Jogar Sai Caro: A Manipulação Silenciosa dos Preços nos Videojogos

Doutrina

Por Leonor Gomes Martins e Tiago Ribeiro Longa

Numa era fortemente marcada pela digitalização, é compreensível que o elevado consumo de videojogos seja uma tendência crescente. A nível europeu, mais de metade dos consumidores jogam videojogos regularmente, sendo que as crianças jogam ainda mais, com 84% dos jovens entre os 11 e 14 a fazê-lo.

No passado dia 12 de setembro de 2024, o BEUC e outras 22 organizações membros de 17 países apresentaram uma queixa às autoridades europeias (Comissão Europeia e a CPC-Network – Consumer Protection Cooperation Network) sobre as práticas comerciais desleais das principais empresas de jogos online, como a Electronic Arts, a Epic Games e a Mojang Studios, responsáveis por jogos como EA Sports FC, Minecraft e Fortnite. A base da queixa assenta no facto de os consumidores não terem uma perceção clara do custo real dos itens digitais, o que acaba por levar a gastos excessivos. Desta forma, a ausência de transparência nos preços das moedas premium nos jogos (itens digitais, como jóias, pontos ou moedas, que podem ser comprados com dinheiro real, geralmente nos próprios jogos) e as “promoções” de moedas adicionais em pacotes incentivam os consumidores a gastar mais do que pretendem.

Ao visitar uma loja dentro do jogo para verificar as compras disponíveis, os consumidores costumam encontrar os preços apenas nas moedas utilizadas no próprio jogo, sem qualquer indicação do custo em dinheiro real, isto é, a informação sobre os preços efetivos não está acessível, exceto quando se adquirem moedas virtuais premium, o que constitui violação das leis de proteção do consumidor da União Europeia.

Esta prática cria um distanciamento entre o verdadeiro gasto de dinheiro real da ação de obter o item do jogo, o que torna desnecessariamente difícil para o jogador consumidor saber o custo monetário exato do que está a comprar (a título exemplificativo, podemos afirmar que um preço de 1.000 X – moeda fictícia – é significativamente menos concreto do que 10€).

Consequentemente, com este afastamento, as empresas de jogos conseguem reduzir a chamada “dor de pagar” (refere-se aos sentimentos negativos que as pessoas sentem ao gastar dinheiro) para os consumidores, diminuindo o seu limite, e aumentando a sua disposição para gastar. Este fenómeno é documentado por estudos recentes, que revelaram que o uso de moedas premium aumentou os gastos dos consumidores nos jogos, e que 92,3% dos jogadores que fizeram compras num jogo por meio de moedas virtuais e moedas reais declararam que era mais doloroso pagar em moeda real do que em moeda virtual.

Embora muitos consumidores escolham não usar dinheiro real nestes jogos, a introdução de moedas premium pode ser usada para explorar pessoas em situações vulneráveis, como aquelas com dependência de jogo, dificuldades em controlar impulsos, ou crianças. Os jogos “free to play” atraem especialmente estas últimas, já que não exigem uma compra inicial por parte dos pais. Esta barreira de entrada baixa deixa as crianças mais expostas a práticas manipuladoras incorporadas em diversos jogos.

Apesar da ausência de uma legislação específica na União Europeia para jogos e aplicações, o quadro legal atual garante uma proteção abrangente aos consumidores, incluindo a indústria dos videojogos.

Assim, no âmbito do direito substantivo, a Diretiva sobre os Direitos dos Consumidores, no artigo 6.º-1-a), transposto para o nosso ordenamento jurídico pelo Decreto-Lei n.º 24/2014) e a Diretiva relativa às Práticas Comerciais Desleais, no artigo 7.º-4 (transposto pelo Decreto-Lei n.º 57/2008), que são totalmente aplicáveis aos setores em causa, estabelecem que os consumidores devem ser devidamente informados acerca de elementos essenciais e pertinentes antes de celebrarem um contrato. Entre os dados que devem ser comunicados, destaca-se o preço efetivo do produto ou serviço que se pretende adquirir, informação que não está presente em muitas destas lojas virtuais. Por outras palavras, as compras dentro dos jogos deveriam ser sempre apresentadas em dinheiro real (por exemplo: euros), ou, pelo menos, indicar claramente a equivalência em moeda real. Se por alguma razão o preço não puder ser calculado razoavelmente com antecedência, deve estar indicado como é que este o será, caso contrário configura uma omissão enganosa à luz do regime das práticas comerciais desleais. O quadro jurídico europeu já prevê a proteção dos direitos dos consumidores, mas é essencial que as autoridades e reguladores adaptem essas normas às novas realidades digitais, promovendo um ambiente de jogo mais justo e transparente, uma vez que esta é uma prática recorrente e antiga. Só assim será possível proteger os jogadores, especialmente as crianças, e garantir que a indústria dos videojogos evolui de forma responsável e ética, sem colocar em risco o bem-estar financeiro dos seus consumidores.

Estará a sua trolley bag pronta para descolar consigo sem surpresas na fatura?

Jurisprudência, Uncategorized

No passado dia 10 de setembro de 2024, o Tribunal Judicial da Comarca de Braga [1](“Tribunal de Braga”) foi notícia com uma decisão pioneira proferida a propósito do pagamento de valores adicionais para o transporte de trolley bags na cabine. Na base do litígio está um contrato de prestação de serviços de transporte aéreo. A consumidora foi forçada a adquirir os serviços de embarque prioritário e de reserva de lugar, apesar de não os pretender, somente para poder transportar consigo a sua trolley bag, com dimensões até 55x40x20 cm. Com a tarifa normal, este transporte não era permitido, tendo assim pagado um valor suplementar de € 23,50 para o segmento de voo entre o Porto e Bergamo e de € 33 para o segmento de voo entre Bergamo e o Porto.

Para resolver a questão de saber se a companhia aérea pode cobrar um valor suplementar pelo transporte da sua bagagem de mão (ou seja, as malas ou mochilas de pequenas dimensões em que o passageiro transporta normalmente a sua roupa e outros objetos pessoais), que, devido às suas reduzidas dimensões e peso, o passageiro decidiu não registar e levar consigo a bordo do avião, nos compartimentos superiores habilitados para o efeito, o tribunal começa por recorrer ao art. 2.º-1 do Regulamento (CE) n.º 1008/2008, que permite às companhias aéreas fixarem livremente tarifas, entendidas como aquilo que a companhia aérea cobra pelo transporte de passageiros. Adicionalmente, o art. 2.º-18 estabelece os preços dos serviços aéreos e as condições de fixação desses preços.

O Tribunal de Braga baseia grande parte da sua argumentação no acórdão do TJUE, proferido no caso Vueling Airlines (C-487/12), a 18 de dezembro de 2014, no qual se estabelece, nos considerandos, que deve ser feita uma distinção entre bagagem registada e bagagem não registada. No entender do TJUE, a “bagagem registada” é a bagagem que é transportada no porão da aeronave, relativamente à qual se considerou que não se trata de um serviço obrigatório ou indispensável para o transporte de passageiros, e por essa razão as companhias aéreas podem cobrar um valor suplementar sobre o preço do bilhete, com base no princípio da liberdade de preços. No que diz respeito à “bagagem de mão” ou a “bagagem não registada”, foi considerada um elemento indispensável do transporte aéreo e, por conseguinte, a companhia aérea seria obrigada a transportá-la sem poder exigir ao passageiro um valor adicional sobre o preço do bilhete.

A razão que justifica a distinção está relacionada com a circunstância de a bagagem faturada implicar um acréscimo de custos para o transportador aéreo: aumento do consumo de combustível em virtude do aumento do peso, custos de pessoal com a equipa necessária em terra nos mostradores de faturação, custos com as empresas de manuseio, a acrescer à responsabilidade de assumir, vigiar e cuidar da bagagem do passageiro até que esta lhe seja entregue no destino final.

Note-se, no entanto, que, no Acórdão Vueling Airlines, não estava em causa o transporte de bagagem de mão, mas uma lei espanhola que proibia a cobrança de um valor pela bagagem registada. O TJUE considerou que essa lei era contrária ao direito europeu, parecendo abrir a porta, com a argumentação exposta nos parágrafos anteriores, à possibilidade de uma norma de um Estado-Membro que proíba a cobrança pela bagagem de mão. Na ausência de uma norma nacional nesse sentido, não estamos certos de que se possa retirar do acórdão a conclusão de que o TJUE considera que é proibido cobrar pela bagagem de mão face ao Regulamento 1008/2008.

Ao analisar a legislação nacional de proteção do consumidor, o Tribunal de Braga acaba por concluir que a prática em causa viola um conjunto muito alargado de normas quer da Lei de Defesa do Consumidor quer do Decreto-Lei n.º 57/2008 (práticas comerciais desleais). A referência em bloco a uma série de preceitos fragiliza um pouco a argumentação. Concordo, no entanto, com a decisão, especialmente porque a informação não foi prestada à consumidora de forma clara, objetiva e transparente. Assim, não pôde tomar uma decisão livre, esclarecida e consciente quanto a transportar consigo a sua trolley bag, tendo sido surpreendida com um custo que não se encontrava previsto e forçada a adquirir serviços adicionais, apenas com o objetivo de levar consigo a bordo a sua companheira de viagem. Veremos qual será a evolução da questão após esta decisão e o seu efeito mediático, sendo certo que não é claro se, cumpridos todos os requisitos de informação, e sendo a oferta totalmente transparente, poderá ser cobrado um valor.


[1] Sentença Judicial, Processo n.º 87/24.0T8BRG, Juiz de Direito: Bruno António Oliveira Mestre.

The EU Deforestation Regulation Through the Consumer Lens

Doutrina

On 21st March, the first day of spring, we celebrate the International Day of Forests. This is an important occasion to be reminded of the role that forests play on our planet. Forests are unique ecosystems that help preserve natural biodiversity while acting at the same time as carbon sinks. However, over the last decades forest loss and degradation have progressed at unprecedented rates, mainly because of human- induced activities. In this context, agricultural practices such as rearing of livestock and crop cultivation are often singled out as one of the main culprits of forest conversion into commercially exploited land.

Concerned by the negative environmental consequences of forest loss and degradation in terms of biodiversity preservation and climate change, some countries that are large consumers of products associated with deforestation passed – or are considering introducing – legislative measures to halt it. This is the case of the European Union (EU), which is the very first jurisdiction in the world that laid down an ad hoc legal framework addressing deforestation driven by agricultural expansion.

Regulation (EU) 2023/1115 – also known as EUDR (i.e., EU Deforestation Regulation) – represents the reference legal text on the subject matter. The latter provides for a complex set of mandatory due diligence requirements for producers and traders of specific commodities and derived products that are mostly associated with deforestation. Currently, the EUDR targets largely traded food and feed products such as meat, coffee, cocoa (including chocolate), soy, palm oil as well as other common goods such as wood and rubber.

Businesses affected by the EUDR requirements are currently working to implement their due diligence systems by the end of the year when the regulation becomes applicable. Such systems are meant to guarantee that no product contributing to deforestation is placed on the EU market or exported from the EU to other countries.

Overall, the implementation process of the EUDR has been quite complex for concerned companies,  warranting the adoption by the European Commission of an extensive guidance document in the form of Frequently Asked Questions. Likewise, various trading partners of the EU have repeatedly raised concerns over EUDR impact on international trade during its negotiations and even more now that the EU should classify them based on the deforestation risk they present.

Yet, even though the EUDR is often portrayed as an instrument through which sustainable consumption practices can be promoted, consumers deserve little or no attention in the current text of the regulation. If one searches for the word ‘consumers’ within the EUDR, it will be immediately evident that such references are scant, marginal (as they mostly feature in the recitals of the regulation), and never employed by the EU legislator to ensure the high level of consumer protection pursued by the EU Treaties.

Against this background, one might wonder whether, ultimately, the EUDR will have any implications for European consumers.

In my view, this question should be responded affirmatively although a distinction needs to be made between economic and legal implications.

EUDR economic implications for consumers are obvious. Most likely, the costs of the investments needed to set up and operate the due diligence systems required by the EUDR will be eventually passed onto consumers. Besides, the EUDR may also have the (unintended) effect of restricting consumer choice in case, faced with difficulties in ensuring the sourcing of deforestation-free products, companies decide to suspend or even stop supplies.

Conversely, EUDR legal implications for consumers are less obvious. This is because they become apparent only if one considers the interplay of EUDR provisions with other EU legal acts. The joint reading of the EUDR alongside Regulation (EU) No 1169/2011 on the provision of food information to consumers and Directive 2005/29/EC, which regulates unfair commercial practices in a B2C context  (‘UCPD’), represents one of the most interesting examples to showcase this.

Indeed, companies that are subject to the EUDR and comply with its requirements, at some point, might wish to capitalize the investments made in due diligence and communicate their efforts to consumers. Therefore, the question that here arises is whether a claim like ‘deforestation-free’ or with a similar meaning (e.g., ‘no deforestation’, ’zero deforestation’, etc.) can be made on EUDR-compliant products to appeal to the most environmentally conscious consumers.

In principle, for food products like coffee, cocoa, meat, and palm oil, Regulation (EU) No 1169/2011 already provides an answer to that question by setting out that ‘food information shall not be misleading, particularly […] by suggesting that the food possesses special characteristics when in fact all similar foods possess such characteristics  […]’ (Article 7, par. 1, lett. c)). In other words, since all food products targeted by the EUDR will have to comply with its requirements when placed on the EU market with no exceptions, all of them will be deforestation-free. Therefore, no company will be able to communicate, in a B2C context, that it complies with EUDR requirements as a distinctive feature of its products, as opposed to the products sold by its competitors, because, otherwise, such information might mislead consumers.

For goods other than food products, a similar principle has been recently introduced within the UCPD regime through the adoption of Directive (EU) 2024/825. The latter, together with the European Commission’s Proposal for a Green Claims Directive, constitutes a key legal instrument to strengthen consumers protection against greenwashing in the EU. More precisely, the latest UCPD amendment has broadened the list of B2C marketing practices that are prohibited in all circumstances by including the situation in which a trader presents ‘requirements imposed by law on all products within the relevant category as a distinctive feature of its offer’. Owing to the mandatory nature of EUDR requirements for all the commodities and derived products identified by the regulation, this provision significantly limits the possibility for businesses to make deforestation-free marketing claims.

Then, if such claims will not be allowed on commodities and products targeted by the EUDR, will companies have any chance to communicate their commitments and achievements in the fight against forest loss and degradation?

Once again, it is not the EUDR to give us the answer we look for, but the UCPD as amended by Directive (EU) 2024/825. The latter provides for an outright ban on the display of ‘sustainability labels’ on consumer goods, unless such labels are granted and regulated by public or private independent certification schemes, whereas the notion of ‘sustainability label’ encompasses labels, logos and other graphic forms that allude to the environmental and/or social characteristics of a product. Therefore, for what matters here, labels awarded by certification schemes that focus on the responsible forest management might well qualify as ‘sustainability labels’ under EU law. At present, such labels seem to be one of the few legitimate ways that companies have at their disposal to inform consumers about their corporate efforts in the fight against deforestation.

In conclusion, B2C communication has certainly not been given sufficient attention during the elaboration and the implementation of the EUDR. This is quite striking if one considers that, on the other hand, the regulation provides for the naming and shaming of companies infringing its requirements at EU level, which may cause them considerable reputational damages including among consumers.   However, looking ahead, at some point the EU legislator should take stock of the experience gained with the application of the EUDR and consider if deforestation-related claims may warrant any specific regulation or guidance to ensure consumers are adequately protected and businesses operate on a level playing field in the EU market.

O vinho mais barato da carta

Doutrina

Em muitos restaurantes, ocorre um fenómeno estranho que consiste na rutura de stock da garrafa de vinho mais barata da carta. O cliente, ao pedir essa garrafa de vinho, é informado de que esta não se encontra disponível, tendo de escolher outra. Por vezes, essa informação é acompanhada de uma sugestão de outra garrafa de vinho, normalmente sem indicação do respetivo preço[1]. Veremos neste texto se estas práticas são lícitas, à luz dos princípios da transparência e da lealdade.

A apresentação de uma lista ou carta com a indicação da comida e das bebidas constitui uma proposta contratual apresentada pela entidade gestora do restaurante (que designaremos simplesmente por restaurante) ao cliente. O restaurante fica numa situação de sujeição e o cliente tem o direito potestativo de fazer um pedido consistente com a informação constante da carta, pedindo o que aí estiver indicado. Se o cliente pedir uma garrafa de vinho constante da carta, celebra-se então um contrato relativo a essa garrafa. Este contrato é um contrato misto, pois inclui, além da própria garrafa (objeto principal do contrato, que aponta no sentido de se tratar de um contrato essencialmente de compra e venda), o serviço associado à sua abertura e, por vezes, à colocação nos copos, o aluguer dos copos e tudo o que está subjacente à utilização do espaço (utilização das cadeiras e da mesa, música, etc.). Celebrado o contrato, o restaurante tem de fornecer a garrafa de vinho. Se se recusar a fazê-lo, haverá incumprimento da obrigação por parte do restaurante.

O restaurante pode incluir na carta a indicação de que o vinho não se encontra disponível. Pode haver um risco ou uma cruz ao lado ou por cima da garrafa de vinho em causa. Neste caso, a proposta não inclui essa garrafa de vinho, não se desencadeando os efeitos referidos no parágrafo anterior. Se não for incluída essa informação, poderá ainda considerar-se a possibilidade de uma rutura de stock. No entanto, para que o argumento da rutura de stock seja eficaz, legitimando a conduta do restaurante, é necessário que tal tenha sucedido imediatamente antes do pedido, não tendo dado tempo para, antes da disponibilização da lista, ser incluída a informação referida no início deste parágrafo.

Antes da celebração do contrato, o restaurante deve informar o consumidor sobre os bens e serviços fornecidos e o respetivo preço, nos termos do art. 8.º da Lei de Defesa do Consumidor. Essa informação pode constar da carta, mas a norma não será cumprida se, apresentada a carta, não houver indicação clara relativamente a objetos indisponíveis. Acresce que, qualquer sugestão feita oralmente pelo representante do restaurante, deve igualmente, nos termos da mesma norma, ser acompanhada da informação relativa ao preço. A omissão do preço, ainda que este conste da lista, constitui uma violação do art. 8.º da Lei de Defesa do Consumidor.

Esta prática coloca ainda em causa o princípio da lealdade. Isto porque pode ser suscetível de levar o cliente a adquirir uma garrafa de vinho mais cara do que aquela que pretendia inicialmente.

Aplica-se, então, o regime das práticas comerciais desleais (DL 57/2008).

Podemos estar perante uma omissão enganosa (arts. 9.º e 10.º), por faltar, pelo menos, uma informação essencial para a decisão de contratar do consumidor: a indicação da inexistência do bem. Como indicado anteriormente, poderá faltar igualmente outro elemento essencial: o preço da garrafa de vinho sugerida pelo restaurante.

A prática pode igualmente consubstanciar uma ação enganosa. Com efeito, nos termos do art. 8.º-e), é proibida a prática que consiste em “propor a aquisição de bens ou serviços a um determinado preço sem revelar a existência de quaisquer motivos razoáveis que o profissional possa ter para acreditar que não pode, ele próprio, fornecer ou indicar outro profissional que forneça os bens ou serviços em questão ou equivalentes, àquele preço (…)”. A alínea f) proíbe ao profissional “propor a aquisição de bens ou serviços a um determinado preço e, com a intenção de promover um bem ou serviço diferente, recusar posteriormente apresentar aos consumidores o bem ou o serviço publicitado”.

Para a aplicação destas alíneas, é necessário que a prática seja intencional, ou seja, que haja uma estratégia no sentido de levar o consumidor a, no caso, adquirir uma garrafa de vinho mais cara. A circunstância de a garrafa mais barata não estar muitas vezes disponível aponta nesse sentido, mesmo quando o menu indica que a garrafa está temporariamente indisponível, se de facto estiver excecionalmente disponível[2].

Havendo uma prática comercial desleal, o restaurante está sujeito à aplicação de sanções contraordenacionais (art. 21.º). O consumidor pode pedir o livro de reclamações para dar a conhecer a prática à ASAE.

O consumidor tem ainda direito à redução adequada do preço ou à resolução do contrato ou a exigir uma indemnização do restaurante. A resolução do contrato, após ter consumido a garrafa de vinho, parece constituir uma situação de abuso do direito. É mais equilibrada, tendo em conta a situação, a redução adequada do preço, para o preço da garrafa mais barata pedida num primeiro momento, em especial nos casos em que o consumidor não tenha sido informado adequadamente do preço da nova garrafa. O risco de ter sido feita uma sugestão de uma garrafa muito mais cara correrá, assim, por conta do restaurante, o que parece ser uma solução ajustada aos valores subjacentes ao caso.


[1] Este tema já foi discutido aqui no blog no texto “A Garrafa de Vinho mais Cara do que o Jantar”. Nesse caso, o cliente não tinha chegado a ver a lista, tenho sido sugerido pelo representante do restaurante que a refeição fosse acompanhada por um Barca Velha. Também aí se concluiu, como neste texto, que a redução adequada do preço é a solução mais equilibrada.

[2] Num contexto diferente, descreve-se a prática identificada, em Espanha, no sentido de indicar que o terminal de pagamentos se encontra avariado para forçar os consumidores a pagar com dinheiro. A circunstância de o aviso de avaria do terminal estar plastificado e apresentar sinais da passagem do tempo aponta claramente no sentido de que se trata, não de um problema temporário, em vias de resolução, mas de uma prática intencional de forçar o pagamento em notas e moedas.

TOI Story: Crónicas de uma Desvinculação

Consumo em Ação

Por Guilherme Bica Vicente, João Maria Dias e Sara de Almeida Patrício Mendes

Caso prático: No dia 1 de fevereiro, António recebeu uma chamada de um representante da TOI propondo-lhe a celebração de um contrato de prestação de serviços de comunicações eletrónicas incluindo internet, televisão, telefone e telemóvel.

Foi ainda informado de que, se aderisse de imediato, receberia totalmente grátis um telemóvel iCoiso XII, sendo a instalação do serviço (estimada pela empresa em € 300) também oferecida. O valor mensal seria, neste caso, de € 120, com um período de fidelização de 24 meses.

António aceitou de imediato. Recebeu, cinco minutos depois, uma mensagem SMS com a referência ao acordo e um pedido para confirmar se realmente pretendia aderir. António respondeu dizendo que sim.

No dia seguinte (2 de fevereiro), a TOI foi a casa de António instalar o serviço e este ficou operacional. No dia 8 de fevereiro, o telemóvel foi entregue também na casa de António. António reparou que se tratava de um iCoiso X (e não de um iCoiso XII conforme prometido). Estava tão atarefado que decidiu que reclamaria mais tarde.

No dia 21 de fevereiro, António ficou desempregado. Pretende reduzir despesas, pelo que o/a contactou nesse mesmo dia para saber se tem alguma forma de se desvincular do contrato celebrado com a TOI sem o pagamento de qualquer valor.

Resolução: Em primeiro lugar, cumpre fazer o enquadramento jurídico do contrato celebrado para depois invocar os diplomas de Direito do Consumo que são relevantes para o caso sub judice.

Ora, neste caso, estamos perante a celebração entre António (doravante “A”) e a TOI de um contrato misto com elementos de prestação de serviços/empreitada (em relação ao serviço de internet, da televisão e do telefone e respetiva instalação), de compra e venda (em relação ao telemóvel) e de locação (quanto aos bens associados aos serviços prestados – box, router, telefone fixo).

Por sua vez, trata-se de um contrato com período de fidelização, muito frequente no que respeita a contratos de comunicações eletrónicas, e que corresponde ao “período durante o qual o utilizador final se compromete a não denunciar um contrato ou a não alterar as condições acordadas” [art. 3.º, n.º 1, al. ee), da Lei n.º 16/2022, de 16 de agosto].

Nos termos da Lei n.º 16/2022, só é possível estabelecer-se períodos de fidelização mediante a atribuição de vantagens específicas ao consumidor (art. 131.º, n.º 4), que, neste caso, são, por um lado, a oferta do serviço de instalação (no valor de €300) e, por outro, a entrega “gratuita” de um telemóvel iCoiso XII.

No respeitante à oferta do telemóvel, desde logo, é importante esclarecer que, por muito que a TOI anuncie ao A que este irá receber o mesmo de forma totalmente gratuita, tal não significa que estejamos perante um negócio de doação que mereça autonomização.

Isto porque o consumidor não deixa de ter de pagar um preço para aceder ao conjunto de benefícios contratados (onde se inclui o telemóvel). Assim, a partir do momento em que A tem de pagar uma mensalidade de €120 durante 24 meses para que lhe seja entregue o telemóvel, não existe qualquer liberalidade.

Trata-se também de um contrato de adesão, na medida em que implica a aceitação por A de um conjunto de cláusulas não negociadas, predispostas unilateralmente pela TOI, pelo que o Decreto-Lei n.º 446/85 será também relevante.

Releva desde logo o Decreto-Lei n.º 84/2021, sendo que a sua aplicação (e dos demais diplomas) está dependente da circunstância de podermos classificar esta relação contratual como sendo uma relação de consumo. Olhando para a alínea g) do art. 2.º-A, é com efeito um consumidor ao abrigo deste diploma: trata-se de uma pessoa singular (elemento subjetivo) que celebra um contrato objetivamente abrangido pelo diploma e que atua com fins não-profissionais (elemento teleológico). Dada a informação da hipótese, é seguro assumir que os serviços e bens contratados são para uso doméstico.

Por sua vez, para compreender o elemento objetivo, devemos atender ao art. 3.º, n.º 1, alíneas a) e b). Daí, resulta que estão abrangidos os “contratos de compra e venda celebrados entre consumidores e profissionais” [al. a)] e os “bens fornecidos no âmbito de um contrato de empreitada ou de outra prestação de serviços (…)” [al. b)]. Dito isto, o diploma é também aplicável aos bens fornecidos pela TOI como resultado dos serviços prestados, (router, box, telefone, entre outros). Já no que respeita à entrega do telemóvel, a conclusão de que este não se trata de um negócio gratuito autónomo permite a sua inclusão na alínea a) deste art. 3.º. Por fim, temos de averiguar se a TOI pode ou não ser considerada profissional nos termos da al. o) do art. 2.º (elemento relacional). Com a informação de que dispomos, tudo indica que a TOI se dedica à prestação deste tipo de serviços, atuando assim no âmbito da sua atividade profissional.

Concluímos, então, pela existência de uma relação de consumo nos termos do DL 84/2021. Por sua vez, sabemos que este diploma só se aplica aos contratos celebrados após 1 de janeiro de 2022, sendo que os negócios celebrados em data anterior continuam a ser regidos pelo já revogado Decreto-Lei nº 67/2003. Não tendo informação específica sobre o ano em que o contrato foi celebrado, vamos assumir que as datas mencionadas se referem ao presente ano de 2023. Assim, tendo o contrato sido celebrado a 1 de fevereiro de 2023, o DL 84/2021 é aplicável.

Estamos ainda perante um contrato celebrado por via telefónica, na sequência de um contacto promovido pela TOI, pelo que devemos ter também em conta o Decreto-Lei nº 24/2014.

Em primeiro lugar, no que se refere à definição dos elementos que compõem a relação de consumo, o DL 24/2014 aproxima-se do DL 84/2021, como podemos ver no art. 3.º, alíneas e) e n), do primeiro. Logo, os elementos subjetivo, teleológico e relacional estão também preenchidos no que toca a este novo diploma, sendo que só em relação ao elemento objetivo é que existem algumas particularidades, dada a natureza dos contratos que se incluem no âmbito objetivo de aplicação do diploma.

Em termos de âmbito de aplicação objetivo, este contrato é um contrato celebrado à distância (art. 2.º, n.º 1, do DL 24/2014). Isto porque se enquadra na definição prevista pela alínea h) do art. 3.º: além de o consumidor e o representante da TOI estarem fisicamente em locais diferentes, são utilizadas duas técnicas de comunicação à distância até à celebração do contrato (chamada telefónica e SMS). Por último, é necessário também que o contrato tenha tido por base um “sistema de venda ou prestação de serviços organizado para o comércio à distância”. Ora, o facto de o primeiro contacto ter partido do profissional por aquele canal específico é indicativo de que, à partida, se trata de uma forma utilizada pela TOI para contratar com os seus clientes.

Assim, concluímos que estamos perante um contrato celebrado à distância nos termos do DL n.º 24/2014 e que este diploma é aplicável.

Finalmente, a natureza dos serviços prestados pela TOI é relevante. Com efeito, os serviços de comunicações eletrónicas são abrangidos especificamente pela Lei n.º 23/96, nos termos do seu art. 1.º, n.º 2, al. d). De facto, o conceito de “comunicações eletrónicas” referido na lei é bastante amplo, incluindo a prestação de todo um conjunto de serviços que, na prática social, costumam ser contratados em “pacote” pelos consumidores, como sejam a própria Internet, televisão, telefone e telemóvel. 

Este diploma aplica-se às relações entre utentes e prestadores de serviços, nos termos dos n.os 3 e 4 do já referido art. 1.º. Assim, enquanto pessoa a quem são prestados serviços de comunicações eletrónicas, A é considerado utente (n.º 3). Já a TOI é considerada prestadora de serviços, enquanto entidade que presta o respetivo serviço de telecomunicações.

Feito este enquadramento e uma resenha dos principais diplomas aplicáveis, é agora altura de olhar para a questão colocada: poderá o A desvincular-se do contrato celebrado com a TOI sem o pagamento de qualquer valor?

Comecemos pelo DL 24/2014.

Primeiramente, em termos formais, cumpre-nos analisar os requisitos especiais de forma previstos no art. 5.º. Tendo sido a TOI a efetuar o primeiro contacto telefónico junto de A, não se aplica a exceção do n.º 8 deste artigo, pelo que o contrato está sujeito a forma especial: o consentimento escrito do consumidor. Tendo A confirmado a celebração do contrato via SMS, temos acordo escrito por parte do consumidor: o requisito especial de forma está preenchido, pelo que questões formais não poderão ser invocadas por A no sentido de se desvincular do contrato celebrado.

Como vimos, estamos perante um contrato misto: analisando as alíneas j) e k) do art. 3.º, é de destacar, aqui, que predomina o elemento do serviço, apesar de o contrato pressupor a aquisição do iCoiso XII. Isto porque o telemóvel assume uma relevância menor no plano estrutural do contrato, quando comparado com a prestação dos serviços. Isto terá implicações ao nível dos prazos para o exercício do direito ao arrependimento.

Não temos dados suficientes que indiquem a violação de deveres de informação pré-contratual (elencados no art. 4.º) pela TOI. Pode levantar-se a questão de saber se o dever de informação relativo ao direito de resolução [art. 4.º, n.º 1, alínea m)] foi cumprido pela TOI, uma vez que A não parece ter presente a ideia de que pode exercer, em abstrato, esse direito. Atendemos à circunstância de A estar em dúvida quanto aos fundamentos a que pode lançar mão para se desvincular do contrato: questão central do caso em apreço. É, por isso, possível suscitar a hipótese de que A não fora informado, nos termos da alínea m) do n.º 1 do art. 4.º, dado que, se a comunicação tivesse sido feita de forma efetiva, este estaria ciente dos direitos que lhe assistem. Esta hipótese poderia ter consequências ao nível do prazo previsto no art. 10.º, n.º 1, que veremos adiante. O incumprimento de deveres de informação (ainda que tivesse ocorrido e fosse relevante) não gera, em geral, qualquer invalidade, mas apenas sanções contraordenacionais (art. 31, n.º 2).

A figura central deste diploma é o direito ao arrependimento (direito de livre resolução), previsto no art. 10.º, idóneo para a pretensão de A de resolver o contrato sem quaisquer encargos.

A situação não se enquadra em qualquer exceção prevista no art. 17.º.

Ora, analisando o regime, temos três modalidades em termos de prazos de arrependimento: a alínea a), relativamente a contratos de prestação de serviços, e a alínea b), afeta aos contratos de compra e venda, são as que mais nos interessam, uma vez que estamos perante um contrato misto.

É controversa a questão de saber qual o elemento predominante deste contrato para efeitos do prazo para o exercício do direito de arrependimento: a vantagem concedida ao consumidor, nomeadamente, o iCoisoXII – quer pelo seu valor, preferência pessoal ou exclusividade da oferta – pode criar um incentivo acrescido à adesão a contratos de fidelização de serviços de telecomunicações, também com o propósito de aquisição do telemóvel. No entanto, entendemos que o elemento caracterizador do contrato se prende com a prestação dos serviços de telecomunicações, uma vez que, mesmo sendo relevante, a oferta do iCoiso XII surge como vantagem associada à fidelização ao serviço. Parece evidente que A queria, antes de tudo, poder usufruir de televisão, internet e serviços de telefone e telemóvel, sendo a oferta do iCoiso XII relevante, no limite, para a escolha da operadora ou da modalidade de fidelização. Assim, concluímos que a alínea b) do art. 10.º se deve aplicar ao caso sub judice.

Desta forma, A disporia de 14 dias para exercer o seu direito de livre resolução (partindo do pressuposto de que as partes não acordaram, nos termos do n.º 4 do art. 10.º, um prazo mais alargado), a contar da data da celebração do contrato, tal como consta do art. 10.º, n.º 1, al. a).

Tendo o contrato sido celebrado no dia 1 de fevereiro, a dia 21 já transcorrera o prazo para o exercício do direito de livre resolução. Conclui-se, então, que A também não poderia desvincular-se livremente do contrato por esta via.

É, no entanto, importante mencionar que, caso tenham efetivamente sido incumpridos os deveres de informação, pela TOI, constantes da alínea m) do n.º 1 do art. 4.º, o prazo para exercício do direito de resolução estender-se-ia para 12 meses, o que tornaria possível, nestes termos, a pretensão de livre resolução de A (art. 10, n.º 2).

Ressalve-se que, se A conseguisse exercer o direito de arrependimento, no que à prestação de serviços diz respeito e ocorrendo esta, pelos dados de que dispomos, desde o dia 2 de fevereiro (pelo que se presume o cumprimento do disposto no n.º 1 do art. 15) é pacífica a conclusão de que, tendo usufruído do serviço durante cerca de 19 dias, A deva compensar a TOI pelo período em que utilizou o serviço, nos termos do n.º 3 e para os efeitos do n.º 2 do art. 15.º. Assim, se €120 corresponderem a 31 dias, A deveria compensar a TOI em cerca de € 73,55. Não se abate, no montante total da prestação mensal, o valor – ou qualquer parcela do valor – do telemóvel que também é devolvido[1].

Avançando, no que respeita à obrigação de entrega do telemóvel, temos um problema de conformidade, na aceção do DL 84/2021, o qual merece uma análise mais detalhada. 

Nos termos do art. 5.º, incumbe ao profissional entregar ao consumidor bens que estejam em conformidade, de acordo com requisitos subjetivos e objetivos de conformidade.

In casu, as partes acordam expressamente na entrega de um telemóvel iCoiso XII, mas que na verdade é entregue um telemóvel de dois modelos abaixo: um iCoiso X. Trata-se assim de uma situação em que, claramente, o bem entregue pelo profissional não corresponde ao “tipo” previsto no contrato celebrado entre as partes [art. 6.º, al. a), do DL 84/2021], pelo que os requisitos subjetivos de conformidade não são respeitados. Apelamos a estes porque pode até acontecer que o telemóvel entregue não tenha qualquer problema, funcionando totalmente de acordo com o que é expectável daquele equipamento, do ponto de vista objetivo. Porém, haverá sempre um problema de conformidade, já que o consumidor não celebrou um contrato para a entrega de um iCoiso X, mas sim de um iCoiso XII. Concluímos, assim, pela existência de uma falta de conformidade entre a prestação realizada pelo profissional e o contrato celebrado com o consumidor. 

O profissional é responsável por qualquer falta de conformidade que se manifeste no período de três anos (art. 12.º, n.º 1), sendo que nos dois primeiros anos a contar da data da entrega do bem o consumidor beneficia de uma presunção bastante favorável: se a desconformidade se revelar nesse prazo, então esta presume-se existente à data da entrega do bem (art. 13, n.º 1). Num contexto em que o que está em causa é a entrega de um telemóvel de modelo diferente e em que, por isso, a falta de conformidade se manifesta imediatamente à data da entrega, não existem dúvidas de que a TOI é responsável. Pela sua própria natureza, a desconformidade só pode ser originária, pelo que a presunção do n.º 1 do art. 13 não pode ser ilidida pelo profissional.

Posto isto, a questão que agora se coloca é a seguinte: poderá esta falta de conformidade servir de fundamento à desvinculação unilateral do contrato por A, mediante o exercício de um direito de resolução [art. 15, n.º 1, al. c)]? 

Em primeiro lugar, existe uma hierarquização específica feita pelo art. 15.º em relação aos direitos que o consumidor pode exercer perante uma situação de desconformidade, nos termos da qual o recurso à resolução contratual é residual e só pode ocorrer com fundamento num dos pressupostos do n.º 4 do mesmo artigo, nomeadamente se não for possível proceder à reposição da conformidade do bem. Ainda assim, o art. 16.º prevê a possibilidade de o consumidor ultrapassar esta hierarquia, já que, se a desconformidade se manifestar no prazo de 30 dias após a entrega do bem, este pode solicitar, de imediato, a sua substituição ou a resolução do contrato (última parte). Ademais, no nosso caso, o bem foi entregue a 8 de fevereiro e a falta de conformidade manifestou-se precisamente nesse mesmo dia, já que A reparou desde logo que o bem não estava de acordo com o modelo que lhe havia sido prometido. Consequentemente, o prazo previsto no art. 16 foi plenamente respeitado, podendo A, à partida, solicitar a imediata resolução do contrato.

O problema está em que devemos olhar para os direitos que o DL 84/2021 atribui ao consumidor, perante uma situação de desconformidade, à luz da relevância que aquela assume no plano estrutural do contrato, entendido na sua globalidade. Neste sentido, estamos perante uma desconformidade que se refere apenas a uma parte dos bens prestados, já que só identificamos esse problema em relação à entrega do telemóvel. 

Como estabelece o n.º 3 do artigo 20.º, a regra geral em situações em que a desconformidade afeta apenas uma parte dos bens é a de que o consumidor tem direito a resolver o contrato apenas na parte relativa ao bem desconforme (resolução parcial do contrato). Contudo, excecionalmente, poder-se-á admitir a resolução do contrato como um todo, com base em desconformidade parcial, se provarmos que “não é razoavelmente expectável que o consumidor aceite a manutenção do contrato apenas com os bens conformes”. O critério é, portanto, de expetativa razoável do consumidor[2], com base em considerações como “a natureza e a finalidade do contrato, as circunstâncias do caso e os usos e práticas das partes envolvidas” (considerando 24 da Diretiva 2019/771/EU).

Outro aspeto importante é que o n.º 3 do art. 20.º só se refere expressamente às situações em que o consumidor tem um fundamento de resolução nos termos do art. 15.º (n.º 4), pelo que se poderia colocar a questão de saber se essa norma se aplica também às situações de resolução que resultem do exercício de um direito de rejeição (art. 16.º). Com efeito, entendemos que não faria sentido que o direito atribuído ao consumidor (poder optar imediatamente pela resolução do contrato caso a desconformidade se manifeste pouco tempo após a entrega) não estivesse sujeito às limitações previstas no n.º 3 do art. 20.º, nos casos de desconformidade de parte dos bens prestados, sob pena de comprometer a lógica já referida.

Dito isto, atendendo à “natureza e finalidade” do contrato misto sub judice, a desconformidade relativa ao telemóvel em nada contamina o funcionamento dos restantes serviços prestados pelo profissional e dos quais o consumidor já usufruiu.

Na verdade, trata-se de uma desconformidade que não faz com que seja irrazoável, à luz da ratio do DL 84/2021, que o consumidor mantenha o contrato só com os bens conformes, tendo em conta que, no âmbito de um contrato como este, o consumidor não deixa de preservar o interesse nos serviços de telecomunicações que lhe são prestados e que constituem a parte mais significativa do contrato (conforme supramencionado), bem como nos respetivos bens que os incorporam (a box, o router, o telefone, etc.).

Diferente seria se a falta de conformidade se reportasse ao router, por exemplo, deixando este de funcionar: neste cenário, não deixamos de estar perante uma desconformidade em apenas parte dos bens entregues, mas a sua relevância já seria significativa, ao ponto de afetar o funcionamento de outros serviços prestados pela TOI (como o serviçoda televisão, que regra geral só funciona havendo Internet), o que poderia motivar a irrazoabilidade da subsistência da relação contratual como um todo.

Por isso, concluímos que não deve ser admitido que A se possa desvincular unilateralmente do contrato com fundamento na entrega do telemóvel de modelo errado, tendo em conta uma análise holística desta relação contratual.

Em suma, o consumidor tem apenas direito à resolução parcial do contrato, restituindo o telemóvel à TOI [art. 20.º, n.º 4, al. a)]. O problema está em saber como é que se deve concretizar a obrigação de restituição do preço pela TOI [art. 20.º, n.º 4, al. b)], já que o consumidor não pagou um preço específico pelo bem (paga, apenas, pela prestação dos serviços de telecomunicações, no qual o valor do bem está incluído).

No nosso entender, na ausência de qualquer previsão legal relativa à restituição do preço, há duas soluções que se afiguram possíveis: a primeira seria descontar a totalidade do valor do telemóvel na totalidade do preço a pagar durante o período de fidelização (€ 2.880, correspondentes à soma de cada prestação durante os 24 meses), devolvendo a diferença ao consumidor. Outra solução, que nos parece mais acertada, seria a de dividir o valor total do telemóvel pelos 24 meses de fidelização e descontar parte correspondente desse valor a cada prestação mensal, de forma a reduzir o preço pago pelo consumidor em cada mês.

Esta solução afigura-se-nos enquanto a mais correta uma vez que permite acautelar a circunstância de o contrato poder cessar antes dos 24 meses de fidelização, pelo que talvez não faça sentido ter como valor de referência o preço total da fidelização (que só se alcança se o contrato for executado na totalidade), sendo preferível ter por referência o valor a pagar a cada mês. Assim, assegura-se que, devolvendo o telemóvel, o consumidor paga apenas pelos serviços de telecomunicações de que usufrui efetivamente a cada mês.

Tratando-se de um contrato de adesão com período de fidelização como supramencionado cabe abordar a matéria das cláusulas contratuais gerais (“CCG”), previstas no DL 446/85. Como sabemos, estas são cláusulas pré-elaboradas por uma das partes sem negociação prévia e cujo conteúdo o destinatário não pode influenciar[3]. Por esta natureza de imposição unilateral, é importante que tais cláusulas passem por um controlo triplo, nomeadamente: 1. Conexão com o contrato; 2. Comunicação ao aderente e 3. Prestação de esclarecimentos e informações. A inserção dessas CCG num contrato singular implica a verificação destes três requisitos cumulativos.

Ora, no caso sub judice não parece haver qualquer problema de conexão, já que a TOI fez referência às cláusulas integrantes do contrato quer oralmente, quando explicou o contrato ao telefone, quer por escrito (SMS com referência ao acordo). Num segundo momento, cabe avaliarmos a comunicação destas CCG. O art. 5.º, n.º 1, do DL 446/85 prevê este requisito, explicitando, no seu n.º 2, os elementos que a comunicação deve respeitar, nomeadamente a realização de modo adequado e com a antecedência necessária. Acresce ainda que deve ser tomada em conta a importância do contrato, a sua extensão e a complexidade das cláusulas. Assim sendo, tratando-se de um contrato cujo objeto são comunicações eletrónicas (isto é, serviços essenciais no quotidiano digital), com uma fidelização de 24 meses, parece-nos tratar-se de um contrato de elevada importância e complexidade. Posto isto, podemos aqui questionarmo-nos se, porventura, foram devidamente comunicadas todas as cláusulas relevantes à celebração deste contrato. Aí, seria importante perceber se o critério da antecedência adequada foi respeitado ou se, por outro lado, o meio utilizado era idóneo a que um consumidor de comum diligência conhecesse das cláusulas.

Se concluíssemos pelo não preenchimento do requisito da comunicação, e ao abrigo do art. 8.º, al. a), isto resultaria na exclusão das cláusulas não comunicadas. Não obstante, e ainda que esta hipótese seja interessante, não nos parece de grande pertinência para o resultado desejado por A.

Para além disso, cabe agora olharmos para as práticas comerciais utilizadas pela TOI para celebrar o contrato com A, à luz do Decreto-Lei n.º 57/2008.

O art. 4.º proíbe as práticas comerciais desleais. Temos categorias específicas de práticas comerciais desleais, entre as quais as ações enganosas. O art. 7.º, n.º 1, estabelece como enganosa qualquer prática comercial “que contenha informações falsas ou que, mesmo sendo factualmente corretas, por qualquer razão, nomeadamente a sua apresentação geral, induza ou seja suscetível de induzir em erro o consumidor (…)”, conduzindo-o, ou sendo passível de o conduzir, a tomar uma decisão que não tomaria. Cabe acrescentar que, ao prever a possibilidade de a informação ser “factualmente correta”, o regime assegura que não basta a informação ser verdadeira, mas que o seu fornecimento também tem de ser realizado de forma correta pelo profissional, de modo a não induzir o consumidor em erro. 

Assim sendo, a TOI, ao prometer um iCoiso XII, entregando, depois, um iCoiso X, estará sempre a incorrer numa prática comercial desleal: quer tenha fornecido informações falsas a título de publicidade enganosa para incentivar o consumidor a contratar; ou ainda, quer tenha prestado informações factualmente corretas, mas fornecendo bem diferente do prometido. Trata-se assim de uma ação enganosa prevista no art. 7.º, n.º 1, al. a), do DL 57/2008.

Além disso, o art. 8.º apresenta, taxativamente, um conjunto de ações que são sempre tidas como enganosas, independentemente das circunstâncias. Na alínea i), proíbe-se a declaração falsa de que o bem ou as condições especiais só estarão disponíveis durante um período muito limitado: isto porque se procura evitar que o profissional obtenha uma decisão imediata do consumidor, pouco ponderada e informada. Ora, neste caso, a TOI liga a A, apresentando uma proposta contratual à qual acrescenta um conjunto de condições especiais, caso o último aderisse de imediato (a aquisição do iCoiso XII e a instalação do serviço de modo gratuito). Atendendo à natureza genérica do bem oferecido (o iCoiso XII), não parece haver elementos que justifiquem que a sua disponibilidade seja de tal forma limitada que o consumidor tenha de aderir de imediato, sob pena de não aceder ao mesmo. Diferente seria se o bem se revestisse de características muito específicas ou que fosse mais raro: caso em que a declaração de que só estaria disponível se o consumidor aderisse de imediato poderia ser razoavelmente presumida como verdadeira.

Independentemente disso, tal prática comercial não é apenas enganosa (criando no consumidor a ideia incorreta de que a disponibilidade das condições fornecidas é limitada), como permite ao profissional explorar a posição vulnerável do consumidor, limitando a sua liberdade de decisão e fazendo-o crer que encontra uma oportunidade única, não havendo espaço para esclarecimento, ponderação e comparação. Isto resulta numa sujeição de A a um contrato que limita a sua liberdade contratual e capacidade negocial durante 24 meses, influenciado sob pressão de aproveitar estas vantagens e ofertas “especiais”.

Ademais, a classificação do telemóvel e da instalação como “totalmente gratuito(s)” é, ainda, uma prática enganosa à luz da al. x) do art. 8.º. Aqui, está em causa a indução do consumidor em erro relativamente à gratuitidade do bem e serviço: como sabemos, não basta estar a palavra “gratuito” para o ser, já que A não deixa de pagar um preço (€ 120/mês). A ratio por detrás desta prática é semelhante à anterior: proteger o consumidor de contratar acreditando estar a ter uma vantagem quando, na realidade, fora apenas uma técnica de incentivo e manipulação comportamental do mesmo.

Os direitos do consumidor lesado vêm previstos no art. 14.º, n.º 1, do DL 57/2008. Esta norma atribui ao consumidor o direito à redução adequada do preço (o que aqui parece não fazer sentido, dado que A se quer desvincular do contrato sem o pagamento de qualquer valor) ou à resolução do contrato, relativamente aos produtos adquiridos por efeito de uma prática comercial desleal. Por sua vez, o n.º 2 prescreve que tal direito não poderá ser exercido se constituir um abuso de direito; ora, teremos aqui algum abuso de direito por A? 

Antes do mais, cabe destacar que o DL 57/2008 estabelece uma proteção objetiva do consumidor, prevendo um conjunto de práticas comerciais desleais que devem ser sancionadas. Assim sendo, estando desempregado ou não, A não deixou de ser enganado por tais práticas, tendo, por isso, fundamento para, ao abrigo do art. 14.º, n.º 1, solicitar a resolução do contrato. O facto de A querer desvincular-se do contrato, fruto da situação de desemprego em que se encontra, não torna o exercício deste direito abusivo, na medida em que, objetivamente, tivemos a utilização de práticas comerciais desleais pela TOI.

Não obstante, em última instância, a própria Lei 16/2022 reconhece a suspensão do contrato em situações de desemprego do consumidor [art. 137.º, n.º 1, al. e)], transformando-se posteriormente em caducidade, caso a situação se prolongue por mais de 180 dias (art. 137.º, n.º 4). Logo, de todo o modo, a circunstância de A estar desempregado é atendível à luz deste diploma.

Por fim, tendo em vista o exercício dos direitos que aqui explorámos, o consumidor poderia provocar a intervenção de um Tribunal Arbitral, sem que o profissional a isso se pudesse opor, uma vez que o valor da causa é inferior a € 5.000 (art. 14.º da Lei de Defesa do Consumidor).


[1] Seguimos, aqui, apesar da existência do telemóvel enquanto objeto do contrato, o raciocínio do Tribunal de Justiça da União Europeia, no Acórdão de 8 de outubro de 2020, EU contra PE Digital GmbH, C‑641/19, EU:C:2020:808, n.º 27-29, 31 e 32, concluindo-se, neste último, que “(…) para determinar o montante proporcional a pagar pelo consumidor ao profissional (…), deve, em princípio, ter‑se em conta o preço acordado nesse contrato para o conjunto das prestações objeto do mesmo contrato e calcular o montante devido pro rata temporis. Só quando o contrato celebrado prevê expressamente que uma ou várias das prestações são fornecidas integralmente desde o início da execução do contrato, de maneira distinta, a um preço a pagar separadamente, é que o preço integral previsto para tal prestação deve ser tido em conta no cálculo do montante devido ao profissional (…)”. Ver, também, no mesmo sentido (por analogia): Acórdãos de 23 de janeiro de 2019, Walbusch Walter Busch, C‑430/17, EU:C:2019:47, n.o 41; de 27 de março de 2019, Slewo, C‑681/17, EU:C:2019:255, n.o 39; e de 10 de julho de 2019, Amazon EU, C‑649/17, EU:C:2019:576, n.o 44.

[2] Jorge Morais Carvalho, Compra e Venda e Fornecimento de Conteúdos e Serviços Digitais – Anotação ao Decreto-Lei n.º 84/2021, de 18 de outubro, Almedina, 2022, pp. 75 e 76.

[3] Jorge Morais Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 6.ª ed., Almedina, 2019, p. 117.

50% de noção (ou breve reflexão sobre o conceito de «preço mais baixo anteriormente praticado»)

Doutrina

Chegada a época franca do frio e das castanhas, aproxima-se também sem pudores a época dos descontos apocalípticos, das sextas-feiras negras e dos fatídicos dias em que milhares de adultos (em Portugal e no mundo inteiro) renunciam temporariamente à sua dignidade para, num salto mais comprido ou num atropelo mais bem conseguido, sem piedade pelo próximo, arrecadarem de irresistíveis prateleiras milimetricamente organizadas os afamados brinquedos com “descontos nunca antes vistos”.

Mas será mesmo assim? Procurei, de forma perfunctória e sem qualquer pretensão de rigor científico, em 2022 e agora, em 2023, comparar os preços de determinados produtos ao longo do ano e durante este período promocional escatológico. Cheguei à conclusão de que, em muitos casos, bens que em período promocional e com “50% de desconto” apresentavam um determinado preço, eram vendidos a um preço muito semelhante, sem descontos, meses antes, no mesmo estabelecimento comercial.

Não é uma novidade. Uma breve pesquisa pela Internet permite encontrar diversas queixas de particulares e até mesmo de associações ligadas à defesa do consumidor que vão no mesmo sentido da conclusão da minha pesquisa: muitos estabelecimentos comerciais manipulam o preço ao longo do ano de modo a que, embora cumprindo de forma literal o que se encontra legalmente estabelecido, o desconto real para o consumidor seja quase nulo.

O Decreto-Lei n.º 70/2007, de 26 de março, que regula as práticas comerciais com redução de preço nas vendas a retalho praticadas em estabelecimentos comerciais, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 109-G/2021, de 10 de dezembro, que transpôs parcialmente a Diretiva (EU) 2019/2161 do Parlamento Europeu e do Conselho, relativa à defesa dos consumidores (Diretiva Omnibus, já abordada no Blog aqui e aqui), determina, no artigo 6.º, que durante a realização de práticas comerciais com redução de preço, nas modalidades de venda previstas, os letreiros devem exibir de forma clara o novo preço e o preço mais baixo anteriormente praticado. O preço mais baixo anteriormente praticado é, na aceção dada pelo diploma, “o preço mais baixo a que o produto foi vendido nos últimos 30 dias consecutivos anteriores à aplicação da redução do preço” (artigo 3.º, n.º 2, alínea a)).

É evidente que à teleologia da norma subjaz uma proteção e segurança acrescida para o consumidor e não o seu oposto. A leitura dos Considerandos da primitiva Diretiva 98/6/CE do Parlamento e do Conselho, relativa à defesa dos consumidores em matéria de indicações dos preços dos produtos, possibilita inferir de forma clara que o que está em causa é o direito que o consumidor tem a um funcionamento honesto do mercado e à informação “precisa, transparente e inequívoca” sobre os preços dos produtos que lhe estão a ser oferecidos.

No mesmo sentido vai o preâmbulo do Decreto-Lei n.º 109-G/2021 ao declarar que o objetivo de se tomarem por referência os preços praticados nos 30 dias anteriores à redução do preço, incluindo aqueles que o sejam em eventuais períodos de saldos ou de promoções, é garantir uma maior proteção dos consumidores no âmbito das práticas comerciais de redução de preço e assegurar um maior equilíbrio do mercado, acrescentando que as comparações com preços de referência devem ser efetivamente reais, “por forma a assegurar a livre e esclarecida formação de vontade pelos consumidores”.

Não se trata, pois, de um assunto de mera aritmética. Ao adotar esta redação, o legislador teve a pretensão de assegurar que, ao apresentar o preço mais baixo praticado nos 30 dias anteriores à data da redução do preço, o consumidor pudesse fazer uma comparação razoável entre o valor mais baixo que o profissional esteve disposto a atribuir a um determinado bem e o valor desse bem com desconto, a fim de ter uma ideia real da poupança final.

Sabemos que, no que diz respeito aos preços dos produtos, há flutuações de mercado, inflação, e muitos outros fatores que têm impacto na variação do valor final. Por outro lado, pese embora o meu inexperto estudo de mercado me tenha dado sinais de alarme, também é certo que poderá não ser uma prática absolutamente generalizada.

Contudo, a verdade é que, pelo menos nalguns casos, podemos afirmar com segurança que estamos perante um insólito paradoxo, que nos poderá até mesmo remeter para o conceito de prática comercial desleal: o cumprimento formal de uma norma e a concomitante violação da ratio que a preside.

Adaptando livremente um adágio conhecido, “a ignorância do consumidor nunca aproveitará ao próprio”, a verdade é que, em 2023, o “consumidor médio” tem acesso a um conjunto de ferramentas que lhe permite acompanhar a evolução dos preços dos produtos e até mesmo comparar com os preços praticados em diversos estabelecimentos comerciais. Ainda assim, nesta relação assimétrica, incumbe às empresas não só cumprir o que se encontra disposto na lei, mas também promover uma conduta profissional ética que respeite o princípio da boa-fé e a contraparte do negócio.

Os exercícios de benchmarking legal e regulatório são sempre interessantes e permitem conhecer as boas (e más) práticas que poderão (ou não), no futuro, ser adotadas (ainda que com adaptações).

Nos EUA, há cerca de 50 anos, a Federal Trade Commission (FTC)[1] decidiu[2] que a melhor forma de evitar práticas abusivas ou enganadoras no que diz respeito aos preços seria a ausência de enforcement nesta matéria, partindo do princípio que a livre concorrência faria naturalmente a regulação do mercado. Contudo, a realidade provou que nem sempre é assim[3] e as ações judiciais coletivas relacionadas com práticas enganosas de indicação de preços (deceptive pricing practices) têm-se sucedido[4][5].

Ainda assim, parece-me interessante o caminho seguido pela FTC nas suas Guides Against Deceptive Pricing[6]. Nestas orientações, a FTC define cinco situações distintas: (i) comparação com preço anteriormente praticado (former price comparisons); (ii) comparação de preços entre retalhistas (retail price comparisons; comparable value comparisons); (iii) publicidade de preços de retalho estabelecidos ou “PVP recomendado” (advertising retail prices which have been established or suggested by manufacturers or other nonretail distributors); (iv) ofertas de produtos na compra de outro produtos (bargain offers based upon the purchase of other merchandise); e (v) comparações de preços com critérios iguais quando se trata de situações distintas (miscellaneous price comparisons).

Para os propósitos deste texto gostaria de me deter apenas na primeira orientação: comparação com o preço anteriormente praticado. Nesta orientação, a FTC define o preço anteriormente praticado como o preço verdadeiro pelo qual o artigo foi vendido ao público de forma regular, durante um período considerável e estável, e apenas admite como verdadeira a prática de redução de preço que tenha como referência os preços praticados com este critério. Caso a redução de preço apresentada tenha como base um preço anteriormente praticado artificialmente inflacionado, a oferta é considerada falsa ou enganadora[7].

Esta construção normativa alicerçada no princípio da boa-fé onera o profissional e permite adicionar um critério interpretativo importante para a definição do conceito. A comunicação correta e verdadeira da informação relativa ao preço anteriormente praticado é essencial para a formação do animus contrahendi do consumidor que, quando compra um bem com redução de preço, fá-lo por acreditar que vai pagar um preço inferior ao preço de venda habitual e que, naquele momento, conhece qual é a diferença real entre os dois preços.

Por outro lado, o critério de estabilidade e de continuidade temporal do preço anteriormente praticado previne manipulações abusivas ou alterações arbitrárias por parte do profissional e viabiliza um controlo maior do lado do consumidor. A utilização destes parâmetros obriga, como se pode constatar pelo exemplo dos EUA, a uma vigilância mais constante e mais apoiada no poder coercitivo, mas pode significar também uma proteção mais eficaz do consumidor.

Perante o exposto, impõe-se, pois, avaliar a aplicação do artigo 3.º, n.º 2, alínea a) do Decreto-Lei n.º 70/2007 e questionar se a definição de “preço mais baixo anteriormente praticado” tal qual como se encontra descrita nos termos atuais serve de facto os interesses do consumidor; ou se não será tempo de adotar novos critérios que componham uma definição mais robusta e menos permeável a manipulações e violações diretas de direitos fundamentais dos consumidores, como são o direito à informação e à transparência.


[1] Agência governamental americana com a missão de regulamentar e promover a proteção dos consumidores, instituída em 1914 pelo Federal Trade Commission Act (https://www.ftc.gov/about-ftc/history).

[2] https://scholarship.law.stjohns.edu/cgi/viewcontent.cgi?referer=&httpsredir=1&article=4332&context=lawreview

[3] https://journals.sagepub.com/doi/10.1177/00222429231164640 apud https://news.nd.edu/news/disclosing-true-normal-price-recommended-to-protect-consumers-from-deceptive-pricing/  

[4] https://risnews.com/promotional-pricing-right-side-law

[5] https://content.next.westlaw.com/practical-law/document/I6dfb3ee4077511e89bf099c0ee06c731/Beware-of-the-Sale-Complying-with-Promotional-Pricing-Guidelines?viewType=FullText&transitionType=Default&contextData=(sc.Default)

[6] Disponíveis no Code of Federal Regulations, em https://www.ecfr.gov/current/title-16/chapter-I/subchapter-B/part-233, § 233.1 a § 233.5

[7]If the former price is the actual, bona fide price at which the article was offered to the public on a regular basis for a reasonably substantial period of time, it provides a legitimate basis for the advertising of a price comparison. Where the former price is genuine, the bargain being advertised is a true one. If, on the other hand, the former price being advertised is not bona fide but fictitious—for example, where an artificial, inflated price was established for the purpose of enabling the subsequent offer of a large reduction—the “bargain” being advertised is a false one; the purchaser is not receiving the unusual value he expects. In such a case, the “reduced” price is, in reality, probably just the seller’s regular price.

É possível comprar e-books?

Doutrina

Imagine que você foi a uma livraria comprar um livro, volta para casa e o põe na estante. Certo dia, um amigo o vê e pede o título emprestado. Contudo, ao tentar atravessar a porta, o livro fica para trás. Talvez não seja um amigo, mas seu orientando que, ao ler apenas um capítulo, mudaria toda sua tese. O livro ainda assim não irá sair da sua residência. Talvez um dia você o queira dar de presente ao seu neto para que ele possa ler a história que marcou a sua infância. Não importa. Qualquer parte do livro só pode ser lida dentro da sua biblioteca. Seria absurdo, se não fosse o que ocorre, por regra, ao “comprar” um e-book.

Ao realizar a compra de um objeto, o consumidor tem a expectativa de poder revender, emprestar ou até mesmo doar este item. A ideia de compra atrela-se consequentemente à propriedade plena do bem, ainda que o objeto expresse a propriedade intelectual de outrem. Nesses casos, em traços gerais, a doutrina da exaustão assegura que os direitos do autor irão se exaurir após a primeira venda do objeto no mercado.

Entretanto, ao ver um e-book em sites como Kobo.com ou Amazon.es e clicar em “Comprar agora com 1-Clique”, somente com este clique é realizado o débito do valor e disponibilizado o e-book para download. Com isso, o consumidor poderá ler o e-book nos dispositivos associados à sua conta para sempre, o que difere de um sistema de subscrição, por exemplo. Porém, não é possível emprestá-lo, doá-lo ou revendê-lo; sequer capítulos deste.

É bem verdade que, apesar de ser anunciado como tal, a “compra” do e-book é, de facto, uma mera “licença de uso”, como resta claro nos termos e condições de uso da loja Kindle, por exemplo. Isso significa que não há propriedade sobre o bem, o que justifica as supracitadas limitações. Contudo, não justifica que esta ação seja anunciada enquanto uma “compra”. Sequer justifica que o contrato que explica os reais termos da contratação, em nenhum dos casos, seja claro ou possua tradução para o português (como o resto do site), tampouco que o contrato não seja expressamente aceite pelo consumidor antes da “compra”, já que esta ocorre num único clique.

Ao realizar uma pesquisa sobre o tema, Aaron Perzanowski e Chris Jay Hoofnagle  constataram que 83% dos consumidores acreditavam que, após clicar em “comprar agora”, possuíam o bem digital em questão. Noutro giro, os consumidores conseguiriam entender se tratar de um contrato de licença caso a opção fosse “licencie agora”, com uma breve descrição do que esta ação difere de uma compra comum. Resta claro, portanto, um desequilíbrio entre a oferta realizada e aceita pelo consumidor ao “comprar” o bem digital (e as implicações desta compra) e o real contrato de licença firmado entre as partes.

 Analisando o Direito do Consumo Europeu, a Diretiva (UE) 2019/770, que trata dos contratos de fornecimento de conteúdos e serviços digitais, afirma, em seu artigo 5º, que o profissional cumpre sua obrigação quando são disponibilizados os conteúdos ou quaisquer meios adequados para aceder ou descarregar estes. Nesse quesito, não haveria uma violação legal na forma em que o bem digital é fornecido.

Contudo, é possível que se configure uma prática comercial desleal, como definido na Diretiva 2005/29/CE. Em seu artigo 6º, este diploma enquadra enquanto enganosas as práticas comerciais que contenham informações inverídicas ou que, ainda que contendo informações factualmente corretas, sejam suceptíveis de induzir em erro ou conduzir o consumidor médio a tomar uma decisão de transacção que este não teria tomado de outro modo. Ressalta-se que se considera consumidor médio aquele normalmente informado e razoavelmente atento e avisado.

No caso em apreço, o botão que informa a “compra” do e-book pode se enquadrar enquanto prática comercial enganosa, tendo em vista que não é preformado um contrato de compra e venda, mas sim de licença do conteúdo. Consequentemente, para impulsionar a realização do contrato, o consumidor médio será induzido em erro. Afinal, como demonstrou a supracitada pesquisa, paga-se o valor acreditando ser pela propriedade do bem, incluindo-se aí o poder de realizar as ações como seu empréstimo, revenda ou doação, e recebe-se um bem que não pode deixar a biblioteca dos dispositivos do consumidor.

Portanto, respondendo à pergunta do título, é possível licenciar um e-book, mas não o comprar. Desse modo, parece-nos desleal realizar uma oferta de venda enquanto, na realidade, se performa um contrato de licença de uso, no qual o e-book, diferentemente do livro físico, não poderá sair da biblioteca do consumidor, não importa o que aconteça.

A garrafa de vinho mais cara do que o jantar

Consumo em Ação

Por Leandro Pinto, Matilde Pinho e Rita Saramago

Hipótese: No dia 15 de junho, Joaquim telefonou para o restaurante Belos Cozinhados e reservou uma mesa para nove pessoas para as 21h. Joaquim combinou a ementa com  o empregado do restaurante. Com o grupo totalmente instalado e com os pratos já servidos, o empregado veio perguntar o que pretendiam beber. Joaquim pediu vinho e água para todos. Uns minutos depois, o empregado apareceu com uma garrafa de vinho na mão, que apresentou como sugestão do restaurante. Joaquim aceitou sem colocar qualquer questão sobre o preço, tendo sido pedida uma segunda garrafa de vinho a meio da refeição. Terminada a refeição, Joaquim pediu a conta e, quando esta chegou, ficou surpreendido com o valor apresentado (€ 1 500), dos quais € 1 300 diziam respeito às duas garrafas de vinho, referidas na conta como sendo “Barca Velha” (um conhecido vinho, bastante caro). Joaquim tem de pagar?

Resolução: No caso em análise, o processo negocial pode ser objeto de duas leituras diferentes. A primeira é considerar-se que foi celebrado apenas um contrato atípico que junta elementos de vários tipos. Neste caso, teríamos dois elementos principais – empreitada (no que à confeção do jantar diz respeito) e prestação de serviços (serviço do restaurante) – e dois elementos secundários – compra e venda (relativamente ao vinho e à água) e aluguer (talheres, cadeiras, mesas do restaurante). Diferentemente, pode autonomizar-se o contrato de compra e venda das garrafas de vinho, o que nos parece ser a solução mais correta para o tratamento do caso.

Quanto ao jantar, o contrato celebrou-se por telefone. Joaquim tem a obrigação de pagar o preço e o restaurante deve confecionar e servir o jantar.

No que respeita ao vinho, temos um contrato de compra e venda. Cabe analisar se o ato de apresentar a garrafa ao cliente consubstancia uma proposta contratual e se foi, de facto, celebrado um contrato. É inequívoco que o comportamento do empregado se apresenta como uma proposta contratual e que Joaquim, ao aceitar que este servisse o vinho, a aceitou. A questão incide no preço, que não é comunicado no momento da aceitação, o que nos levará posteriormente a discutir a validade do contrato, por violação do direito à informação do consumidor, plasmado no art. 8.º-1-c) da Lei de Defesa do Consumidor.

Antes de passarmos à questão da validade do contrato, importa percebermos qual seria a determinação mais correta do valor do vinho. Por força do Decreto-Lei n.º 138/90 de 26 de abril, é obrigatória a indicação dos preços dos bens e serviços colocados à disposição do consumidor no mercado, o que à partida pressupõe que o restaurante tinha afixada a tabela de preços praticados no estabelecimento comercial e, como é sabido por regras de experiência comum, teria também um menu à disposição dos seus clientes. Podemos, assim, concluir que o preço do vinho estava determinado, mas que não foi comunicado ao consumidor no momento de apresentação da proposta. Houve uma omissão por parte do empregado.

Terá havido uma prática comercial desleal e, consequentemente, o consumidor pode resolver o contrato? Se assim for, não tem de pagar qualquer valor pelas garrafas? Ou, pelo contrário, o empregado (e representante do restaurante) foi diligente e era o consumidor quem tinha o dever de solicitar o menu, verificando o preço do vinho?

Para determinar se existiu uma prática comercial desleal, recorremos ao Decreto-Lei n.º 57/2008, de 26 de março. Este regime pode ser analisado numa estrutura de pirâmide, em três níveis de análise diferentes: listagem normativa (arts. 8.º e 12.º), que indica práticas enganosas e agressivas em qualquer circunstância; práticas comerciais desleais em especial [art. 6.º-b) e c)]; cláusula geral (arts. 4.º e 5.º).

A prática em apreço não se enquadra nas listas dos arts. 8.º e 12.º, pelo que cabe averiguar se estamos perante uma prática comercial desleal em especial. Ao abrigo dos arts. 9.º-1-a) e 10.º-c), aplicáveis por remissão do art. 6.º-b), é discutível se a omissão do preço se traduz numa omissão de informação com requisitos substanciais para a decisão negocial. Atendendo às circunstâncias do caso concreto, nomeadamente o preço exorbitante do vinho, consideramos que sim, pois trata-se de uma informação de relevo, que interferiria, com elevada probabilidade, na decisão negocial do consumidor. Deste modo, esta informação deveria ter sido transmitida pelo profissional, através do seu representante (empregado), e não foi, impossibilitando Joaquim de tomar uma decisão negocial esclarecida.

Embora Joaquim não tenha especificado as bebidas no ato da reserva, tendo em conta o contexto e o preço médio da refeição, entendemos que foi tacitamente acordado um limite para o custo do vinho. O entendimento esperado de um cliente colocado na posição de Joaquim seria o de que o vinho não custaria mais de € 30, o preço médio de uma garrafa de vinho num restaurante.

Por este motivo, consideramos que se verificou uma prática comercial desleal especial por omissão.

Se dúvidas ainda existissem, chegaríamos à mesma conclusão através do nível seguinte de análise, a cláusula geral, plasmada no art. 5.º-1. Esta cláusula inclui quatro requisitos cumulativos[1]: (i) relação jurídica de consumo; (ii) existência de uma  prática comercial; (iii) contrariedade à diligência profissional; (iv) suscetibilidade da distorção do comportamento económico do consumidor.

Tendo já sido feita a verificação relativa aos pontos (i) e (ii), passamos a dedicar a nossa atenção aos pontos (iii) e (iv).

Tendo em conta o preço avultado do vinho comparado com o preço da refeição, seria expectável que o profissional, ao sugeri-lo, informasse o cliente, evitando que este fosse surpreendido em momento posterior. O comportamento não foi honesto, contrariando a diligência profissional que incumbe ao profissional.

A falta de honestidade teve como efeito o cliente ter um comportamento diferente daquele que teria caso tivesse todas as informações. Atendendo ao preço avultado do vinho, é (quase) certo que Joaquim adotaria um comportamento diferente se tivesse sido informado, não aceitando a proposta.

Paralelamente, a determinação do valor do vinho não resultou de um acordo entre as partes, tendo sido definido um valor de forma unilateral por parte do restaurante (em respeito pelas regras de fixação de preços que não cabe aqui aprofundar), valor este que não foi comunicado a Joaquim.

Violado o direito à informação do consumidor, Joaquim teria o direito de resolução do contrato, por força do art. 8.º-4 da Lei de Defesa do Consumidor. Tal implicaria que o consumidor tivesse de devolver o bem ao vendedor e este deixaria de poder exigir a obrigação de pagamento do preço. Neste caso, é evidente que esta não é uma solução adequada, uma vez que o vinho é um bem consumível e que, neste caso, já foi consumido durante a refeição, ficando Joaquim impossibilitado de devolver o conteúdo da garrafa.

Tratando-se de uma prática comercial desleal, aplica-se o art. 14.º-1 do Decreto-Lei n.º 57/2008 e o consumidor pode exigir a redução adequada do preço do bem, solução adequada neste caso. Em vez de serem cobrados € 1300 euros pelas duas garrafas, seria fixado um preço mais reduzido por cada garrafa, de acordo com o preço de mercado de um vinho, normalmente recomendado num restaurante como o Belos Cozinhados e expectável pelo consumidor médio colocado naquela posição.

Respondendo à questão colocada, Joaquim tem de pagar, mas não o valor exigido pelo restaurante. O valor deverá ser reduzido, equivalendo ao valor de mercado de duas garrafas de um vinho médio, normalmente recomendado em restaurantes como o Belos Cozinhados, cujo preço seja expectável para o consumidor médio colocado na posição do Joaquim.


[1] Jorge Morais Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 7.ª edição, Almedina, 2020, p. 142.

Reabrir a controvérsia das loot boxes nos videojogos

Doutrina

No passado dia 31 de maio, a Forbrukerrådet (Conselho de Consumidores Norueguês)[1] publicou o relatório “INSERT COIN: How the gaming industry exploits consumers using loot boxes”, de 59 páginas, detalhando a prática comercial das Loot boxes em videojogos, os diversos problemas que estas levantam, em termos de proteção dos consumidores, a legislação aplicável e a necessidade de mais (e melhor) regulação. Em coordenação com a publicação deste relatório, 20 associações de proteção dos consumidores de 18 estados europeus juntaram-se em apelos às autoridades para implementar reformas na legislação e na fiscalização destas práticas. Portugal foi um deles, tendo-se a DECO – Associação Portuguesa para a Defesa do Consumidor juntado a este consórcio.

As loot boxes são uma prática comercial utilizada em diversos videojogos, desde os gratuitos (free-to-play) aos pagos, que consiste, tipicamente, em cobrar aos utilizadores um valor (em moeda corrente ou em moedas virtuais), para desbloquearem “caixas” ou “carteirinhas” virtuais, de forma a obterem um prémio aleatório, que consiste numa recompensa (em conteúdo digital) do videojogo em questão. Os prémios aleatórios destas caixas podem variar muito, desde conteúdos para a simples personalização das personagens (as chamadas skins), apenas com valor cosmético e sem impacto na jogabilidade, até a personagens, equipamentos, figuras ou outros itens que concedem vantagens substanciais a quem as adquire. Estes itens virtuais podem, também, frequentemente ser transacionados, doados, trocados e vendidos entre os utilizadores, o que permite o surgimento (lícito ou ilícito) de mercados secundários, verdadeiras economias paralelas que incentivam a procura pelas loot boxes.

Estima-se que a venda de loot boxes em 2020 tenha resultado em receitas mundiais de 15 mil milhões de dólares para a indústria dos videojogos, com destaque para videojogos como o FIFA21, da EA, e o Fortnite, da Epic Games.

Controvérsias com loot boxes já não são uma novidade em 2022. É necessário destacar que, entre 2017 e 2018, depois de uma série de polémicas com o lançamento dos videojogos Star Wars Battlefront II e FIFA18, comparando a funcionalidade a casinos online predatórios para jovens, as Comissões de Jogos de Fortuna e Azar dos Países Baixos (Netherlands Gaming Authority) e da Bélgica (Belgium Gaming Commission) lançaram investigações a estas práticas para compreender se estas violavam as leis de jogo online nestes Estados, o que se veio a verificar. A generalidade das empresas passou a bloquear estas funcionalidades nestes Estados, mantendo-se a prática nos restantes. Aproveita-se as diferenças entre a definição legal de gambling nos vários ordenamentos jurídicos.

Este novo relatório e a ação concertada das associações de defesa dos consumidores visam reabrir esta temática, num ângulo pouco explorado até agora: o do Direito do Consumo. Desta forma, o relatório dá destaque:

  1. ao carácter agressivo da publicidade, pop-ups e notificações constantes dentro e fora dos jogos;
  2. à exploração de vulnerabilidades dos utilizadores com recurso a técnicas de design enganador e dissimulado – deceptive design, manipulative design e dark patterns;
  3. a critérios enganadores de transparência sobre as probabilidades de os utilizadores vencerem prémios;
  4. à utilização de algoritmos opacos que modificam e dissimulam resultados e probabilidades;
  5. à utilização de moedas virtuais (in-game currencies) próprias de cada jogo e plataforma para mascarar o custo real monetário da compra das loot boxes;
  6. às técnicas de design dos jogos destinadas a incentivar os jogadores a adquirirem loot boxes, com recurso a estímulos e castigos;
  7. ao verdadeiro custo real de modelos de negócio free-to-play ou freemium, que na verdade são bastante caros para os utilizadores;
  8. ao risco de perda dos conteúdos digitais a qualquer momento, fruto de cláusulas contratuais inseridas nos End-User License Agreements (EULA);
  9. à venda de loot boxes especialmente direcionada a menores.

O relatório utiliza dois case studies (FIFA22 e Raid: Shadow Legends) para exemplificar as principais práticas da indústria, passando de seguida para um curto enquadramento jurídico, incluindo a legislação aplicável aos contratos de jogo de fortuna e azar na modalidade de jogo online e o Direito do Consumo Europeu (e dos Estados Unidos da América).

No Direito do Consumo Europeu, a Forbrukerrådet focou a sua análise quanto à aplicabilidade, em primeiro lugar, da Diretiva das Cláusulas Contratuais Abusivas (Diretiva 93/13/CEE[JCO31] , transposta no DL n.º 446/85, de 25 de outubro) em especial às cláusulas que conferem unilateralmente um vasto leque de poderes aos prestadores de serviços para modificar funcionalidades dos conteúdos ligados às loot boxes, o funcionamento das mesmas e a possibilidade de apagarem os bens virtuais das contas dos utilizadores sem justificação e sem direito a reembolso.

Defende-se ainda a aplicação da Diretiva das Práticas Comerciais Desleais (Diretiva 2005/29/CE, transposta pelo DL n.º 57/2008, de 26 de março) quanto ao carácter enganador e agressivo comum a vários sistemas de loot boxes (artigos 8.º e 9.º), desde o timing das ofertas comerciais durante o jogo, a pressão colocada sobre os utilizadores, a opacidade da informação sobre os prémios, e o facto de frequentemente serem direcionadas a consumidores vulneráveis, nomeadamente as crianças e jovens.

Considera-se também aplicável a Diretiva dos Direitos dos Consumidores (Diretiva 2011/83/UE, transposta pelo DL n.º 24/2014, de 14 de fevereiro) quanto ao incumprimento dos requisitos de informações contratuais, nomeadamente certas informações como a probabilidade real dos prémios[2] das loot boxes essenciais para a decisão dos consumidores de comprarem ou não (artigo 6.º-1). A Comissão Europeia referiu este ponto nas suas Guidelines do final de 2021 para a interpretação e aplicação da Diretiva das Práticas Comerciais Desleais (Comunicação C/2021/9320), no artigo 7.º-4, afirmando que na venda de loot boxes devem ser cumpridos os deveres de informação de ambas as diretivas, quanto ao preço e as principais características (como as probabilidades).

A proposta de Regulamento para a Inteligência Artificial também foi abordada, mas apenas de passagem, quanto à opacidade e impacto negativo nos utilizadores dos algoritmos utilizados em videojogos.

De notar que o relatório não refere a Diretiva dos conteúdos e serviços digitais, quanto às normas relativas às modificações dos conteúdos digitais pelo profissional e o exercício dos direitos dos consumidores (como os efeitos da resolução do contrato).

Atendendo que a Comissão Europeia começou em março deste ano um “Fitness Check[JCO32] ” às três diretivas indicadas no relatório, com vista à preparação de propostas de revisão das mesmas até 2024, este relatório pretende reabrir a discussão sobre as loot boxes e promover alterações legislativas que tenham em conta os principais problemas regulatórios desta prática comercial.

Assim, o relatório termina com uma série de recomendações para a regulação das loot boxes:

  1. Proibição de práticas enganosas e dissimuladas pelas empresas de videojogos;
  2. Os preços nas lojas in-game devem estar indicados em moeda corrente (pelo menos com igual destaque em comparação com o preço em moedas virtuais);
  3. Videojogos direcionados a menores não devem ter loot boxes, nem funcionalidades “pay-to-win”, em que, sendo o jogo grátis, haja a possibilidade de serem conferidas vantagens substanciais ao utilizador pelo pagamento de quantias monetárias;
  4. Mais transparência no funcionamento dos algoritmos, devendo o consumidor ser expressamente informado quando for sujeito a decisões automatizadas que possam afetar o seu comportamento;
  5. Reforçar a atuação e cooperação das autoridades administrativas e entidades reguladoras no setor dos videojogos, para garantir a cumprimento da lei pelos profissionais e a proteção adequada dos consumidores;
  6. E finalmente, caso estes “remédios” não surtam o efeito de mitigar os problemas causados pela utilização desta prática comercial, esta deverá ser proibida.

Tal como em muitos outros ordenamentos jurídicos, em Portugal, a indústria dos videojogos e a suas práticas têm passado muito despercebidas[3] ao enforcement do Direito de Consumo. Esperemos que a participação da DECO neste consórcio e a cobertura mediática deste assunto possam resultar em ações concretas, especialmente se atendermos ao facto que o Decreto-Lei n.º 119-G/2021, de 10 de dezembro, apenas transpôs parcialmente a Diretiva 2019/2161 (Diretiva Omnibus), existindo assim uma janela de oportunidade para inserir reformas nos diplomas nacionais, acompanhando a transposição das medidas em falta.


[1] Organização de defesa dos direitos dos consumidores noruegueses, sob a alçada da Autoridade do Consumidor Norueguês, autoridade administrativa semelhante a uma entidade reguladora independente em Portugal.

[2] A Autoridade da Concorrência Italiana (AGCM), com competência para o enforcement da Diretiva da Práticas Comerciais Desleais, conseguiu impor este requisito de transparência às empresas de videojogos em Itália.

[3] Em 2018, Teresa Monteiro, vice-presidente do Turismo Portugal, assinou uma declaração conjunta de reguladores sobre loot boxes em videojogos. Também em 2018, o Serviço de Regulação e Inspeção de Jogos participou num encontro de reguladores em Birmingham sobre o mesmo tema. Além destas notícias, não se conhecem mais ações dos reguladores portugueses.


Alegações Ambientais e o Ecobranqueamento: a defesa dos direitos dos consumidores no âmbito da transição verde

Legislação

Existe atualmente um crescente impacto da comunicação comercial com recurso a alegações ambientais que visam influenciar as decisões de compra do consumidor. Tornou-se banal depararmo-nos com referências à sustentabilidade ou reciclabilidade de um produto. Proliferaram os selos, logos e certificações. A utilização de expressões como “Green” ou “Eco” foram banalizadas e alegações ambientais genéricas e vagas são muitas vezes uma prática no mercado.

A 30 de março de 2022 foi publicada pela Comissão Europeia, a Proposta de Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho que altera as Diretivas 2005/29/CE e 2011/83/UE, no que diz respeito à capacitação dos consumidores para a transição ecológica através de uma melhor proteção contra práticas desleais e de melhor informação.

Na preparação da Proposta, foram consultados mais de 12.000 consumidores, empresas, autoridades nacionais dos Estados-Membros e especialistas na área do consumo e Direito do Consumo, tendo a mesma revelado que o receio do ecobranqueamento tem impedido os consumidores de participar mais ativamente na transição verde. A questão da fiabilidade da informação surgiu como a principal questão para o consumidor.

A viabilidade da reparação dos produtos foi identificada como passível de permitir aos consumidores uma escolha de produtos mais sustentáveis e, por sua vez, uma melhor informação sobre a durabilidade dos mesmos foi identificada como a melhor opção para capacitar os consumidores na transição ecológica, permitindo assim uma economia circular.

É de grande importância e de se sublinhar a crescente atenção dada pela Comissão Europeia à temática das alegações ambientais. A Proposta visa, entre outros objetivos, a proteção dos consumidores no âmbito de práticas comercias desleais que induzam o consumidor em erro quanto às suas escolhas de consumo sustentável, reforçando o princípio do direito à informação.

É uma das iniciativas previstas na Nova Agenda do Consumidor e no Plano de Ação para a Economia Circular e dá seguimento ao Pacto Ecológico Europeu, mais conhecido como o Green Deal.

Mais precisamente, a Proposta visa, entre outros, impedir as práticas de ecobranqueamento, de obsolescência precoce e de utilização de rótulos, selos e certificações não fiáveis.

São adicionadas dez práticas comerciais ao elenco constante no anexo I da Diretiva 2005/29/CE que devem ser consideradas desleais em quaisquer circunstâncias, sendo três delas sobre o tema das alegações ambientais.

O foco recai igualmente sobre as informações pré-contratuais, sendo alterada a Diretiva 2011/83/EU. A Proposta introduz os conceitos de durabilidade e reparabilidade dos produtos, temas relacionados com a obsolescência programada/precoce, sendo curiosamente introduzida uma pontuação de reparabilidade. O consumidor é assim capacitado para uma participação mais ativa na economia circular.

No que dirá respeito à durabilidade, passa a ser necessária a prestação de informação sobre a existência e a duração da garantia comercial de durabilidade dos produtos, sempre que o produtor disponibilize essa informação. Notamos que estas alterações são estendidas à celebração de contratos à distância e de contratos celebrados fora do estabelecimento comercial.

Trata-se portanto de uma Proposta com o objetivo claro de contribuição para o bem-estar dos consumidores europeus e para a economia da UE.

No âmbito nacional assinala-se igualmente um crescente foco nas temáticas trazidas pela transição verde.

A Direção-Geral do Consumidor (DGC) é a entidade pública em Portugal que tem por missão a definição e execução da política de defesa do consumidor, sendo responsável pelo acompanhamento e fiscalização da publicidade em Portugal e se tem movimentado numa ótica de sensibilização e informação tanto junto dos profissionais como dos consumidores.

Em Outubro de 2021, foi lançado pela DGC e pela Auto Regulação Publicitária, um guia explicativo, que visa orientar os profissionais para práticas transparentes e capacitar o consumidor para escolhas mais conscientes tendo em conta as implicações ecológicas dos seus hábitos de consumo.

São exemplificadas boas e más práticas, sendo claro que qualquer alegação ambiental deverá ser “verdadeira, precisa e capaz de ser comprovada através de provas científicas”, que por sua vez deverão estar disponibilizadas ao consumidor de forma imediata e junto da alegação em causa, devendo a linguagem ser acessível e clara.

É assim que aguardamos com expectativa as negociações e emendas do Parlamento Europeu e do Conselho, a publicação da Diretiva e a sua posterior transposição, sendo certo que todo o trabalho efetuado a nível Europeu e em Portugal permitirá uma maior capacitação do consumidor para um consumo sustentável, circular e consciente das suas implicações ecológicas.

“Sustainable development is development that meets the needs of the present without compromising the ability of future generations to meet their own needs.” Gro Harlem Brundtland, Líder internacional em desenvolvimento sustentável.