Green Claims Directive Proposal: hello from the other side

Doutrina, Legislação

No passado dia 22 de março, foi divulgada a Proposta de Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa à fundamentação e comunicação de alegações ambientais explícitas (Green Claims Directive). Esta Proposta surge no seguimento da Proposta de Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho que altera as Diretivas 2005/29/CE e 2011/83/UE no que diz respeito à capacitação dos consumidores para a transição ecológica através de uma melhor proteção contra práticas desleais e de melhor informação, visando adensar o regime legal e complementar as propostas de alteração à Diretiva relativa às práticas comerciais desleais. Além da Green Claims Directive, também no passado dia 22 de março foi divulgada a Proposta de Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho sobre as regras comuns para a promoção da reparação de bens e que propõe alterar o Regulamento n.º 2017/2394 e as Diretivas 2019/771 e 2020/1828.

 O mote da sustentabilidade no consumo já tinha sido dado em 2019, um ano mais longínquo do que há 4 anos atrás, com o Pacto Ecológico Europeu. A perspetiva de que o consumidor é também ele uma parte ativa na causa ambiental conheceu oficialmente a luz do dia há já quase meia década. Muitos anos depois, no final de 2020, com a Nova Agenda do Consumidor, a intenção de combate ao greenwashing ficou mais clara, sobretudo após ser detetada a proliferação do fenómeno. Greenwashing, para todos os efeitos, será a prática que consiste em maquilhar uma empresa ou um bem, apresentando-a/o como benigna/o ambientalmente (sustentável, portanto), sendo que essas características não têm correspondência de facto, visando atrair mais consumidores, sobretudo os interessados nessas características. Este é sem dúvida o momento para a discussão destas matérias, com uma União Europeia cada vez mais comprometida com o direito do consumo e suas ligações extraprivatísticas, mais uma vez se verificando o empenho da UE em regular para o seu tempo e no sentido das causas dos europeus.

A Proposta que esta semana veio a público representa uma tentativa de legislar o fenómeno do greenwashing, que já vem sendo bem conhecido como prática habitual junto dos consumidores. O setor empresarial foi expedito no ajustamento às intenções de consumo mais sustentável por parte dos consumidores nos últimos anos, prezando por alegações ambientais ou de sustentabilidade social mesmo quando (i) tais referências eram esvaziadas de conteúdo; (ii) tais referências eram absolutamente falsas; (iii) tais referências, sendo verdadeiras, dissimulavam práticas não sustentáveis.

Um estudo da Comissão que analisou 150 alegações ambientais, em vários produtos, verificou que 53,3% dessas alegações eram vagas, enganosas ou infundadas, 40% não tinham qualquer fundamento factual e 50% da rotulagem verde não era objeto de verificação (ou, sendo, era fraca). Os próprios consumidores apresentam desconfiança em relação a estas alegações ambientais, em geral. Se, por um lado, esse ceticismo é demonstrativo da maior atenção dos consumidores em relação à atuação do profissional, por outro prejudica claramente a sua disponibilidade de escuta de alegações fidedignas, fazendo com que o consumidor, muitas vezes, ao duvidar da alegação, fique paradoxalmente desinformado.

Neste sentido, a Proposta de Diretiva relativa à capacitação dos consumidores para a transição ecológica já apresentara, em 2022, algumas medidas legislativas tendentes à superação do greenwashing. Especificamente no que ao diploma das práticas comerciais desleais diz respeito, são de destacar as seguintes propostas de alteração:

(i) Alargamento da lista das ações consideradas enganosas, estabelecidas no artigo 6.º, n.º 1 da Diretiva 2005/29/CE, visando incluir os conceitos de “impacto ambiental ou social”, “durabilidade” e “reparabilidade”;

(ii) Alteração do artigo 6.º, n.º 2 da mesma Diretiva, no sentido de se poder considerar enganosa, no seu contexto factual, a apresentação de uma alegação ambiental que não assente em compromissos e metas claras, objetivas e verificáveis, nem um sistema de controlo independente;

(iii) Aditamento de novas práticas comerciais que devem ser consideradas desleais em qualquer circunstância (artigo 5.º, n.º 5 da Diretiva e Anexo I), nomeadamente:

– Exibição de um rótulo de sustentabilidade que não se baseia num sistema de certificação ou que se baseia num sistema de certificação que não foi criado por autoridades públicas;

– Fazer uma alegação ambiental genérica para a qual o profissional não consegue demonstrar um desempenho ambiental reconhecido e relevante para a alegação;

– Fazer uma alegação ambiental sobre o bem na sua totalidade quando se refere apenas a uma determinada parte desse bem;

– Apresentar como característica distintiva do bem requisitos impostos por lei a todos os bens no mercado da União.

Na mais recente Proposta (Green Claims Directive), é reforçada a intenção de prevenção de manobras de greenwashing, regulando a forma como as empresas fundamentam e comunicam as suas alegações sustentáveis. No artigo 3.º, é proposto o estabelecimento de requisitos específicos quanto aos contornos de fundamentação das alegações ambientais que o profissional faça. Com particular interesse para o consumidor, no artigo 5.º são propostos os moldes de comunicação das alegações ambientais, nomeadamente, entre muitos outros, a inclusão da informação acerca de como o consumidor deve utilizar o bem de forma a obter o desempenho ambiental esperado e alegado (n.º 3). Estes moldes de comunicação são bastante alargados, provavelmente demasiado. Por outro lado, a Proposta vem também procurar regular as alegações ambientais comparativas, estabelecendo igualmente a forma como estas devem ser comunicadas ao consumidor. Além disso, como não poderia deixar de ser, a Proposta vem apresentar os requisitos que devem ser respeitados para que o profissional possa utilizar um determinado sistema de certificação ambiental. Muito interessante notar que um desses requisitos se prende com a existência de um sistema de reclamações e de resolução de litígios para questões relacionadas com a rotulagem/certificação. Não é menos interessante que a Proposta pareça sugerir que se encete o caminho para a diminuição da proliferação de sistemas de certificação, o que se compreende, considerando os já 230 rótulos disponíveis na UE.

Todas estas propostas são passíveis de contribuir para a promoção de consumidores mais informados e para o desincentivo à implementação de práticas de greenwashing pelo setor empresarial, como é evidente. No entanto, não é tão claro que o resultado da implementação de todas estas propostas venha a refletir-se em consumidores melhor informados, sobretudo se atentarmos na imensa quantidade de informação que deve ser comunicada ao consumidor (também) neste potencial diploma legislativo. Além disso, importa precisar que o caminho atual não se basta com uma estratégia de regulação a estrear do fenómeno. Na verdade, agora, importa justamente também implementar estratégias que devolvam a confiança e a certeza aos consumidores.

“Clean beauty”, talvez não tão clean

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Faz cerca de três anos desde que foram detetados os primeiros casos de Covid-19 em Portugal. Volvidos estes anos, é interessante pensar no impacto da pandemia no consumo e no consumidor.

Com alguma facilidade encontramos online vários estudos estatísticos que nos dão conta de um aumento do e-commerce, o que se compreende. Fruto dos períodos de confinamento e do encerramento temporário forçado das lojas físicas, muitos de nós passámos a fazer compras online, hábito que mantivemos mesmo após a reabertura das mesmas.

Segundo dados do Instituto Nacional de Estatísticas (INE) e Eurostat, em 2022, 43% dos indivíduos fizeram compras através da Internet, valor que tem aumentado, em especial, nos anos 2020 e 2021, conforme o relatório “O comércio eletrónico em Portugal e na União Europeia em 2022 – segmento residencial e empresarial” realizado pela ANACOM.
Dentro dos produtos físicos mais comprados pela Internet, a par de peças de vestuário/calçado e de refeições entregues ao domicílio, os produtos de cosmética, beleza e bem-estar assumem um papel de destaque (28%).

Com o uso de plataformas de reunião online, como o zoom, etc., somos confrontados com a nossa aparência em ângulos que podem não ser os que mais favorecem, o que, aliado a uma cultura de bem-estar e estilo de vida saudável, leva um crescimento do mercado da cosmética e da beleza.

De modo a cativar (ainda) mais clientes, as empresas apostam em aspetos que o consumidor valoriza e que podem ser diferenciadores dos demais concorrentes. Veja-se por exemplo a sustentabilidade na cosmética. Desde embalagens recicláveis, formas de produção mais sustentáveis e amigas do ambiente, mecanismos de recarga, ao consumo crescente de produtos sem plástico (champôs sólidos, cremes em barra e bombas de banho) temos testemunhado um grande investimento por parte de várias multinacionais.

A par desta aposta na sustentabilidade, assistimos ao fenómeno da “clean beauty” ou “beleza limpa”. Importa esclarecer do que se trata.

Procuramos uma definição legal, mas não existe, nem a nível nacional nem a nível internacional. Foram consultados vários sites de empresas de produtos de beleza na busca de algum consenso na definição, e concluímos que a “clean beauty” trata um conjunto de produtos que alegadamente não têm produtos “tóxicos”, e cujos ingredientes são naturais.

Além do problema de saber o que é a “clean beauty”, deparamo-nos com outro dilema: o que são produtos tóxicos. Se por um lado, não nos parece que alguém queira produtos tóxicos na sua pele/organismo, por outro questionamo-nos se os produtos que não tenham a etiqueta “clean beauty” são de algum modo prejudiciais.

Há de fato produtos e ingredientes potencialmente perigosos, havendo até restrições a nível europeu quanto ao seu uso.  A este propósito vejam-se os vários pareceres do  Comité Científico de Segurança do Consumidor da Comissão Europeia. Se a avaliação da segurança dos ingredientes cosméticos é feita ao abrigo do Regulamento (CE) n.º 1223/2009[1], qual é o propósito da “clean beauty”?

Será apenas uma estratégia de marketing, que abre caminho para um meio de conseguir cobrar mais por um produto? Um consumidor não informado do “vazio” do termo, não é influenciado por esta alegação?  Enquadrar-se-á numa prática comercial desleal, nos termos do Decreto-Lei n.º 57/2008, de 26 de março, ou é antes uma prática conforme à diligência profissional?

Poderemos considerar publicidade enganosa de acordo com o Decreto-Lei n.º 330/90, de 23 de outubro? Mas são falsas alegações? E na verdade, o que é alegado?

A informação é tutelada nos vários diplomas de direito do consumo, desde logo na Lei n.º 24/96, de 31 de julho, nos artigos 7.º e 8.º. Todavia, parece nos que a situação da “clean beauty” é até prévia, deste logo seria informar do quê?

O próprio termo clean assumiu-se como uma tendência nas mais diversas áreas, por exemplo no mundo da moda, com termos de “clean look” ou “clean girl”, muito devido às redes sociais, em especial ao TikTok. Tornou-se uma expressão popular, que impulsiona ainda mais a “clean beauty” por associação de termos.

Parece-nos imperativo uma definição legal da “clean beuty” para que o consumidor esteja devidamente informado. Para já, fica a reflexão (diga-se inquietação).


[1] Regulamento (CE) n.º 1223/2009 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 30 de novembro de 2009, relativo aos produtos cosméticos. As alterações sucessivas aos seus anexos encontram elencadas no site da Infarmed.

Lei n.º 10/2023 completa a transposição da Diretiva (UE) 2019/2161

Doutrina

Em dezembro de 2021, o Decreto-Lei n.º 109-G/2021, de 10 de dezembro, transpôs para a ordem jurídica portuguesa uma parte significativa da Diretiva (UE) 2019/2161, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de novembro de 2019, também conhecida por “Diretiva Omnibus”, por alterar uma série de diplomas europeus em matéria de Direito do Consumo. Em texto anterior, Sofia Assunção Soares comentou aqui no blog as alterações feitas em matéria de práticas comerciais desleais.

Como se pode ler no preâmbulo do referido decreto-lei, excluiu-se então “a matéria sancionatória que se insere na reserva legislativa de competências da Assembleia da República”. Com a dissolução da Assembleia da República em dezembro de 2021, foi necessário aguardar pela nova legislatura e por um novo processo legislativo para termos a transposição completa do diploma europeu.

Este processo ficou concluído agora, com a publicação da Lei n.º 10/2023, de 3 de março, que, como indica o seu art. 1.º-a), “completa a transposição da Diretiva (UE) 2019/2161”. Além das alterações no domínio das sanções contraordenacionais, aproveitou-se para corrigir alguns problemas do anterior diploma de transposição.

São alterados cinco diplomas legais, relativos às cláusulas contratuais gerais, à indicação de preços, às práticas com redução de preços, às práticas comerciais desleais e aos contratos celebrados à distância. Com exceção deste último, nos restantes as alterações circunscrevem-se à matéria sancionatória.

Não abordo neste texto em pormenor as alterações em matéria sancionatória, mas não quero deixar de fazer duas notas sobre o assunto.

Em primeiro lugar, deve destacar-se que as sanções contraordenacionais no caso de infrações com impacto em pelo menos três Estados-Membros da União Europeia passam a ter um limite máximo das coimas correspondente a 4% do volume de negócios anual do infrator nos Estados-Membros em causa ou, se não houver essa informação, a dois milhões de euros. Sobre esta possibilidade, falámos neste texto de fevereiro de 2021. A perspetiva adotada acabou por ser minimalista, não se aproveitando a transposição da Diretiva para aumentar o valor das coimas no que respeita às restantes infrações.

Em segundo lugar, lamento que não se tenha aproveitado a oportunidade para incluir um regime sancionatório na Lei de Defesa do Consumidor. Tal regime sancionatório é imposto pelo direito europeu. Ao transpor parte das normas da Diretiva 2011/83/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Outubro de 2011, relativa aos direitos dos consumidores, na Lei de Defesa do Consumidor (v. arts. 8.º e 9.º-A), impunha-se prever consequências em caso de incumprimento das normas. As sanções contraordenacionais são uma parte muito relevantes dessas consequências. Acresce que as regras relativas ao limite máximo das coimas também têm de ser aplicadas em caso de infrações aos arts. 8.º e 9.º-A da Lei de Defesa do Consumidor (v. art. 24.º da Diretiva 2011/83/UE, na redação dada pela Diretiva 2019/2161) e não existe, de momento, base legal para a sua aplicação. Também o Decreto-Lei n.º 59/2021, de 14 de julho, que estabelece o regime aplicável à disponibilização e divulgação de linhas telefónicas para contacto do consumidor, deveria ter sido alterado, uma vez que transpõe o art. 21.º da Diretiva 2011/83/UE, alterada pela Diretiva 2019/2161. A matéria sancionatória deve, portanto, ser igualmente adaptada às alterações introduzidas por este último diploma.

Além das alterações em matéria sancionatória, a Lei n.º 10/2013 introduziu algumas modificações noutros domínios no Decreto-Lei n.º 24/2014, que regula os contratos celebrados à distância e fora do estabelecimento.

As alterações visam corrigir imperfeições na transposição, na sequência do DL 109-G/2021.

Numa técnica duvidosa do ponto de vista legístico, corrige-se o português de algumas normas. Por exemplo, o art. 4.º-B-1-b) do DL 24/2014 passa a prever que o prestador do mercado em linha tem de “identificar, de forma clara e inequívoca, as avaliações feitas em troca de algum benefício, quando disso tenha ou deva ter conhecimento”. Na versão anterior, determinava-se que tinha o dever de “identificar de forma clara e inequívoca a avaliação cujos autores tenham recebido algum benefício em troca da sua avaliação, quando disso tenha, ou deva ter, conhecimento”. Com o mesmo objetivo, v. a nova redação do art. 4.º-B-3. É pena que, por exemplo, na nova redação do art. 17.º-1-l), o português tenha sido, por sua vez, um pouco maltratado (“fornecimento, que não em suporte material, de conteúdos digitais, se a execução do contrato tiver tido início e do mesmo resultar para o consumidor a obrigação de pagar, quando (…)”).

São ainda corrigidas algumas remissões para outros artigos do mesmo diploma, as quais tinham ficado erradas na sequência do DL 109-G/2021 – v. arts. 4.º-3 e 10.º-2 e 3 do DL 24/2014. Outras correções ficaram por fazer. Por exemplo, é necessário corrigir, no art. 5.º, a remissão para o artigo anterior. O artigo anterior é o art. 4.º-B e não o art. 4.º, para o qual se pretende remeter nesse preceito.

São, no entanto, feitas duas alterações de substância ao regime, impostas pelo direito europeu.

No art. 12.º, são introduzidas normas sobre o destino dos dados que não sejam dados pessoais do consumidor em caso de este exercer o direito de arrependimento. Estas normas constavam da Diretiva 2019/2161 (alteração ao art. 13.º da Diretiva 2011/83/UE) e não tinham sido transpostas anteriormente para a ordem jurídica portuguesa. Estas normas têm paralelo no art. 36.º do DL 84/2021, a propósito da resolução do contrato de fornecimento de conteúdos ou serviços digitais em caso de desconformidade com o contrato.

No art. 4.º-1-a) do DL 24/2014, são eliminadas duas palavras (“caso existam”), mas a alteração é bastante significativa. Até agora, num contrato celebrado à distância, o profissional apenas tinha o dever de indicar o seu número de telefone e o seu endereço de correio eletrónico, caso existissem. Com a eliminação daquelas duas palavras, o profissional passa a ter de disponibilizar quer o número de telefone quer o endereço de correio eletrónico. Isto significa que deixa de ser possível ter uma atividade profissional de contratação à distância sem criar um sistema de contacto pelos consumidores por estas duas vias.

Como escrevi em texto publicado com A.R. Lodder, a solução anterior “permitiria a um empresário individual que não gostava de atender chamadas telefónicas de consumidores que encomendam online dizer que não tinha um número de telefone disponível para o seu negócio”[1]. Dá-se agora preferência à possibilidade de o consumidor tratar das questões relativas aos contratos à distância por via telefónica. Em suma, todos os profissionais que contratem à distância passam a ter de disponibilizar um número de telefone e um endereço de correio eletrónico.


[1] A.R. Lodder & Jorge Morais Carvalho, “Online Platforms: Towards an Information Tsunami with New Requirements on Moderation, Ranking, and Traceability”, in European Business Law Review, Vol. 33, n.º 4, 2022, pp. 537-556, p. 542.

Netflix – A mudança da política de partilha de passwords e o Direito do Consumo

Doutrina

Em 2017, a Netflix publicou um tweet em que se podia ler: “Amor é partilhar uma password”. A empresa não só estava ciente do fenómeno de partilha de contas entre familiares e amigos, como parece que até a incentivou (em Portugal temos também inúmeros exemplos). A estrutura do modelo de subscrições com vários ecrãs e os perfis de utilizadores permitem esta prática. É possível afirmar que a partilha de contas permitiu a muita gente ter acesso ao serviço, dado que a divisão do custo da mensalidade entre várias pessoas permite a cada uma delas pagar um valor inferior do que se tiver uma conta individual, beneficiando a Netflix com a captação destes consumidores.

Considerando as comunicações passadas da Netflix, é necessário analisar se existem problemas nesta nova política de partilha de passwords face ao Direito do Consumo.

Depois de já ter sido testada no Peru, no Chile e na Costa Rica, os utilizadores em Portugal, Espanha, Nova Zelândia e Canadá foram surpreendidos no início de fevereiro com uma notificação no login da conta e com um email explicando o funcionamento da nova política.

Em resumo:

  • O titular de conta deverá definir uma “localização principal”, a rede de WI-FI de uma morada física em que todos os restantes “membros” da conta residam. Utilizadores extra que estejam noutras moradas não podem aceder à conta, exceto se for comprado um “membro extra” (sendo que o plano de subscrição base não tem esta opção, o plano padrão pode comprar um novo membro e o premium pode obter dois).
  • Embora a Netflix não tenha sido totalmente transparente sobre o método utilizado para a verificação da residência conjunta, diversos leaks parecem apontar para um sistema que utiliza o endereço de IP dos vários dispositivos (televisões inteligentes, telemóveis, tablets e computadores) ligados à rede WI-FI definida como localização principal com alguma periodicidade. Quando foi testado na Costa Rica, os dispositivos deveriam ligar-se pelo menos uma vez por mês (31 dias) à rede WI-FI principal para poderem continuar a ser utilizados.
  • Existe a possibilidade de, excecionalmente, conseguir utilizar dispositivos que não cumpram o critério anterior, recorrendo ao pedido e envio para o email associado de códigos de verificação com duração limitada (para permitir viagens e deslocações).
  • Além disto, a Netflix acrescentou novas funcionalidades para a gestão e controlo da conta pelos utilizadores, assim como a portabilidade de perfis (com os seus históricos de visualização) para novas contas.

Se analisarmos esta mudança de política, a primeira questão levantada é se corresponde a uma alteração do contrato. A resposta é negativa. Se verificarmos a atual versão do contrato de licença de utilização da Netflix, de 5 de janeiro de 2023, na secção 4 (“Serviço Netflix”), no parágrafo 2, é indicado que “o serviço Netflix e quaisquer conteúdos acedidos através do serviço destinam-se apenas a uso pessoal e não comercial e não podem ser partilhados com pessoas fora da sua residência, salvo se tal for permitido pelo seu plano de subscrição”. A secção 5 (“Palavras-passe e Acesso à Conta”) não acrescenta quaisquer informações sobre a questão da residência. Os planos de subscrição não continham informações sobre o mesmo.

Se consultarmos versões anteriores do contrato, nomeadamente a versão de 2 de novembro de 2021, a versão de 31 de dezembro de 2019 ou a versão de 11 de maio de 2018, verificamos que não houve alterações do enunciado, com exceção do acrescento do trecho “salvo se tal for permitido pelo seu plano de subscrição” em janeiro de 2023, que permite a compra dos “membros extra”.

Segundo este enunciado, a “mudança de política” em fevereiro, com as novas funcionalidades, corresponde à implementação de medidas que visam garantir o cumprimento do contrato pelo consumidor. No entanto, as declarações públicas da Netflix, como os famosos tweets já referidos, podem indicar que este seja um caso de falta de conformidade objetiva à luz do artigo 29.º, n.º 1 alínea b) e n.º 6 e 7 do Decreto-lei n.º 84/2021, de 18 de outubro.

Embora seja possível fazer um exercício de interpretação criativa que possa atribuir um maior peso ao argumento de que a Netflix nunca quis permitir ou incentivar a partilha de contas e passwords, é particularmente óbvio que, pelo menos até ao final de 2022, esta não era a conclusão que deveria ser acolhida à luz do critério de interpretação das declarações contratuais (artigo 236.º Código Civil). Ainda assim, as novas declarações da Netflix no final de 2022 e a alteração do contrato no início de janeiro de 2023 permitem afastar a falta de conformidade com o contrato.

As novas funcionalidades introduzidas devem ser classificadas como uma alteração ao serviço digital, à luz do artigo 39.º do Decreto-lei n.º 84/2021, de 18 de outubro (correspondendo ao regime das modificações do serviço digital do artigo 19.º da Diretiva (UE) 2019/770), dado que estamos perante um contrato oneroso de fornecimento contínuo de serviço e conteúdos digitais.

Estas normas permitem ao profissional alterar características dos serviços e conteúdos digitais que estejam a ser fornecidos, sem ser necessária uma alteração do contrato, desde que o contrato as preveja adequadamente e estas sejam devidamente comunicadas ao consumidor.

As alterações aos serviços e conteúdos digitais podem ser implementadas por diversas razões. Podem ser implementadas para garantir a conformidade com o contrato, como é o caso das atualizações de segurança e a inclusão de novas funcionalidades e conteúdos previstos na publicidade e no contrato; para cumprir obrigações legais, como é o caso do respeito pelos direitos de terceiros; ou discricionariamente, desde que as razões sejam consideradas válidas, como alterações à interface, à marca do profissional, e melhorias de performance do serviço. Caso as alterações realizadas impliquem custos adicionais para os consumidores e ou tenham um impacto negativo (que não seja mínimo) no acesso e utilização destes, as obrigações de informação são agravadas, podendo haver direito à resolução do contrato.

Desta forma, a mudança de política de partilha de passwords implementada em fevereiro não é uma alteração ao contrato, mas uma alteração ao serviço, permitida pelo contrato. Apenas quando os consumidores comprarem os “novos membros” para as suas contas é que estarão a alterar o contrato.

À luz do regime do artigo 39.º-1, devemos considerar que a implementação destas medidas pela Netflix cumpre dois dos requisitos, mas não cumpre os outros dois. Assim, (1) é permitida pelo contrato com uma razão válida e (2) os consumidores foram informados antecipadamente de forma clara e compreensível das características da alteração e da data de implementação num suporte duradouro (por notificação no serviço e por e-mail). Porém, (3) esta alteração pode implicar custo adicionais para o consumidor e (4) tem um impacto negativo no acesso e utilização dos serviços.

Dado que a Netflix não permite a manutenção do serviço sem as alterações (art. 39.º-6), devemos analisar a extensão do impacto negativo para perceber se o exercício do direito de resolução não é desproporcionado (artigo 39.º-2 e 4).

Segundo os critérios indicados no artigo 39.º-4 (“a natureza, a finalidade e demais características habituais nos conteúdos ou serviços digitais do mesmo tipo”), é possível concluir pela admissibilidade do exercício do direito de resolução do contrato, nos termos dos artigos 36.º a 38.º. É necessário destacar que a Netflix parece não concordar com este raciocínio, pois omitiu as informações relativas ao direito de resolução no e-mail e na notificação remetidos aos utilizadores. A sua inclusão é obrigatória segundo o artigo 39.º-1-d-ii e 3.

Assim, os consumidores podem resolver o contrato com a Netflix, devendo ser ressarcidos dos montantes referentes a meses futuros que tenham sido pagos antecipadamente (artigo 36.º-1). Caso as medidas comecem a produzir efeitos no decurso de um mês já pago (o que dependerá do plano de pagamentos de cada conta), pode haver lugar à devolução do montante proporcional relativo ao período após a implementação das medidas (artigo 36.º-2).

Dado que a Netflix tipicamente não oferece planos que não sejam mensais (embora já esteja a planear testar subscrições anuais em alguns mercados, similares aos seus concorrentes), a utilidade prática do exercício do direito de resolução dos arts. 36.º e 39.º-2 será bastante limitada para a generalidade dos utilizadores.

Face a tudo isto, somos forçados a concluir que a Netflix considera que os ganhos com a implementação destas medidas ultrapassam o risco de perda de utilizadores. Os restantes serviços concorrentes estarão a observar a situação, de forma a perceber a viabilidade de copiar as medidas. Embora a concorrência feroz nos primeiros anos das “streaming wars” tenha trazido alguns benefícios aos consumidores (como mais produção de conteúdos), pode aparentemente também trazer também desvantagens no longo prazo. No futuro, é possível especular que a “balcanização” deste mercado pode levar à recriação dos antigos pacotes de canais na televisão, mas com serviços de streaming, forçando os consumidores ao pagamento de conteúdos que não lhes interessam em contratos com cláusulas de fidelização.

Finalmente, se, em tempos, a conveniência do serviço da Netflix foi um fator substancial no combate à pirataria, o grande fracionamento do mercado e a subida do valor das mensalidades dos vários serviços levanta a possibilidade de que estes ganhos sejam revertidos.

A mudança de planos da Netflix – Como se chegou até aqui?

Doutrina

Depois de vários meses de antecipação, milhares de utilizadores da Netflix foram confrontados no início de fevereiro com uma notificação com informações que causaram muito desagrado. No essencial, deixou de ser possível a partilha de contas entre pessoas que não residem na mesma morada sem o pagamento de um valor adicional. Esta mudança de política provocou muito ruído mediático, desde a revolta de quem anunciava que iria cancelar, mudar de serviço ou “regressar” à pirataria, passando de acusações de ilegalidade e até de violação da privacidade.

Como se chegou até aqui?

Em 2011, Gabe Newell, fundador e CEO da Valve, numa conferência em Seattle, resumiu de forma muito simples aquela que seria a tendência dos mercados de distribuição de serviços e conteúdos digitais no resto da década. A propósito do sucesso explosivo da plataforma de distribuição de videojogos Steam, Newel referiu que “a pirataria é um problema de serviço”.

Esta declaração e o crescimento da Steam (especialmente em mercados notórios pela pirataria endémica como a Rússia) não convenceram logo os seus principais concorrentes, que continuaram a insistir em tecnologias de DRM (digital rights management). Porém, noutros mercados, algumas empresas estavam também a experimentar modelos de distribuição similares, revolucionando as respetivas indústrias. Destacamos a Spotify, a Amazon e, claro, a Netflix.

Se recuarmos um “pouco” no tempo, até 2007(!), a Netflix limitava-se a concorrer com a Blockbuster, oferecendo um serviço de subscrição mensal de aluguer de DVDs, através do seu website. Foi por essa altura que, nos Estados Unidos da América, começou a oferecer aos seus subscritores, de forma ainda limitada, o serviço de streaming de filmes, experimentando também algoritmos de recomendação de conteúdos. Daí para a frente, a Netflix parecia imparável. Em 2010, passou a fornecer um pacote só com o serviço de streaming. Nesse mesmo ano, começou a operar no Canadá; em 2011, na América do Sul e nas Caraíbas; no Reino Unido, na Irlanda e nos países escandinavos em 2012; em 2015, entrou em Portugal e, em 2016, já se encontrava disponível o serviço em mais de 190 países. A Blockbuster, amarrada ao peso das suas lojas físicas, não conseguiu acompanhar a inovação e entrou em insolvência.

O sucesso meteórico do serviço de streaming da Netflix foi possível graças à sua aposta inicial neste mercado, subvalorizado no final dos anos 2000s e início dos anos 2010s. A Netflix conseguiu assegurar um vasto catálogo de conteúdos, incluindo filmes e séries de televisão de grandes estúdios e distribuidoras. Até então não passava de uma empresa que enviava DVDs pelo correio, enquanto a crise financeira de 2008 e a crise da “dot-com bubble” de 2001 minavam a confiança dos investidores no mercado, em especial no que dizia respeito às empresas ligadas à Internet.

No entanto, a Netflix rapidamente se apercebeu da fragilidade da sua situação e da alta dependência nos seus (possíveis futuros) concorrentes para a manutenção do catálogo e decidiu tomar medidas. Desta forma, começou em 2013 a adquirir os direitos e a produzir séries originais (Orange is the New Black e House of Cards).

Descrever esta aposta da Netflix na criação dos seus próprios estúdios de produção e na compra (e não mero licenciamento) de direitos de distribuição dava para um texto inteiro dedicado ao tema. Resumindo, a Netflix tornou-se uma plataforma mainstream, cujas séries e filmes originais são fenómenos virais, com várias nomeações e vitórias em cerimónias de prémios reputados, desde Cannes até aos Óscares. O fenómeno de binging (ver múltiplos episódios de seguida) de séries acabadas de estrear entrou para o léxico popular, assim como expressões como “Netflix and Chill”. E, claro, a partilha de passwords.

Nesta conjuntura, a valorização da Netflix dispara na bolsa, de $131 em janeiro de 2017 para $345 a janeiro de 2020. A Netflix é considerada uma empresa de tecnologia, valorizada, como parte das Big Tech, pelo seu potencial de crescimento futuro. Embora nos meses seguintes, com o pandemia da Covid-19 e as quarentenas, a valorização da Netflix ainda tenha subido mais, atingindo picos de $630 (as pessoas estão presas em casa, vão querer entretenimento), os problemas já se encontravam à mostra.

Em primeiro lugar, começaram as “streaming wars”, com a entrada no mercado de vários serviços, sendo os mais prominentes a Amazon Prime (da Amazon, inicialmente lançada em 2011), a Disney+ (Disney, 2019), a AppleTV+ (Apple, 2019), HBOMax (da Warner Bros, 2020), Paramount+ (Paramount, 2021). Ainda antes do lançamento destas plataformas, a Netflix já tinha começado a “sangrar” conteúdos, à medida que as licenças de distribuição exclusiva celebradas no início dos anos 2010s expiravam. Os seus futuros concorrentes recusam a celebração de novos contratos, enquanto estúdios de terceiros exigem valores muito superiores para a renovação das suas licenças.

Em segundo lugar, uma série de operações de concentração veio a distorcer o mercado contra a Netflix. A Disney adquiriu os estúdios da 20th Century Fox, enquanto a Warner Bros. foi comprada pela Discovery (agora Warner Bros. Discovery).

A própria gestão do catálogo da Netflix e o seu método de lançamento também tem sido problemática. O financiamento de um grande número de projetos, numa estratégia de “casting a wide net”, tem resultado em diversos franchises com alcance global, mas também enterrou a empresa em inúmeros projetos falhados de qualidade muito inconsistente. A combinação de demasiadas opções de escolha, o lançamento de temporadas inteiras na mesma data e a insegurança em investir tempo numa série que pode ser cancelada a qualquer momento, ficando assim incompleta, podem estar a provocar um fenómeno de fadiga em muitos consumidores.

A concorrer com os serviços de streaming pela atenção dos consumidores, surgem ainda, por um lado, o Youtube, o Tiktok e as restantes redes sociais, com catálogos quase infinitos de conteúdos gerados pelos utilizadores e algoritmos de recomendação avançados, e, por outro lado, videojogos como Fortnite, Minecraft e Roblox, como admitiram o CEO da Netflix, Reed Hastings, e o CEO da Spotify, Daniel Ek.

Finalmente, a nível macroeconómico, depois de um crescimento bastante acelerado durante os “anos da covid”, as empresas tecnológicas viram as suas valorizações caírem a pique durante uma crise inflacionista, com a subida das taxas juros pelos principais bancos centrais (e em especial a Reserva Federal). Com a saída do mercado do mercado russo e uma aparente estagnação no crescimento do número de subscritores, a Netflix caiu a pique, perdendo aproximadamente 50% do seu valor em 2022, e a especulação acerca do seu valor futuro foi reavaliada: a Netflix não faz parte das Big Tech, sendo antes uma empresa de entretenimento.

Face a este enquadramento, a pressão do mercado e dos acionistas sobre a gestão da Netflix é óbvia. Nestes momentos, a cultura corporate feroz exige grandes gestos e ações que resolvam rapidamente os problemas das organizações. Neste sentido, embora dificilmente consigam recuperar a quota de mercado no curto prazo, é possível tentarem cortar custos e aumentar receitas. Traduzindo: cancelar produções consideradas não rentáveis e aumentar o valor das mensalidades.

Porém, esta estratégia não foi suficiente. Assim surgem as ideias de fornecer uma subscrição mais barata com anúncios (captando novos subscritores) e o crackdown da partilha de passwords.

Este texto procurou assim contextualizar a conjuntura que levou à implementação destas medidas, de forma a compreender o comportamento dos vários agentes económicos. O próximo texto será a continuação deste, focando-se na análise da nova política de partilha de passwords, na aplicabilidade do Direito do Consumo e num balanço final do que os consumidores podem esperar destes serviços no futuro.