Das Diretivas aos Regulamentos – Em busca da União pela regulamentação quase-federal

Legislação

A crescente opção da União Europeia pelos Regulamentos é um sinal da dificuldade em conjugar políticas e interesses nacionais, acordando no que pode ser comum, deixando espaço à diversidade. A diferença principal entre a Diretiva e o Regulamento é que aquela estabelece um regime consensual dando margem, maior ou menor, a que os Estados-membros acomodem as suas diferenças. Essa margem origina, como seria de esperar, discrepâncias entre ordenamentos jurídicos nacionais, o que dificulta o “transnacional”. O Regulamento colmata essas diferenças, estabelecendo regimes jurídicos diretamente aplicáveis e obrigatórios para todos os Estados-Membros.

Esta tendência tem vindo a aumentar e a consciência de que existe e das suas consequências é, também, crescente, constituindo o final de 2020 uma espécie de apoteose.

Destaca-se, em vigor e pela atenção que tem vindo a despertar, o Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD)[1].

Destacam-se, pela dimensão e previsível impacto, as recentes Propostas apresentadas, em 24 de setembro de 2020, no âmbito do Pacote Financeiro Digital (PFD)[2] que inclui, entre outros documentos, a Proposta de Regulamento relativo aos Criptoativos (Markets in Crypto Assets – MiCA)[3], a Proposta de Regulamento DLT, relativo a um regime-piloto para as infraestruturas de mercado baseadas na tecnologia de registo distribuído e a Proposta de Regulamento relativo à resiliência operacional digital do setor financeiro (Digital Operational Resilience Act – DORA), bem como as apresentadas em 15 de dezembro de 2020, no âmbito das novas regras sobre serviços e mercados digitais, que incluem a Proposta de Regulamento Serviços Digitais (DSA) e a Proposta de Regulamento Mercados Digitais (DMA)[4].

Este caminho, da Diretiva para o Regulamento, revela uma dificuldade de base da União Europeia que, tudo indica, poderá levar ao seu fim.

A atual União Europeia é fruto de uma espécie de milagre originário que mostra até que ponto as pessoas conseguem ser sensatas.

Vencedores e vencidos europeus, da Segunda Guerra Mundial, uns e outros quase totalmente destruídos, olharam para a origem do problema, constatando que boa parte se situava na bacia do Ruhr, rica em carvão e ferro (minério de base na liga de aço), fundamentais ao normal funcionamento e desenvolvimento das economias resultantes de uma revolução industrial que assentava grandemente nessas matérias-primas. A região fica situada na Alemanha, Ruhr é um rio afluente do Reno, que desagua na cidade de Duisburgo, próximo de Düsseldorf, muito perto das fronteiras com a Holanda e a Bélgica, pouco longe do Luxemburgo e de França. No final da Primeira Guerra Mundial, vencidos os alemães – em cumprimento das imposições do Tratado de Versailles, de 1919, que oficialmente lhe pôs fim – foi a região ocupada por tropas belgas e francesas. A vontade e necessidade de aceder à sua riqueza foi um ponto relevante na tensão e conflitualidade que acabou por culminar no conflito mundial de 39-45.

Por isso, saídos da guerra desfeitos, liderados por gigantes visionários, a França, os países do Benelux (Holanda, Bélgica e Luxemburgo), a Alemanha Ocidental e a Itália assinaram, em 1951, o Tratado de Paris que instituiu a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço. Até aqui, embora grandioso, ainda se poderia dizer que seria uma questão de sobrevivência básica, mas decidiram ir muito mais longe criando em 1957, com o Tratado de Roma, a Comunidade Económica Europeia (CEE) e a Comunidade Europeia da Energia Atómica (CEEA ou Euratom), colocando assim a nova e catastrófica energia no seu âmbito.

No princípio e durante algum tempo a regra era a da unanimidade na tomada de decisões e os Tratados eram fundamento direto de muito do que se decidia. O Tratado de Maastricht (vale a pena ver no mapa onde fica a cidade), também denominado Tratado da União Europeia, os sucessivos alargamentos, com a sempre crescente necessidade de procurar acordos entre países cada vez mais diversificados, foi tornando mais difícil o governo da União. A hipótese de transformação num Estado Federal, estrutura já muito testada e com sucesso pelo mundo, foi colocada e rejeitada. Os Estados que compõem a União Europeia, na sua maioria, são antigos e têm uma forte identidade nacional. Este orgulho nacional impediu-os de aceitar disporem de parte da sua soberania a favor de um Estado Federal que integrariam e levou, recentemente, à saída inusitada do Reino Unido. A bem do comércio, a livre circulação foi sendo conseguida, foi boa a adesão ao sistema Euro e vários obstáculos vão sendo transpostos. 

O abandono da unanimidade das decisões, que originaria menor necessidade de consenso, foi contrabalançado pelo aumento de membros, com perfis muito diversificados.

Na legislação, a árdua negociação e a busca do acordo, sempre foi notória pela existência de considerandos e pela consagração de elevado número de exceções praticamente a consumir as regras.

As alterações geopolíticas das últimas décadas têm vindo a colocar a Europa numa situação delicada. À queda dos impérios do Ocidente seguiu-se a fulgurante (re)ascensão do Oriente, em que a China assume papel de grande destaque, o que só pode causar surpresa se a sua milenar história for ignorada, ofuscada pelos comparativamente minúsculos finais do século XIX e século XX. Alguém disse “A América inventa, a China copia, a Europa regula”. Já não é assim, a China (re)começou a inventar.

Neste contexto, a desunida União Europeia sabe que precisa de se manter junta e coesa para ter dimensão minimamente comparável e de rapidez semelhante à originada pela vitalidade americana e o dirigismo chinês. Sabe, também, que precisa de inovação e digitalização para ser economicamente competitiva e que, enquanto desenvolve um mercado comum com condições para ter uma palavra a dizer na nova ordem económica e política global, tem de preservar os direitos fundamentais, em geral, e os direitos dos consumidores, em particular, que são parte integrante da sua natureza e da sua identidade comum. 

A crescente adoção, pelo menos em áreas estratégicas, de Regulamentos pela UE, parece uma manifestação clara daquelas necessidades. É o instrumento com efeito “quase-federal” e menos lento que tem disponível. Assim se explicará a cascata Regulamentar em curso.

O sucesso, a julgar pelo RGPD, está longe de ser garantido. Pode ser que funcione com os futuros regulamentos prestes a sair da linha de montagem e que, em grande medida, contam conter Big Tech’s de fora da Europa. Ao ritmo a que estas andam não será tarefa fácil.


[1] Já abordado neste blog aqui.

[2] Já abordado neste blog aqui.

[3] Já abordado neste blog aqui.

[4] Neste blog anunciadas aqui, encontrando-se o tema também já tratado no que diz respeito às grandes plataformas, à liberdade de expressão, relacionado com Acórdão do STJ e com a proteção dos consumidores.

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