou aqui no blog as alterações feitas em matéria de práticas comerciais desleais.

Como se pode ler no preâmbulo do referido decreto-lei, excluiu-se então “a matéria sancionatória que se insere na reserva legislativa de competências da Assembleia da República”. Com a dissolução da Assembleia da República em dezembro de 2021, foi necessário aguardar pela nova legislatura e por um novo processo legislativo para termos a transposição completa do diploma europeu.

Este processo ficou concluído agora, com a publicação da Lei n.º 10/2023, de 3 de março, que, como indica o seu art. 1.º-a), “completa a transposição da Diretiva (UE) 2019/2161”. Além das alterações no domínio das sanções contraordenacionais, aproveitou-se para corrigir alguns problemas do anterior diploma de transposição.

São alterados cinco diplomas legais, relativos às cláusulas contratuais gerais, à indicação de preços, às práticas com redução de preços, às práticas comerciais desleais e aos contratos celebrados à distância. Com exceção deste último, nos restantes as alterações circunscrevem-se à matéria sancionatória.

Não abordo neste texto em pormenor as alterações em matéria sancionatória, mas não quero deixar de fazer duas notas sobre o assunto.

Em primeiro lugar, deve destacar-se que as sanções contraordenacionais no caso de infrações com impacto em pelo menos três Estados-Membros da União Europeia passam a ter um limite máximo das coimas correspondente a 4% do volume de negócios anual do infrator nos Estados-Membros em causa ou, se não houver essa informação, a dois milhões de euros. Sobre esta possibilidade, falámos neste texto de fevereiro de 2021. A perspetiva adotada acabou por ser minimalista, não se aproveitando a transposição da Diretiva para aumentar o valor das coimas no que respeita às restantes infrações.

Em segundo lugar, lamento que não se tenha aproveitado a oportunidade para incluir um regime sancionatório na Lei de Defesa do Consumidor. Tal regime sancionatório é imposto pelo direito europeu. Ao transpor parte das normas da Diretiva 2011/83/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Outubro de 2011, relativa aos direitos dos consumidores, na Lei de Defesa do Consumidor (v. arts. 8.º e 9.º-A), impunha-se prever consequências em caso de incumprimento das normas. As sanções contraordenacionais são uma parte muito relevantes dessas consequências. Acresce que as regras relativas ao limite máximo das coimas também têm de ser aplicadas em caso de infrações aos arts. 8.º e 9.º-A da Lei de Defesa do Consumidor (v. art. 24.º da Diretiva 2011/83/UE, na redação dada pela Diretiva 2019/2161) e não existe, de momento, base legal para a sua aplicação. Também o Decreto-Lei n.º 59/2021, de 14 de julho, que estabelece o regime aplicável à disponibilização e divulgação de linhas telefónicas para contacto do consumidor, deveria ter sido alterado, uma vez que transpõe o art. 21.º da Diretiva 2011/83/UE, alterada pela Diretiva 2019/2161. A matéria sancionatória deve, portanto, ser igualmente adaptada às alterações introduzidas por este último diploma.

Além das alterações em matéria sancionatória, a Lei n.º 10/2013 introduziu algumas modificações noutros domínios no Decreto-Lei n.º 24/2014, que regula os contratos celebrados à distância e fora do estabelecimento.

As alterações visam corrigir imperfeições na transposição, na sequência do DL 109-G/2021.

Numa técnica duvidosa do ponto de vista legístico, corrige-se o português de algumas normas. Por exemplo, o art. 4.º-B-1-b) do DL 24/2014 passa a prever que o prestador do mercado em linha tem de “identificar, de forma clara e inequívoca, as avaliações feitas em troca de algum benefício, quando disso tenha ou deva ter conhecimento”. Na versão anterior, determinava-se que tinha o dever de “identificar de forma clara e inequívoca a avaliação cujos autores tenham recebido algum benefício em troca da sua avaliação, quando disso tenha, ou deva ter, conhecimento”. Com o mesmo objetivo, v. a nova redação do art. 4.º-B-3. É pena que, por exemplo, na nova redação do art. 17.º-1-l), o português tenha sido, por sua vez, um pouco maltratado (“fornecimento, que não em suporte material, de conteúdos digitais, se a execução do contrato tiver tido início e do mesmo resultar para o consumidor a obrigação de pagar, quando (…)”).

São ainda corrigidas algumas remissões para outros artigos do mesmo diploma, as quais tinham ficado erradas na sequência do DL 109-G/2021 – v. arts. 4.º-3 e 10.º-2 e 3 do DL 24/2014. Outras correções ficaram por fazer. Por exemplo, é necessário corrigir, no art. 5.º, a remissão para o artigo anterior. O artigo anterior é o art. 4.º-B e não o art. 4.º, para o qual se pretende remeter nesse preceito.

São, no entanto, feitas duas alterações de substância ao regime, impostas pelo direito europeu.

No art. 12.º, são introduzidas normas sobre o destino dos dados que não sejam dados pessoais do consumidor em caso de este exercer o direito de arrependimento. Estas normas constavam da Diretiva 2019/2161 (alteração ao art. 13.º da Diretiva 2011/83/UE) e não tinham sido transpostas anteriormente para a ordem jurídica portuguesa. Estas normas têm paralelo no art. 36.º do DL 84/2021, a propósito da resolução do contrato de fornecimento de conteúdos ou serviços digitais em caso de desconformidade com o contrato.

No art. 4.º-1-a) do DL 24/2014, são eliminadas duas palavras (“caso existam”), mas a alteração é bastante significativa. Até agora, num contrato celebrado à distância, o profissional apenas tinha o dever de indicar o seu número de telefone e o seu endereço de correio eletrónico, caso existissem. Com a eliminação daquelas duas palavras, o profissional passa a ter de disponibilizar quer o número de telefone quer o endereço de correio eletrónico. Isto significa que deixa de ser possível ter uma atividade profissional de contratação à distância sem criar um sistema de contacto pelos consumidores por estas duas vias.

Como escrevi em texto publicado com A.R. Lodder, a solução anterior “permitiria a um empresário individual que não gostava de atender chamadas telefónicas de consumidores que encomendam online dizer que não tinha um número de telefone disponível para o seu negócio”[1]. Dá-se agora preferência à possibilidade de o consumidor tratar das questões relativas aos contratos à distância por via telefónica. Em suma, todos os profissionais que contratem à distância passam a ter de disponibilizar um número de telefone e um endereço de correio eletrónico.


[1] A.R. Lodder & Jorge Morais Carvalho, “Online Platforms: Towards an Information Tsunami with New Requirements on Moderation, Ranking, and Traceability”, in European Business Law Review, Vol. 33, n.º 4, 2022, pp. 537-556, p. 542.

Tsunami informativo, falta de leitura pelo consumidor e encargo pesado para as empresas

Doutrina

Em 2022, publiquei com A.R. Lodder, Professor da Vrije Universiteit Amsterdam (Países Baixos), o texto Online Platforms: Towards an Information Tsunami with New Requirements on Moderation, Ranking, and Traceability. Este artigo foi escrito no âmbito das atividades do Jean Monnet Centre of Excellence ‘Consumers and SMEs in the Digital Single Market (Digi-ConSME)’, dirigido pelo Professor Federico Ferretti, da Unidade de Bolonha.

Nos dias 2 a 4 de fevereiro de 2023, realizou-se o evento de encerramento do projeto, no qual participaram, além dos investigadores que contribuíram para as atividades do Centro, representantes das instituições europeias e de associações de consumidores e de pequenas e médias empresas.

O Professor Hans-Wolfgang Micklitz fez uma intervenção inicial desafiante, na qual identificou a crescente fragmentação do Direito do Consumo, por via de uma distinção cada vez maior entre consumidores, nomeadamente por meio da identificação de diferentes vulnerabilidades. Colocou, nomeadamente, a questão de saber se o conceito de pessoa jurídica, inexistente no Direito da União Europeia, está a ser preenchido por esta via.

No evento final, A.R. Lodder e eu apresentámos algumas conclusões do nosso trabalho.

Partimos de três pressupostos de base:

  1. Ninguém[1] lê os chamados “terms and conditions”, ou seja, a lista de cláusulas contratuais gerais constante de todos os sites e plataformas;
  2. O número de elementos de informações que deve ser incluído no processo de contratação pelo profissional e pela plataforma é cada vez mais abundante;
  3. É difícil para o profissional e para plataforma cumprir os deveres de informação, pois é difícil que, com tantos elementos de informação para transmitir, a informação possa ser clara e compreensível, como a lei exige.

A conclusão é a de que o sistema vigente não é bom nem para os consumidores, que não têm acesso efetivo à informação, nem para as empresas, que têm um encargo pesado e, na prática, impossível de cumprir, pois (quase) nenhum consumidor que use de comum diligência, adaptando a expressão constante do regime português das cláusulas contratuais gerais, toma conhecimento da informação em causa.

Coloca-se então a questão de saber se se pretende que a informação seja realmente dirigida ao consumidor concreto que está diante do profissional ou da plataforma, com vista a dela tomar conhecimento efetivo.

Temos de concluir que não, tendo em conta os três pressupostos enunciados. Os interesses dos consumidores podem ser indiretamente protegidos se considerarmos que em muitos casos o objetivo é, por um lado, obrigar o profissional a pensar sobre os assuntos em causa e ter de assumir por escrito a perspetiva adotada e, por outro lado, permitir o controlo por parte das entidades fiscalizadoras e reguladoras e o private enforcement, através de ações coletivas.

Torna-se então necessário distinguir entre elementos de informação que

  • têm de ser apresentados ao consumidor em destaque e no momento específico em que a questão se coloca; e
  • outros que podem sê-lo apenas nos chamados “terms and conditions”.

Garante-se, relativamente a estes últimos, (i) que a empresa tem uma política sobre o tema em causa, (ii) que ficam disponíveis para qualquer consumidor interessado, sendo que a maioria dos consumidores não está interessada, e (iii) que podem ser fiscalizados pelas entidades de supervisão e por associações de consumidores.

Por exemplo, no Digital Services Act (Regulamento dos Serviços Digitais), os novos elementos de informação relacionados com moderação de conteúdos (art. 14.º) e rastreabilidade dos profissionais (art. 30.º) estão no segundo grupo, enquanto parte dos relativos a publicidade (art. 26.º) e sistemas de recomendação (art. 27.º) estão no primeiro. Ficam aqui algumas ideias para reflexão e discussão. Embora o tema esteja longe de ser novo, parece não haver, em especial da parte das instituições europeias, vontade de fazer as mudanças necessárias para ajustar o direito à realidade.


[1] Digamos “quase ninguém”, por precaução (científica). Desde logo, leem os juristas que elaboram as cláusulas e os que pretendem, em caso de litígio, colocá-las em causa.

Prazo para a reparação ou substituição ao abrigo da garantia legal

Doutrina

Sobre este tema, veja, com mais aprofundamento, a obra do autor do texto “Compra e Venda e Fornecimento de Conteúdos e Serviços Digitais – Anotação ao Decreto-Lei Nº 84/2021, de 18 de Outubro”, disponível aqui.

Em caso de uma falta de conformidade do bem com o contrato que se manifeste dentro do período de responsabilidade do profissional, o consumidor tem direito à reposição da conformidade, através de reparação ou de substituição (art. 15.º-1 do DL 84/2021).

Segundo o art. 18.º-1-a), a reparação ou a substituição deve ser efetuada a título gratuito, ou seja, nos termos do art. 2.º-a), “livre dos custos necessários incorridos para repor os bens em conformidade, nomeadamente o custo de porte postal, transporte, mão-de-obra ou materiais”. A lista não é exaustiva, pelo que outras despesas relativas à reposição da conformidade do bem, como custos com peritagens ou avaliações, devem considerar-se incluídas. Portanto, o consumidor não tem de pagar qualquer valor pela reparação, incluindo os custos do transporte do bem para o vendedor.

Nos termos do art. 18.º-2-b), a reparação ou a substituição deve ser efetuada num prazo razoável, ou seja, o “mais curto prazo necessário para a sua conclusão” (considerando 55 da Diretiva 2019/771).

Nesse mesmo considerando, pode ler-se que “os Estados-Membros deverão poder interpretar o conceito de prazo razoável para a conclusão da reparação ou da substituição, prevendo prazos fixos que podem ser geralmente considerados razoáveis para a reparação ou substituição, em especial no que respeita a categorias específicas de produtos”.

Utilizando esta possibilidade, prevê-se no art. 18.º-3 que “o prazo para a reparação ou substituição não deve exceder os 30 dias, salvo nas situações em que a natureza e complexidade dos bens, a gravidade da falta de conformidade e o esforço necessário para a conclusão da reparação ou substituição justifiquem um prazo superior”.

Esta norma é particularmente infeliz. Sob a aparência de melhorar a posição do consumidor, por se prever um prazo fixo, vem, na verdade, apresentar-se esse prazo como mínimo, permitindo a sua extensão nas situações aí indicadas. Na verdade, pouco se acrescenta em relação à cláusula geral do prazo razoável, que perde efeito. Temos dúvidas, até, que, na Diretiva, se esteja a pensar em prever simultaneamente a cláusula do prazo razoável e a previsão de um prazo fixo.

Os profissionais que não pretendam cumprir o prazo de 30 dias irão sempre invocar uma das exceções constantes do preceito, o que irá também aumentar consideravelmente a litigiosidade.

É, no entanto, necessário ter em conta um requisito adicional relativo à reposição da conformidade que pode limitar os efeitos negativos para o consumidor de uma reparação ou de uma substituição mais prolongada no tempo.

Assim, a reparação ou a substituição deve ser efetuada também, como prevê o art. 18.º-2-c), “sem grave inconveniente para o consumidor, tendo em conta a natureza dos bens e a finalidade a que o consumidor os destina”.

A concretização do conceito indeterminado de “grave inconveniente” deve ter em conta o caso concreto, relevando, nomeadamente, circunstâncias relativas à relação entre o consumidor e o bem.

A reposição da conformidade terá de ser feita em menos de 30 dias se o consumidor tiver um grave inconveniente com a reparação ou a substituição nesse prazo. É o que sucederá na generalidade dos casos.

Causa grave inconveniente ao consumidor não ter telemóvel durante 30 dias? À partida, se não tiver outro, a resposta será positiva. Isto significa que a reposição da conformidade em 30 dias não cumpre os requisitos previstos na lei. Na verdade, ficar sem telemóvel por mais de um ou dois dias já causará grave inconveniente a um consumidor normal. Isto significa que, em regra, um ou dois dias é o prazo máximo para a reparação ou a substituição do telemóvel sem ser causado um grave inconveniente ao consumidor. Estas observações valem para a generalidade dos bens, relembrando-se que a análise deve ser feita em concreto.

O profissional poderá utilizar, ainda assim, o tempo razoável para as operações de reparação ou de substituição, mas tem de fazer alguma coisa para que o consumidor não tenha um grave inconveniente. A solução mais adequada, nestes casos, passa pela disponibilização de um bem de substituição que satisfaça as necessidades do consumidor enquanto o bem reparado ou o novo bem não é entregue.

A ausência de reposição da conformidade a título gratuito, num prazo razoável (em princípio, 30 dias) e sem grave inconveniente para o consumidor, além de constituir ilícito contraordenacional, nos termos do art. 48.º-1-d), permite ao consumidor exercer de imediato o direito à redução do preço ou de resolução do contrato, como prevê o art. 15.º-4-a)-ii). Refira-se ainda que, segundo o art. 16.º, “nos casos em que a falta de conformidade se manifeste no prazo de 30 dias após a entrega do bem, o consumidor pode solicitar a imediata substituição do bem”. Neste caso, a substituição deve ser imediata, não se permitindo sequer ao profissional avaliar previamente a existência de falta de conformidade. Essa avaliação terá de ser feita apenas posteriormente.