Ainda sobre o Direito a (Ter) uma Conta Bancária

Doutrina

Faço (boa) referência ao texto de Carlos Filipe Costa, intitulado “Há um direito a (ter) conta bancária? – a conta de serviços mínimos bancários” publicado neste mesmo fórum no dia 23 de julho de 2021. Recomendo, antes de mais – e acima de tudo – a sua leitura cuidada porquanto apresenta, de uma forma bastante clara e compreensível, a discussão em torno do direito do consumidor (hic: interessado) a (ter) uma conta bancária dentro do contexto jurídico estabelecido pelo Decreto-Lei n.º 27-C/2000, de 10 de outubro, que criou o sistema de acesso aos serviços mínimos bancários (SMB). Sem prejuízo de outros tópicos mencionados no texto que, na minha perspetiva, seriam também interessantes explorar, o motivo deste pequeno comentário funda-se essencialmente no desacordo que tenho quanto a uma qualificação técnico-jurídica sugerida pelo autor a propósito deste direito a (ter) uma conta bancária[1].

O autor entende – e bem – que o regime jurídico que regula o sistema de acesso aos SMB configura, na perspetiva da instituição de crédito, uma restrição à autonomia privada, em especial à liberdade contratual. Segue, afirmando que o que está em causa é uma “obrigação (legal) de contratar com o consumidor, desde que este revista a qualidade de «interessado»”, o que indicia, prima facie, a natureza creditícia da situação jurídica em questão. Todavia – e aqui jaz a minha posição discordante –, defende o autor logo de seguida que, na medida em que estejam preenchidos todos os pressupostos estabelecidos pelo supra mencionado regime jurídico, “o cliente, por um ato livre de vontade (…) não carece da cooperação da instituição de crédito para a conclusão do depósito à ordem”, concluindo que “em bom rigor, o mesmo se encontra investido num direito potestativo, a que se opõe um estado de sujeição da contraparte, que tem de suportar inelutavelmente na sua esfera a consequência jurídica cominada (no caso, a abertura de conta de SMB domiciliada na instituição de crédito escolhida pelo consumidor), sem nada poder (nem dever) fazer para o evitar”. Nas próximas linhas procurarei explicar muito sucintamente por que motivo entendo que, neste caso, a situação jurídica não configura rigorosamente uma relação direito potestativo/sujeição, mas sim uma relação jurídico-obrigacional.

In tribus verbis, o direito potestativo corresponde a uma situação jurídica ativa nos termos da qual é conferido ao seu titular o poder de, unilateralmente, produzir um determinado efeito jurídico – constitutivo, modificativo ou extintivo – noutra pessoa (que se encontra na situação jurídica passiva de sujeição). A constituição de uma servidão de passagem em benefício de prédio encravado, o direito de opção, a revogação da procuração pelo representado ou o direito de resolução são alguns exemplos tradicionais de direitos potestativos.

O elemento ontológico que distingue esta espécie de direito subjetivo da relação jurídico-obrigacional funda-se na ausência do dever de prestar e, nesse sentido, na impossibilidade de inadimplência por parte da pessoa em situação de sujeição. O efeito produzido pelo exercício do direito potestativo é, por regra, automático, não necessitando de qualquer intervenção do destinatário quanto à sua conformação, sem prejuízo de, nalguns casos, ser ainda necessária a intervenção de uma autoridade administrativa ou judicial para a completude do efeito jurídico pretendido. Em todo o caso, este atinge a esfera da pessoa “sujeita” independentemente de atos materiais ou jurídicos cuja prática dependam apenas e exclusivamente de si. O proprietário do prédio sobre o qual recai uma servidão de passagem pode impedir materialmente o acesso do titular do direito potestativo, mas não pode obstar ao – ou de alguma forma bloquear o – efeito produzido pelo exercício do direito; da mesma forma, o exercício de uma opção de venda sobre um determinado objeto produz, regra geral e de forma automática, o efeito real pretendido – a transmissão do direito de propriedade sobre o objeto – sem que o adquirente possa, de um ponto de vista jurídico, impedir a sua conformação.

A qualificação de uma determinada situação jurídica como constituindo um direito potestativo não se deve apenas basear em critérios e razões qualitativas, hierárquicas, de importância jurídica ou socioeconómica em função da situação em concreto; ela deve atender também – e principalmente – ao caráter jurídico-funcional que o direito potestativo consagra e que se resume fundamentalmente na já referida ausência do dever de prestar. É exatamente por força da impossibilidade técnica de não cumprimento que o direito potestativo, de um ponto de vista funcional, liberta o titular da situação jurídica ativa de uma eventual dependência da “contraparte” (rectius: pessoa correlacionada) no sentido de ver assegurado o seu interesse por mero efeito do exercício do direito. Ora, para que uma situação relacional seja qualificada como direito potestativo/sujeição, é necessário que o efeito pretendido in casu seja viável, de um ponto de vista jurídico, tendo em consideração o objeto do próprio efeito previsto, sendo exatamente neste ponto que considero incorreta a qualificação do direito a (ter) uma conta bancária como direito potestativo. Passo a explicar.

O primeiro passo a tomar no sentido de justificar a qualificação da situação ativa como configurando um direito potestativo é precisamente averiguar qual o efeito produzido pelo mero exercício do direito por parte do seu titular (hic: consumidor/interessado). Ora, na situação em apreço, segundo o autor, “a consequência jurídica cominada” é (…) “no caso, a abertura de conta de SMB domiciliada na instituição de crédito escolhida pelo consumidor”. Defende o autor que a celebração do contrato de abertura de conta resulta no efeito automático e constitutivo produzido por força da declaração unilateral emitida pelo interessado; de outra forma, torna-se cliente da instituição de crédito.

O contrato bancário geral (ou, para alguns, contrato de abertura de conta) configura um contrato-quadro regulador de uma relação de clientela tendencialmente duradora e complexa, sujeita à celebração eventual de uma multiplicidade de negócios jurídicos unilaterais e bilaterais posteriores, autónomos, mas funcionalmente dependentes daquele, tais como o contrato de depósito à ordem, contrato de cartão bancário, emissão de ordens de transferência, etc. Ademais, e independente deste facto, os serviços bancários integrados nos SMB, nomeadamente serviços relativos à constituição, manutenção, gestão, titularidade e encerramento de conta de depósito à ordem, a emissão de cartão de débito, acessibilidade na movimentação de conta em caixas automáticas dentro da União Europeia, homebanking e acesso a balcões da instituição de crédito, bem como aceitação de depósitos, cumprimento de ordens de transferência e de pagamento, etc., são factos que estão sujeitos a um dever de prestar por parte da instituição de crédito – que pode sempre decidir não cumprir –, descaracterizando dessa forma a funcionalidade intrínseca a um eventual direito potestativo.

Não é possível, de um ponto de vista jurídico, atribuir um direito potestativo cujo efeito (aqui extintivo da obrigação) resultaria no cumprimento do dever de prestar; este facto dependerá sempre da atuação de uma outra pessoa, não bastando a mera declaração unilateral do titular do direito para que o tal efeito pretendido seja alcançado – e o seu interesse assim protegido. Também a qualificação desta situação ativa como direito potestativo e que resultaria automaticamente na celebração do contrato de abertura de conta tornar-se-ia, na prática, inútil, na medida em que a instituição de crédito teria sempre a faculdade de, ainda que injustificadamente, exercer o direito (também potestativo) à resolução desse mesmo contrato, desfuncionalizando, uma vez mais, aqueloutro direito[2].

Pergunto-me também se se seria viável, seguro e adequado, a atribuição de um direito potestativo, nos termos do qual bastasse a mera declaração unilateral do consumidor/interessado para a automática produção dos referidos efeitos constitutivos sem permitir que as instituições de crédito pudessem exercer algum controlo prévio no que toca à conformidade factual apresentada pelo interessado-requerente com os requisitos legais previstos na lei… Julgo que não e, aliás, parece também ter sido essa a posição do legislador. É preciso não esquecer que o próprio texto legislativo atribui à instituição de crédito o poder/dever de análise prévia da situação do interessado no sentido de averiguar o preenchimento dos pressupostos legais, culminando na possibilidade da instituição, mediante justificação, poder recusar a celebração do contrato de abertura de conta e, consequentemente, a prestação dos SMB (cfr. artigo 4.º, n.ºs 5 e 7 do Decreto-Lei n.º 27-C/2000). Neste caso, para além dos motivos que justificam a recusa, a instituição de crédito deverá informar o interessado (i) das alternativas que tem para reclamar do ato de recusa junto do Banco de Portugal e (ii) de outros meios de resolução alternativa de litígios que estejam disponíveis. A atribuição de um direito potestativo seria manifestamente incompatível com este procedimento previsto pelo regime aplicável. Pelo exposto concluo que a qualificação do direito a (ter) uma conta bancária fundada no Decreto-Lei n.º 27-C/2000 não é, summo rigore, um direito potestativo, mas um direito de crédito, encontrando-se, por outro lado, a instituição de crédito “sujeita” ao dever jurídico de contratar.


[1] Naturalmente que o presente texto em nada pretende atingir direta ou indiretamente o autor, nem o conteúdo do texto referenciado, mas apenas alargar o sempre bem desejado debate doutrinário sobre uma questão que considero relevante, em especial por todas as implicações jurídicas que extravasam o próprio tema dos SMB.

[2] A resolução ilícita (rectius: resolução infundada) não é, no meu entendimento, inválida. Ela produz os efeitos extintivos de qualquer declaração unilateral, sendo nessa circunstância equiparada ao incumprimento definitivo. No sentido da extinção do contrato por força da “resolução ilícita”, v., por exemplo, TRP, proc. n.º 1041/12.0TVPRT.P1, de 28 de outubro de 2015 (Anabela Dias da Silva); STJ, proc. n.º 2348/16.3T8VFR.L1-7, de 20 de março de 2021 (Luís Filipe Sousa).


 [MCM1]Link para o texto

Há um direito a (ter) conta bancária? – A conta de serviços mínimos bancários

Doutrina

Manuel Januário da Costa Gomes, na sua obra Contratos Comerciais, levanta a questão colocada no título a propósito do Decreto-Lei n.º 27-C/2000, que criou o sistema de acesso aos serviços mínimos bancários (SMB), com a redação que lhe foi conferida pela Lei n.º 19/2011, ou seja, num momento em que vigorava, ainda, um “regime de adesão voluntária” ao sistema pelas instituições de crédito.

Entretanto, com a terceira alteração ao Decreto-Lei n.º 27-C/2000 operada pela Lei n.º 66/2015, foi imposta a obrigação de disponibilização de SMB a todas as instituições de crédito que disponibilizem ao público os serviços que integram as contas de pagamento com características básicas (basic bank accounts), assim denominadas ao nível dos instrumentos normativos de soft law e de hard law da União Europeia, de entre os quais se destaca a Recomendação da Comissão de 18 de julho de 2011 e a  Diretiva 2014/92/CE.

Neste novo contexto, reveste ainda maior acuidade a questão de saber se se revela ajustada a afirmação de um direito universal a (ter) conta bancária. E, em caso de resposta afirmativa, importa deslindar as implicações que o reconhecimento de tal posição jurídica assume na configuração tradicional da relação bancária.

Porém, antes de avançar com uma proposta de resposta às interrogações acima enunciadas, creio necessário desenvolver uma breve caracterização do regime jurídico dos SMB.

Apesar de não integrar o elenco taxativo de serviços públicos essenciais constante no art. 1.º-2 da LSPE, numa moderna sociedade europeia como a portuguesa, a prestação universal de serviços de pagamento constitui uma condição cada vez mais indispensável ao desenvolvimento de uma economia sem fronteiras internas e socialmente inclusiva e coesa, em que todos os cidadãos, independentemente da sua situação de vulnerabilidade (resultante, e.g., de uma situação financeira difícil ou de uma formação escolar rudimentar), da sua nacionalidade, do seu local de residência ou de qualquer outro dos fatores referidos no art. 21.º da CDFUE, participam plenamente na dinâmica do mercado interno e colhem os benefícios que dele advêm.

Nesta era de financeirização da economia e do cidadão superiormente retratada por Guido Comparato, a titularidade de uma conta bancária à ordem (e de um cartão de débito) constitui condição necessária ou, pelo menos, significativamente facilitadora da execução de operações de depósito, de transferência ou levantamento de fundos. Pense-se, em particular, no recebimento de retribuições laborais ou prestações sociais, no pagamento de impostos e de contribuições para a Segurança Social e no pagamento das contraprestações periódicas devidas pelo fornecimento de água, energia elétrica, gás natural e comunicações eletrónicas.

Por conseguinte, afigurando-se incontornável o reconhecimento do estatuto de serviços de interesse económico geral a certos serviços bancários[1], nos dias de hoje, qualquer consumidor que tenha o direito de residir num Estado-Membro em virtude do direito da União Europeia ou nacional goza da prerrogativa de solicitar, junto de uma instituição de crédito à sua escolha, a abertura de uma conta de SMB (ou a conversão de uma conta de depósito à ordem de que já seja titular numa conta de SMB), ficando a instituição adstrita, salvo se se verificar fundamento legítimo de recusa[2], ao dever de, sem demora indevida e o mais tardar 10 dias úteis após a receção do pedido, celebrar contrato de depósito à ordem e, nesse seguimento, disponibilizar os seguintes serviços: manutenção, gestão, titularidade e encerramento da conta; disponibilização de um cartão de débito para movimentação da conta através dos caixas automáticos em Portugal e nos restantes Estados-Membros da União Europeia, de homebanking e dos balcões da instituição de crédito; execução de ordens de depósito e de levantamento de numerário e ordens de pagamentos de bens e serviços, nomeadamente na modalidade de débito direto; realização de transferências intrabancárias, interbancárias (através de caixas automáticos, sem limite de número de operações), via homebanking (com o limite de 24 transferências nacionais e no interior da União Europeia, por cada ano civil) e através de aplicações de pagamento operadas por terceiros (por exemplo, MBWay, com o limite de 5 transferências mensais e de valor igual ou inferior a € 30 por operação) – arts. 1.º-2-a), 2.º-1, 3.º-2, 4.º-1, 3 e 5, 4.º-A, 4.º-B e 4.º-C-1 do Decreto-Lei n.º 27-C/2000.

A fim de assegurar o acesso a estas contas de pagamento com características básicas ao maior número possível de consumidores, de acordo com o art. 3.º-1 do Decreto-Lei n.º 27/C-2000, pelos serviços e operações acima elencados, não podem ser cobrados, pelas instituições de crédito, comissões, despesas ou outros encargos que, anualmente, e no seu conjunto, representem montante superior ao equivalente a 1% do valor do Indexante dos Apoios Sociais (cujo valor, em 2021, é de € 438,81).

Face ao exposto, temos que o sistema de acesso aos SMB obedece, quanto ao modelo formal adotado, a um figurino de hétero-regulação, porquanto as obrigações assumidas pelas instituições de crédito e toda a restante disciplina que rege as contas bancárias básicas radicam em fonte legal[3]. E, indo mais além, parece-me indiscutível que, no âmbito do sistema de que aqui trato, se encontra configurada uma restrição à liberdade de contratar, enquanto dimensão do princípio da liberdade contratual (art. 405.º do Código Civil), pois a instituição de crédito tem a obrigação (legal) de contratar com o consumidor, desde que este revista a qualidade de “interessado” nos termos do Decreto-Lei n.º 27-C/2000 (ser pessoa singular e ter o direito de residir num Estado-Membro em virtude do direito da União Europeia ou nacional – art. 1.º-2-g)), e em relação a ele não se verifique algum dos fundamentos taxativos, legalmente determinados, de recusa, impeditivos do reconhecimento do direito a conta de SMB. Mais concretizadamente, porque o cliente, por um ato livre de vontade e preenchidos aqueles requisitos, não carece da cooperação da instituição de crédito para a conclusão do contrato de depósito à ordem, entendo que, em bom rigor, o mesmo se encontra investido num direito potestativo, a que se opõe um estado de sujeição da contraparte, que tem de suportar inelutavelmente na sua esfera a consequência jurídica cominada (no caso, a abertura de conta de SMB domiciliada na instituição de crédito escolhida pelo consumidor), sem nada poder (nem dever) fazer para o evitar.

Ora, a compreensão que acabo de assumir no sentido da afirmação de um direito universal a (ter) conta bancária não pode deixar de espoletar uma discussão, ainda que breve, sobre o mérito do entendimento dominante na literatura e jurisprudência acerca da configuração da relação bancária.

Entre nós, é comum sustentar-se que a relação bancária tem fonte contratual, radicando num “contrato bancário geral” – o contrato de abertura de conta à ordem –, que reveste a natureza de contrato-quadro, pois não só constitui o negócio jurídico nuclear que assinala o início de relação complexa e dotada de vocação de perdurabilidade, como estabelece o quadro básico do relacionamento entre cliente e instituição de crédito numa multiplicidade de contratos concomitantes e futuros, projetando-se ao nível da conta-corrente bancária e do giro bancário, os dois elementos necessários do contrato de abertura de conta[4].

Penso, contudo, que a teoria ora descrita sucintamente não se assume como a mais adequada para caracterizar a relação bancária instituída ao abrigo do sistema de acesso aos SMB. Como vimos acima, a operação de abertura de conta de SMB não é conduzida sob a égide do princípio da liberdade de celebração contratual, nem reveste de caráter intuitu personae, visto que a instituição de crédito não pode recusar-se (salvo motivo legítimo) a contratar com qualquer interessado. Como tal, parece-me que, neste caso (e, talvez até, na generalidade dos casos, fora do universo dos SMB), a relação bancária encontra melhor respaldo na teoria da relação obrigacional legal, sem dever primário de prestação, defendida por Claus-Wilhelm Canaris[5], porquanto se funda no direito objetivo, sendo anterior à celebração de qualquer contrato bancário, não apenas no que tange aos deveres gerais de proteção (em particular, os deveres de informação), mas mesmo, em larga medida, em relação ao conjunto do programa obrigacional norteador da situação jurídica que liga cliente e instituição de crédito[6].

Por outras palavras, e em síntese, não deixando, naturalmente, de reconhecer a existência de contrato entre o cliente e a instituição de crédito, creio, ainda assim, que a disciplina da relação de prestação de SMB decorre imediatamente da lei.


[1] Neste sentido, já no longínquo ano de 2001, Rodrigo Gouveia, Os serviços de interesse geral em Portugal, Coimbra Editora, 2001, pp. 123-125.

[2] A saber: à data do pedido de abertura de conta de SMB (ou de conversão de depósito à ordem em conta de SMB), o cliente é titular de outra conta de depósito à ordem, junto de instituição de crédito estabelecida em território nacional (a menos que um dos contitulares da conta de SMB seja uma pessoa singular com mais de 65 anos ou dependente de terceiros, por apresentar um grau de invalidez permanente igual ou superior a 60 %); o cliente recusar a emissão da declaração de não titularidade de outra conta de depósito à ordem prevista no n.º 2 do art. 4.º do Decreto-Lei n.º 27-C/2000.

[3] José Simões Patrício, Serviços Mínimos Bancários, in “Direito dos Valores Mobiliários”, volume IV, Coimbra Editora, 2003, pp. 223-225.

[4] António Menezes Cordeiro, Direito Bancário, 5.ª edição, 2013, Almedina, pp. 532-533 e 552-569.

[5] Claus-Wilhelm Canaris, Bankvertragsrecht, I, 3.ª edição, Walter de Gruyter, 1988, n.º 12 e ss.

[6] Manuel Carneiro da Frada, Deveres de informação e relação bancária (com vista para a intermediação financeira), in “Revista de Direito da Responsabilidade”, Ano 3, 2021, pp. 184-196.

A iliteracia financeira enquanto vulnerabilidade dos consumidores

Doutrina

Nas últimas semanas, tem tido destaque o tema da iliteracia financeira explorada como oportunidade de negócio, em termos que podem não ser os mais favoráveis para o consumidor.

A prática de comercialização de cursos sobre a monetarização dos mercados financeiros, à semelhança da comercialização de dicas de investimento, com promessas de um enriquecimento rápido, tem-se vindo a verificar há já algum tempo, afetando em grande escala as camadas mais jovens.

No fundo, um dos elementos-chave destes modelos de negócio está nas fortes técnicas de persuasão empregues na divulgação de cursos ou mesmo dicas de investimento, que levam muitas vezes os jovens a acreditar que, ao pagarem o respetivo preço, terão uma espécie de acesso automático ao estilo de vida luxuoso, despreocupado e livre de responsabilidades que os influenciadores digitais responsáveis pela divulgação dos materiais ilustram nas suas redes.

Por um lado, quanto ao comportamento dos influenciadores digitais em geral, é certo que por vezes a publicidade desenvolvida através das redes sociais desrespeita em larga escala os princípios resultantes do Código da Publicidade.

Neste contexto, cabe relembrar que tais princípios serão de aplicar também no universo digital, devendo assim, a título de exemplo, toda a mensagem publicitária ser devidamente identificada enquanto tal, obrigação que decorre do princípio da identificabilidade.

Por outro lado, no âmbito das estratégias de divulgação utilizadas em sede das plataformas digitais frequentadas por utilizadores de todas as idades, importa mencionar o princípio da veracidade, conforme disposto no art. 10.º do Código da Publicidade, que impõe como regra que a publicidade respeite a verdade, não deformando os factos.

Por outro lado, a propósito da publicidade especificamente feita a cursos, dispõe ainda o Código da Publicidade, no seu art. 22.º, que a mensagem publicitária deve indicar a natureza dos cursos, bem como a expressão “sem reconhecimento oficial” sempre que este não tenha sido atribuído pelas entidades oficiais competentes.

Numa perspetiva de direito criminal, será pertinente referir os crimes de burla, burla qualificada e usura. Nesse sentido, cabe relembrar que, para que determinada conduta seja qualificável enquanto crime, é necessário que o agente cometa um facto típico, ilícito, culposo e punível.

De acordo com o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 663/98, de 25 de novembro de 1998, proferido no processo n.º 235/98, e relatado pelo Cons. Sousa e Brito, “a burla, a extorsão e a usura, caracterizam-se por o prejuízo ser causado pela própria vítima através da provocação ou exploração ilícitas pelo agente de um vício da vontade: o erro na burla, a coação na extorsão, a situação de necessidade na usura. (…) São necessárias circunstâncias adicionais que tornam socialmente tão grave a culpa do incumprimento que se torna necessária a intervenção do direito penal.”

Nomeadamente, no que ao crime de burla diz respeito (cf. art 217.º do Código Penal), trata-se de um crime semipúblico, pelo que o procedimento criminal depende de queixa. Ademais, em relação à conduta típica, são três os elementos a considerar: a intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo; que tal enriquecimento seja obtido por meio de erro ou engano sobre factos astuciosamente provocados pelo agente; e que tais factos provocados pelo agente determinem outrem à prática de atos que lhe causem, a si ou a terceiro, um prejuízo patrimonial. No fundo, para que o tipo de crime se preencha, será necessário que haja um nexo de causalidade forte entre o prejuízo patrimonial do ofendido e o enriquecimento do agente.

Por outro lado, provando-se que o agente pratica o crime de burla como modo de vida (não tendo para tal que se dedicar de forma exclusiva à prática do ato em questão, cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 16/06/2015 e relatado por Inácio Monteiro), ou mesmo que o agente, aquando da prática do ilícito, se aproveitou de situação de especial vulnerabilidade da vítima, nomeadamente em razão de idade, poderemos estar em face de um crime de burla qualificada, no âmbito do qual a moldura penal pode ir até aos oito anos. Neste caso, estamos perante um crime público, que como tal poderá ser investigado e submetido a julgamento pelo Ministério Público, mesmo sem ou contra a vontade do ofendido.

Ademais, cabe relembrar que o Código Penal prevê ainda o tipo de crime de usura, no seu art. 226.º, de acordo com o qual é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias, quem, com intenção de alcançar um benefício patrimonial, para si ou para outra pessoa, explorando situação de necessidade, anomalia psíquica, incapacidade, inépcia, inexperiência ou fraqueza de carácter do devedor, ou relação de dependência deste, prometa, sob qualquer forma, a seu favor ou a favor de outra pessoa, vantagem pecuniária que for, segundo as circunstancias do caso, manifestamente desproporcionada com a contraprestação. Neste caso, a intervenção do direito de ultima ratio deriva da necessidade de prevenção da exploração económica de um sujeito que se encontra numa situação de especial vulnerabilidade, sendo levado a acreditar pelo agente da prática do crime que será o negócio usurário que o levará a ultrapassar o seu estado de fragilidade.

Em suma, dúvidas não restam quanto ao facto de a iliteracia financeira ser uma questão bastante séria e capaz de influenciar em larga escala as decisões de contratar dos consumidores, especialmente nos casos em que estes não estão munidos de todas as informações necessárias para uma escolha informada.

Contratos celebrados à distância relativos a serviços financeiros

Jurisprudência

Continuamos hoje a análise da jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) no primeiro semestre de 2020, dedicando-nos ao tema dos contratos celebrados à distância relativos a serviços financeiros.

O direito europeu regula de forma separada os contratos celebrados à distância em geral (Diretiva 2011/83/EU, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Outubro de 2011, relativa aos direitos dos consumidores) e os contratos celebrados à distância relativos a serviços financeiros (Diretiva 2002/65/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de setembro de 2002, relativa à comercialização à distância de serviços financeiros prestados a consumidores).

aqui analisamos em agosto três decisões do TJUE que incidem sobre o primeiro diploma (a que se soma uma quarta, já do segundo semestre, analisada no início deste mês), tendo então ficado prometido que faríamos uma análise separada dos contratos relativos a serviços financeiros.

É essa a promessa que agora cumprimos.

No Processo Sparkasse Südholstein, C‑639/18 (acórdão de 18 de junho de 2020), estava em causa a questão de saber se a Diretiva 2002/65/CE se aplica a um contrato através do qual as partes alteram um contrato de crédito anteriormente celebrado “quando essa modificação diz respeito unicamente à taxa de juro estipulada (acordo complementar relativo à taxa de juro), sem prorrogar a duração do empréstimo nem alterar o seu montante”.

A resposta dada pelo tribunal é negativa.

Segundo o tribunal (considerando 30), “decorre tanto de uma interpretação literal como sistemática do artigo 2.°, alínea a), da Diretiva 2002/65 que se deve considerar como «contrato relativo a serviços financeiros» o contrato que prevê a prestação desses serviços. Ora, este requisito não está preenchido no caso de, como no processo principal, o acordo complementar em causa apenas ter por objeto a adaptação da taxa de juro devida em contrapartida de um serviço já acordado”. Acrescenta-se ainda como argumento neste sentido, nos considerandos 32 e 33, a finalidade da Diretiva (“assegurar um elevado nível de proteção dos consumidores para garantir um reforço da sua confiança na venda à distância e garantir a livre circulação dos serviços financeiros”), considerando-se que “tal objetivo não exige necessariamente que, nos casos em que, em conformidade com uma cláusula inicial de um contrato de empréstimo, um acordo complementar ao mesmo fixe uma nova taxa de juro, esse acordo complementar deva ser qualificado como novo contrato relativo a serviços financeiros”.

Os contratos que alterem contratos abrangidos pela Diretiva apenas no que respeita à taxa de juro não são, portanto, abrangidos pelo diploma.

O Processo Leonhard, C‑301/18 (acórdão de 4 de junho de 2020), incide sobre o tema do direito de arrependimento, em especial sobre os efeitos do exercício do direito por parte do consumidor.

O art. 7.º-4 da Diretiva 2002/65/CE estabelece que “o prestador fica obrigado a restituir ao consumidor, o mais rapidamente possível, e o mais tardar no prazo de 30 dias de calendário, quaisquer quantias dele recebidas nos termos do contrato à distância, com exceção do montante […] [relativo ao serviço financeiro efetivamente prestado]”.

O tribunal alemão de reenvio veio perguntar ao TJUE se o preceito transcrito pode ser interpretado no sentido de que o consumidor tem o direito de obter, além do reembolso do capital e dos juros pagos em execução desse contrato, uma indemnização pela utilização desse capital e desses juros por parte do profissional, como parece estar previsto no BGB (Código Civil alemão).

Tratando-se de uma diretiva de harmonização máxima, os Estados-Membros não podem prever outras regras que não as consagradas no diploma, ainda que estas possam ser mais favoráveis ao consumidor. Não estando previsto na Diretiva um direito do consumidor a indemnização, o TJUE responde à questão colocada pelo tribunal nacional em sentido negativo.

O direito nacional não pode, assim, conceder ao consumidor uma indemnização pela utilização pelo profissional das quantias recebidas do consumidor.