Carlos Ferreira de Almeida e o Direito do Consumo

Recensão

Não tive a honra de ser aluno do Professor Carlos Ferreira de Almeida nem sequer de o conhecer pessoalmente. Sei, porém, que o seu desaparecimento, no início de fevereiro último, marcou, de modo indelével, uma plêiade de juristas (e não juristas) que tiveram o privilégio de conviver e beber da inteligência e sabedoria do Professor e, como tal, guardam uma imensa saudade do insigne Mestre.

Em particular, colegas e estudantes da NOVA School of Law conservam uma dívida de gratidão para com o Professor Carlos Ferreira de Almeida por, ao lado de Diogo Freitas do Amaral, ter contribuído decisivamente para a criação desta Faculdade de Direito, integrando a sua Comissão Instaladora, no âmbito da qual assumiu um papel crucial na criação do seu curso de Doutoramento – então, uma novidade no cursus honorum dos académicos das Leis –, e na fundação da Unidade de Mediação e Acompanhamentos de Conflitos de Consumo (UMAC), que antecedeu ao NOVA Consumer Lab.

Como sublinhou Marcelo Rebelo de Sousa em mensagem evocativa publicada no sítio da internet da Presidência da República, a par de “diversas funções públicas de relevo” que desempenhou, o Professor Carlos Ferreira de Almeida foi um “jurista distinto”, “por todos respeitado e admirado pelas suas qualidades científicas e pedagógicas”, que, como todos os grandes cultores das Artes e das Letras, para lá da lei da morte, deixa uma “vasta e marcante obra” literária, que continuará a formar gerações de estudantes e profissionais do Direito.

Neste sentido, reportando-me à experiência pessoal, comecei a contactar com a produção científica do Professor Carlos Ferreira de Almeida no início do meu estágio de advocacia, pela mão do meu patrono, Paulo Duarte, por sorte um reconhecido estudioso e entusiasta do Direito do Consumo, que, em inúmeras ocasiões, me incitou a mergulhar na leitura e análise atentas de alguns dos principais manuais do aqui homenageado, nomeadamente os vários volumes da obra “Contratos” e a sua tese de Doutoramento “Texto e Enunciado na Teoria do Negócio Jurídico”, publicada em dois volumes, que, nas palavras do meu patrono, constitui um dos maiores monumentos da ciência jurídica portuguesa, de passagem obrigatória na formação contínua de qualquer jurista luso.

Mais recentemente, graças ao contributo inestimável do Professor Jorge Morais Carvalho, tive a oportunidade de proceder à leitura integral de outras duas obras que, em diferentes estádios da afirmação do Direito do Consumo, se assumem como verdadeiros marcos incontornáveis na doutrina jurídico-consumerística, a saber: “Os Direitos dos Consumidores”, publicado em 1982, e “Direito do Consumo”, dado à estampa em 2005, ambos editados pela Almedina.

Assumidamente influenciado pelas lições do grego Simitis (“Verbraucherschutz, Schlagwort oder Rechtsprinzip?” – numa tradução livre, “Proteção do consumidor, bordão ou princípio jurídico?”) e do alemão Reich (“Markt und Recht: Theorie u. Praxis d. Wirtschaftsrechts in d. Bundesrepublik Deutschland – numa tradução livre, “Mercado e Direito: Teoria e Prática do Direito Empresarial na República Federal da Alemanha”), em 1982, Ferreira de Almeida brindou-nos com a primeira obra jurídica de fundo dedicada aos direitos dos consumidores (e não ao Direito do Consumidor, designação que sempre rejeitou, por circunscrever o tratamento das situações jurídicas de consumo a um dos conceitos subjetivos – que não o único – nelas considerados). A partir da leitura e exame desta obra, conseguimos percecionar as preocupações emergentes nos finais dos anos 70 e inícios dos anos 80, espelhadas, superlativamente, pelos textos da “Carta do Conselho da Europa sobre a Proteção do Consumidor” (Resolução n.º 543 de 17 de maio de 1973), do “Programa Preliminar da Comunidade Económica Europeia para uma política de proteção e de informação dos consumidores” (Resolução do Conselho de 14 de abril de 1975) e do “Segundo Programa da Comunidade Económica Europeia para uma Política de Proteção e de Informação dos Consumidores” (Resolução do Conselho de 19 de maio de 1981) – cláusulas abusivas em contratos-tipo; vendas agressivas; condições abusivas de crédito; vendas de bens não solicitados; responsabilidade do produtor (esta última, ainda hoje, com um regime objetivamente insatisfatório) –, bem como o catálogo de direitos fundamentais neles previstos, o qual serviu de base para a organização sistemática das matérias de direito substantivo e processual abordadas, sempre com encadeamento lógico, pelo Professor.

Numa breve afloração do conteúdo da obra ora em apreço e de entre os muitos aspetos dignos de destaque, pela sua relevância teórico-prática (aqui, considerando que o Professor nunca acreditou numa distinção rígida entre teoria e prática, seja no ensino universitário, seja na investigação científica, a qual, na sua perspetiva, sempre devia versar sobre situações reais da vida quotidiana em detrimento dos artificialismos que, amiúde, apaixonam os académicos, encerrados nas suas torres de marfim), tomamos a liberdade de enfatizar os seguintes: a exposição dos sistemas de controlo (judicial, administrativo e misto) das cláusulas abusivas integradas nos contratos-tipo, suas vantagens e deméritos, a qual reveste de extremo interesse para a análise crítica da solução normativa do art. 3.º da Lei n.º 32/2021, de 27 de maio, ainda a aguardar a necessária regulamentação; a exaltação da lesividade para o consumidor associada à prática de preços impostos verticalmente e de preços aconselhados, assim como dos limites à liberdade de fixação dos preços, nomeadamente, a sua determinabilidade objetiva, a não discriminação entre clientes (hoje, frequentemente posta em crise, com a prática de personalização de preços) e a proibição do “dumping”; a equiparação “tout court” do cumprimento defeituoso ao incumprimento contratual e o apelo à noção de desconformidade em sentido lato (por influência da Convenção de Haia de 1964 sobre a Compra e Venda e a Convenção de Viena sobre Contratos para Venda Internacional de Mercadorias de 1980) para o tratamento da venda de bens de consumo defeituosos; a consideração da assistência pós-venda satisfatória como dever integrado no normal cumprimento dos contratos de fornecimento de bens de consumo; a demonstração dos inconvenientes da aplicação “tout court” dos princípios fundamentais do processo civil à resolução de litígios de consumo, concretamente, o princípio dispositivo, o princípio da igualdade (uma “pura abstração”) e as regras gerais de repartição do ónus da prova; a preocupação em salientar a inibição dos consumidores perante a ação judicial, determinada, esta, pelas despesas com o processo, pela morosidade e pelo “calão jurídico profissional”; a preocupação em abordar e sustentar a importância de criação de estruturas especializadas para resolução dos litígios de consumo com tramitação processual simplificada (além de simplificação das provas e maior peso do princípio inquisitório), que privilegiem a definição da competência territorial em função do domicílio do consumidor e que não sirvam de instrumento ao serviço da cobrança de dívidas pelas empresas; a constatação do papel de destaque (então) conferido às associações de defesa dos consumidores (sobretudo as de estatuto pleno) na tutela coletiva dos direitos do sujeito mais débil da relação jurídica de consumo e ao nível da participação na tomada de decisões político-legislativas; a crítica à desconsideração do pequeno valor que, tipicamente, assumem as ações relativas a litígios de consumo para efeitos de assistência judiciária, já então marcada pela incapacidade de assegurar compensação adequada aos advogados envolvidos no sistema de acesso aos direito e aos tribunais; a inadmissibilidade do “dolus bonus” nos negócios jurídicos de consumo; o destaque e tratamento conferidos ao elemento relacional para caracterizar o negócio jurídico (e não apenas o contrato) de consumo (assim abarcando figuras como a proposta contratual, a oferta ao público, o negócio a favor de terceiro e a responsabilidade extracontratual); a promoção da extensão da relação de consumo aos membros do agregado familiar que vivem com o sujeito adquirente em economia comum (relevante, por exemplo, para a admissibilidade de ressarcimento de danos reclamados por pessoa diferente do titular do contrato de fornecimento de energia elétrica em caso de interrupção ilícita do serviço); a caracterização da natureza (tríplice) dos direitos dos consumidores consagrados na Lei de Defesa do Consumidor de 1981 como “direitos económicos gerais” em relação ao Estado (e que dele requerem a sua concretização como incumbências prioritárias, nos termos da alínea i) do art. 81.º da CRP), “direitos coletivos” (na promoção e tutela de interesses difusos) e direitos subjetivos (oponíveis aos profissionais, nas relações diretas com eles mantidas); e o não reconhecimento de autonomia científica ao Direito do Consumo, antes tratando-o como um tema de Direito Económico (quanto aos “direitos económicos gerais” e aos “direitos coletivos”) e de Direito Comercial e Civil (quanto aos “direitos subjetivos”).

Volvidos 23 anos, embora continuando a negar a sua autonomia científica, o Professor Carlos Ferreira de Almeida embarcou em nova deambulação pelo Direito Privado do Consumo, que veio a conquistar um merecido lugar de entre os manuais obrigatórios no estudo universitário das relações jurídico-consumerísticas. Adotando uma estrutura peculiar na exposição das matérias, diversa daquelas que, habitualmente, encontramos em manuais similares, mas que conserva, a todo o momento, uma conexão e encadeamento lógicos entre temas, é de imperiosa justiça enaltecer, em primeiro lugar, a preocupação do Professor em desenvolver, sempre que pertinentes, exercícios de Direito Comparado, seja para compreensão dos antecedentes legislativos que inspiraram os diplomas em análise, seja para retratar as soluções vigentes nos principais ordenamentos das famílias romano-germânica e anglo-saxónica.

Ademais, a par de outros méritos de que a obra é merecidamente credora, ousamos destacar: o aprumo e rigor técnico-jurídico no tratamento da figura do direito de arrependimento, sua natureza e efeitos, consoante o modelo (de eficácia suspensiva ou de eficácia resolúvel) em causa, distinguindo-a de realidades afins, particularmente, a faculdade de retratação; a preocupação em exaltar que os habitualmente identificados deveres de comunicação e de informação, consagrados nos arts. 5.º e 6.º do DL n.º 446/85, de 25 de outubro, se assumem, na verdade, como ónus, cujo incumprimento determina a consequência desfavorável da não inclusão, no contrato, de cláusulas contratuais (gerais); a arrumação dos padrões relevantes para a qualidade da coisa vendida, distinguindo entre requisitos objetivos e subjetivos, em termos próximos daqueles que, previsivelmente, passarão a constar do decreto-lei de transposição das Diretivas 2019/770 e 2019/771, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2019, sobre certos aspetos relativos aos contratos de fornecimento de conteúdos e serviços digitais e relativa a certos aspetos dos contratos de compra e venda de bens, respetivamente; o tratamento das mensagens publicitárias como cláusulas contratuais gerais para efeitos da sua inserção nos contratos singulares (art. 2.º do DL n.º 446/85), o que parece ter sido ignorado pelo legislador nacional aquando da adoção da já referida Lei n.º 32/2021; a caracterização da conformidade, com recurso a uma fórmula de suma eloquência, como relação deôntica entre o ser (referente) e o dever ser (referência), reconduzindo-a ao cumprimento da obrigação de entrega; e a aplicação da figura da promessa pública para caracterização da declaração ou compromisso de garantia comercial/voluntária.

Uma derradeira consideração importa dedicar ao prognóstico desenvolvido nesta segunda obra quanto ao futuro do Direito do Consumo, entre a sua autonomização e a diluição no direito comum, que suscitou em mim um interesse particular, atenta a evolução conhecida desde a elaboração da obra, nomeadamente quanto ao conceito de consumidor (predominando, aqui, a conceção estrita, pelo menos ao nível do Direito da União Europeia, em que releva o elemento subjetivo) e quanto ao caminho trilhado no sentido da harmonização legislativa máxima (ainda que com recurso a diretivas comunitárias), factores que, segundo o autor, concorrem para o progresso em caminhos opostos.

Remetendo-me à minha humilde condição de curioso por algumas das temáticas acima afloradas, que captam a atenção e alimentam a paixão dos verdadeiros cultores do Direito do Consumo, por tudo quanto expus (e muito mais havia a exaltar!), vergo-me perante a memória do Professor Carlos Ferreira do Almeida e convido todos quantos seguem o projeto NOVA Consumer Lab nas plataformas digitais a escutarem (ou voltarem a escutar) a entrevista que o insigne Mestre concedeu ao NOVA Consumer Podcast, no ano transato, a qual constitui um valioso e inspirador documento para todos os membros desta equipa.

Até sempre, Professor!

Música para os ouvidos de Paul

Consumo em Ação

Por Francisco Colaço, Heloísa Monte e Tiago Pedro

Hipótese: Paul, músico, cidadão alemão que vive e trabalha em Portugal há alguns anos, amante de música oriental, estava em casa sem nada para fazer e decidiu proceder ao download da aplicação Chinese Songs, gerida por uma empresa chinesa, a partir da App Store. Quando Paul começou a utilizar a aplicação, teve de se registar e dar o seu consentimento para a recolha de dados, incluindo a música que ouvia, a hora do dia e o local. Estes dados seriam então tratados pela empresa para descobrir a hora e o local de uso do telefone por parte do utilizador. Paul não precisava de pagar nenhum valor para fazer o download ou para se registar na aplicação. De acordo com as informações disponíveis nos termos e condições, o utilizador pode ouvir cinco músicas completas por dia, sem interrupções. Quando Paul estava a ouvir a segunda música, esta foi interrompida a meio por publicidade. Os termos e condições também indicam que a lei chinesa é aplicável a qualquer litigioso resultante do contrato.

Questão 1 – Assumindo que a lei alemã é mais favorável ao consumidor, seguida da lei portuguesa e finalmente da lei chinesa, qual será a lei aplicável ao contrato?

Para determinarmos qual a lei aplicável, temos de recorrer ao Regulamento Roma I, o qual trata da lei aplicável às obrigações contratuais, em especial quando estão em causa obrigações contratuais em matéria comercial que impliquem um conflito de leis. De acordo com o art. 3.º, prevalece a liberdade de escolha das partes quanto ao direito aplicável, pelo que se aplicaria, à partida, a lei chinesa, em resultado dos Termos e Condições previstos no contrato celebrado entre Paul e a Chinese Songs. Todavia, numa análise mais atenta, verificamos que se trata de uma cláusula contratual geral, e tendo em conta que um contrato não deve criar um desequilíbrio entre as partes, podemos eventualmente considerá-la como uma cláusula potencialmente abusiva, a qual não vincularia o consumidor e não poderia ser invocada pelo profissional. Por conseguinte, deixando de ser vinculativa, estaríamos perante a falta de escolha quanto ao direito a aplicar, o que nos conduziria para o art. 4.º, segundo o qual, perante a falta de escolha, é aplicável a lei do país em que o vendedor tem a sua residência habitual.  Tratando-se de uma pessoa coletiva (empresa gestora da Chinese Songs), é considerado o lugar da sua sede, pelo que se aplicaria a lei chinesa. Neste sentido, independentemente de ter existido ou não um acordo entre as partes, ou de estarmos ou não perante uma cláusula abusiva, seríamos sempre conduzidos para a aplicabilidade da lei chinesa.

No entanto, no art. 6.º do Regulamento encontramos um regime especial que se destina aos contratos celebrados por consumidores, o qual prevê que seja aplicável a lei do país onde o consumidor reside habitualmente, se se verificar uma de duas condições: (i) o profissional exerça as suas atividades no país onde o consumidor reside habitualmente ou, (ii) por qualquer meio, dirigir as suas atividades a esse país.

Neste sentido, primeiramente teremos de verificar se Paul pode ser qualificado como consumidor, para efeitos de aplicação do Regulamento Roma I. Importa referir que este conceito de consumidor é um conceito restrito, na medida em que basta uma utilização profissional, ainda que mínima, para que Paul não possa ser qualificado como consumidor. Assim, mediante os dados apresentados, não obstante o Paul ser músico, iremos assumir que o elemento teleológico se encontra preenchido, ou seja, que Paul fez o download das músicas com a única finalidade de satisfação pessoal, despido de qualquer intenção profissional, uma vez que o fez por ser um apaixonado por música oriental e se encontrar num momento de lazer. Ultrapassada esta questão, constata-se que os demais elementos constitutivos do conceito de consumidor (objetivo, subjetivo e relacional) não levantam dúvidas face à sua verificação, pelo que, de acordo com o art. 6.º-1, Paul é consumidor.

Relativamente às condições impostas pelo artigo, pode desde logo excluir-se a possibilidade de a empresa exercer atividade através de um estabelecimento localizado em Portugal, uma vez que não temos dados que nos orientem nesse sentido, acrescendo o facto de a aplicação poder ser descarregada a partir de um qualquer lugar geográfico. Por conseguinte, resta-nos aferir se essa empresa direciona as suas atividades para o país onde o consumidor tem residência habitual, ou seja, para Portugal. Paul, quando estava na sua residência (em Portugal), fez o download da aplicação a partir da App Store e registou-se na mesma. Assumindo que as cláusulas estavam escritas em português e que o download foi possível tendo em consideração a localização e os dados do utilizador (uma vez que nem todas as aplicações estão disponíveis em todos os países) e que não existiu da parte de Paul uma procura específica na China por esse tipo de serviço, podemos concluir que a Chinese Songs direciona as suas atividades (também) para um público português. Assim, verificados os pressupostos, afasta-se a aplicabilidade dos arts. 3.º e 4.º e, de acordo com o art. 6.º, será aplicável a lei Portuguesa (que é a mais favorável). Não obstante, se a lei chinesa fosse mais favorável, Paul poderia invocar a sua aplicação ao abrigo do art. 6.º-2 do Regulamento. 

Resta acrescentar que, não descurando a complexidade existente em distinguir na internet o tipo de consumidor que se trata, este é um artigo que visa garantir uma proteção acrescida do chamado consumidor passivo, ou seja, do consumidor que contrata sem sair do seu país, em contraposição ao consumidor ativo (ou tradicionalmente turista), que ativamente se desloca para ser consumidor, contratando no âmbito de uma relação internacional[1].

Questão 2 – Paul pode exercer algum direito contra a empresa que gere a aplicação? Responda tendo em conta a legislação europeia.

Para determinar os possíveis direitos de Paul na presente situação, primeiramente temos que aferir se existe alguma desconformidade no contrato celebrado. Ora, Paul celebrou um contrato inicial misto de conteúdos e serviços digitais (com maior predominância na prestação de serviços digitais, por associação a uma aplicação, esta última, conteúdo digital), matéria que é regulada pela Diretiva 2019/770

Recorrendo ao art. 7.º-a) da Diretiva, verificando-se uma desconformidade (subjetiva) com o contrato, na medida em que o serviço digital prestado a Paul não corresponde à descrição feita pelo profissional. Naturalmente, podemos questionar se as cinco músicas sem interrupções são seguidas ou se serão cinco músicas sem interrupções ao longo do dia, num universo de muitas mais, uma vez que o modo como se interpreta pode ter implicações práticas. Ora, o critério mais adequado para esclarecer esta questão passará por recorrer a uma interpretação à luz do art. 236.º do Código Civil, segundo a qual se deve colocar um declaratário normal na posição do real declaratário e daí retirar o sentido depreendido por este (sentido objetivo). Por conseguinte, é sensato afirmar que o declaratário normal colocado na posição de Paul, entenderia que a descrição constante das cláusulas contratuais gerais corresponderia às primeiras cinco músicas que fossem ouvidas, sendo impossível, de outra forma, determinar o número de músicas ouvidas por um utilizador ao longo do dia. Assim, perante os factos apresentados, estamos perante uma desconformidade evidente entre o serviço contratado e o serviço prestado.

O art. 14.º da Diretiva 2019/770 elenca os direitos do consumidor: reposição da conformidade, redução proporcional do preço ou resolução do contrato. Poderia, neste caso, Paul exigir uma redução do preço? Parece-nos lógico que não, porque, ainda que exista uma contraprestação associada, não existe um preço. O direito à resolução do contrato não traria também qualquer vantagem para Paul, uma vez que os seus efeitos típicos passariam pelo término da prestação do serviço digital e pela devolução do preço, o que remete para o problema acima apresentado. Acresce ainda que a eventual “vantagem” que Paul poderia obter, no que respeita ao tratamento dos dados pessoais, poderia sempre ser alcançada por outras vias, como através da revogação de consentimento ou através do direito ao esquecimento, previstos respetivamente nos arts. 7.º e 17.º do RGPD. Assim, no nosso entender, a solução mais adequada passa, neste caso, pela reposição da conformidade.


[1] Claudia Lima Marques, “Por um direito internacional de proteção dos consumidores: sugestões para a nova lei de introdução ao Código Civil brasileiro no que se refere à lei aplicável a alguns contratos e acidentes de consumo”, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Vol. 24, n.º 1, 2004, pp. 89-137, p. 94.

Cyberpunk 2077 e o problema da falta de conformidade dos videojogos no seu lançamento

Doutrina

No passado dia 10 de Dezembro, foi lançado o muito aguardado Cyberpunk 2077, do estúdio e distribuidor polaco CD Project Red, responsável também pela muito conhecida franchise The Witcher. Após oito anos em desenvolvimento, dois adiamentos da data de lançamento e uma campanha publicitária muito intensa, os fãs puderam finalmente adquirir o videojogo. Este encontra-se disponível em lojas físicas e em lojas virtuais, como a da GOG (subsidiária da CD Project Red), a Steam, a Google Store, a Playstation Store e a Microsoft Store. O videojogo tem versões para computadores e para as consolas Playstation 4 e Xbox One, assim como para as recém-lançadas, ditas de nova geração, Playstation 5 e Xbox X e S.

No entanto, para desapontamento de muitos, o videojogo que adquiriram – sendo que 8 milhões de pessoas fizeram por pre-order, com a antecedência de muitos meses, com a promessa de alguns conteúdos bónus – tinha bastantes problemas, especialmente em termos de performance do software. Rapidamente, a Internet encheu-se de relatos de jogadores que partilhavam os bugs e glitches mais “engraçados” e absurdos. E relatos do facto de o software estar com tantos problemas que seria impossível, na realidade, utilizar o serviço digital que adquiriram, mesmo tendo computadores e equipamentos que cumprissem com os requisitos de sistema publicitados pela CD Project Red. A situação revelou-se especialmente grave nas consolas de “antiga geração”, a Playstation 4 e a Xbox One, em que os jogadores se queixaram de o videojogo não funcionar e provocar crashes em que a consola se desligava de forma inesperada e constante. Esta situação levou, inclusivamente, a que a Sony retirasse o videojogo da Playstation Store e concedesse um reembolso a todos os consumidores que o pedissem.

Mesmo com um lançamento controverso e cheio de problemas, não cumprindo o “produto” final as expectativas estabelecidas pelo marketing intenso, as promessas do estúdio e a própria descrição do produto nas lojas virtuais, a verdade é que isto não impediu que as vendas do Cyberpunk 2077 fossem um sucesso comercial gigantesco. Muitos consumidores não tiveram acesso a remédios adequados face às faltas de conformidade do software. As soluções oferecidas basearam-se, essencialmente, nas (heterogéneas) políticas comerciais das lojas físicas e das lojas virtuais, que variam de plataforma para plataforma e de Estado para Estado.

Este aparenta ser um cenário bastante problemático que, infelizmente, no caso da indústria dos videojogos, está muito longe de ser excecional. Na verdade, lançamentos desastrosos de videojogos num estado inacabado como o do Cyberpunk 2077 são mais comuns do que seria de esperar. Há, geralmente, vários casos como este por ano, ligados às maiores produtoras, com situações particularmente notórias pelo nível de embuste e mentiras flagrantes (por exemplo, No Man Sky em 2016 ou Fallout 76 em 2018). Habitualmente, nestes casos, as empresas vão lançando patches e updates durante os meses seguintes ao lançamento, que servem para reparar/consertar os principais problemas do software e para incluir funcionalidades e conteúdos que supostamente deviam ter sido incluídas no produto final já distribuído[1]. Porém, este processo pode demorar muito tempo, ou até nem se verificar de todo, existindo empresas com uma reputação conhecida de venderem videojogos inacabados, com publicidade enganosa, e que rapidamente abandonam esses projetos, optando por alocar imediatamente os seus recursos a novos produtos.

Além dos danos causados pelo lançamento de videojogos num estado inacabado, há certas práticas adotadas pelos maiores distribuidores do mercado que devem ser referidas aqui: as já referidas pre-orderse os “reviews embargos”.

Nas pre-orders, os consumidores pagam antecipadamente por um videojogo que ainda não foi lançado no mercado, sendo geralmente aliciados para tal com a inclusão de conteúdos extra-exclusivos e, por vezes, uma redução do preço.

Os “review embargos” consistem na prática das produtoras de, ao enviarem antecipadamente cópias dos seus produtos a jornalistas para estes testarem, proibirem que estes publiquem as suas avaliações até depois do lançamento oficial. Impede-se, desta forma, que os consumidores (que já pagaram pelas pre-orders) possam ser alertados do estado do produto a tempo de cancelar a sua compra. Nos casos raros em que algum jornalista “furou” o embargo, publicando o seu artigo antes de tempo, este acabou blacklistedpelas principais empresas, deixando de receber o produto para testar com antecedência.

Do ponto de vista do Direito do Consumo, toda esta controvérsia levanta várias questões interessantes.

Na ótica processual, temos as questões de saber (i) qual é a jurisdição na qual deve ser iniciada a ação, (ii) qual é a lei aplicável ao contrato e (iii) que meios de resolução extrajudicial de litígios podem ser utilizados.

Os EULA (End-User Licensing Agreements) incluem, geralmente, cláusulas sobre estas temáticas, que por vezes procuram afastar as normas especiais do Regulamento Roma I e do Regulamento Bruxelas I, o que pode levantar problemas aos consumidores.

Num plano substantivo, a Diretiva dos Direitos dos Consumidores (Diretiva 2011/83/UE) classifica os videojogos como conteúdos digitais, estabelecendo que as comunicações pré-contratuais fazem parte integrante do contrato e atribuindo um direito ao arrependimento ou à livre resolução do contrato aos consumidores nos contratos realizados à distância ou fora do estabelecimento comercial. No entanto, no seu artigo 16.º-m), estabelece que o consumidor pode abdicar deste direito nos contratos de fornecimento de conteúdos digitais que não sejam disponibilizados em suporte duradouro. Na prática, esta situação ocorre com facilidade, por via da inclusão desta cláusula nos Termos e Condições que o consumidor é “forçado” a aceitar na loja virtual.

No entanto, nem tudo está perdido para o consumidor.

Embora em muitas ordens jurídicas dos Estados Membros da União Europeia não existam normas quanto a requisitos de conformidade de serviços digitais e que atribuam direitos ao consumidor em caso de desconformidade, esta situação está em vias de resolução. Com efeito, a Diretiva 2019/770, relativa aos contratos de fornecimento de serviços e conteúdos digitais, deverá ser transposta ainda este ano, com entrada em vigor das normas de transposição a 1 de Janeiro de 2022. Ainda mais recentemente, foi aprovada a Diretiva 2020/1828, sobre as ações coletivas de proteção dos direitos dos consumidores, que irá colmatar as lacunas existentes em alguns Estados Membros e agilizar a propositura de ações para a reparação de danos causados pela violação do direito de consumo europeu e das leis nacionais, incluindo as Diretivas 2011/83/UE e 2019/770.

Assim, com a transposição destas normas e com o aprofundamento do Mercado Único Digital na União Europeia, os consumidores irão beneficiar de uma maior proteção dos seus direitos. Situações como o lançamento do Cyberpunk 2077, em que serviços digitais são distribuídos num estado inacabado sem a devida indicação, tornar-se-ão, espera-se, mais raras.

[1] No caso da CD Project Red, quatro dias depois do lançamento do Cyberpunk 2077, esta publicou um statement neste sentido, admitindo que esconderam as falhas das versões nas consolas antigas e prometendo dois patches, em Janeiro e Fevereiro, que consertarão os problemas, assim como o direito ao reembolso a quem o pedisse. https://en.cdprojektred.com/news/important-update/