Morreram mais de 6.700 pessoas no Qatar desde que o país foi designado anfitrião do campeonato do mundo de futebol. Não foram umas pessoas quaisquer e não foi numas circunstâncias quaisquer. Foram trabalhadores migrantes provenientes da Índia, do Bangladesh, do Nepal, do Sri Lanka e do Paquistão, e o número divulgado pelo The Guardian nem inclui a mão-de-obra proveniente de países como o Quénia e as Filipinas[1]. São sempre os mesmos.
Problema número um: os registos de óbito não especificam o local de trabalho dos falecidos, muito embora Nick McGeehan (diretor da FairSquare Projects) assegure que “uma proporção muito significativa dos trabalhadores migrantes que morreram desde 2011 estava no país apenas porque o Qatar obteve o direito de receber o Mundial de Futebol”[2].
Se os registos não especificam se morreram na construção de infraestruturas para o Mundial do Futebol, então não temos um problema. Exceto se, de repente, a Noruega aparecer com uma t-shirt estampada com o slogan “Human Rights: on and off the pitch” no jogo contra Gibraltar e ainda ganhar 3-0. Aí começam a surgir dúvidas acerca da veracidade da “causa natural” de 69% das mortes de indianos, nepaleses e bangladeshianos no Qatar.
Já em 2013 a Amnistia Internacional expusera a “exploração alarmante” dos trabalhadores estrangeiros no Qatar, afirmando que estes são “tratados como animais”[3]. Em 2016, nova investida sobre o lado feio do jogo bonito[4]. E nada. Perante várias pressões mediáticas, o Qatar anunciou um programa de proteção e garantia de bem-estar e agora, em 2021, os organizadores do evento assinam um memorando de entendimento com a CNDH. Atempado é que não foi.
Vários clubes noruegueses apoiam um boicote ao Mundial. 55% dos noruegueses são favoráveis a um boicote ao Mundial. A Alemanha, a Dinamarca e a Holanda já se juntaram ao movimento. Outros estão a caminho. Que parece em curso uma campanha articulada de boicote por parte das grandes estruturas, já não há grandes dúvidas. As acusações de sportwashing a isso obrigam, mas já obrigavam antes. Nesta cadência, as consequências não serão bonitas para o futebol: milhões de euros investidos em vão, milhares de promessas rompidas, algumas carreiras prejudicadas. Mas, sobretudo, milhares de vidas perdidas até agora e outras tantas com a sua atividade dispensada daqui para a frente.
Resta agora saber se também o público se juntará ao movimento. Não será surpreendente que o comportamento de boicote se torne viral, sobretudo se içado pelos sonantes nomes da indústria do futebol. No entanto, o público adepto da modalidade não tem contornado a devoção perante os múltiplos escândalos que estoiram permanentemente na área (e isto nem é um trocadilho). Talvez só mesmo a ausência das principais estrelas da modalidade poderiam justificar o desinteresse do público, o que, em teoria, nunca seria um verdadeiro boicote por parte do consumidor.
Também não será surpreendente o seu reverso, marcado pela já conhecida indiferença pelo fenómeno da violação de direitos humanos, conduzindo, sem qualquer rasgo de perturbação, o público ao estádio e ao comando. Tudo dependerá do eco que o movimento vai recolher, como já temos sido habituados. De todo o modo, é até inteligível a interrogação dos que não venham a compreender o que tem o futebol a ver com trabalhadores migrantes, dos que venham a não conceber que a perversa máquina por trás dos relvados, sempre tão bem regados a cifrões, desta vez encerre em si vidas dos seus iguais.
Qualquer um dos desfechos será agonizantemente hipócrita. Como bem referiu Håvard Melnæs, “não deveria Martin Ødegaard, ao protestar contra a exploração dos trabalhadores no Qatar, fazer o mesmo contra o patrocinador mais importante do seu clube, os Emirados Árabes Unidos, que trata os seus trabalhadores migrantes da mesma forma ou talvez pior do que o Qatar?”[5].
Não deixa nem por isso de ser curioso que a iniciativa venha do clube norueguês Tromsø, do Círculo Polar Ártico. Talvez lá de cima se veja melhor o panorama (do) mundial.
[1] https://www.theguardian.com/global-development/2021/feb/23/revealed-migrant-worker-deaths-qatar-fifa-world-cup-2022
[2] https://www.business-humanrights.org/en/latest-news/qatar-guardian-investigation-finds-6500-migrant-workers-have-died-in-world-cup-host-country-since-2010/
[3] https://www.amnesty.org/download/Documents/16000/mde220102013en.pdf
[4] https://www.amnesty.org/en/documents/mde22/3548/2016/en/
[5] https://www.theguardian.com/commentisfree/2021/mar/30/norway-boycott-qatar-world-cup-football