Cláusulas contratuais gerais abusivas: a propósito do caso do casal que não pôde processar a Uber num tribunal judicial por ter subscrito o serviço da Uber Eats

Doutrina

Quando criamos uma conta ou consumimos diariamente os serviços fornecidos por grandes empresas, como o Google ou a Meta, dificilmente nos recordamos dos minuciosos detalhes e das vinculações a que estamos suscetíveis. A falta de uma leitura atenta e prévia permite que as cláusulas, muitas delas abusivas, surpreendam o consumidor e limitem o exercício dos seus direitos perante um litígio. É neste contexto que se iniciou, nos Estados Unidos da América, uma nova onda de conflitos nos contratos de adesão.

Segundo uma notícia publicada em Portugal, no dia 31 de março de 2022, um casal de Nova Jérsia, EUA, sofreu um acidente de viação após o seu motorista de Uber ter desrespeitado o sinal vermelho e ter colidido com outro veículo. Consequentemente, o casal sofreu inúmeros ferimentos e foi submetido a diversas cirurgias. No ano seguinte, tentaram processar a Uber pelo comportamento do motorista parceiro.

Para surpresa do casal, o tribunal declarou a sua própria incompetência para julgar o caso, sob fundamento da existência de uma convenção de arbitragem em vigor entre as partes, presente nos (incorretamente designados) “Termos e Condições” do serviço da Uber Eats, aceites uns meses antes do acidente pela filha de 8 anos do casal. A cláusula compromissória estabelece que qualquer litígio entre a empresa e os particulares deve ser resolvido por arbitragem. Segundo a notícia, a cláusula foi considerada válida pelo Tribunal Superior de Nova Jérsia.

Não é a primeira vez que este tipo de práticas é notícia. Por exemplo, em outubro de 2023, um homem foi impedido de propor uma ação judicial contra um restaurante ligado à Disney, pois havia subscrito a Disney+ em 2019 (pelo período de um mês, sem contrapartida financeira) e, nas respetivas cláusulas, estava igualmente prevista uma cláusula arbitral.

Apesar de as grandes empresas terem obtido sucesso nas decisões judiciais proferidas nos Estados Unidos da América, em Portugal (e, em geral, na União Europeia) a solução seria, muito provavelmente, diferente.

Destaco dois diplomas legais para o tratamento deste tema:

Começamos pelo regime das cláusulas contratuais gerais, consagrado no Decreto Lei n.º 446/85, que transpõe a Diretiva 93/13/CEE. As cláusulas impostas por uma das partes (predisponente), sem possibilidade de negociação pela outra (aderente), estão sujeitas a um exigente dever de comunicação. Com efeito, o art. 5.º-2 do DL 446/85 estabelece as exigências mínimas para uma cláusula ser considerada comunicada: deve ser apresentada ao aderente “de modo adequado”, de forma a tornar possível “o seu conhecimento completo e efetivo por quem use de comum diligência”. A cláusula compromissória surge, neste caso, no momento da criação de uma conta na plataforma da Uber Eats, no meio de um extenso documento, o que leva a que um contraente que corresponda ao padrão normal, que usa de comum diligência, não a leia, ou, pelo menos, não a leia atentamente, tomando conhecimento completo e efetivo do seu conteúdo. Assim, nos termos do art. 8.º-a), a cláusula não integra o contrato e não tem nenhum efeito.

É ainda possível recorrer ao art. 8º-c), que exclui do contrato “as cláusulas que, pelo contexto em que surjam, (…) passem despercebidas a um contratante normal, colocado na posição do contratante real”. Parece evidente que a cláusula arbitral, se aplicada a qualquer relação da empresa com o consumidor, não tendo qualquer ligação ao contrato celebrado (serviços associados à Uber Eats ou à Disney+), será surpreendente para este. A sua inclusão (formal) no contrato pressuporia uma comunicação autónoma e devidamente realçada, o que, como sabemos, não sucede na adesão a serviços como estes. Um consumidor médio não está à espera que surja num contrato relativo a serviços digitais uma cláusula arbitral relativa a relações físicas e presenciais, contratuais ou extracontratuais, com outras empresas do grupo.

Do ponto de vista material, a cláusula dificilmente passaria igualmente o crivo da boa-fé, consagrado no art. 15.º do DL 446/85, em especial porque estão em causa serviços diferentes, resultantes de relações contratuais diversas, ainda que eventualmente entre as mesmas partes. No entanto, numa relação de consumo, a resposta é mais direta (e, por isso, clara) por via da aplicação da Lei n.º 144/2015, que regula a resolução alternativa de litígios de consumo, incluindo a arbitragem. O art. 13.º determina que, num contrato de consumo, quando é acordado entre as partes um meio de resolução alternativa de lítigios, o consumidor não fica vinculado ao mesmo e pode sempre submeter o litígio a um tribunal judicial.

Em síntese, de um ponto de vista prático, os consumidores, no seu dia a dia, muitas vezes aceitam cláusulas contratuais sem plena consciência da sua complexidade, ficando, assim, mais vulneráveis e limitados face às empresas e outros profissionais. Neste contexto, torna-se essencial a aplicação rigorosa das normas de Direito do Consumo, não só para combater cláusulas abusivas, mas também para assegurar a proteção dos consumidores, garantindo que possam exercer os seus direitos sem restrições.

Sharenting, responsabilidade parental e o DSA: responsabilidade civil, conhecimento efetivo e risco sistémico

Doutrina

A prática de partilhar imagens ou vídeos de crianças nas redes sociais pelos pais (share + parenting) e outros familiares é conhecida como “sharenting”. Note-se que, apesar do caráter expressivo do termo, os pais não são os familiares que mais partilham fotografias de crianças. Os primos, os irmãos mais velhos e os tios e tias partilham mais frequentemente do que os avós e os pais das crianças. Esta é uma prática que põe em risco os direitos fundamentais dos menores nas redes sociais e à qual a resposta da lei e das autoridades públicas tem sido bastante limitada. Os processos de responsabilidade civil revelam-se excessivamente lentos, tendo em conta a importância do tempo quando se trata da exposição de menores no ambiente digital, e os meios de intervenção das autoridades (por exemplo, o artigo 84.º, n.º 2, da LOPDgdd, que obriga o Ministério Público a atuar) não foram até hoje utilizados.

Talvez o Regulamento dos Serviços Digitais (DSA) nos permita, enquanto consumidores e utilizadores de redes sociais, contribuir para a proteção dos menores contra estas práticas, especialmente quando aqueles que publicam estes conteúdos lucram com eles (influenciadores).

Existem poucos estudos sobre a incidência do sharenting entre os menores, um dos quais é o relatório EU Kids Online, que analisa comportamentos como os seguintes: (1) pais que publicam fotografias sem perguntar aos menores, (2) menores que pedem aos pais para eliminarem conteúdos, (3) menores que se sentem frustrados quando veem conteúdos publicados e (4) consequências negativas para a vida social dos menores em resultado da publicação de conteúdos. As respostas por país podem ser vistas no gráfico abaixo:

A maioria das situações de sharenting tende a envolver práticas sociais com uma influência relativamente baixa (o que não significa que não representem um risco para as crianças), que correspondem ao equivalente funcional no ambiente digital de mostrar fotografias ou vídeos de crianças a familiares e amigos: pessoas cujas contas nas redes sociais têm poucos seguidores, que são cuidadosas nas definições de privacidade das contas e que publicam conteúdos neutros (não íntimos ou humilhantes) sobre crianças. Podemos referir-nos a esta prática como “partilha social”. Se a conta atingir um certo nível de notoriedade, ou se o número de publicações exceder um número significativo, falamos de “oversharenting”, o que não é aceitável devido ao risco que representa para os direitos dos menores. No entanto, deve ter-se em conta que qualquer prática de sharenting comporta um risco para os menores, na medida em que, uma vez carregado o conteúdo na Internet, há pouco controlo sobre a sua difusão (e muito menos sobre a sua eliminação).

A prática de sharenting que representa o maior risco para os menores é o sharenting lucrativo, efetuado por aqueles conhecidos como “instamamis” ou “instapapis”: influenciadores cujo conteúdo está em grande parte (ou mesmo quase inteiramente) relacionado com menores. O sharenting lucrativo deve ser sempre considerado como “oversharenting”.

A prática do sharenting comporta riscos para os direitos fundamentais dos menores, que serão mais ou menos acentuados consoante o nível de notoriedade e o número de publicações. Concretamente, estão em risco o direito à honra (menores em situações domésticas que podem causar constrangimento), o direito à privacidade (menores em situações que gostariam de excluir do conhecimento geral, quer causem ou não constrangimento), o direito à própria imagem (em fotografias ou vídeos em que aparecem sem o seu consentimento) e o direito à proteção de dados (não só imagens ou vídeos, uma vez que a autoimagem também é um dado pessoal, mas também áudios ou textos em que são mencionados menores). A prática do sharenting é igualmente prejudicial ao direito ao livre desenvolvimento da personalidade e contrária ao interesse superior da criança. Por fim, a segurança dos menores também é posta em causa, como alertou o Tribunal da Relação de Évora em 2015, precisamente num caso de sharenting.

Todos estes direitos são reconhecidos tanto a nível internacional como nacional. Podemos citar, sem sermos exaustivos, o artigo 26.º da Constituição Portuguesa, segundo o qual “todos têm direito à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à proteção jurídica contra quaisquer formas de discriminação (nº 1) e “a lei estabelecerá garantias efetivas contra a obtenção e utilização abusivas, ou contrárias à dignidade humana, de informações relativas às pessoas e famílias” (nº 2), o artigo 18.º, segundo o qual “é garantido o direito à honra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à imagem” (n.º 1), e “a lei limita a utilização da informática para garantir a honra e a reserva da intimidade da vida privada e familiar dos cidadãos e o pleno exercício dos seus direitos” (nº 4); e o artigo 10.º da Constituição espanhola (“a dignidade da pessoa humana, os direitos invioláveis que lhe são inerentes, o livre desenvolvimento da personalidade, o respeito pela lei e pelos direitos dos outros são a base da ordem política e da paz social”). O direito à proteção de dados é reconhecido no artigo 8.º da Carta dos Direitos Fundamentais da UE, juntamente com o direito ao respeito pela vida privada e familiar (artigo 7.º), bem como pelo RGPD e respetivas implementações nacionais.

O consentimento da criança é essencial para avaliar se algum dos direitos acima mencionados foi violado (outros, como a honra ou a privacidade, dependem não só do conteúdo, mas também das características do conteúdo e das repercussões sociais que este tem). No âmbito dos seus deveres de responsabilidade parental (art. 1877.º e 1878.º CC-PT; art. 154.º CC-ESP, art. 18.º Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989), os pais devem proteger a identidade digital da criança e, se esta ainda não tiver capacidade jurídica para consentir, fazê-lo em seu nome. No entanto, o consentimento que os pais podem dar em nome dos filhos deve ser utilizado em benefício destes e não para pôr em risco os seus direitos. Os menores devem adquirir progressivamente a autonomia negocial (art. 127.º do CC-PT; art. 2.º da LOPJM), razão pela qual é por vezes difícil determinar o momento a partir do qual têm capacidade para consentir, consoante as circunstâncias. No que diz respeito ao sharenting, parece que a idade a partir da qual podem consentir (ou opor-se) é de 13 anos, que é a idade a partir da qual podem exprimir o seu consentimento em conformidade com o artigo 8.º do RGPD. Este limite mínimo de idade é seguido em Portugal (art. 16.º da Lei da Proteção de dados pessoais) e é aumentado em um ano em Espanha (art. 7.2 da LOPDgdd).

Tendo em conta os riscos que a prática do sharenting representa para os menores, vale a pena perguntar se existem elementos de defesa contra a mesma.

Podemos começar por dizer que é possível exigir a responsabilidade civil derivada da lesão de direitos de personalidade (arts. 70.º e 483.º CC-PT; art. 1902.º CC-ESP) associada a um exercício ilegítimo dos deveres de responsabilidade parental (art. 334.º CC-PT). É certo que a posição jurisprudencial tradicional da imunidade dos ilícitos familiares deve ser ultrapassada, como bem salienta Mariana García Duarte Marum (pp. 114-115), embora não seja menos verdade que um dos primeiros casos conhecidos de condenação por sharenting condena precisamente uma mãe por publicar posts sobre o quão mal a atitude do filho para com ela a fazia sentir (Sentença do Tribunal de Roma de 21 de dezembro de 2017). Do mesmo modo, pode ser invocada a responsabilidade civil pela violação do direito à proteção de dados, nos termos do art. 82.º do RGPD. Neste caso, colocar-se-ia a questão de saber se os pais devem ser considerados “responsáveis pelo tratamento de dados” nos termos do art. 82.º, n.º 1, do RGPD, ou apenas as próprias redes sociais. Neste último caso, parece razoável estabelecer como critério mínimo para a responsabilidade o facto de terem conhecimento efetivo da ilegalidade do conteúdo, uma questão que discutiremos mais adiante. Em todo o caso, é necessário provar a conduta negligente ou dolosa do arguido para que se possa invocar a responsabilidade civil, não sendo suficiente a mera violação do RGPD (Sentença do TJUE de 4 de maio de 2023).

As dúvidas que acabámos de apontar não são o maior obstáculo à proteção dos menores contra o sharenting através da responsabilidade civil (quer geral, quer por violação das normas de proteção de dados). De facto, em Portugal, Itália e Espanha já existem sentenças de tribunais regionais ou provinciais que condenam o sharenting. O maior problema é a lentidão (associada a qualquer procedimento judicial) com que os conteúdos seriam removidos e o consequente prejuízo que a sua permanência nas redes geraria para os menores. Neste contexto, é possível que o Regulamento dos Serviços Digitais, que entrou em vigor em fevereiro de 2024, possa proporcionar um meio mais ágil de bloquear e, se for caso disso, remover conteúdos relativos a menores nas redes sociais.

Nos termos do artigo 6.º do Regulamento Serviços Digitais (DSA), “em caso de prestação de um serviço da sociedade da informação que consista na armazenagem de informações prestadas por um destinatário do serviço (por exemplo, redes sociais), o prestador do serviço não é responsável pelas informações armazenadas a pedido de um destinatário do serviço, desde que: não tenha conhecimento efetivo da atividade ou conteúdo ilegal e, no que se refere a uma ação de indemnização por perdas e danos, não tenha conhecimento de factos ou de circunstâncias que evidenciem a ilegalidade da atividade ou do conteúdo” (art. 6.1.a). É considerado “conhecimento efetivo” aquelas notificações que “permitem a um prestador diligente de alojamento virtual identificar a ilegalidade da atividade ou das informações em causa sem um exame jurídico pormenorizado” (art. 16.3).

É importante notar que, para que a notificação obrigue a rede social a agir, deve ser suficientemente pormenorizada e precisa, em conformidade não só com o n.º 3 do artigo 16.º do DSA, mas também com o considerando 53, que estabelece que “os mecanismos de notificação e ação deverão permitir a apresentação de notificações que sejam suficientemente precisas e devidamente fundamentadas para permitir que o prestador de serviços de alojamento virtual em causa tome uma decisão informada e diligente, compatível com a liberdade de expressão e de informação, relativamente aos conteúdos a que se refere a notificação, em especial se esses conteúdos devem ser ou não considerados ilegais e devem ser suprimidos ou o acesso aos mesmos deve ser bloqueado. Esses mecanismos deverão facilitar a apresentação de notificações com uma explicação das razões pelas quais a pessoa ou a entidade que apresenta a notificação considera que o conteúdo é ilegal e uma indicação clara da localização desse conteúdo. Sempre que uma notificação contenha informações suficientes para permitir a um prestador diligente de serviços de alojamento virtual identificar, sem um exame jurídico pormenorizado, que é evidente que o conteúdo é ilegal, deverá considerar-se que a notificação dá origem ao conhecimento efetivo ou ao conhecimento da ilegalidade”.

Quando a rede social recebe uma notificação (por exemplo, através das suas caixas de correio de denúncia de conteúdos) que a informa de forma suficientemente pormenorizada sobre conteúdos de partilha de conteúdos e indica os direitos fundamentais dos menores que podem ser afetados, deve agir de forma diligente e imediata para bloquear ou remover esses conteúdos, sob pena de ser considerada responsável pelos mesmos, uma vez que, de acordo com o n.º 1, alínea b), do artigo 6.1.b do DSA, o prestador de um serviço da sociedade da informação será responsável pelo conteúdo que aloje “a partir do momento em que tenha conhecimento da ilicitude, atue com diligência no sentido de suprimir ou desativar o acesso aos conteúdos ilegais”.

O artigo 6.º, em conjugação com o artigo 16.º e o considerando 53, permite a adoção de medidas contra práticas específicas de partilha de bens, independentemente da frequência com que os pais ou familiares praticam a partilha de bens (desde que os direitos dos menores estejam efetivamente em risco, embora seja esse o caso na maioria das situações de partilha de bens) e independentemente da dimensão da plataforma.

Se a plataforma for considerada de grande dimensão (very large online platform, VLOP) nos termos do artigo 33.º do DSA, devem aplicar-se medidas de atenuação dos riscos que sejam razoáveis, proporcionadas e eficazes e adaptadas aos riscos sistémicos específicos identificados nos termos do artigo 34.º. Em 25 de abril de 2023, a Comissão Europeia publicou a primeira lista de plataformas de muito grande dimensão, incluindo redes sociais como o Facebook, o Instagram, o TikTok ou o YouTube. Em 16 de maio de 2024, a Comissão Europeia abriu um processo contra a Meta em relação ao risco de dependência em menores e ao chamado efeito de orifício dos coelhos, mas ainda não se tem conhecimento de ter iniciado um processo semelhante em relação aos riscos de sharenting. Em Espanha, a Lei Orgânica de Proteção de Dados Pessoais e Garantia dos Direitos Digitais foi além do mero desenvolvimento nacional do RGPD e, no n.º 2 do artigo 84.º, estabelece que “a utilização ou difusão de imagens ou dados pessoais de menores nas redes sociais e serviços equivalentes da sociedade da informação que possam implicar uma ingerência ilícita nos seus direitos fundamentais determinará a intervenção do Ministério Público, que solicitará as medidas cautelares e de proteção previstas na Lei Orgânica 1/1996, de 15 de janeiro, de Proteção Jurídica de Menores”. Apesar da clareza da redação literal da norma, não se conhecem ainda ações intentadas pelo Ministério Público em casos de lenocínio lucrativo.

Netflix – A mudança da política de partilha de passwords e o Direito do Consumo

Doutrina

Em 2017, a Netflix publicou um tweet em que se podia ler: “Amor é partilhar uma password”. A empresa não só estava ciente do fenómeno de partilha de contas entre familiares e amigos, como parece que até a incentivou (em Portugal temos também inúmeros exemplos). A estrutura do modelo de subscrições com vários ecrãs e os perfis de utilizadores permitem esta prática. É possível afirmar que a partilha de contas permitiu a muita gente ter acesso ao serviço, dado que a divisão do custo da mensalidade entre várias pessoas permite a cada uma delas pagar um valor inferior do que se tiver uma conta individual, beneficiando a Netflix com a captação destes consumidores.

Considerando as comunicações passadas da Netflix, é necessário analisar se existem problemas nesta nova política de partilha de passwords face ao Direito do Consumo.

Depois de já ter sido testada no Peru, no Chile e na Costa Rica, os utilizadores em Portugal, Espanha, Nova Zelândia e Canadá foram surpreendidos no início de fevereiro com uma notificação no login da conta e com um email explicando o funcionamento da nova política.

Em resumo:

  • O titular de conta deverá definir uma “localização principal”, a rede de WI-FI de uma morada física em que todos os restantes “membros” da conta residam. Utilizadores extra que estejam noutras moradas não podem aceder à conta, exceto se for comprado um “membro extra” (sendo que o plano de subscrição base não tem esta opção, o plano padrão pode comprar um novo membro e o premium pode obter dois).
  • Embora a Netflix não tenha sido totalmente transparente sobre o método utilizado para a verificação da residência conjunta, diversos leaks parecem apontar para um sistema que utiliza o endereço de IP dos vários dispositivos (televisões inteligentes, telemóveis, tablets e computadores) ligados à rede WI-FI definida como localização principal com alguma periodicidade. Quando foi testado na Costa Rica, os dispositivos deveriam ligar-se pelo menos uma vez por mês (31 dias) à rede WI-FI principal para poderem continuar a ser utilizados.
  • Existe a possibilidade de, excecionalmente, conseguir utilizar dispositivos que não cumpram o critério anterior, recorrendo ao pedido e envio para o email associado de códigos de verificação com duração limitada (para permitir viagens e deslocações).
  • Além disto, a Netflix acrescentou novas funcionalidades para a gestão e controlo da conta pelos utilizadores, assim como a portabilidade de perfis (com os seus históricos de visualização) para novas contas.

Se analisarmos esta mudança de política, a primeira questão levantada é se corresponde a uma alteração do contrato. A resposta é negativa. Se verificarmos a atual versão do contrato de licença de utilização da Netflix, de 5 de janeiro de 2023, na secção 4 (“Serviço Netflix”), no parágrafo 2, é indicado que “o serviço Netflix e quaisquer conteúdos acedidos através do serviço destinam-se apenas a uso pessoal e não comercial e não podem ser partilhados com pessoas fora da sua residência, salvo se tal for permitido pelo seu plano de subscrição”. A secção 5 (“Palavras-passe e Acesso à Conta”) não acrescenta quaisquer informações sobre a questão da residência. Os planos de subscrição não continham informações sobre o mesmo.

Se consultarmos versões anteriores do contrato, nomeadamente a versão de 2 de novembro de 2021, a versão de 31 de dezembro de 2019 ou a versão de 11 de maio de 2018, verificamos que não houve alterações do enunciado, com exceção do acrescento do trecho “salvo se tal for permitido pelo seu plano de subscrição” em janeiro de 2023, que permite a compra dos “membros extra”.

Segundo este enunciado, a “mudança de política” em fevereiro, com as novas funcionalidades, corresponde à implementação de medidas que visam garantir o cumprimento do contrato pelo consumidor. No entanto, as declarações públicas da Netflix, como os famosos tweets já referidos, podem indicar que este seja um caso de falta de conformidade objetiva à luz do artigo 29.º, n.º 1 alínea b) e n.º 6 e 7 do Decreto-lei n.º 84/2021, de 18 de outubro.

Embora seja possível fazer um exercício de interpretação criativa que possa atribuir um maior peso ao argumento de que a Netflix nunca quis permitir ou incentivar a partilha de contas e passwords, é particularmente óbvio que, pelo menos até ao final de 2022, esta não era a conclusão que deveria ser acolhida à luz do critério de interpretação das declarações contratuais (artigo 236.º Código Civil). Ainda assim, as novas declarações da Netflix no final de 2022 e a alteração do contrato no início de janeiro de 2023 permitem afastar a falta de conformidade com o contrato.

As novas funcionalidades introduzidas devem ser classificadas como uma alteração ao serviço digital, à luz do artigo 39.º do Decreto-lei n.º 84/2021, de 18 de outubro (correspondendo ao regime das modificações do serviço digital do artigo 19.º da Diretiva (UE) 2019/770), dado que estamos perante um contrato oneroso de fornecimento contínuo de serviço e conteúdos digitais.

Estas normas permitem ao profissional alterar características dos serviços e conteúdos digitais que estejam a ser fornecidos, sem ser necessária uma alteração do contrato, desde que o contrato as preveja adequadamente e estas sejam devidamente comunicadas ao consumidor.

As alterações aos serviços e conteúdos digitais podem ser implementadas por diversas razões. Podem ser implementadas para garantir a conformidade com o contrato, como é o caso das atualizações de segurança e a inclusão de novas funcionalidades e conteúdos previstos na publicidade e no contrato; para cumprir obrigações legais, como é o caso do respeito pelos direitos de terceiros; ou discricionariamente, desde que as razões sejam consideradas válidas, como alterações à interface, à marca do profissional, e melhorias de performance do serviço. Caso as alterações realizadas impliquem custos adicionais para os consumidores e ou tenham um impacto negativo (que não seja mínimo) no acesso e utilização destes, as obrigações de informação são agravadas, podendo haver direito à resolução do contrato.

Desta forma, a mudança de política de partilha de passwords implementada em fevereiro não é uma alteração ao contrato, mas uma alteração ao serviço, permitida pelo contrato. Apenas quando os consumidores comprarem os “novos membros” para as suas contas é que estarão a alterar o contrato.

À luz do regime do artigo 39.º-1, devemos considerar que a implementação destas medidas pela Netflix cumpre dois dos requisitos, mas não cumpre os outros dois. Assim, (1) é permitida pelo contrato com uma razão válida e (2) os consumidores foram informados antecipadamente de forma clara e compreensível das características da alteração e da data de implementação num suporte duradouro (por notificação no serviço e por e-mail). Porém, (3) esta alteração pode implicar custo adicionais para o consumidor e (4) tem um impacto negativo no acesso e utilização dos serviços.

Dado que a Netflix não permite a manutenção do serviço sem as alterações (art. 39.º-6), devemos analisar a extensão do impacto negativo para perceber se o exercício do direito de resolução não é desproporcionado (artigo 39.º-2 e 4).

Segundo os critérios indicados no artigo 39.º-4 (“a natureza, a finalidade e demais características habituais nos conteúdos ou serviços digitais do mesmo tipo”), é possível concluir pela admissibilidade do exercício do direito de resolução do contrato, nos termos dos artigos 36.º a 38.º. É necessário destacar que a Netflix parece não concordar com este raciocínio, pois omitiu as informações relativas ao direito de resolução no e-mail e na notificação remetidos aos utilizadores. A sua inclusão é obrigatória segundo o artigo 39.º-1-d-ii e 3.

Assim, os consumidores podem resolver o contrato com a Netflix, devendo ser ressarcidos dos montantes referentes a meses futuros que tenham sido pagos antecipadamente (artigo 36.º-1). Caso as medidas comecem a produzir efeitos no decurso de um mês já pago (o que dependerá do plano de pagamentos de cada conta), pode haver lugar à devolução do montante proporcional relativo ao período após a implementação das medidas (artigo 36.º-2).

Dado que a Netflix tipicamente não oferece planos que não sejam mensais (embora já esteja a planear testar subscrições anuais em alguns mercados, similares aos seus concorrentes), a utilidade prática do exercício do direito de resolução dos arts. 36.º e 39.º-2 será bastante limitada para a generalidade dos utilizadores.

Face a tudo isto, somos forçados a concluir que a Netflix considera que os ganhos com a implementação destas medidas ultrapassam o risco de perda de utilizadores. Os restantes serviços concorrentes estarão a observar a situação, de forma a perceber a viabilidade de copiar as medidas. Embora a concorrência feroz nos primeiros anos das “streaming wars” tenha trazido alguns benefícios aos consumidores (como mais produção de conteúdos), pode aparentemente também trazer também desvantagens no longo prazo. No futuro, é possível especular que a “balcanização” deste mercado pode levar à recriação dos antigos pacotes de canais na televisão, mas com serviços de streaming, forçando os consumidores ao pagamento de conteúdos que não lhes interessam em contratos com cláusulas de fidelização.

Finalmente, se, em tempos, a conveniência do serviço da Netflix foi um fator substancial no combate à pirataria, o grande fracionamento do mercado e a subida do valor das mensalidades dos vários serviços levanta a possibilidade de que estes ganhos sejam revertidos.

A mudança de planos da Netflix – Como se chegou até aqui?

Doutrina

Depois de vários meses de antecipação, milhares de utilizadores da Netflix foram confrontados no início de fevereiro com uma notificação com informações que causaram muito desagrado. No essencial, deixou de ser possível a partilha de contas entre pessoas que não residem na mesma morada sem o pagamento de um valor adicional. Esta mudança de política provocou muito ruído mediático, desde a revolta de quem anunciava que iria cancelar, mudar de serviço ou “regressar” à pirataria, passando de acusações de ilegalidade e até de violação da privacidade.

Como se chegou até aqui?

Em 2011, Gabe Newell, fundador e CEO da Valve, numa conferência em Seattle, resumiu de forma muito simples aquela que seria a tendência dos mercados de distribuição de serviços e conteúdos digitais no resto da década. A propósito do sucesso explosivo da plataforma de distribuição de videojogos Steam, Newel referiu que “a pirataria é um problema de serviço”.

Esta declaração e o crescimento da Steam (especialmente em mercados notórios pela pirataria endémica como a Rússia) não convenceram logo os seus principais concorrentes, que continuaram a insistir em tecnologias de DRM (digital rights management). Porém, noutros mercados, algumas empresas estavam também a experimentar modelos de distribuição similares, revolucionando as respetivas indústrias. Destacamos a Spotify, a Amazon e, claro, a Netflix.

Se recuarmos um “pouco” no tempo, até 2007(!), a Netflix limitava-se a concorrer com a Blockbuster, oferecendo um serviço de subscrição mensal de aluguer de DVDs, através do seu website. Foi por essa altura que, nos Estados Unidos da América, começou a oferecer aos seus subscritores, de forma ainda limitada, o serviço de streaming de filmes, experimentando também algoritmos de recomendação de conteúdos. Daí para a frente, a Netflix parecia imparável. Em 2010, passou a fornecer um pacote só com o serviço de streaming. Nesse mesmo ano, começou a operar no Canadá; em 2011, na América do Sul e nas Caraíbas; no Reino Unido, na Irlanda e nos países escandinavos em 2012; em 2015, entrou em Portugal e, em 2016, já se encontrava disponível o serviço em mais de 190 países. A Blockbuster, amarrada ao peso das suas lojas físicas, não conseguiu acompanhar a inovação e entrou em insolvência.

O sucesso meteórico do serviço de streaming da Netflix foi possível graças à sua aposta inicial neste mercado, subvalorizado no final dos anos 2000s e início dos anos 2010s. A Netflix conseguiu assegurar um vasto catálogo de conteúdos, incluindo filmes e séries de televisão de grandes estúdios e distribuidoras. Até então não passava de uma empresa que enviava DVDs pelo correio, enquanto a crise financeira de 2008 e a crise da “dot-com bubble” de 2001 minavam a confiança dos investidores no mercado, em especial no que dizia respeito às empresas ligadas à Internet.

No entanto, a Netflix rapidamente se apercebeu da fragilidade da sua situação e da alta dependência nos seus (possíveis futuros) concorrentes para a manutenção do catálogo e decidiu tomar medidas. Desta forma, começou em 2013 a adquirir os direitos e a produzir séries originais (Orange is the New Black e House of Cards).

Descrever esta aposta da Netflix na criação dos seus próprios estúdios de produção e na compra (e não mero licenciamento) de direitos de distribuição dava para um texto inteiro dedicado ao tema. Resumindo, a Netflix tornou-se uma plataforma mainstream, cujas séries e filmes originais são fenómenos virais, com várias nomeações e vitórias em cerimónias de prémios reputados, desde Cannes até aos Óscares. O fenómeno de binging (ver múltiplos episódios de seguida) de séries acabadas de estrear entrou para o léxico popular, assim como expressões como “Netflix and Chill”. E, claro, a partilha de passwords.

Nesta conjuntura, a valorização da Netflix dispara na bolsa, de $131 em janeiro de 2017 para $345 a janeiro de 2020. A Netflix é considerada uma empresa de tecnologia, valorizada, como parte das Big Tech, pelo seu potencial de crescimento futuro. Embora nos meses seguintes, com o pandemia da Covid-19 e as quarentenas, a valorização da Netflix ainda tenha subido mais, atingindo picos de $630 (as pessoas estão presas em casa, vão querer entretenimento), os problemas já se encontravam à mostra.

Em primeiro lugar, começaram as “streaming wars”, com a entrada no mercado de vários serviços, sendo os mais prominentes a Amazon Prime (da Amazon, inicialmente lançada em 2011), a Disney+ (Disney, 2019), a AppleTV+ (Apple, 2019), HBOMax (da Warner Bros, 2020), Paramount+ (Paramount, 2021). Ainda antes do lançamento destas plataformas, a Netflix já tinha começado a “sangrar” conteúdos, à medida que as licenças de distribuição exclusiva celebradas no início dos anos 2010s expiravam. Os seus futuros concorrentes recusam a celebração de novos contratos, enquanto estúdios de terceiros exigem valores muito superiores para a renovação das suas licenças.

Em segundo lugar, uma série de operações de concentração veio a distorcer o mercado contra a Netflix. A Disney adquiriu os estúdios da 20th Century Fox, enquanto a Warner Bros. foi comprada pela Discovery (agora Warner Bros. Discovery).

A própria gestão do catálogo da Netflix e o seu método de lançamento também tem sido problemática. O financiamento de um grande número de projetos, numa estratégia de “casting a wide net”, tem resultado em diversos franchises com alcance global, mas também enterrou a empresa em inúmeros projetos falhados de qualidade muito inconsistente. A combinação de demasiadas opções de escolha, o lançamento de temporadas inteiras na mesma data e a insegurança em investir tempo numa série que pode ser cancelada a qualquer momento, ficando assim incompleta, podem estar a provocar um fenómeno de fadiga em muitos consumidores.

A concorrer com os serviços de streaming pela atenção dos consumidores, surgem ainda, por um lado, o Youtube, o Tiktok e as restantes redes sociais, com catálogos quase infinitos de conteúdos gerados pelos utilizadores e algoritmos de recomendação avançados, e, por outro lado, videojogos como Fortnite, Minecraft e Roblox, como admitiram o CEO da Netflix, Reed Hastings, e o CEO da Spotify, Daniel Ek.

Finalmente, a nível macroeconómico, depois de um crescimento bastante acelerado durante os “anos da covid”, as empresas tecnológicas viram as suas valorizações caírem a pique durante uma crise inflacionista, com a subida das taxas juros pelos principais bancos centrais (e em especial a Reserva Federal). Com a saída do mercado do mercado russo e uma aparente estagnação no crescimento do número de subscritores, a Netflix caiu a pique, perdendo aproximadamente 50% do seu valor em 2022, e a especulação acerca do seu valor futuro foi reavaliada: a Netflix não faz parte das Big Tech, sendo antes uma empresa de entretenimento.

Face a este enquadramento, a pressão do mercado e dos acionistas sobre a gestão da Netflix é óbvia. Nestes momentos, a cultura corporate feroz exige grandes gestos e ações que resolvam rapidamente os problemas das organizações. Neste sentido, embora dificilmente consigam recuperar a quota de mercado no curto prazo, é possível tentarem cortar custos e aumentar receitas. Traduzindo: cancelar produções consideradas não rentáveis e aumentar o valor das mensalidades.

Porém, esta estratégia não foi suficiente. Assim surgem as ideias de fornecer uma subscrição mais barata com anúncios (captando novos subscritores) e o crackdown da partilha de passwords.

Este texto procurou assim contextualizar a conjuntura que levou à implementação destas medidas, de forma a compreender o comportamento dos vários agentes económicos. O próximo texto será a continuação deste, focando-se na análise da nova política de partilha de passwords, na aplicabilidade do Direito do Consumo e num balanço final do que os consumidores podem esperar destes serviços no futuro.

Finalmente, o novo Regulamento dos Serviços Digitais (Digital Services Act DSA)!

Legislação

A 27 de outubro de 2022, foi publicado no Jornal Oficial da União Europeia o muito aguardado Regulamento (UE) 2022/2065 dos Serviços Digitais (mais conhecido pelo nome inglês Digital Services Act DSA), aprovado a 19 de outubro no Conselho.

Apresentado há quase dois anos pela Comissão no Pacote dos Serviços Digitais (que inclui também o agora aprovado Regulamento (UE) 2022/1925 dos Mercados Digitais – Digital Markets Act DMA), o Regulamento dos Serviços Digitais atravessou um procedimento legislativo muito ativo: os 106 considerandos e 74 artigos da proposta inicial foram bastante trabalhados pelo Parlamento Europeu e o Conselho, resultando num total final de 156 considerandos e 93 artigos.

O Regulamento dos Serviços Digitais surge principalmente com o objetivo de atualizar o regime aplicável à responsabilidade dos prestadores de serviços digitais, anteriormente inserido nos artigos 12.º a 15.º da Diretiva do Comércio Eletrónico (2000/31/CE), agora revogados. Este regime de responsabilidade dos serviços intermediários pelo transporte e armazenamento de conteúdos ilegais, com quase 20 anos, carecia de atualização normativa, devido a todas as controvérsias relacionadas com a proliferação de conteúdos ilegais (violações de direitos de autor, promoção de terrorismo, pornografia infantil, entre outras) e tentativas de os moderar (erros dos algoritmos de sinalização e bloqueio, falsos positivos e negativos) que resultam por sua vez em restrições de direitos fundamentais de acesso à informação e liberdade de expressão, os chamados efeitos de silenciamento (“chilling effects”), que se tornaram evidentes com a omnipresença e dependência da sociedade atual nestes serviços.

O Regulamento acaba por não reinventar os principais princípios que regem a responsabilidade e o papel dos intermediários e a questão da moderação de conteúdos, focando-se antes na codificação e aprofundamento normativo de práticas que já constavam de intervenções junto dos principais stakeholders, sejam instrumentos de soft-law e self-regulation, nomeadamente a “Recomendação sobre medidas destinadas a combater eficazmente os conteúdos ilegais em linha”.

Assim, o Regulamento não altera substancialmente o regime de “safe harbour”, de isenção de responsabilidade dos prestadores de serviços de simples transporte e armazenagem temporária (“catching”) (arts. 4.º e 5.º), sendo que os serviços de alojamento virtual (novo termo para armazenagem em servidor “hosting”), recebe apenas algumas alterações cirúrgicas (em direito do consumo, abordada mais adiante). O princípio da proibição de obrigações gerais de vigilância mantém-se, sendo que é acrescentada a cláusula do “bom samaritano” (art. 7.º), que já existia no Content Decency Act CDA (a legislação americana de 1996 equivalente à antiga diretiva). Este permite aos prestadores de serviços manter a imunidade quando conduzem investigações próprias, voluntariamente e de boa-fé, destinadas a detetar, identificar e suprimir ou bloquear o acesso a conteúdos ilegais.

O papel das autoridades administrativas e judiciais é reforçado, com normas para a emissão de ordens de bloqueio e remoção de conteúdos. A figura dos sinalizadores de confiança (“trusted flaggers”) é também codificada (art. 22.º).

O Regulamento dos Serviços Digitais impõe severas medidas de controlo e auditoria de todos estes mecanismos, procurando reajustar o equilíbrio na relação entre utilizadores, plataformas e partes terceiras. Os direitos fundamentais de acesso à informação e liberdade de expressão estão refletidos nas diversas disposições do diploma.

Relação com o Direito do Consumo

O Regulamento dos Serviços Digitais não é um diploma de direito do consumo no sentido clássico do conceito. Na proposta original, a proteção de consumidores não surgia sequer indicada nos considerandos como um dos objetivos centrais do diploma, em especial a proteção económica, embora este pretendesse complementar a atuação das diretivas, com um foco nos direitos fundamentais. Este aspeto mudou com as recomendações e mudanças propostas pelo Parlamento Europeu, que referiu a necessidade de o diploma abordar as práticas desleais dos mercados em linha, assim como a articulação com normas de segurança de produtos e responsabilidade de plataforma.

Trata-se de um instrumento de regulação horizontal, que afeta uma série de áreas diferentes, incluindo os direitos de propriedade intelectual, os dados pessoais e a proteção dos consumidores. O regulamento não obsta à aplicação do acquis do direito do consumo europeu, como expressamente se indica no art. 1.º-4-f) e no considerando 10.

A definição de conteúdos ilegais, pertinente para as questões de moderação de conteúdos, inclui os conteúdos digitais que, independentemente da sua forma, violem ou estejam relacionados com violações de direito do consumo.

Os consumidores, enquanto utilizadores destes serviços, veem os seus direitos fundamentais de acesso à informação e à liberdade de expressão reforçados com mecanismos de reddress, para a contestação e recurso das decisões das plataformas na moderação de conteúdos, incluindo instrumentos de resolução de litígio.

O art. 6.º-3 inclui uma exceção expressa da exclusão de responsabilidade extremamente relevante para a proteção de consumidores: sempre que plataformas, que permitam a celebração de contratos à distância entre consumidores e comerciantes, apresentem o elemento específico de informação ou permitam, de qualquer outra forma, que a transação específica em causa induza um consumidor médio a acreditar que a informação, o produto ou o serviço objeto da transação é fornecido pela própria plataforma em linha ou por um destinatário do serviço que atue sob a sua autoridade ou controlo”. Os conceitos desta norma são desenvolvidos nos considerandos 23 e 24:

  • O considerando 23 salienta que este elemento da atuação sob autoridade ou controlo do prestador de um serviço de alojamento virtual, se verifica nos casos em que o fornecedor da plataforma em linha pode determinar o preço dos bens e serviços que são oferecidos pelos comerciantes nestes contratos à distância.
  • O considerando 24, por sua vez, aborda a questão das informações que induzam o consumidor médio a acreditar que os bens ou serviços objeto do contrato são fornecidos pela própria plataforma em linha ou por um comerciante que atue sob a sua autoridade ou controlo. O Regulamento indica como possíveis exemplos os casos em que a plataforma em linha não apresenta claramente a identidade do comerciante, se recusa a divulgar a identidade ou os dados de contacto do comerciante até após a celebração do contrato entre este e o consumidor ou comercializa o produto ou serviço em seu próprio nome, em vez de utilizar o nome do comerciante que irá fornecer esse produto ou serviço.

Será necessário, com base em todas as circunstâncias pertinentes e de forma objetiva, determinar se a apresentação é passível de induzir um consumidor médio a acreditar que a informação em causa foi prestada pela própria plataforma em linha ou por comerciantes que atuem sob a sua autoridade ou controlo. Consideramos que a utilização do conceito de consumidor médio nestes considerandos é infeliz, dado os problemas que este conceito tem levando na aplicabilidade da Diretiva 2005/29/CE, que regula as práticas comerciais desleais.

Os prestadores de serviços de intermediação em linha estão também proibidos de utilizar “dark patterns”, isto é, práticas que afetem e distorção os comportamentos dos consumidores, afetando a sua capacidade de realizar decisões autónomas, informadas e livres, graças a funcionalidades, nudges, à estrutura, design da plataforma e interface, com recurso ao tratamento de dados pessoais, considerando 67 e artigo 25.º. Estas práticas têm sido muito debatidas quanto à aplicabilidade da Diretiva 2005/29/CE das práticas comerciais desleais.

Neste sentido, o regulamento impõe ainda obrigações de transparência sobre os anúncios que são apresentados aos utilizadores, assim como os sistemas de recomendação, que apresentam sugestões ou rankings aos utilizadores, com base em decisões algorítmicas arts. 26.º e 27.º. As plataformas em linha devem informar adequadamente os consumidores sobre estas funcionalidades, os principais parâmetros e critérios utilizados, deixando que estes possam customizar, modificar estes sistemas, de acordo com preferências pessoais, 27.º-3.

De forma a assegurar a efetividade do direito do consumo europeu, os prestadores de mercados e plataformas em linha que permitam a celebração de contratos à distância a consumidores, são sujeitos a novas obrigações de due diligence, devendo aplicar os seus melhores esforços na recolha de todas as informações pré-contratuais e dados necessários, como os relacionados com a identidade dos profissionais, de forma a permitir a sua rastreabilidade art. 30.º, no âmbito das diretivas de consumo, nomeadamente a Diretiva 2011/83/EU, considerando 74.

O Regulamento inclui ainda uma série de medidas de forma a reforçar a atuação e cooperação entre entidades reguladoras independentes dos Estados-Membros (de forma a prevenir o fenómeno de bottleneck, causado pelo mecanismo one stop shop das ações por violação do RGPD[1]), assim como normas relacionadas com auditorias e supervisão das plataformas.


[1] Neste fenómeno, as Big Tech colocaram a suas sedes na Irlanda e no Luxemburgo, não só por questões de competitividade fiscal, mas também uma espécie de forum shopping regulatório, não no sentido das normas serem menos exigentes, mas devido à falta da sua efetividade, devido às entidades reguladores destes Estados não terem recursos para todas as queixas colocadas.

Contratos II, de Carlos Ferreira de Almeida, tem uma nova edição

Recensão

No início deste mês, o Professor Carlos Ferreira de Almeida deixou-nos e com a sua partida ficámos todos mais pobres, não só do ponto de vista do relacionamento pessoal, mas também como juristas, como cidadãos, como pessoas que estudamos a vida e a sociedade.

Poucos dias depois do seu falecimento, foi publicada pela Almedina a 5.ª edição da obra Contratos II, dedicada ao conteúdo do contrato, em geral, e aos contratos de troca, em particular. Esta edição foi finalizada muito recentemente, com prefácio datado de dezembro de 2020. Tem várias novidades muito relevantes, demonstrando como o Professor estava sempre atualizado, sendo inovador e desafiante nos seus escritos. Tal como, aliás, nas conversas que nunca deixava para depois.

Destaco aqui as novas páginas dedicadas à Convenção de Viena (matéria consideravelmente ampliada), às Diretivas 2019/770 (conteúdos e serviços digitais) e 2019/771 (venda de bens de consumo) e às cripto“moedas” (mantendo a grafia utilizada pelo Autor).

A Convenção de Viena de 1980 sobre contratos para a compra e venda internacional de mercadorias, a que Portugal recentemente aderiu, como aqui demos conta, constitui um instrumento legislativo com grande relevância, não apenas pela sua aplicação prática significativa, mas também por se tratar de uma fonte inspiradora de legislação a nível interno e internacional.

O Professor salienta (p. 133) que, “em 2020, Portugal aderiu (finalmente) à Convenção de Viena”, o que revela como esta adesão era desejada há muito, não só pelo Professor, mas por uma parte significativa da doutrina[1].

Em conferência sobre o tema, realizada em novembro na NOVA School of Law, que pode ser vista aqui e aqui, o Professor assinalava como, atualmente, a Convenção se encontrava já algo desatualizada em matéria de formação do contrato, entre outros aspetos não admitindo a proposta ao público e a relevância contratual da publicidade, mas ainda muito moderna no que respeita às regras relativas ao incumprimento, em especial com a adoção do conceito de conformidade.

Relativamente às Diretivas 2019/770 e 2019/771, as referências surgem ao longo da obra, o que revela que não se trata apenas de um acrescento pontual, demonstrando a ponderação relativa ao assunto.

O Professor salienta (p. 81) que “a diferença do campo de aplicação destas duas diretivas faz-se pela natureza do objeto e não pelo tipo contratual, pelo que a Diretiva 2019/770 é aplicável a contratos de compra e venda, de permuta, de empreitada, de prestação de serviço, de licença e de acesso a redes (…), desde que tenham como objeto conteúdos ou serviços digitais fornecidos a consumidores”.

Salienta ainda o Professor (p. 82) que as Diretivas “ampliaram o âmbito da conformidade para além da prestação do objeto principal, mencionando também a embalagem, os acessórios, as instruções de instalação e de funcionamento e as atualizações do produto, que tenham sido estipuladas ou que o consumidor possa razoavelmente esperar, e esclareceram que a conformidade inclui a compatibilidade e a interoperabilidade com o hardware ou o software normalmente usados por bens do mesmo tipo”.

A propósito dos contratos de troca sem preço (pp. 124 e segs.), o Professor assinala que estes reapareceram em operações sofisticadas, entre as quais a troca de conteúdos ou serviços digitais por dados pessoais.

Em sede de subtipos da compra e venda, salienta o Professor (p. 134) que “o contrato de compra e venda pode ter por efeito a transmissão da generalidade dos direitos, designadamente (…) direitos sobre conteúdos digitais, relativos, por exemplo, a um programa informático ou a outro software ou incorporados em suporte físico, desde que haja transmissão do direito para o adquirente, por direito ao uso exclusivo sem limite de tempo ou à entrega do suporte”.

Já em sede de contratos de troca para o uso de coisa incorpórea, é aberto um ponto relativo a “licença de bens informáticos”, salientando o Professor (pp. 222 e 223) que “os contratos que conferem o direito ao uso de programas de computador, de bases de dados e de outros conteúdos digitais protegidos por exclusividade formam assim mais uma modalidade de contratos de licença de coisa incorpórea”, aplicando-se a Diretiva 2019/770 se o licenciado for um consumidor.

Nos contratos de troca para acesso, há um ponto relativo a “acesso a redes”, podendo este (p. 230) “ser genérico ou referir-se especificamente a determinadas redes”, como “às chamadas redes sociais ou a determinadas plataformas digitais incluindo as que dão acesso a reuniões, presenciais ou não”.

Ainda no âmbito dos contratos de troca para acesso, temos os contratos de acesso a conteúdos. Segundo o Professor (p. 232), “se o objeto for um bem protegido pelo direito de autor ou por outros direitos subjetivos de exclusivo, estarão preenchidos os elementos caraterísticos de um contrato de licença, desde que o utilizador tenha o direito de fixação através de impressão ou de download (…). Se faltar esta faculdade compreendida no direito de autor, como sucede no streaming, ou se o objeto for um bem desprovido de proteção pelo direito de autor, as prestações, calculadas geralmente por unidade de tempo, terão como fonte contratos de acesso a conteúdos, celebrados entre o titular do sítio e cada um dos acedentes, que são portanto contratos diferentes dos eventuais contratos de acesso ao meio, celebrados com o gestor da rede (telefone, internet) onde os sítios estão instalados”.

Nestes últimos casos, aplica-se a Diretiva 2019/770 se o acedente puder ser qualificado como consumidor.

É interessante também referir que, segundo o Professor (p. 137), as expressões “fornecimento de bens” e “contratos de fornecimento” “são usadas na linguagem jurídica e na linguagem comum como designação genérica, quando se pretende evitar uma qualificação precisa ou referir um conjunto de contratos transmissivos de diferente natureza”. É precisamente o que sucede na Diretiva 2019/770, como aliás é salientado na obra.

Sobre criptomoedas (pp. 67 e 68), o Professor considera que não são dinheiro, alertando para um “limbo de a-legalidade”, que parece “fruto de excessiva neutralidade e tolerância”. Chama ainda a atenção para a circunstância de a sua criação e circulação ser “privada e descentralizada, com os inerentes riscos de volatilidade, iliquidez, especulação, fraude e disponibilidade para lavagem de dinheiro”.

Em comentário a um texto meu em que refiro que “as criptomoedas constituem um meio de pagamento, pelo que, se as partes estipularem nesse sentido, devem ser consideradas, para este efeito, como qualquer outra moeda, como contraprestação, qualificável como preço”[2], defende o Professor que, “não sendo dinheiro, o contrato lícito em que as cripto“moedas” sejam aceites em troca de outro objeto tem a natureza de permuta”.

Estas são apenas algumas das novidades que gostaríamos de destacar relativamente a esta nova edição, mas há muitas outras, como as alterações relativas ao estatuto dos animais, ao financiamento colaborativo e aos contratos de alienação de empresa e com juro negativo.

A obra Contratos, composta por seis volumes, entre os quais este Vol. II, é, na minha opinião, uma das melhores obras escritas em Portugal no domínio do Direito: completa, rigorosa, bem escrita, clara, atualizada, desafiante. Imperdível para estudantes e profissionais do Direito.

[1] V., por todos, Joana Farrajota, “Why hasn’t Portugal adopted the convention on contracts for the international sale of goods?”, in Themis – Revista da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, n.º 34, 2018, pp. 119-127.

[2]Desafios do Mercado Digital para o Direito do Consumo”, in Direito do Consumo 2015-2017, Centro de Estudos Judiciários, Lisboa, 2018, pp. 109-123, p. 111.

Cyberpunk 2077 e o problema da falta de conformidade dos videojogos no seu lançamento

Doutrina

No passado dia 10 de Dezembro, foi lançado o muito aguardado Cyberpunk 2077, do estúdio e distribuidor polaco CD Project Red, responsável também pela muito conhecida franchise The Witcher. Após oito anos em desenvolvimento, dois adiamentos da data de lançamento e uma campanha publicitária muito intensa, os fãs puderam finalmente adquirir o videojogo. Este encontra-se disponível em lojas físicas e em lojas virtuais, como a da GOG (subsidiária da CD Project Red), a Steam, a Google Store, a Playstation Store e a Microsoft Store. O videojogo tem versões para computadores e para as consolas Playstation 4 e Xbox One, assim como para as recém-lançadas, ditas de nova geração, Playstation 5 e Xbox X e S.

No entanto, para desapontamento de muitos, o videojogo que adquiriram – sendo que 8 milhões de pessoas fizeram por pre-order, com a antecedência de muitos meses, com a promessa de alguns conteúdos bónus – tinha bastantes problemas, especialmente em termos de performance do software. Rapidamente, a Internet encheu-se de relatos de jogadores que partilhavam os bugs e glitches mais “engraçados” e absurdos. E relatos do facto de o software estar com tantos problemas que seria impossível, na realidade, utilizar o serviço digital que adquiriram, mesmo tendo computadores e equipamentos que cumprissem com os requisitos de sistema publicitados pela CD Project Red. A situação revelou-se especialmente grave nas consolas de “antiga geração”, a Playstation 4 e a Xbox One, em que os jogadores se queixaram de o videojogo não funcionar e provocar crashes em que a consola se desligava de forma inesperada e constante. Esta situação levou, inclusivamente, a que a Sony retirasse o videojogo da Playstation Store e concedesse um reembolso a todos os consumidores que o pedissem.

Mesmo com um lançamento controverso e cheio de problemas, não cumprindo o “produto” final as expectativas estabelecidas pelo marketing intenso, as promessas do estúdio e a própria descrição do produto nas lojas virtuais, a verdade é que isto não impediu que as vendas do Cyberpunk 2077 fossem um sucesso comercial gigantesco. Muitos consumidores não tiveram acesso a remédios adequados face às faltas de conformidade do software. As soluções oferecidas basearam-se, essencialmente, nas (heterogéneas) políticas comerciais das lojas físicas e das lojas virtuais, que variam de plataforma para plataforma e de Estado para Estado.

Este aparenta ser um cenário bastante problemático que, infelizmente, no caso da indústria dos videojogos, está muito longe de ser excecional. Na verdade, lançamentos desastrosos de videojogos num estado inacabado como o do Cyberpunk 2077 são mais comuns do que seria de esperar. Há, geralmente, vários casos como este por ano, ligados às maiores produtoras, com situações particularmente notórias pelo nível de embuste e mentiras flagrantes (por exemplo, No Man Sky em 2016 ou Fallout 76 em 2018). Habitualmente, nestes casos, as empresas vão lançando patches e updates durante os meses seguintes ao lançamento, que servem para reparar/consertar os principais problemas do software e para incluir funcionalidades e conteúdos que supostamente deviam ter sido incluídas no produto final já distribuído[1]. Porém, este processo pode demorar muito tempo, ou até nem se verificar de todo, existindo empresas com uma reputação conhecida de venderem videojogos inacabados, com publicidade enganosa, e que rapidamente abandonam esses projetos, optando por alocar imediatamente os seus recursos a novos produtos.

Além dos danos causados pelo lançamento de videojogos num estado inacabado, há certas práticas adotadas pelos maiores distribuidores do mercado que devem ser referidas aqui: as já referidas pre-orderse os “reviews embargos”.

Nas pre-orders, os consumidores pagam antecipadamente por um videojogo que ainda não foi lançado no mercado, sendo geralmente aliciados para tal com a inclusão de conteúdos extra-exclusivos e, por vezes, uma redução do preço.

Os “review embargos” consistem na prática das produtoras de, ao enviarem antecipadamente cópias dos seus produtos a jornalistas para estes testarem, proibirem que estes publiquem as suas avaliações até depois do lançamento oficial. Impede-se, desta forma, que os consumidores (que já pagaram pelas pre-orders) possam ser alertados do estado do produto a tempo de cancelar a sua compra. Nos casos raros em que algum jornalista “furou” o embargo, publicando o seu artigo antes de tempo, este acabou blacklistedpelas principais empresas, deixando de receber o produto para testar com antecedência.

Do ponto de vista do Direito do Consumo, toda esta controvérsia levanta várias questões interessantes.

Na ótica processual, temos as questões de saber (i) qual é a jurisdição na qual deve ser iniciada a ação, (ii) qual é a lei aplicável ao contrato e (iii) que meios de resolução extrajudicial de litígios podem ser utilizados.

Os EULA (End-User Licensing Agreements) incluem, geralmente, cláusulas sobre estas temáticas, que por vezes procuram afastar as normas especiais do Regulamento Roma I e do Regulamento Bruxelas I, o que pode levantar problemas aos consumidores.

Num plano substantivo, a Diretiva dos Direitos dos Consumidores (Diretiva 2011/83/UE) classifica os videojogos como conteúdos digitais, estabelecendo que as comunicações pré-contratuais fazem parte integrante do contrato e atribuindo um direito ao arrependimento ou à livre resolução do contrato aos consumidores nos contratos realizados à distância ou fora do estabelecimento comercial. No entanto, no seu artigo 16.º-m), estabelece que o consumidor pode abdicar deste direito nos contratos de fornecimento de conteúdos digitais que não sejam disponibilizados em suporte duradouro. Na prática, esta situação ocorre com facilidade, por via da inclusão desta cláusula nos Termos e Condições que o consumidor é “forçado” a aceitar na loja virtual.

No entanto, nem tudo está perdido para o consumidor.

Embora em muitas ordens jurídicas dos Estados Membros da União Europeia não existam normas quanto a requisitos de conformidade de serviços digitais e que atribuam direitos ao consumidor em caso de desconformidade, esta situação está em vias de resolução. Com efeito, a Diretiva 2019/770, relativa aos contratos de fornecimento de serviços e conteúdos digitais, deverá ser transposta ainda este ano, com entrada em vigor das normas de transposição a 1 de Janeiro de 2022. Ainda mais recentemente, foi aprovada a Diretiva 2020/1828, sobre as ações coletivas de proteção dos direitos dos consumidores, que irá colmatar as lacunas existentes em alguns Estados Membros e agilizar a propositura de ações para a reparação de danos causados pela violação do direito de consumo europeu e das leis nacionais, incluindo as Diretivas 2011/83/UE e 2019/770.

Assim, com a transposição destas normas e com o aprofundamento do Mercado Único Digital na União Europeia, os consumidores irão beneficiar de uma maior proteção dos seus direitos. Situações como o lançamento do Cyberpunk 2077, em que serviços digitais são distribuídos num estado inacabado sem a devida indicação, tornar-se-ão, espera-se, mais raras.

[1] No caso da CD Project Red, quatro dias depois do lançamento do Cyberpunk 2077, esta publicou um statement neste sentido, admitindo que esconderam as falhas das versões nas consolas antigas e prometendo dois patches, em Janeiro e Fevereiro, que consertarão os problemas, assim como o direito ao reembolso a quem o pedisse. https://en.cdprojektred.com/news/important-update/